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OS PRECEDENTES JUDICIAIS O ART. 926 DO C

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OS PRECEDENTES JUDICIAIS, O ART. 926 DO CPC E SUAS PROPOSTAS
DE FUNDAMENTAÇÃO: UM DIÁLOGO COM CONCEPÇÕES
CONTRASTANTES
Judicial precedents, the Civil Process Code section 926 and its proposal of substantiation:
a dialogue with contrasting conceptions
Revista de Processo | vol. 263/2017 | p. 335 - 396 | Jan / 2017
DTR\2016\24937
Dierle Nunes
Doutor em direito processual (PUC-MG/Università degli Studi di Roma “La Sapienza”).
Mestre em direito processual (PUC-MG). Professor permanente do PPGD da PUC-MG.
Professor-adjunto na PUC-MG e na UFMG. Secretário-adjunto do Instituo Brasileiro de
Direito Processual. Membro fundador do ABDPC. Membro da International Association of
Procedural Law, Instituto Panamericano de Derecho Procesal e Associação Brasileira de
Direito Processual (ABDPRO). Diretor executivo do Instituto de Direito Processual
–IDPro. Diretor do departamento de direito processual do IAMG. Membro da Comissão
de Juristas que assessorou no Novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados.
Advogado. dierlenunes@gmail.com
Flávio Quinaud Pedron
Doutor e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG. Professor do PPGD da
Faculdade de Direito de Guanambi/BA. Professor-adjunto da PUC-MG e do IBMEC/MG.
Membro da ABDPC. Advogado. qpedron@gmail.com
André Frederico de Sena Horta
Mestrando em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG. Advogado.
andre.fh@hotmail.com
Área do Direito: Constitucional; Processual
Resumo: A institucionalização efetiva de um processo constitucionalizado se tornou
essencial com a recente entrada em vigor do CPC/2015 e exige um diálogo com uma
série de concepções teóricas que se apresenta em nosso país para explicar os
fundamentos dos precedentes. Nesse sentido, promoveremos uma interlocução com uma
linha teórica que defende que a última voz do Direito caberia aos Tribunais Superiores,
sob uma suposta indeterminação que legitimaria seu papel de definição do “verdadeiro”
sentido, buscando demonstrar suas inconsistências e os riscos de acolhimento de tal
premissa teórica. Como contraponto, apresentaremos a proposta Dworkiniana e seu viés
democrático, na busca por um sistema jurídico constitucionalizado que se afaste de
discursos salvacionistas centrados nos Tribunais Superiores, e assumindo um papel
libertário para o Direito embasado em uma leitura adequada dos direitos fundamentais e
da teoria da integridade.
Palavras-chave: Processo Civil - Constituição - Democracia - Precedente Judicial -
Integridade.
Abstract: The effective institutionalization of a constitutionalized process became
essential with the recent entry in effect of the new Civil Process Code (2015) and
demands a dialogue with several theoretical conceptions which are present in our
country so that the foundations of precedents can be explained. In this sense, we will
promote an interlocution with theories which endorse that the final word in Law should
rest on the Superior Courts, under the supposed indetermination which would legitimate
its role in defining the “true” meaning, aiming to demonstrate its inconsistencies and the
risks of the reception of such theories. As a counterpoint, we will present Dworkinian
propositions and its democratic bias, in the search of a constitutionalized system that
departs from salvationists doctrines centered in the Superior Courts, and assuming a
libertarian role for the Law based on an adequate reading of the fundamental rights and
the integrity theory.
Os precedentes judiciais, o art. 926 do CPC e suas
propostas de fundamentação: um diálogo com
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Keywords: Civil Process - Constitution - Democracy - Judicial Precedent - Integrity.
Sumário:
1Considerações iniciais - 2Antes de analisar os precedentes – Em busca dos
pressupostos Dworkinianos - 3A crítica à questão da discricionariedade e a proposta de
uma comunidade de princípios - 4A integridade na aplicação judicial do direito - 5Do
necessário diálogo com alguns dos críticos da teoria da integridade Dworkiniana - 6Do
equívoco da “tese” das cortes supremas – Primeiros apontamentos - 7Uma advertência
final
1 Considerações iniciais
A ciência processual brasileira se encontra com uma oportunidade das mais relevantes
com o advento do Novo Código de Processo Civil, desde que não se deixe profanar pela
reprodução simplificada da produção de pensadores influentes e consiga se desgarrar do
pensamento incrustado em nível pré-reflexivo, trazido por uma tradição de matriz
estatalista e reafirmada diuturnamente no Brasil por correntes de pensamento por vezes
apresentadas sob um suposto viés de sofisticação.
Sabemos que, desde 1988, há uma afirmação recorrente de que introduzimos, em
termos normativos, um modelo constitucional de processo, que deveria moldar toda a
atividade processual dos envolvidos no sistema processual. No entanto, até hoje, estes
ideais não conseguiram ser plenamente institucionalizados e internalizados pelos
participantes do debate processual, que continuam a atuar em caráter de legitimação e
mantença das antigas práticas estruturadas desde o advento do processualismo
científico de viés socializador, valendo-se dos institutos processuais (jurisdição e
processo, verbi gratia) como se sua funcionalidade e conteúdos tivessem passado
incólumes pelo século XX e início do XXI, quando, em verdade, precisamos buscar a
adequação normativa inerente às mudanças sociais e às próprias litigiosidades ao largo
desde período.
O direito em geral (e o processual, em especial) acabou se comportando até
recentemente como ciência da ordem, ou seja, acabou reafirmando e legitimando as
estruturas de poder imperantes de modo a manter o mundo como ele é,1 quando
sabemos que um dos grandes desafios ofertados pelo segundo pós-Guerra foi
exatamente o de possibilitar um potencial libertário para o direito, que, mediante uma
reflexão crítica profunda, permitiria um funcionamento contrafático (corretivo) das
realidades absurdas naturalizadas pela reprodução de comportamentos viciados.
Como há muito se vem denunciando: não se pode realizar este projeto democrático pelo
Direito mediante discursos de protagonismo (do judiciário, por exemplo),2 mesmo que
das Cortes de Vértice.
Dentro da função democrática que o Direito Processual precisa assumir, é necessário
institucionalizar verdadeiramente – para além de um discurso retórico, no agir de todos
os sujeitos processuais – um modelo constitucional que implemente uma especial visão
garantística3 do processo na efetivação dos direitos, especialmente os fundamentais.
Viabilizar-se-ia, assim, uma limitação de atuação daqueles que participam do processo
de forma equivocada e se inauguraria uma hermenêutica processual condicionada à
Constituição e à ideia de Estado Democrático de Direito, à luz da comparticipação e do
policentrismo.4 Não se acredita mais na clarividência de juízes, ou em que uma boa
decisão decorreria, necessariamente, de um magistrado que tenha múltiplas formações
extrajurídicas, ou, ainda, em seus aspectos ideológicos,5 especialmente quando se
percebem seus enviesamentos cognitivos.6 Devemos parar de romantizar a atuação de
qualquer órgão decisor e estudar com profundidade os dilemas da sociedade, das
litigiosidades e do sistema processual brasileiro.
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O CPC/2015 (LGL\2015\1656) pretende alinhar-se ao modelo constitucional de processo,
pois se evidencia no texto legislativo o reforço de seu aspecto principiológico logo em
seu capítulo introdutório, que menciona, expressamente, o princípio da boa-fé objetiva
(art. 5.º), a regra da cooperação entre os sujeitos processuais (art. 6.º – teoria
normativa da comparticipação), e o contraditório como paridade de “armas” (art. 7.º),
bilateralidade de audiência (art. 9.º) e, mais importante, como garantia de influência e
nãosurpresa (art. 10). Além disso, o art. 11 garante a publicidade dos julgamentos
(exceto os proferidos nos processos que tramitam em restrição de publicidade,
comumente chamado como “segredo de justiça”) e a necessidade de observância ao
dever de fundamentação decisória.
Em se tratando deste último, o § 1.º, do art. 489, do CPC/2015 (LGL\2015\1656), é da
maior importância. Embora não estabeleça quais são os requisitos a ser atendidos para
que uma decisão seja considerada fundamentada, diz quando uma decisão não o é nas
hipóteses descritas em seus seis incisos.7
A contrario senso, o mínimo que uma decisão deve estabelecer é a relação dos atos
normativos suscitados com a causa ou a questão decidida; a explicação concreta da
incidência de conceitos jurídicos indeterminados utilizados na resolução da demanda;
sua especificidade em relação ao caso concreto; o enfrentamento de todos os
argumentos jurídicos relevantes, contra e a favor do entendimento nela
consubstanciado; os padrões de identificação e de distinção entre os precedentes e
enunciados de súmula e o caso presente; e os argumentos de superação de um
precedente, uma jurisprudência ou um enunciado de súmula suscitado pela parte.
Ainda que, por um lado, possa-se afirmar que seria desnecessária a repetição, em um
diploma legal, de deveres e garantias processuais já previstos na Constituição da
República (ou nela implícitos) – uma vez que a subordinação é da Lei à Constituição, e
não o contrário –, de outro, o aspecto principiológico do CPC/2015 (LGL\2015\1656)
revela uma preocupação em se implementar a observância àqueles deveres e garantias,
pois, no Brasil, ainda predomina uma mentalidade (equivocada) segundo a qual os
princípios (como normas constitucionais) seriam meramente programáticos, carecendo
de aplicação imediata e estando condicionadas à regulamentação legislativa e, com isso,
esvaziar-se-ia a força normativa da Constituição.
