Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 2 3 História por Anarquistas Anderson Romário Pereira Corrêa Bruno Lima Rocha Beaklini Felipe Corrêa www.de r i va . c om.b r 4 Este livro não possui copyright. Pode e deve ser reproduzido para fins não comerciais no todo ou em parte, além de ser liberada sua distribuição, preservando o nome do autor. Capa e Editoração: Paulo Capra Revisão: 5 Indíce História por Anarquistas 3 Felipe Corrêa O Anarquismo Contemporâneo 7 A História para os anarquistas 9 Teoria da História e método de análise 11 Organização Política 15 Anarquista e Democracia de base libertária 15 Bruno Lima Rocha A relação deste ensaio com o livro 15 O Muro caiu e deixou sua herança maldita 16 Raízes da organização política dos anarquistas – fundamentos 22 Raízes da organização política dos anarquistas – as primeiras referências 27 Característica da organização 31 Política dos anarquistas 31 A democracia política de base libertária 34 A História na visão de anarquistas 41 Anderson Romário Pereira Corrêa 6 Introdução 42 Historia e historiografia (de 1840 a 1940) 47 Anarquismo 51 Proudhon: “O movimento da história” 53 Bakunin: a história é a negação do passado 62 Peter Kropótkine:A história no comportamento do homem 72 Rudolf Rocker: a história como “vontade de potência” 80 Conclusão 88 Autores 97 Bibliografia 99 7 O ANARQUISMO CONTEMPORÂNEO Atualmente, o anarquismo encontra-se em um momento distinto, tanto em termos práticos, como teóricos. No Brasil, os fins dos anos 1970 e princi- palmente a década de 1980 foram importantes, pois trouxeram o anarquismo novamente a pú- blico. Ainda que os anos de repressão viessem dificultando as atividades, os problemas no anarquismo vinham desde os anos 1930, quan- do este se afastou dos movimentos populares (fundamentalmente do sindicalismo). Nesse contexto da “abertura” política, os anarquistas conseguiram articular algumas experiências que teriam relevância para o que viria no futuro. As iniciativas dos fins de 1970 e de 1980 contribuíram com a aproximação de novos interessados e com o reinício das dis- cussões, envolvendo um público mais amplo. Foi neste momento que os clássicos anar- quistas começam a ser traduzidos e publicados com maior freqüência no Brasil. Não que isso não estivesse sendo feito há tempos, mas foi 8 somente a partir dos anos 1980 que houve um esforço intenso e regular para a realização dessas traduções e publicações, que hoje nos permitem conhecer mais sobre Proudhon, Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Rocker, entre outros clássicos do pensamento anarquista. Os anos 1990 serviram para um aprofun- damento das discussões e a evidência de pro- jetos distintos que vinham sendo sustentados no anarquismo. Por influência da Federação Anarquista Uruguaia, e pelos contatos com militantes antigos que defendiam uma rein- serção do anarquismo no campo da luta de classes, desenvolveu-se um desses projetos anarquistas, que teve diversos frutos, dentre eles a fundação da Federação Anarquista Gaúcha, em 1995. Um encontro realizado em Florianópolis, em 2000, marcaria o rom- pimento desse projeto – de defesa de um anarquismo social que pudesse voltar a ter protagonismo nas lutas dos movimentos po- pulares – com outros. Havia, enfim, imensas diferenças teóricas e práticas. Se por um lado a divisão poderia significar enfraquecimento, por outro, o aumento de uni- dade em termos práticos e teóricos permitia um 9 aprofundamento sem precedentes. A meu ver, foi essa unidade que permitiu o aprofundamento que vem ocorrendo desde os anos 1990 até os dias de hoje. O projeto dos “anarquistas organizados”, ou dos “especifistas”, como foram chamados, não só conseguiu desenvolver experiências práticas significativas em todo o Brasil, com atuações em movimentos de moradia, comunitários, estu- dantis, de catadores de material reciclável, entre outros, mas também se envolveu em um apro- fundamento teórico que, no estudo e produção de teoria, traria ganhos significativos ao anarquismo. A dialética entre teoria e prática natural- mente potencializou uma e outra, e pode-se dizer que os anos 2000 continuam oferecendo experiências notáveis, tanto em termos práticos quanto teóricos, aprofundando o que foi reali- zado anteriormente. A HISTÓRIA PARA OS ANARQUISTAS O texto de Anderson Romário Pereira Cor- rêa reflete, a meu ver, esse desenvolvimento do anarquismo que, junto com a prática, vem aprofundando sua teoria. Muitos dos trabalhos teóricos atuais vêm se baseando nos clássicos – 10 e não poderia ser diferente, já que os clássicos anarquistas oferecem, ainda, imensas possibi- lidades. E a atualidade no Brasil permite tais trabalhos, muito em razão do processo mencio- nado que vem desde os anos 1980 e que traz ao português obras da maior importância. Anderson discute a teoria da história a partir de quatro clássicos do anarquismo: Prou- dhon, Bakunin, Kropotkin e Rocker. Conside- rado algumas das principais obras dos autores citados, ele investiga sua concepção de história. Seria a história uma ciência? Seria possível pre- ver a história a partir de leis históricas? A partir de uma discussão da história e da historiografia com elementos de um século de pensamento que vai de 1840 a 1940, Anderson discute o anarquismo e parte para uma inves- tigação de cada autor e de sua respectiva abor- dagem da história: Proudhon e o movimento da história, Bakunin e a história como negação do passado, Kropotkin e a história no compor- tamento do homem, Rocker e a história como vontade de potência. O trabalho contribui, nes- te sentido, com essa investigação sobre a con- cepção de história dos quatro anarquistas. 11 TEORIA DA HISTÓRIA E MÉTODO DE ANÁLISE Discutir história envolve sempre um método de análise, questão que temos discutido signifi- cativamente. Parece-nos da maior importância, hoje, rechaçar o determinismo econômico e aprofundar/utilizar um método de análise que seja capaz de compreender a realidade, e dessa maneira a história, a partir da influência mútua entre as esferas econômica, política e ideológica/ cultural. Um método que vem sendo sustentado por anarquistas clássicos e por historiadores contemporâneos. Por exemplo Rocker, um anarquista clássico, afirma: “A concepção que pretende ver em todo acontecimento político e social somente um resultado de condições econômicas dadas, das quais dependa, exclusivamente, o seu esclarecimento, não resiste a uma conside- ração mais demorada. O fato de influírem condições econômicas e formas especiais de produção na história do desenvolvimen- to das sociedades humanas não é novidade para ninguém que seriamente porfie por che- gar ao fundo dos problemas sociais.” (Rudolf Rocker. A Insuficiência do Materialismo Histórico. Rio de Janeiro: Simões, 1956, p. 11). 12 Rocker dizia que a economia obviamente possui influência sobre as outras esferas, mas isso não significava, para ele, assumir que ela necessariamente as determinava. Uma posição semelhante à de E. P. Thompson, que afirma: “Categorias [...] como classe, ideologia e modo de produção são difíceis, mas, to- davia, são conceitos criativos. Porém, em particular a noção histórica da dialética entre o ser social e a consciência social – ainda que seja uma inter-relação dialética, que às vezes precise ser invertida – é ex- traordinariamente poderosa e importante. Não obstante, também vejo na tradição pressões para o reducionismo, que dão prioridade à ‘economia’ em relação à ‘cul- tura’; e uma confusão radical introduzida pela infeliz metáfora de ‘infra e super-es- trutura’.” (E. P. Thompson. “Agenda para una história radical”. In: ObraEsencial. Barcelona: Crítica, 2001). Para Thompson, não há uma esfera necessa- riamente causal e a investigação da história deve levar em conta toda a realidade, sem um método que assuma causas e conseqüências a priori: 13 “Estou completamente de acordo com todos os que hoje vem falando da necessidade de tratar e ver a história como um quadro com- pleto, como um registro objetivo de ativida- des relacionadas de maneira causal, e tam- bém concordo [...] que o conceito de causa é extraordinariamente difícil, e que em rela- ção a ele sempre temos somente uma com- preensão aproximada.” (Ibidem.) A questão, dessa maneira, é encontrar um método de análise correto, que dê conta da rea- lidade. O abandono do determinismo econômico e a reivindicação de um método que considere a influência mútua entre as esferas, parece-me uma preocupação de primeira ordem. * * * Para uma posição própria em termos de teoria da história, é necessário ao anarquismo entender as abordagens dos clássicos e o texto de Anderson contribui com essa etapa. O aprofundamento dos estudos permitirá uma compreensão mais am- pla e uma avaliação sobre quais dessas posições deverão ser descartadas e quais delas servem, ainda nos dias de hoje, para uma compreensão adequada da realidade. 