Tendo em vista que o CPC/1973 (LGL\1973\5) não possuía esse aspecto principiológico
(e havia uma resistência em se ler o antigo Código à luz da Constituição), o legislador
houve por bem desenhar o modelo constitucional de processo no CPC/2015
(LGL\2015\1656).
Em outra sede,8 já se havia chamado atenção para o risco que se corre se a comunidade
jurídica ler o novo Código sob o olhar do antigo, mantendo “o ‘velho’ modo de
julgamento empreendido pelos magistrados, que, de modo unipessoal (solipsista),
aplicam teses e padrões sem a promoção de juízos de adequação e aplicabilidade ao
caso concreto.
Citam-se ementas e súmulas de forma descontextualizada, e não se evidencia uma
preocupação em instaurar um efetivo diálogo processual com os advogados e as partes,
especialmente se a doutrina não reassumir a função e a postura crítica que dela se
espera, ao contrário de se conformar em repetir o ementário e os enunciados sumulares
de uma prática jurisprudencial que se vale, em um círculo vicioso, dos mesmos
enunciados e ementas.
É no contexto de quebrar com essa prática judiciária viciada que o CPC/2015
(LGL\2015\1656) estrutura um novo modelo dogmático (constitucionalizado) para o
direito jurisprudencial no Brasil, promovendo o uso adequado dos precedentes judiciais –
e fazendo um “convite” normativo a tanto. E o faz, em especial, a partir do disposto em
seu art. 926,9 que estabelece deveres cooperativos normativos a ser observados pelo
Poder Judiciário e constitui o que se pode chamar de chave de leitura daquele novo
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modelo dogmático.
No entanto, uma advertência deve ser feita ao leitor e ao intérprete do sistema antes de
continuarmos: a estruturação normativa de um sistema de precedentes não pode (nem
deve) representar a defesa de um modelo jurisprudencialista de aplicação (nem mesmo
de ensino jurídico) como se o direito fosse apenas visto sob a perspectiva dos juízes, eis
que jamais se deve reduzir o sistema jurídico a uma construção jurisprudencial.10
Daí termos de sondar com profundidade concepções críticas que serviram de
pressuposto para a construção do CPC/2015 (LGL\2015\1656), a fim de que possamos
lidar com o direito jurisprudencial sem que ele se torne uma suposta chave mágica de
melhoria do sistema, criando-se um novo mito perigoso, pois, caso não seja
devidamente interpretado e aplicado, constituiria uma ferramenta para a consolidação de
um projeto de poder do Direito visto somente pelos tribunais.
A abertura e a institucionalização efetiva de um processo constitucionalizado se tornam
essenciais neste momento e, para tanto, necessitamos continuar de modo a perceber
alguns dos pressupostos de nossa nova lei processual. Para tanto, manteremos um
diálogo com uma série de concepções teóricas que se apresentam, na atualidade, em
nosso país para explicar os fundamentos dos precedentes.
Manteremos uma interlocução com uma linha teórica que defende que a última voz do
Direito caberia aos Tribunais Superiores (“Cortes Supremas”) sob uma suposta
indeterminação que legitimaria seu papel de definição do “verdadeiro” sentido, buscando
demonstrar suas inconsistências, e mostrando os riscos da assunção desta premissa
teórica que manteria os riscos da ausência de previsibilidade para o ordenamento
jurídico, sem olvidar dos riscos de legitimar a atuação destes tribunais, que poderiam
manter seu modus operandi e crença de que poderiam criar teses usando casos como
pretextos, em conformidade com escolhas de “poder”, aproximando o discurso judicial
de aplicação do discurso legislativo de justificação, sem a existência dos mesmos
controles processuais.
Como contraponto, mostraremos a proposta Dworkiniana e seu viés democrático.
Comecemos por esta parte.
2 Antes de analisar os precedentes – Em busca dos pressupostos Dworkinianos
Ordinariamente, os intérpretes de um sistema de precedentes se postam ora em uma
proposta convencionalista,11 com a busca das convenções do passado, ora em uma
proposta pragmatista,12 perseguindo um compromisso com o futuro que acaba se
desgarrando da normatividade (busca da legitimação de juízos decisórios prospectivos).
13
No entanto, nosso sistema abertamente se vinculou à concepção do direito como
integridade (art. 926), de modo que o foco do presente trabalho é verificar em que
consiste esse respeito à virtude da integridade (e também de coerência – entendendo
que não são termos sinônimos), resgatando o seu significado com amparo na filosofia de
Ronald Dworkin, um teórico norte-americano e dos mais importantes e lidos autores
contemporâneos no Direito, na política, na filosofia e na economia.14
O tema de trabalho central de Dworkin sempre foi a questão da legitimidade do Direito
Contemporâneo15 e, com isso, a justificação do uso coercitivo do poder estatal. Pensar
nisso somente faz sentido sob as balizas de uma teoria democrática, haja vista que a
contemporaneidade já não reduz legitimidade à mera legalidade. Dessa forma, natural a
preocupação de Dworkin em combater o positivismo jurídico e a concepção de que o
poder institucional está autorizado (ainda que em caráter excepcional) a agir com
discricionariedade – principalmente a judicial – e em oferecer, em contrapartida, uma
teoria capaz de nortear as práticas jurídico-políticas de uma sociedade à luz de um
compromisso de conferir a essas práticas a melhor orientação e leitura possíveis (tese da
right answer) marca profundamente a obra do filósofo, sob o pano de fundo da virtude
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da integridade.
Perceba-se que Dworkin persegue os mais nobres papéis da ciência jurídica, quais
sejam, o de servir suposto contrafático (corretivo) das vicissitudes dos diversos sistemas
jurídicos ao tentar analisar os contextos de aplicação do Direito numa perspectivaque se
preocupa tanto com o passado quanto com o futuro, o de denunciar suas inconsistências
e o de apresentar uma proposta que ultrapasse o senso comum teórico que acaba
legitimando os equívocos perpetuados de modo irrefletido pelos sujeitos processuais.
Cabe aos processualistas, de igual modo, postarem-se contra as ilusões e cegueiras que
o olhar recorrente que uma ciência processual ainda ligada às velhas premissas da
socialização processual e a correntes estatalistas insistem em apresentar como
pressupostos normativos válidos. A projeção no campo processual da busca de uma
correção normativa (exigida pela virtude da integridade) se torna essencial na atividade
do jurista, mesmo quando se percebe que o ambiente do processo judicial é conduzido
por interações estratégicas de índole não cooperativa.16
Dworkin desenvolveu o argumento segundo o qual os vários conceitos e departamentos
do valor são interligados e apoiam-se uns aos outros,17 e uma de suas propostas é a
demonstração da interação entre a ética, a moral, a política e o direito – esta tese é
chamada de tese da unidade do valor. O objetivo central aqui é assumir uma teoria mais
ampla, que negue qualquer tipo de arquimedianismo,18 característica típica da afirmação
de “pureza” dos juristas positivistas.
Dworkin chama de arquimedianismo (archimedeanism) as leituras que buscam separar
de maneira rígida o Direito da política, da ética e/ou da moral, criando barreiras
sistêmicas, que isolam cada categoria/departamento, analisando-as sempre
separadamente e nunca em interação ou em complementariedade. O arquimediano
coloca-se como um observador externo à prática (Direito, Moral, Política etc.) e a analisa
de modo meramente descritivo sob tal condição, esquecendo-se – ou pretendendo
ignorar, mais possivelmente – que tais práticas sociais somente podem ser realmente
apreendidas por meio do olhar do participante. Como consequência, o arquimediano
afirma a possibilidade de desenvolver uma leitura das práticas sociais livre de valores
pessoais ou culturais do observador.
Guest19 chama atenção para o fato de Dworkin seguir a linha de raciocínio traçada por
Williams,20 realizando uma distinção entre ética (como cada um deve viver – vida-boa,
ou melhor, como cada um de nós tem o dever de fazer de nossas próprias vidas a mais
valiosa, a partir do nosso padrão de felicidade) e moralidade (como cada um deve agir
em relação aos demais, buscando tratar a todos de modo igualmente valioso). Na
filosofia dworkiniana, essa distinção conduz à busca por padrões éticos com aptidão para
guiar a interpretação de conceitos morais, os quais devem ser compreendidos de forma
a se encontrar quais objetivos pessoais se adequariam, de um lado, e se justificariam
obrigações imputáveis a cada um de nós, de outro.
Dworkin defende a ideia de que cada um tem, na dignidade humana,21 a
responsabilidade ética de transformar a própria vida em algo de valor. Uma pessoa vive
bem quando procura uma boa vida para si, com respeito pela vida das demais pessoas e
por sua própria vida – há, portanto, dois ideais aqui implicados: o de viver bem e o de
ter uma vida boa, sendo que o primeiro nos manda assumir a responsabilidade pessoal
pelas escolhas que fazemos22 e, por vida boa, entende-se a escolha de projetos de vida
capazes de conduzir a felicidade individual do agente. Entretanto, Dworkin não atrela
essa escolha de projetos e objetivos pessoais à adesão do agente a escolhas feitas por
outros membros da comunidade; isto é, ele não defende a existência de projetos
substantivos de vida boa.
A tese da unidade do valor guarda, portanto, uma consequência teórica fundamental: a
integração entre a moralidade e a ética. Se cada um de nós tem alguma razão para
pensar que sua própria vida é importante, isso seria motivo o bastante para que cada
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um também se importasse com a vida alheia? De acordo com o princípio kantiano
(aceito por Dworkin), segundo o qual é impossível a cada um respeitar a própria
humanidade sem, ao mesmo tempo, respeitar a humanidade nos outros, então a
resposta à pergunta deve ser, necessariamente, positiva. Segundo Dworkin,23 essa
integração apenas é possível caso se encontre algum aspecto ou dimensão do viver bem
que, ao menos em princípio, não seja dependente dos deveres de cada um para com os
outros decorrentes da moral, mas que afete esses deveres e seja por eles afetado – isto
é, não se trata de uma forçada integração em que a moral é simplesmente incorporada à
ética, mas, sim, de uma integração em que uma apoia a outra, no sentido de que o
refletir criticamente sobre o bem viver ajuda na compreensão de quais são as
responsabilidades morais de cada um de nós.
Para tanto, devem-se considerar dois princípios: o do respeito por si mesmo, no sentido
de que cada um deve levar a sério a sua própria vida e de esforçar-se por fazer dela um
empreendimento bem-sucedido, e não uma oportunidade perdida; e o da autenticidade,
pelo qual cada um tem a responsabilidade especial e pessoal de identificar os elementos
que tornarão a sua própria vida bem-sucedida.
Ambos os princípios devem ser tratados como equações simultâneas a ser resolvidas de
forma conjunta, na perspectiva de que ambos se apoiam mutuamente. Por isso, a moral
nos manda tratar as outras pessoas considerando que a vida dessas pessoas tem
importância objetiva igual à nossa, e atos que atentem contra esse dever de igual
consideração e respeito não apenas são contrários à moralidade, mas também afetam
negativamente a ética por meio da qual nos esforçamos para tornar nossas próprias
vidas como algo de valor e importante em si (consubstanciado, por exemplo, numa
leitura normativa da boa-fé objetiva).
Este empreendimento conjunto no campo processual é essencial na medida em que os
resultados do sistema dependem da assunção de responsabilidade por cada sujeito
processual, mediante a percepção de que cada um assume um papel específico dentro
dos debates processuais. O sistema processual jamais será eficiente (e legítimo) se
aceitarmos os desvios de comportamento de todos os sujeitos processuais a partir de
supostas práticas incrustadas e repetidas, contrárias à normatividade e à própria
Constituição, ou de uma presumida incapacidade de mudar vícios percebidos pelo senso
comum e naturalizados de acordo com pretensas heranças e peculiaridades
especialíssimas do Brasil.
Caso tais responsabilidades não sejam percebidas: (a) cada juiz continuará julgando
como se estivesse em um grau zero24 de interpretação, em que seus posicionamentos
pessoais que desconsideram a lei (e os precedentes) contaminam a eficiência qualitativa
do sistema ao se manter uma anarquia interpretativa que acaba fomentando o
demandismo desprovido de fundamentos; e (b) cada advogado continuará postulando e
militando num sistema desprovido de qualquer previsibilidade.
A ausência de preocupação com tais responsabilidades não leva em consideração o uso
estratégico da jurisdição por grandes litigantes (repeat players), que acabam impondo
suas pautas e interesses, com maior proficiência, no âmbito jurídico.25
A integração entre a ética e a moral nos permite concluir, então, que deixar de tratar os
demais de acordo com as nossas próprias responsabilidades morais é incompatível com
o bem viver e com a normatividade que uma concepção comparticipativa assume. A
partir dessa integração, é possível afirmar que as responsabilidades que cada um tem
perante os demais, a proibição normativa à causação de dano, as obrigações
decorrentes das promessas, dentre muitos outros desdobramentos da responsabilidade
moral, são dimensões do respeito que devemos nutrir por nós mesmos.26
No que tange à atividade estatal, apenas se satisfizer os desdobramentos da moralidade
política o Estado terá legitimidade, que constitui a origemmais abstrata dos direitos
políticos. Na filosofia dworkiniana, esses direitos políticos constituem trunfos dos
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cidadãos perante as políticas coletivas do governo. Desrespeitados esses trunfos, a
atuação estatal não será legítima.
Segundo Dworkin, o governo só tem autoridade moral para exercer coerção sobre
alguém, ainda que para aumentar o bem-estar ou o caráter bom da comunidade como
um todo, se observar e implementar os princípios de igual consideração e respeito.
Ambos esses princípios – não custa repetir – originam-se da moralidade pessoal, que,
por sua vez, encontra raízes na ética.
Mas não basta apenas uma teoria da igualdade. É preciso, também, uma teoria da
liberdade (que também está inserida em uma moralidade política), a qual, para não
conflitar com a primeira, exige a distinção entre autonomia (freedom) e liberdade (
liberty). A autonomia consiste na faculdade de cada um de fazer o que bem entender
sem ser constrangido pelo Estado, e a liberdade constitui a parte da autonomia em que
seria errado o Estado constranger o indivíduo. Dworkin não sustenta um direito geral à
autonomia, mas, sim, diversos direitos à liberdade que repousam sobre diferentes
fundamentos, os quais, por sua vez, são lastreados pela noção de independência ética –
a qual decorre do princípio da responsabilidade pessoal e do respeito que o Estado deve
nutrir por essa responsabilidade.
Há um segundo conflito aparente: de um lado, liberdade e igualdade; de outro, o direito
de cada pessoa participar como igual no governo de sua vida. Para resolver esse suposto
conflito, Dworkin distingue uma democracia majoritarista (ou estatística) de uma
concepção democrática comparticipativa, a qual endossa e assim caracteriza: “numa
comunidade verdadeiramente democrática, cada cidadão é um parceiro em igualdade de
condições, o que vai muito além do simples fato de seu voto valer o mesmo que o dos
outros” – “significa que ele tem a mesma voz e igual interesse nos resultados”.27
Assim, a igualdade política requer que o poder político seja distribuído de maneira a
confirmar a preocupação e respeito iguais da comunidade política por todos os seus
membros. Por isso, uma teoria da democracia necessita de uma boa teoria política que
fomente os princípios do igual respeito e consideração que, por sua vez, decorrem de
uma moral pessoal cujo fundamento repousa na dignidade, na importância que cada um
deve atribuir à sua própria vida e à dos demais, e no esforço que se deve dedicar ao
empreendimento do bem viver.
No entanto, a ética da qual, por meio da moral, defluem a moralidade política e as
noções de igualdade, liberdade e democracia depende de uma boa teoria do direito. Isso
porque os princípios da dignidade, pelos quais a comunidade política não tem poder
moral para criar e impor obrigações contra seus membros, senão quando os trata com
igual consideração e respeito ou quando os destinos e responsabilidades pessoais de
cada um sejam, nos programas governamentais, igualmente importantes, declaram
direitos políticos (trunfos) muito abstratos.28
Que o Estado deve tratar todos com igual consideração e respeito é algo de que em uma
democracia moderna ninguém duvida e dificilmente haverá dissensos quanto a isso no
grau de abstração em que proposto. O problema é que a divergência entre os membros
de uma comunidade cresce na mesma medida em que se começa a tentar delinear quais
são os direitos mais concretos que decorrem daqueles direitos mais abstratos,
especialmente em ambientes não cooperativos, como os processuais.
Precisamos, portanto, de uma teoria que dê conta das divergências e controvérsias
sinceras de uma comunidade acerca de quais são os direitos que seus membros
efetivamente possuem.
Antes de prosseguir, é preciso estabelecer uma importante distinção: a diferença entre
direitos jurídicos e direitos políticos na filosofia dworkiniana. Direito jurídico consiste em
“um direito proclamado pelo órgão legislativo de um governo legítimo” [ou seja, que
respeite os princípios da dignidade], ainda que tenha de ser declarado ou reconhecido
por um órgão jurisdicional, de modo que um “direito jurídico pode ter a finalidade de dar
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efeito a um direito político preexistente”.29
Sob esse aspecto, é importante perceber que nem sempre os direitos políticos são
transformados em direitos constitucionais ou mesmo em direitos jurídicos, assim como
nem todo direito jurídico corresponde, necessariamente, a um direito político
preexistente, embora o direito jurídico, em si, possa ser considerado um direito político
dotado de poder de trunfo.
3 A crítica à questão da discricionariedade e a proposta de uma comunidade de
princípios
Com base nessas considerações, é possível sustentar que o precedente judicial possui
um fundamento ético e, por isso mesmo, contribui para o dimensionamento e
desenvolvimento de uma teoria do Direito que promova os valores políticos, à luz da
integridade (e da coerência) hauridas na filosofia dworkiniana. Para verificar o acerto
dessa hipótese, precisamos retornar a outros textos do autor.
A primeira questão a ser abordada é a discricionariedade judicial, que constitui um dos
preceitos-chave do positivismo jurídico (corrente filosófica duramente criticada por
Dworkin ao longo de sua carreira). O esqueleto do positivismo é constituído pela noção
de que a comunidade é apenas uma comunidade de regras, que podem ser identificadas
com o auxílio de testes que não analisam o seu conteúdo, mas, sim, o seu pedigree, e
que essas regras conferem direitos e obrigações jurídicos sem as quais não se pode
afirmar a existência de qualquer direito ou obrigação; quando, então, o juiz, exercendo o
seu discernimento pessoal (discricionariedade), irá “além do direito” na busca por algum
outro tipo de padrão que o oriente na confecção de nova regra jurídica ou na
complementação de uma regra já existente30 em virtude de uma suposta
indeterminação prévia de conteúdo.