14 Afinal de contas, uma teoria anarquista da história é fundamental para uma análise do pas- sado, que tenha também por objetivo oferecer perspectivas ao futuro. Outubro 2010 Felipe Corrêa 15 ORGANIZAÇÃO POLÍTICA ANARQUISTA E DEMOCRACIA DE BASE LIBERTÁRIA A RELAÇÃO DESTE ENSAIO COM O LIVRO Pensar em política é pensar em processo, e a idéia de processo político nos remete às concep- ções da história. Para nós anarquistas, a história não tem o significado de uma religião, deificando uma teleologia “materialista” para substituir um sistema de crenças de tipo divino. Se há algo que não somos; este algo atende pela alcunha de cientificistas. Cremos no estudo da história como ferramenta de trabalho teórico-analítico, pela ne- cessidade de auto-descobrimento e uma frente de luta para, junto da teoria, dar a peleia justa pelo direito a existência. As razões acima justificam de por si a existência deste livro, com a Apresentação de Felipe Corrêa e o artigo de fôlego desenvolvido por Anderson Romário Pereira Corrêa. Para contribuir com o debate e fortalecer alguns conceitos-chave na História e da Po- lítica, entendi como produtivo agregar uma introdução em forma de ensaio abordando os 16 temas relacionados entre a Organização Política e a Democracia Direta, desenvolvendo o argumento com exemplos e debates de fundo histórico e sob a perspectiva do anarquismo de matriz especifista. Como contraponto e falando em pretensão cienti- ficista e as conseqüentes ditaduras de inspiração marxista, este texto abre justamente rememorando herança maldita do Capitalismo de Estado sob re- gime fechado de partido único. Abrimos com este tema porque é necessário que as esquerdas passem a limpo os absurdos do falso “’socialismo” de Estado e equacionem os pilares da igualdade e da liberdade. Espera-se com o texto introdutório, contri- buir para a compreensão ampliada das diversas formas possíveis de formular uma compreensão do momento presente; suas trajetórias pregres- sas e as perspectivas de futuro, tanto imediato, como no médio e longo prazo. O Muro caiu e deixou sua herança maldita No dia 09 de novembro de 2009 cumpriram-se vinte anos da derrubada, a marretadas, do Muro de Berlim, erguido as pressas em 1961. A atual gera- ção de jovens (entre dezoito e vinte e cinco anos) tem pouca ou nenhuma noção desses significados para a política contemporânea. 17 O término da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) veio após a reação popular ao último suspiro stalinista na forma de golpe mili- tar em agosto 1991. Com o fim da Guerra Fria, a derrota e a dissolução da antiga União Soviética, concretizada entre agosto e dezembro de 1991, as mídias transnacionais corporativas e os mercená- rios acadêmicos jogaram na vala comum as idéias igualitárias e durante uma década maldita (os anos ’90 com a ascensão do neoliberalismo), deram a entender que a democracia liberal era a única forma de regime democrático. Nada disso foi à toa. A partir da derrota e posterior dissolução da antiga União Soviética culmina um processo onde propositada- mente se confunde a plataforma da igualdade com ineficiência econômica e idéias ultrapassadas. De lá para cá muita besteira foi dita, como o Fim da História e a irredutível marcha da humanidade rumo à mundialização do capita- lismo. Nem tudo foi ou é tão simplista, sendo que a Queda do Muro também foi comemorada por vários setores da esquerda, nós libertários inclusive, assim como todos os demais críticos contumazes daquele Estado totalitário e satélite de um Império governado pela Nomenklatura corrupta e assassina. 18 Infelizmente, o senso comum, bombarde- ado pelas indústrias de bens simbólicos (mídia corporativa) em geral, percebe apenas o efei- to da chamada Globalização das Corporações, como a materialização da vitória política, eco- nômica e militar dos EUA e o bloco da Organi- zação do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Isto gera uma série de equívocos e déficits na formação daqueles que estão na lida política cotidiana e a militância brasileira paga o preço por esta lacuna. O problema se nota em dois exemplos. Um, confundir a política de esquer- da essencialmente com a maior intervenção do Estado na economia. Outro relaciona este campo do pensamento apenas com totalitaris- mo e partido único. Traduzem-se conceitos mal explicados em chavões e rótulos de pouca ou nenhuma profundidade. Apenas para exempli- ficar o volume das bobagens, tem muito ana- lista político por aí dizendo que “tal político é de esquerda porque defende maior intervenção do Estado na economia capitalista”. Bem, por esse conceito torto, Franklin Delano Roosevelt (o presidente dos EUA que implantou o New Deal para sair da Grande Depressão nos anos ’30) também seria de “esquerda”. 