Para expor as críticas do filósofo ao poder discricionário, é preciso distingui-lo segundo a
sua força: em um sentido fraco, a discricionariedade quer dizer que há um espaço vazio
ao redor do qual existe uma série de restrições que constitui padrões a ser aplicados,
embora não tão claros e, por isso, não possam ser aplicados mecanicamente, exigindo
certa capacidade de julgar. Há um segundo sentido em que o poder discricionário tem
força fraca: quando determinada pessoa tem autoridade para decidir algo em última
instância, de modo que essa decisão não poderá ser revista ou anulada por qualquer
outra pessoa ou autoridade.31
Por sua vez, discricionariedade em sentido forte ultrapassa o discernimento que
determinada pessoa deve ter na aplicação de certos padrões que lhe foram estabelecidos
ou de que a decisão tomada por essa pessoa não poderá ser revista ou anulada, e é
desse sentido forte de que a doutrina positivista trata. Um positivista hartiano, por
exemplo, argumenta que os princípios não podem ter força jurídica, uma vez que sua
autoridade e seu peso são intrinsecamente controversos, de modo que não podem
prescrever qualquer resultado em particular e que, em razão disso, a pessoa incumbida
de decidir determinada controvérsia não está limitada por quaisquer padrões,32
permitindo-se escolhas em razão da indeterminação do sistema jurídico.
Suponhamos a seguinte situação: um sargento dá ordens ao seu subordinado para que
ele escolha cinco soldados que o acompanharão em uma missão. Se considerarmos que
o subordinado pode escolher quaisquer cinco soldados, dizemos que ele tem poder
discricionário em sentido forte, pois não há nada que o limite em sua escolha. Nada o
impediria, portanto, deescolher os cinco soldados mais amigos, ou mais astutos, ou
mais feios, ou mais altos, ou mais bravos, ou mais chatos. Não importa qual
característica seja adotada como parâmetro para a escolha, a ordem dada pelo sargento
restará cumprida, e a missão poderá ter início, caso a discricionariedade seja tolerada
em seu sentido forte.33 Mas, se considerarmos que, dentre os soldados à disposição,
deva-se escolher aqueles cinco que têm mais experiência e habilidade, então não se
poderá dizer mais em discricionariedade em sentido forte, mas, sim, naquele primeiro
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sentido de discricionariedade em sentido fraco, ainda que não seja fácil discernir quais
são os cinco soldados mais aptos para a missão.
Nesse contexto da discricionariedade em sentido fraco, com base em quais critérios,
então, o subordinado deverá escolher os cinco soldados, isto é, o que caracteriza a
experiência ou a habilidade que se espera existir nos soldados a ser escolhidos?
Será que, em uma missão marítima, os soldados a ser escolhidos devem ser os melhores
soldados com experiência terrestre? Em uma missão de infiltração furtiva, serão
necessários os soldados mais experientes com explosivos? Ou, em uma missão a ser
cumprida no meio de uma densa floresta tropical, seriam necessários atiradores à
distância de elite? Veja-se que em qualquer dessas situações, assim como em muitos
outros possíveis exemplos, é impossível negar a experiência de qualquer um dos
soldados em suas respectivas expertises.
Mas será que o que vale é apenas a expertise de cada um dos soldados considerada
isoladamente, ou haveria outros critérios a ser satisfeitos? Ora, para que a escolha dos
soldados atenda à experiência e à habilidade esperadas, é preciso, antes de tudo, que se
conheça a missão, para apenas então se escolher os cinco soldados considerando o tipo
de habilidade de cada um de forma adequada.
E, por qual razão o responsável pela escolha deve se preocupar em conhecer e analisar
todas essas particularidades? Considerando que ele é o líder da missão e que, por isso,
irá acompanhar os soldados, então é melhor que ele faça a sua escolha de forma
criteriosa e responsável à luz do que a missão requer, caso contrário, colocará a própria
vida em risco e a missão poderá ser um completo fracasso.
O exemplo dado cumpre uma função metafórica: os conceitos jurídicos são, assim como
a ordem do sargento, contestáveis e controversos, mas nem por isso o magistrado está
isento de formular, a partir do debate do processual e em ambiente comparticipado, a
melhor concepção desses conceitos a partir da melhor compreensão das regras e dos
princípios extraídos da moralidade política de determinada comunidade. Não há que se
falar em discricionariedade forte nos casos em que os direitos forem controversos, senão
em um sentido duplamente fraco, exigindo-se que o magistrado estruture
principiologicamente a sua decisão à luz daquilo que melhor se ajusta à comunidade em
que inserido e respeitante à autoridade que ele tem de proferir a última palavra em um
caso particular levando a sério o que o âmbito processual forneceu de subsídios.
Isso nos leva a outra importante parte da teoria do direito formulada por Dworkin: a
argumentação por princípios e a teoria da integridade. Logo na página de abertura da
obra O Império do Direito, Dworkin coloca à mesa algumas respostas que já vinham
sendo elaboradas em seus estudos anteriores: a de que o raciocínio jurídico é um
exercício de interpretação construtiva, a de que nosso direito constitui a melhor
justificativa de nossas práticas jurídicas e a de que ele é a narrativa que faz dessas
práticas as melhores possíveis.34
A condição interpretativa do Direito permite distinguir dois tipos de divergência: a
empírica, que nada tem de misteriosa e ocorre quando, por exemplo, as pessoas
divergem sobre as exatas palavras contidas em determinada lei, ou sobre qualquer outra
questão de fato; e a teórica, que aqui nos interessa e se instaura quando as pessoas
divergem sobre os fundamentos do Direito.35
Dworkin sustenta que a prática do Direito é uma prática argumentativa, de modo que as
proposições jurídicas apenas adquirem sentido quando discutidas na comunidade em que
inseridos os participantes (perspectiva interna). Essa prática argumentativa exige que se
adote uma atitude interpretativa, pois “a interpretação repercute na prática, alterando
sua forma, e a nova forma incentiva uma nova reinterpretação”.36
Para ilustrar a interação entre a prática e a interpretação, recorre-se ao exemplo das
regras da cortesia: suponha-se que em uma determinada comunidade exista uma regra
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segundo a qual “a cortesia exige que os camponeses tirem o chapéu diante dos nobres”,
sendo igualmente aceitas proposições afins. Durante certo período, essa regra do chapéu
é tida como um tabu, de modo que ela simplesmente existe e ninguém a questiona ou
tenta mudá-la. Ela é interiorizada e nada discutida, pois representa um pano de fundo
que se reproduz socialmente sem mais discussões. No entanto, pouco a pouco, essa
realidade muda quando as pessoas desenvolvem uma atitude interpretativa com relação
às regras de cortesia.
Essa atitude possui dois componentes: primeiro, pressupõe-se que a prática da cortesia
não apenas existe, mas, antes de tudo, carrega um valor, serve a algum propósito ou
interesse, ou reforça algum princípio; segundo, conclui-se que, a partir da constatação
do primeiro pressuposto, as exigências da cortesia não constituem, necessária ou
exclusivamente, aquilo que sempre se imaginou que fossem, pois estão condicionadas a
uma finalidade ou valor. Daí, as regras da cortesia devem ser compreendidas, aplicadas,
ampliadas, modificadas, atenuadas ou limitadas segundo essa finalidade ou valor, uma
vez que, ao adotarem uma atitude interpretativa, as pessoas atribuem significado e
conteúdo às suas próprias práticas,37 sem as reproduzir por constarem num senso
comum irrefletido.
A análise desse exemplo das regras da cortesia possibilita uma distinção analítica e mais
ampla de três etapas da interpretação: a primeira é a etapa “pré-interpretativa”,38 em
que são identificados as regras e os padrões que se consideram fornecer o conteúdo
empírico das práticas a ser interpretadas; a segunda é a fase interpretativa, na qual se
busca uma justificativa geral para os principais elementos da prática identificadas; por
fim, tem-se a etapa pós-interpretativa, em que se ajusta a prática ao que ela realmente
requer para melhor servir à justificativa encontrada.39
Essa atitude interpretativa, na filosofia dworkiniana, está umbilicalmente relacionada à
teoria da integridade, segundo a qual legisladores e magistrados devem tornar as leis, as
decisões e outros atos jurídicos um conjunto moralmente coerente, protegendo contra a
parcialidade, as fraudes, as propostas conciliatórias e o favoritismo. Isso significaria que
caberia ao direito e a seus intérpretes a consolidação (inclusive) de propostas
dogmáticas que previnam atitudes não cooperativas tão comuns nos contextos sociais.
Segundo Dworkin, “uma sociedade política que aceita a integridade como virtude política
se transforma (...) em uma forma especial de comunidade”, em um “sentido que
promove sua autoridade moral para assumir e mobilizar monopólio de força coercitiva”.
40
Para o modelo de uma comunidade de princípios,41os direitos e deveres não se esgotam
nas decisões particulares, mas, antes de tudo, dependem de um sistema de princípios
que essas decisões pressupõem e corroboram, o que é traduzido na noção de
integridade.42
Segundo Dworkin, o Direito constitui-se dos direitos e dos deveres que decorrem de
decisões coletivas (judiciaisou não) que contêm não apenas o conteúdo explícito e
limitado dessas decisões, como também o sistema de princípios que justifica essas
decisões – nisso consiste a integridade.43
Uma comunidade cujos membros aceitam a integridade44 e, por isso, estejam vinculados
por laços especiais dos quais decorram responsabilidades pessoais provenientes de uma
responsabilidade mais geral refletidas em um conjunto de práticas que revelam igual
interesse e consideração de cada qual para os demais, pode expandir-se e contrair-se
organicamente, na medida em que essas pessoas se tornam mais sofisticadas em
explorar os princípios subjacentes àquelas práticas, tornando desnecessário um
detalhamento da legislação ou da jurisprudência em cada um dos possíveis pontos de
conflito.45
4 A integridade na aplicação judicial do direito
Os precedentes judiciais, o art. 926 do CPC e suas
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No que diz respeito à integridade nas deliberações judiciais, exige-se dos juízes que
tratem o sistema normativo como se este expressasse e respeitasse um conjunto
coerente de princípios, interpretando as normas que constituem esse sistema de modo a
encontrar normas implícitas entre e sob as normas explícitas.46
Essa atitude que os magistrados devem tomar ao interpretar e ao aplicar o Direito, ao
mesmo tempo que satisfazem a integridade, é metaforicamente transcrita no que
Dworkin chama de romance em cadeia: os juízes, assim como escritores de um romance
desenvolvido em capítulos em que cada escritor é responsável por uma parte da
narrativa, são autores institucionais da tradição jurídica em que inseridos – portanto,
superada a questão sobre se os juízes somente aplicam ou se criam o Direito; em
Dworkin as duas coisas ocorrem ao mesmo tempo em alguma medida –, devendo
satisfazer às dimensões de adequação e de ajuste ao interpretarem o substrato
normativo e decidirem os casos que lhes são postos com base em princípios explicitados
por meio de argumentos que digam por que as partes realmente têm os direitos e os
deveres reconhecidos quando do pronunciamento jurisdicional.47
Dworkin sustenta que a prática jurídica é um exercício de interpretação – as proposições
jurídicas são interpretativas da história jurídica, combinando elementos descritivos e
valorativos. O jusfilósofo propõe que, no intuito de se compreender melhor a
interpretação jurídica, desenvolva-se uma concepção mais abrangente acerca da
interpretação, de modo que os juristas não tratem a interpretação jurídica como algo sui
generis, mas, sim, como algo integrante de uma atividade mais geral, como um modo
de conhecimento. Nesse propósito, a interpretação literária (ou outra forma de
interpretação artística) é bastante relevante e merece atenção. O argumento de Dworkin
parte de uma perspectiva sobre a interpretação literária segundo a qual devem ser
formuladas afirmações a respeito do enredo, dos personagens, do contexto e de outros
elementos do romance: trata-se do que se pode denominar de hipótese estética.
Por exemplo, no romance A Christmas Carol, de Charles Dickens, a personagem principal
é o avarento Scrooge. Seria ele, Scrooge, uma pessoa inerentemente má? Ou
inerentemente boa? Sabemos que, após ser visitado pelos três espíritos natalinos,
Scrooge muda completamente a sua postura, revelando que sempre possuiu um caráter
bom, embora tenha sido corrompido pelos valores de um capitalismo selvagem. Assim, a
afirmação segundo a qual Scrooge seria uma pessoa inerentemente má ofereceria uma
interpretação muito pobre do romance e seria uma hipótese estética ruim, pois seria
incapaz de conectar os seus principais elementos de forma coerente e ajustada.
A hipótese estética, portanto, consiste em uma afirmação direta sobre o objeto, o tema,
o significado, o sentido, ou o tom de uma peça, de um romance, de um filme, de um
poema ou, de modo mais geral, de uma obra de arte. Nas palavras de Dworkin, “a
interpretação de uma obra literária tenta mostrar que maneira de ler (ou de falar, dirigir
ou representar) o texto revela-o como a melhor obra de arte” 48 – isto é, a obra
interpretada à sua melhor luz.
É importante frisar que Dworkin não ignora a impossibilidade de se demonstrar como
verdadeira ou como falsa determinada proposição ou afirmação (ele não é um cético), e
que não se pode oferecer nenhum argumento a favor de alguma interpretação que seja,
seguramente, do agrado de todos. Nesse – e apenas nesse – sentido, os juízos estéticos
são subjetivos, mas isso não quer dizer que não seja possível afirmar que uma
interpretação é melhor ou pior que outra. Afinal, a interpretação, afirma Dworkin, é um
empreendimento, uma instituição pública que se desenvolve argumentativamente e, por
isso, pressupõe a possibilidade do uso de razões que podem ser contestadas e
contrapostas.
Retornando à interpretação literária, há uma importante distinção entre o artista e o
crítico: o primeiro interpreta enquanto cria, pois deve possuir um mínimo aparato de
teoria tácita sobre o que é a arte e de por que aquilo que produz é algo melhor graças a
este, e não a outro qualquer, golpe de pincel; o segundo, por sua vez, cria enquanto
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interpreta, porque, apesar de estar limitado pelo fato da obra, seu senso artístico está
comprometido com a responsabilidade de decidir qual maneira de ver, ler ou
compreender determinada obra a torna uma obra melhor.
Importando essa distinção para a metáfora do romance em cadeia, à exceção do
primeiro autor, que escreverá o primeiro capítulo, todos os demais são,
concomitantemente, artistas e críticos, possuindo a dupla responsabilidade de
interpretar o material que já foi escrito e escrever o próximo capítulo de forma a
ajustá-lo aos capítulos anteriores – caso não exista esse senso de responsabilidades
interpretativa e criativa, é mais provável que, ao final do livro, tenham-se antes vários
contos sobre as mesmas personagens do que um romance propriamente dito, como se
estivéssemos diante de um folhetim (novela) global no qual o enredo se modifica ao
sabor dos índices de ibope e os personagens mudam suas condutas e suas estruturas de
personalidade em completa esquizofrenia.
Não podemos esquecer neste momento, em breve parêntesis, que a aplicação do direito
no Brasil em razão da falta de uma teoria minimamente desenvolvida dos precedentes (e
do direito jurisprudencial em geral) muito mais se aproxima à esquizofrenia das novelas
globais do que de um sistema íntegro (e estável e coerente, como agora prescreve
normativamente o art. 926 do CPC/2015 (LGL\2015\1656)) pela falsa sensação e
adoção de um dogma equivocado de que cada julgador pode julgar com absoluta
independência interna, que fomenta o demandismo irresponsável pela absoluta ausência
de previsibilidade da resposta do sistema judiciário. Contrario sensu, como Dworkin
demonstra, não se pode encarar os precedentes como fechamento argumentativo que
permitirá uma reprodução mecânica de decisões do passado.
Nesse processo, duas dimensões devem ser avaliadas: a formal, que indaga até que
ponto a interpretação se ajusta e se integra no texto até então escrito; e a substantiva,
que considera a consistência da visão sobre o que faz com que um romance seja bom.
Se, por exemplo, A Christmas Carol fosse um romance em cadeia (e não um romance
escrito por apenas um autor), o final poderia ser substancialmente diferente, a depender
de como cada romancista escrevesse o próprio capítulo. Supondo, ainda nesse exemplo,
que o início do romance fosse igual ao original, os primeiros autores teriam maior
liberdade para caracterizar Scrooge como uma pessoa inerentemente má, enquanto que
os últimos autores teriam menos liberdade para tanto, uma vez que a trama estaria
mais adiantada, e os principais elementosque interfeririam sobre a verdadeira índole da
personagem já estariam postos. Quando muito, apenas um esforço interpretativo
diferenciado seria capaz de projetar uma reviravolta na história (uma superação –
overruling), justificando-a perante os capítulos já escritos, caso se quisesse dar um
mínimo de coerência à obra sem olvidar dos diversos elementos mais importantes que já
teriam sido escritos.
Espera-se, portanto, que os romancistas (juristas) assumam suas responsabilidades
seriamente e reconheçam o dever de criar um romance único e integrado. Decidir casos
controversos, no Direito, consiste em uma tarefa bastante assemelhada, especialmente
quando se aplicam precedentes judiciais (muito embora na aplicação das normas
constitucionais e legais também existam semelhanças, mas o apelo artístico é mais forte
quando se interpretam decisões judiciais passadas), esperando-se o mesmo tipo de
senso de responsabilidade dos juízes, que decidem os diversos casos que lhe são
submetidos ao mesmo tempo que devem interpretar o Direito que se manifesta na
Constituição, nas leis e, também, nas decisões judiciais do passado.
Na proposta metafórica de Dworkin, cada juiz é como um romancista na corrente de
decisões, devendo interpretar o que os juízes passados escreveram e decidiram para
chegar a uma opinião sobre o que esses juízes fizeram coletivamente, para, então,
acrescentar o seu próprio “capítulo” à história institucional do Direito. Ao decidir o novo
caso, o juiz deve se colocar como um parceiro no empreendimento político de vislumbrar
quais os direitos e deveres as partes efetivamente têm, em diálogo genuíno com as
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mesmas, à luz do que decidiram os juízes passados, em um complexo de decisões,
estruturas, convenções e práticas que formam aquela história.49
O desafio posto para o magistrado é reconhecer o direito como algo criado por meio de
leis, mas, igualmente, seguir as decisões que o próprio Judiciário tomou no passado.