19 Estes equívocos são uma parte da herança maldita da Cortina de Ferro. O senso comum as- socia ao pensamento distributivista e igualitário às características de uma sociedade governada sob ditaduras de inspiração marxista. Esta é uma verdade apenas parcial. Nem todo socialismo é ditatorial e menos ainda marxista. É certo que o marxismo - com todas as suas derivações - foi o pensamento majoritário nas esquerdas. Mas está longe de ser o único e, a cada ano que passa, seus pressupostos em todas as variáveis se provam fa- lhos e absurdos. Como teoria socialista os marxis- mos (todos) são um rotundo fracasso. Já para a reprodução de doutrina como sistema de crenças ancorado no cientificismo, os marxismos funcio- nam, e muito. Nada disso é novidade e nossa tra- dição como anarquistas remonta ao período ante- rior, na Primavera dos Povos, nas lutas populares e operárias do Ocidente da Europa ocorridas no ano de 1848. Neste ano iniciam em grande escala os embates no interior do campo socialista e cul- minam no racha entre federalistas (anarquistas) e centralistas (marxistas) na 1ª Associação Interna- cional dos Trabalhadores (AIT, 1864-1871). Já no século XIX o problema da liberda- de e da via estatal dividia águas. E, justiça seja 20 feita, tudo o que aconteceu nas sociedades go- vernadas pela Nomenklatura como classe do- minante foi previsto pelos opositores de Marx dentro da AIT. O que Mikhail Bakunin afirmou que aconteceria, aconteceu. Dito e feito. Ao desdenhar do problema da liberdade e centrali- zar as decisões em gestores profissionais base- ados em uma doutrina com pretensão “cientí- fica”, a sociedade passa a ser apenasum objeto de controle e não sujeitos a serem emancipados através da gestão direta no mundo do trabalho, da cultura, da política e do lazer. É urgente resgatar a crítica ao totalitaris- mo por esquerda para se contrapor a sua falsa alternativa, o pensamento único de base neoli- beral. A associação vulgar dissemina a crença de que “concorrência” de mercado é sinônimo de liberdade política. Não é. O primeiro Estado que a ortodoxia neoliberal toma de assalto é o Chile de Pinochet. Os economistas chilenos formados por Milton Friedman, apelidados de Chicago Boys, tornaram real o autoritarismo de mercado. Em parte o problema continua. O regime ditatorial da China comprova que a ditadura de partido único e controle da sociedade entram em “harmonia” perfeita com as grandes trans- 21 nacionais. Sua classe dominante, os mandarins do Partido, são dublês de empresários e inter- dependentes economicamente dos Estados Unidos. Isso pode ser tudo, menos a expressão societária da liberdade política com distribui- ção de renda e poder. Está mais do que provado. Uma socieda- de justa não pode ser baseada nem na compe- tição e tampouco em nenhuma forma de pen- samento único. Há dois desafios fundamentais para as esquerdas atuais. Um é aprofundar as formas de democracia social com participação direta nas decisões fundamentais. Outro é li- vrar-se de vez de toda a herança maldita do ex- tinto Bloco Soviético e suas derivações. O Muro representou o absurdo de uma potência imperial que, em nome de alguma forma de Capitalismo de Estado mal apelida- do de Socialismo, haver desenvolvido um me- canismo de sociedade de controle acima dos direitos de toda e qualquer forma de mani- festação societária. As idéias de justiça social e liberdade política estão sendo reinventadas e redescobertas, superando as premissas fra- cassadas da autoridade inquestionável. Assim como nas barricadas de Paris em 1848 e 1871, 22 a história dos povos se escreve nas ruas e na militância organizada. RAÍZES DA ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DOS ANARQUISTAS – FUNDAMENTOS Existe algo no anarquismo, fundamental para a sua própria existência, que ainda é mal explicado e pouco aprofundado. Isto é, seu modelo de orga- nização política. A confusão é tanta, que vários militantes