Isso o levará a construir um sistema baseado em princípios jurídicos capaz de fornecer a
melhor justificativa para os precedentes judiciais, e também para as leis e para a
Constituição.50 Para tanto, deverá observar duas formas de coerência na organização de
seu raciocínio: a decisão deverá ser coerente verticalmente – isto é, por princípios que
fornecem a justificação das instâncias mais elevadas; e horizontalmente – por princípios
que forneçam a justificação a decisões do mesmo nível. Um exemplo de ordenação
vertical nos Estados Unidos poderia ser: primeiro, a Constituição; segundo, a Suprema
Corte; terceiro, as leis promulgadas pelos órgãos legislativos; e quarto, as decisões dos
demais tribunais.51 Tal ordenação vertical demarcará a atuação das esferas inferiores.
Contudo, o juiz pode discordar sobre determinada norma e acreditar em outra
justificação. Essa opinião do magistrado terá um impacto na estrutura de justificativas
dos demais tribunais.
É claro que, no modelo de Dworkin, o magistrado não deve reproduzir todas as decisões,
mas, sim, filtrar, no curso da história institucional,52 os erros e acertos, desenvolvendo,
assim, uma teoria dos erros institucionais53 – o que, mais uma vez, destaca sua opção
por uma teoria hermenêutica crítica.54 Essa teoria dos erros institucionais é dividida em
duas partes: uma que mostra quais as consequências de se considerar um evento
institucional como um erro e outra que limita o número de erros que podem ser
excluídos.
Essa primeira parte tem por base duas distinções: (1) de um lado, tem-se a autoridade
de qualquer evento institucional – capacidade de produzir as consequências que se
propõe – e, do outro, a força gravitacional do evento. A classificação de um evento como
um erro se dá apenas questionando sua força gravitacional e inutilizando-a – sem, com
isso, comprometer sua autoridade específica; e (2) a outra distinção é entre erros
enraizados – os quais não perdem sua autoridade específica, não obstante não
detenham mais sua força gravitacional – e erros passíveis de correção – cuja autoridade
específica é acessória à força gravitacional. Assim, sua classificação garantirá autoridade
às leis, mas não a sua força gravitacional.55
A segunda parte da teoria de erros compõe-se de uma justificação mais detalhada, na
forma de um esquema de princípios, para o conjunto das leis e das decisões, já que sua
teoria dos precedentes é construída a partir da imparcialidade (fairness).56 Duas
máximas podem ser extraídas dessa segunda parte: (1) caso o magistrado possa
demonstrar que um princípio que, no passado, serviu de justificação para decisões do
legislativo e do judiciário hoje não dará origem a novas decisões por ele regidas, então,
o argumento de imparcialidade se mostra enfraquecido; e (2) se ele mostrar, através de
um argumento de moralidade política, que o princípio é injusto, o argumento de
imparcialidade que o sustenta é inválido.
Dessa forma, na filosofia dworkiniana, o juiz “deve interpretar o que aconteceu antes
porque tem a responsabilidade de levar adiante a incumbência que tem em mãos e não
partir em alguma nova direção”.57 Por certo, muitas vezes serão encontrados
contraexemplos nos quais sugiram diferentes opções e caminhos, exigindo o
desenvolvimento de uma teoria do erro, mas nem por isso os juízes podem
simplesmente ignorar o material que se lhes apresenta para ser interpretado.
Sempre se estranhou no Brasil o hábito recorrente de juízes e advogados em desprezar
decisões dos Tribunais (especialmente superiores), como se elas não existissem quando
não corroboram uma linha de defesa ou decisória que não lhes seja interessante. Seria
como se o direito pudesse ser interpretado em conformidade com um viés de
confirmação (confirmation bias) do aplicador. Por isso vêm em boa hora disposições do
CPC (LGL\2015\1656) que impõem a juízes e advogados o dever de levar a sério o
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“material” existente, a exemplo, de um lado, o disposto no art. 1.022, parágrafo único,
I, que presume omisso o pronunciamento que despreza precedentes, além do disposto
no art. 489, § 1.º, IV, V e VI, e, de outro, o estabelecido nos arts. 332, 489 e 932, IV e
V, que impõem às partes pesados ônus argumentativos de dialogar com os precedentes,
sob pena de julgamentos contrários, tudo para que a integridade Dworkiniana (art. 926)
seja normativamente levada a sério.
Nas palavras do próprio Dworkin – que sintetizam as noções de integridade e de
coerência –, “o direito como integridade, então, exige que um juiz ponha à prova sua
interpretação de qualquer parte da vasta rede de estruturas e decisões políticas de sua
comunidade, perguntando-se se ela poderia fazer parte de uma teoria coerente que
justificasse essa rede como um todo”.58
No caso McLoughlin vs. O’Brian (1983), por exemplo, o marido e os quatro filhos da
senhora McLoughlin foram vítimas de um acidente automobilístico, no meio da tarde de
uma sexta-feira, dia 19 de outubro de 1973. Ela estava em casa quando, duas horas
após o acidente, recebeu de um vizinho a dolorosa notícia do acidente, e imediatamente
dirigiu-se ao hospital, onde foi informada que sua filha havia falecido e que o marido e
os demais filhos estavam gravemente feridos. Ato contínuo, a senhora McLoughlin teve
um colapso nervoso e, após se recompor, processou o motorista que havia causado o
acidente por negligência e algumas outras pessoas que nele tomaram parte, exigindo o
pagamento de uma reparação pelos danos morais que sofrera.
A senhora McLoughlin chamou atenção para uma série de decisões pretéritas em que foi
reconhecido o direito à indenização moral a pessoas que haviam presenciado a morte de
um parente próximo, ou um visto um parente gravementeferido por ocasião de um
acidente automobilístico causado por condutores negligentes. Mas em todos os
precedentes citados por ela o requerente havia efetivamente presenciado o acidente do
qual resultara a morte de seu parente ou os graves danos físicos sofridos por ele, o que
não era o seu caso.
Inicialmente, o pedido da Sra. McLoughlin foi negado, ao fundamento de que o fato de
presenciar, ou não, a cena do acidente seria de grande relevância, a ponto de distinguir
o caso que lhe havia sido submetido de toda a cadeia de precedentes invocada, uma vez
que os danos morais sofridos pela autora não seriam previsíveis no mesmo sentido
daqueles danos sofridos pelos autores dos casos precedentes.
Mas a House of Lords entendeu que essa distinção não era consistente, em razão da
existência de princípios morais admitidos nos casos anteriores que também podiam ser
encontrados no caso em julgamento. Assim, admitida a razoabilidade da previsão dos
danos morais sofridos pela autora (e talvez não haja dor pior do que a de uma mãe que
perde o filho, correndo o risco de perder o marido e os outros filhos), não haveria
qualquer diferença a ser apontada entre os precedentes por ela invocados e o seu
próprio caso, especialmente quando se considera razoável que as pessoas em geral
tenham familiares em suas respectivas casas esperando por sua chegada.
Como se percebe, no caso da Sra. McLoughlin, a controvérsia podia ser reconduzida à
verificação de quais precedentes expressavam a melhor leitura dos princípios jurídicos
aos quais se deveria dar continuidade, isto é, de qual decisão se ajustaria melhor à
cadeia de precedentes que vinha sendo estabelecida na temática sobre acidentes
automobilísticos causados por condutores negligentes.
5 Do necessário diálogo com alguns dos críticos da teoria da integridade Dworkiniana
Sempre compreendemos que o diálogo com outro pensador representa seguramente
uma homenagem a seu posicionamento. E é exatamente nesse sentido que iremos
conversar com a perspectiva de processualistas que se dispuseram a co-construir uma
leitura do atual sistema de precedentes do Novo Código.
Esta advertência se coaduna, inclusive, com a verificação de que o debate acerca da
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perseguição de uma teoria explicativa do perfil obrigatório dos precedentes, como se
mostrou acima e se trata de uma constatação óbvia, não é uma preocupação exclusiva
nossa (da doutrina brasileira). Como pontuou Duxbury, na abertura de sua obra de
referência, por mais que insistamos, “nenhuma teoria pode oferecer uma abrangente,
plausível ou explicação sistemática do porquê precedentes são obrigatórios”.59 Sempre
haverá pontos cegos em qualquer perspectiva teórica, mas negar isso seria uma
pretensão acadêmica insustentável, especialmente, para nós, adeptos da teoria do
discurso.
Em assim sendo, a partir de agora iniciaremos um debate com algumas compreensões
do sistema de precedentes pátrio inaugurado pela novel legislação.
Como já explicitado acima, a teoria da integridade constitui premissa essencial para se
analisar o art. 926 e o sistema de precedentes pretendido pelo CPC/2015
(LGL\2015\1656). No entanto, existem algumas oposições à interpretação do dispositivo
à luz da teoria da integridade de Ronald Dworkin.
Fredie Didier Jr.60 rejeita que o dever de integridade seja interpretado exclusivamente à
luz da filosofia Dworkiniana ao argumento de que sua premissa seria a de que existe
apenas uma resposta correta para determinado problema jurídico, incorrendo no mesmo
erro apontado por Taruffo.61 Caso se rejeite esse argumento e se queira manter alguma
coerência teórica, deve-se rejeitar, igualmente, a teoria da integridade dworkiniana, uma
vez que esse é um dos principais argumentos desenvolvidos por Dworkin em suas obras
e do qual ele se ocupou por muitos anos.
Não é possível, como faz o respeitável processualista baiano, rejeitar esse argumento e
aceitar apenas parcialmente a teoria da integridade. A rejeição de Didier Jr., contudo,
está fundada em uma compreensão equivocada (e respeitosamente rasa) acerca da tese
da única resposta correta. Segundo Didier, a teoria da “única resposta correta”
desenvolvida por Dworkin não seria capaz de responder ao problema da interpretação
das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminados, pois seriam textos
jurídicos genuinamente ambíguos (indeterminados), como se o direito americano fosse
algo muito simplório e, logo, Dworkin tivesse construído sua teoria apenas para
ordenamentos simplistas que só contêm regras.62
Ora, estamos diante de um jusfilósofo que fala muito por metáforas – e ele mesmo
reconhece que trilhou um caminho arriscado, já que metáforas podem ser mal
compreendidas63 –, e uma das mais famosas é a do juiz Hércules,64 um juiz imaginário
criado para ilustrar a postura que uma democracia espera de seus participantes. Em seu
“magistrado”, Hércules deve decidir à luz de todos os argumentos trazidos pelas partes,
das provas produzidas nos autos e da história institucional, ou seja, do devido processo
constitucional, comparando suas possíveis decisões com as decisões proferidas pelos
demais juízes, a fim de verificar qual decisão melhor se ajusta a essa história,
considerando os fatos ocorridos no processo em julgamento.65
Em outra sede, dois dos autores do presente trabalho, em coautoria com Alexandre
Bahia, já haviam sustentado que o juiz “Hércules institucionaliza um pressuposto
interpretativo contrafático que pode ser evidenciado mediante a necessidade de um
processo democrático e comparticipativo de formação decisória amplamente embasado
pelo contraditório e fundamentação dinâmicos, contrariamente a um suposto de
isolamento decisório”.66
A decisão que Hércules vier a tomar não é dele apenas, mas, sim, de todos os sujeitos
implicados no processo e da história institucional da sociedade em que estão inseridos,67
e é isso que Dworkin quer por única resposta correta ou na melhor decisão judicial: é
uma exigência contrafática que, dadas as particularidades do caso, apenas uma decisão
pode satisfazer; da mesma forma que juízes devem ler o ordenamento “como se ele
compusesse um conjunto harmonioso” e decidir os casos com a responsabilidade de
descobrir qual a decisão que irá resolvê-lo em sua inteireza/distinção – a
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discricionariedade cede em favor de um espaço hermenêutico e argumentativo.68
Além da interpretação de Didier consubstanciar uma interpretação superficial da teoria
dworkiniana, seria muita ingenuidade crer que a tese da única resposta correta
implicaria em que todos os juízes chegassem à mesma conclusão – as controvérsias
existem e devem ser enfrentadas argumentativamente. Marcelo Andrade Cattoni de
Oliveira esclarece que a tese da única resposta correta é uma questão de postura ou
atitude interpretativa, autorreflexiva, crítica, construtiva e fraterna, à luz “do Direito
como integridade, dos direitos individuais compreendidos como trunfos na discussão
política e do exercício da jurisdição por esse exigida; uma questão que, para Dworkin,
não é metafísica, mas moral e jurídica”.69
No mesmo contexto, Menelick de Carvalho Netto e Guilherme Scotti, com razão,
sustentam que o argumento de Dworkin no sentido de que haveria apenas uma resposta
correta para cada caso consiste em antes uma postura hermenêutica a ser adotada pelo
aplicador diante da situação concreta a partir de argumentos de princípios do que um
método ou procedimento mecanicista proveniente de um mandamento inscrito a priori
nas normas gerais e abstratas, o que significa que discordâncias razoáveis sobre qual a
resposta correta podem ocorrer entre os juízes, advogados, cidadãos etc.70
Os precedentesque representam a parcela da jurisprudência a ser mantida coerente e
íntegra constituem uma história que não pode ser ignorada. Aliás, esta postura viabiliza
a possibilidade de um melhor delineamento das cláusulas ambíguas e dos conceitos
indeterminados cuja existência Didier Jr. utiliza para refutar a tese de Dworkin. Isso
porque a necessidade de que o direito jurisprudencial seja tratado de forma coerente e
íntegro exerce uma pressão para que os magistrados não preencham o conteúdo jurídico
desses conceitos e cláusulas ambíguas de forma solipsista (solitária), mas, sim, de forma
comparticipada e aberta hermeneuticamente à história institucional do Direito.
A leitura do Direito à luz da filosofia dworkiniana implica em aceitar uma estrutura
principiológica ignorada pelo positivismo jurídico (este sim incapaz de responder ao
“problema” das cláusulas e conceitos jurídicos indeterminados), estrutura esta que,
embora indeterminada em abstrato, é absolutamente determinável em concreto, desde
que aceito o pressuposto hermenêutico de que as normas positivadas encontram-se
abertas à (re)construção intersubjetiva (metáfora de Hércules), sempre “com base na
análise e no cotejo das reconstruções fáticas e das pretensões a direito levantadas pelas
partes na reconstrução das especificidades próprias daquele determinado caso concreto”.
71
Se, de um lado, os direitos que as pessoas efetivamente têm podem ser controversos,
de outro, não se pode ignorar que a definição de quais são esses direitos não pode
passar ao largo das noções de liberdade, igualdade e democracia, as quais compõem a
moralidade política da qual o direito é um de seus ramos – assim como os direitos
políticos podem ser traduzidos em direitos jurídicos, ou os direitos jurídicos constituírem
direitos políticos não preexistentes.
Os precedentes judiciais e o direito jurisprudencial como um todo se incorporam a essa
moralidade política na medida em que são manifestações do que os magistrados
decidem à luz do que foi estabelecido na Constituição, do que dispõem as leis e de
outros precedentes judiciais e sendo que a leitura que se faz destes últimos – que,
diga-se, por necessário, refletem decisões que devem se ajustar ao histórico institucional
do Direito – deve ser, também, uma leitura que os torne mais ajustados a esse mesmo
histórico, considerando as regras e princípios jurídicos no seio de determinada
comunidade política.
Em razão de sua incorporação na moralidade política, os precedentes judiciais não
podem deixar de atender aos princípios estruturantes da moralidade pessoal e da ética,
no sentido de que cada um de nós deve levar a sério a sua própria vida e
comprometer-se com o seu sucesso, considerando nossa responsabilidade pessoal de
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identificar os elementos necessários a viver bem.
Assim como a ordem do sargento deve ser lida de modo a tornar a missão um sucesso a
partir da escolha dos melhores e mais experientes soldados à luz do que a missão
realmente requer, os precedentes judiciais devem, tanto na sua elaboração como em
seu desenvolvimento e aplicação, considerar o direito como integridade de forma
coerente e ajustada ao seu histórico institucional, sem o que esse histórico não passará
de um desconjuntado amontoado de leis e decisões esparsas nos mais diversos sentidos,
comprometendo a justiça, a imparcialidade e o devido processo sem os quais o
empreendimento a que se propôs determinada comunidade democrática restará
seriamente prejudicado.
6 Do equívoco da “tese” das cortes supremas – Primeiros apontamentos
Outra concepção teórica que nos cumpre rechaçar é a que tem sido trabalhada por
autores como Marinoni e Mitidiero, cujo argumento central, em síntese, é o de
concentração, no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, da função
e do poder de formação de precedentes. Para desconstruirmos esse argumento e suas
implicações, apresentaremos as principais ideias propostas pelos autores.
Pontue-se que a concepção de Corte Suprema com função criativa dirigida ao futuro72 foi
constituída (como contraponto às Cortes de Terceira Instância) por Michele Taruffo73 de
modo a permitir a estes Tribunais escolhas essencialmente valorativas da melhor
interpretação das normas ou, como pontua o mestre italiano, da escolha da
interpretação justa.74
Destacando a virada segundo a qual o Direito deixa de ser apenas um objeto total e
previamente dado que o jurista tem apenas de conhecer para se tornar uma composição
entre atividades semânticas e argumentativas focada na jurisdição, Daniel Mitidiero
sustenta que o processo civil passou a responder não apenas pela necessidade de
resolução de casos concretos mediante uma decisão justa para as partes como também
pela promoção da unidade do Direito por meio da formação de precedentes. A decisão
justa serviria ao caso concreto, e o precedente, à unidade do Direito e à sociedade em
geral, com a necessidade de um duplo discurso: um ligado às partes e outro, à
sociedade.75
As implicações práticas (defendidas por Mitidiero) dessa concepção seriam, segundo o
autor, profundas: por questões de economia processual, no sentido de que os Tribunais
trabalhem menos (para produzir melhor), e de tempestividade da tutela, a melhor
solução “é a que partilha a tutela dos direitos em dois níveis judiciários distintos,
correspondentes às duas dimensões da tutela dos direitos”,76 motivo pelo qual “o ideal é
que apenas determinadas cortes sejam vocacionadas à prolação de uma decisão justa e
que outras cuidem tão somente da formação de precedentes”,77 cindindo-se os tribunais
entre Cortes de Justiça e Cortes de Precedentes.