experientes ainda chegam a afirmar que a ideologia é anti-política. Para superar tamanha confusão, oferece-se aqui uma breve recordação de nossa história política. Como o subtítulo do texto já afirma, não se trata de uma novidade para o universo da política. A forma organizativa dos anarquistas militantes remonta ao início de nossa conformação como matriz ideológico no seio da luta dos trabalhadores assalariados no século XIX. Vale observar que, se são novos ou inexis- tentes os estudos sobre o tema, se esta forma de fazer política não se transformar nem em objeto estudo acadêmico, e menos ainda em conceito difundido no senso comum das esquerdas latino- americanas, isto tem razões e motivos. Primeiro, dentro da academia burguesa, ou seja, das uni- versidades do ocidente capitalista, a máquina de 23 moer carne dos marxismos sempre fez questão de fazer “ciência” humana e social aos moldes da obra “1984” de George Orwell. Assim, a omissão histórica é uma forma indolor para quem o faz de fazer desaparecer a dor de milhares de militantes. Como a política em geral não tem regras, o nosso “desaparecimento histórico e político”, é devido à correlação de forças no interior do campo acadêmico e do ramo de publicações (isto no período anterior a disseminação da internet). Outra responsabilidade pelo desaparecimento da federação anarquista como modelo de orga- nização política, também ocorre porque muitas vezes os debates travados nos intestinos das es- querdas não-estatistas não encontram eco entre os proclamados fazedores de teoria. Em função desses elementos que apresento aqui e de ou- tros que faltam expor, houve pouco ou nenhum debate do anarquismo como ferramenta política organizativa para além da militância já engajada. Como se sabe, quando um tema relevante fica restrito ao círculo dos iniciados ou especialistas, mesmo estes sendo em sua maioria autodidatas, torna-se muito difícil sua popularização. Mas, por esforço de gente com postura humilde e abnegada, tal fato está mudando. 24 Como é de conhecimento geral, uma or- ganização política é composta por militantes especificamente aderentes a um corpo ideológico- doutrinário. E, pelo modelo adotado desde o início no interior da ala federalista da 1ª Asso- ciação Internacional dos Trabalhadores (1ª AIT, 1864-1871), uma organização política anarquista não é aberta para a filiação de todas e todos. É um grupo fechado, com adesão voluntária, mas individual e paulatina. Por não ser de massas, em contraposição, está no formato de quadros, sem filiação aberta e cujo grau de compromisso dá-se através dos círculos concêntricos. E, na sua estruturação interna, se encontra a divisão jurídico-político-administrativa, com instâncias de participação, de comissão de ética e conduta, de comissão de garantias políticas e direitos indi- viduais, de administração interna (como finanças e tesouraria), de corpo político-técnico e de outras atividades especializadas. Há que se ressalvar que a forma especifista/ organicista/plataformista não é a única expres- são política do anarquismo. Outras vertentes propõem o modelo “federação de grupos” (co- nhecido também como federação de síntese, ou sintetista) e também a forma “grupos de afini- 25 dade (que podem chegar a se organizar em uma federação de grupos ou redes). A maior parte da literatura, mesmo a ontologicamente vinculada ao anarquismo, tem uma abordagem mais em- basada na filosofia política dos que professam esta ideologia, e costumam dar pouca atenção dão à estrutura orgânica e administrativa de suas organizações. Nosso foco é justamente travar um debate inicial a respeito dessa estrutura. Isto porque são mais conhecidas as grandes divisões do anarquismo em forma de filosofia política. Em geral associa-se a tradição de pensamento aderida à organização específica do anarquis- mo como anarco-comunista, vinda dos cole- tivistas de Bakunin. A ala que não entende a necessidade de separar o nível político do político-social deu na síntese das idéias de anarquismo e sindicalismo, resultando no anarco-sindicalismo. Nesta vertente, em seu interior mais fecundo e desenvolvido, atua- ram grupos de afinidade e federações, como é o exemplo da Federação Anarquista Ibérica (FAI), fundada em 1927. A estrutura dos chamados círculos concên- tricos, embora não seja um conceito exclusivo, 26 em geral se atribui aos aderentes da ideologia anarquista