Mitidiero admite que, em ambos os níveis, o material com que trabalham as cortes é
muito semelhante, pois sempre se depende de um caso sobre o qual discordam as
partes e o Judiciário é chamado a solucionar. As distinções surgem e ganham relevo no
influxo de atividade das cortes: para as Cortes de Justiça, a interpretação normativa é
meio para obtenção da decisão justa; por sua vez, para as Cortes de Precedentes, é o
caso concreto o meio, ou o pretexto,78 para a formulação da adequada interpretação e
consequente promoção da unidade do Direito, permitindo-se um julgamento em tese,
que parece não encontrar respaldo no texto constitucional e que nos limites de pesquisa
do sistema americano e inglês nunca se fez presente.
Outra distinção feita pelo autor em comento é de Cortes Superiores e Cortes Supremas,
que constituem diferentes perfis a ser assumidos pelas Cortes de Precedentes. As
primeiras estão vinculadas a uma concepção cognitivista do Direito, no sentido de que o
processo civil busca a simples declaração de uma norma preexistente mediante uma
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jurisprudência uniforme que desempenharia uma função de controle; para as segundas
(de precedentes), sua vinculação se dá com uma compreensão não cognitivista e
lógico-argumentativa do Direito, sendo a jurisdição concebida como uma reconstrução e
outorga de sentido a textos e a elementos não textuais da ordem jurídica, cujo escopo é
dar unidade ao Direito mediante a formação de precedentes, com evidente assunção de
um perfil altamente ativista da Jurisdição, num modelo de fundo ultraestatalista e avesso
a uma postura comparticipativa e dialógica do direito, e sobrelegislativa, uma vez que se
situa não só acima dos demais juízes, mas também acima do próprio legislador.
Os riscos de assunção de tal concepção criariam a mantença de um projeto de poder
ligado às virtudes não evidenciadas nos tribunais superiores de qualquer lugar do
planeta.
Perceba-se que a discussão dos riscos do papel ampliado dos Tribunais Superiores não
se limita ao direito brasileiro.Em recente livro, Millhiser demonstra que a Suprema Corte
americana tem, de modo pouco incomum, usado sua autoridade para impedir o
progresso e perpetuar a desigualdade, de modo que suas decisões mais corajosas (como
Brown vs Board of education of Topeka, de 1954, que proibia a segregação racial) foram
amplamente ignoradas (e só implementadas com uma sofisticação do uso de medidas
estruturantes de litigância de interesse público),79 e suas piores decisões devastaram a
vida dos menos afortunados. A ausência de controle sobre o poder do tribunal colocou (e
coloca) em risco a democracia e a igualdade.80
Ademais, segundo o autor americano, a disposição dos Ministros para apoiar os direitos
das minorias como o casamento homoafetivo (como foi Obergefell vs Hodges na
Suprema Corte e a ADPF132 ou a autorização do aborto de fetos anencefálicos pela
ADPF n. 54, entre nós) significa que muitos de nós olhamos para o Tribunal Supremo
com carinho. Mas essa vitória mais que ocasional para as minorias já não pode justificar
a enorme quantidade de decisões perturbadoras destinadas a ajudar os poderosos.81
Já segundo Mitidiero, embasado em Taruffo,82 a função desempenhada por uma Corte
Superior é marcada por um controle reativo de legalidade (declaração do sentido exato
da lei)83 preocupado com o passado, sendo o recurso um direito subjetivo da parte, e a
decisão a ser proferida se limita apenas ao caso concreto, não constituindo fonte
primária do Direito, embora integre a jurisprudência a ser mantida estável. A seu turno,
as Cortes Supremas teriam um perfil proativo84 (diríamos consequencialista ou
prospectiva), pois seu objetivo é orientar a interpretação e aplicação do Direito, visando
ao futuro como se fosse possível antever hipóteses posteriores de aplicação e os
tribunais pudessem fechar o discurso jurídico. As partes podem interpor recursos às
Cortes Supremas, mas o seu conhecimento é subordinado à aferição da necessidade de
a Corte se pronunciar sobre a matéria nele debatida, e as suas decisões judiciais, na
qualidade de precedentes obrigatórios, vinculam toda a sociedade civil e todos os órgãos
do Poder Judiciário.
A proposta de Mitidiero é a de que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de
Justiça assumam esse caráter de Corte Suprema, abandonando a tendência de atuar
como Cortes Superiores.85 Na atribuição de sentido realizada por esses Tribunais à
Constituição e à legislação infraconstitucional, o processo interpretativo é marcado pela
individualização, valoração e escolha de significados possíveis das palavras constantes
dos enunciados. A interpretação, portanto, acarreta sempre “uma escolha do intérprete
dentre significados alternativos concomitantes e possíveis”,86 uma escolha que é
racionalmente controlada pela lógica e pela argumentação jurídica a ser
operacionalizadas pelas Cortes Supremas.
Como advertem Mattei e Nader ao criticar concepções de realismo jurídico (na hipótese,
americana, mas que igualmente se aplicam ao realismo genovês defendido por
Mitidiero):
“O realismo jurídico norte-americano pode ser descrito como uma abordagem que
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reconhece, sem rodeios, que o Direito é, sobretudo, o produto de decisões políticas
tomadas pelo estrategista político, originando-se em geral de sua concepção política de
sociedade. Essa abordagem contrastava de modo profundo com concepções formalistas
anteriores do Estado de Direito, que o viam como uma ordem jurídica preexistente na
qual o intérprete descobre o que é o Direito por meio da aplicação quase mecânica da lei
e dos precedentes às situações concretas da vida cotidiana. Para a concepção realista, o
jurista deveria atuar como um engenheiro social, equilibrando conflitos de interesse e
‘criando’, desse modo, a estrutura jurídica para a interação social futura – um dramático
distanciamento da tradição ‘textual’ do Direito que ainda predomina fora dos Estados
Unidos, mas ainda assim um claro reconhecimento da natureza normativa do raciocínio
jurídico. Um dos mais importantes realistas jurídicos, Herman Oliphant, criou um famoso
lema para essa abordagem jurídica antiformalista de origem norte-americana, ao sugerir
que os juristas ‘cair fora das bibliotecas’. Segundo esta concepção, os operadores do
Direito deveriam mergulhar no estudo da interação social em busca das melhores
soluções institucionais possíveis. Foi preciso abandonar a crença (...) de que as normas
podem ser ‘descobertas’ em leis e precedentes anteriores.(...) Na verdade, os advogados
não se limitaram a usar a orientação desses pensadores para fazer uma viagem
intelectual para além dos limites do raciocínio textual. Poucos dentre eles estavam em
busca de abordagens progressistas que pudessem desafiar o status quo do direito.
Poucos buscavam, como ferramentas do Direito, encontrar abordagens melhores, que
lhes permitissem examinar os ‘pontos obscuros’. (...) Considerar o Direito como
preferência política do último tomador de decisões, como fazem os realistas, expões os
profissionais desta ciência a um desafio fundamental: se o Direito é tão tendenciosos
quanto as preferências políticas do tomador de decisões, por que motivo o juiz deveria
ser operador do direito, e não um político, um médico ou um vendedor de carros?”87
A preocupação com a obtenção de um fundamento último (e de uma decisão que
encerre o debate), a ser obtido pelo tribunal supremo, parece desprezar que na
Democracia o aludido fundamento (último e soberano) não faz falta pelo caráter de
dialogicidade de construção de sentidos no qual se lança “aqui e agora, a um por-vir, a
um futuro-em-aberto, como projeto falível, mas no sentido de que o presente pode ser o
futuro de um passado que agora é redimido pelo agir político-jurídico, constitucional, que
o constitui”.88
No entanto, não podemos nos olvidar como se dá a atuação de nossos Tribunais pátrios,
quer seja nesta vertente realista, quer seja em uma vertente Alexyana que entrega a
interpretação aos Tribunais em viés prospectivo. Em pesquisa de fôlego acerca do uso da
proporcionalidade em decisões proferidas pelo STF no período compreendido entre 2002
e 2013, Fausto Morais demonstrou que “não foi possível identificar nas decisões do STF o
apelo às decisões precedentes como uma ordem hierárquica flexível de
‘valores-princípio’, cujo novo sopesamento deveria levar em consideração, seja como
algo que faça parte do quadro a sopesar ou como ônus argumentativo que deve ser
batido”.89
Na mesma linha de raciocínio, Marinoni defende que os precedentes obrigatórios devem
ser fixados pelas Cortes Supremas, às quais incumbe “atribuir sentido ao Direito e
contribuir para a sua evolução mediante decisões que não podem deixar de ter força
obrigatória, na medida em que são autônomas em relação aos textos legal e
constitucional, agregando algo de novo à ordem jurídica”.90
Marinoni destaca que a evolução na teoria da interpretação revela que o intérprete
valora e decide entre um dos resultados interpretativos possíveis (como defendeu
Taruffo em seu trabalho de 1991),91 de modo que a norma, segundo ele, não está
implícita no texto legal. Em suas palavras, “o juiz valora, seja ao eleger determinada
diretiva interpretativa, seja ao optar por um dos resultados da atividade-interpretação”.
92
Com apoio em Guastini, o autor sustenta que “uma única disposição exprime mais
normas dissociadamente: uma ou outra norma, de acordo com as diversas
Os precedentes judiciais, o art. 926 do CPC e suas
propostas de fundamentação: um diálogo com
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interpretações possíveis”.93 Assim, a reformulação da teoria da interpretação “coloca nas
mãos das Supremas Cortes a função de atribuir sentido ao direito (ou definir a
interpretação adequada do texto legal), evidenciando a necessidade de a decisão da
Corte

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