esta forma de se organizar. A mo- dalidade ganha definições ao longo de sua his- tória, tais como: organicismo, plataformismo, especifismo. Da forma como compreendemos este modelo obviamente remonta a esta tra- dição, atuando por fora do jogo eleitoral da democracia indireta de tipo burguesa e estatista e que não se enquadra apenas nas tipificações da filosofia política anarquista. Vamos aumentar o grau de definição, apli- cando uma terminologia consensual (embora não neutra, o reconhecemos). Assim, para fins didáticos e termos comparativos, a modela- gem organizativa se refere a uma organiza- ção de quadros, com estrutura de círculos de compromisso e adesão (concêntricos) e com democracia interna. No campo doutrinário, se vê a organização como interlocutora de uma frente de classes (mas não exclusivista de um setor de classe); opera para a sociedade através de um viés classista e de maiorias, portanto gerando um sentido de povo X eli- tes. Em geral, se admite e reivindica a origem nacional e popular (mas sem nacionalismosna forma de estatismos, com ênfase no anti- 27 imperialismo) e necessariamente se trata de uma organização programática. Ou seja, tem uma intencionalidade finalista (de ruptura) e se move ano a ano visando acumular forças para este objetivo. RAÍZES DA ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DOS ANARQUISTAS – AS PRIMEIRAS REFERÊNCIAS A forma de organização de tipo federalis- ta não é nova, como já dissemos. Em 1868, no interior da Associação Internacional dos Traba- lhadores (AIT, ver Coletivo Luta Libertária, 2000, pp. 76-79) a então chamada ala federalista tinha em seu interior uma força política organizada de- nominada Aliança Internacional pela Democra- cia Socialista (conhecida como Aliança, de tipo bakuniniano, ver id), cujo referente público mais conhecido é o militante russo Mikhail Bakunin (1814/1876, ver Cappelletti 1968). A Aliança ti- nha um funcionamento de organização de qua- dros, de tipo “carbonário” e com a maioria de seus militantes atuando em clandestinidade. Al- guns referentes públicos eram líderes conhecidos dentro da AIT, e a mesma não atuava dentro de um país ou território em específico. Era usual o 28 envio de delegados e agentes para países e regio- nais distantes, tanto para organizar socialmen- te, como para estruturar uma célula da Aliança como para episódios pontuais insurrecionais. Outra experiência de referência nesse mo- delo de partido foi fundada em 1891, o Partido Socialista Revolucionário Anárquico (PSRA, também conhecido como Partido malatestiano, Coletivo Luta Libertária 2002, p. 43) e seu refe- rente mais conhecido é o anarquista napolitano Errico Malatesta (1853/1932, id). Embora con- tasse com acionar clandestino, o PSRA tinha a forma-partido mais semelhante com a usu- al. Seus militantes referentes para os níveis de massa (social) e de corrente (político-social) e material de propaganda política. Seus militan- tes eram mais de tipo polifuncionais, incluin- do os tipos de ação direta praticados na Itália da época (da fundação até o golpe fascista de 1922, ver Guérin 1968, pp. 127-131). Da Revolução Russa, atuando especifica- mente na Ucrânia, saiu o acúmulo de experiên- cia de organização política de massas em meio da guerra civil (1918-1921). O Exército Insur- recional de Camponeses da Ucrânia (Exército Negro, também conhecido como Machnovictna, 29 ou Macknovista, ver Archinov, 1976), cujo refe- rente militante era Nestor Ivánovitch Makhnó (1888/1934, Coletivo Luta Libertária 2001), tinha a hegemonia político-militar-administrativa de vastas extensões ucranianas, e desenvolvia um acionar que partia da produção coletivizada e cuja ponta estava um exército baseado em cava- laria móvel e cujos postos de mando eram todos eleitos. Houve então a fusão organização política/ milícia libertária, promovendo simultaneamente a guerra de movimentos, o federalismo político e a autogestão sócio-econômica. Com a derrota para o Exército Vermelho em 1921, alguns sobre- viventes do Estado-Maior do Exército Negro vol- tam a se agregar em Paris, França e escrevem um manifesto político, reconhecido como uma obra de teoria política anarquista chamada de Plata- forma Organizacional dos Comunistas Libertá- rios (ver na íntegra em Dielo Trouda 1997). Neste documento, que nos anos 1920 e 1930 teve ampla circulação, estão expressas quatro orientações te- óricas básicas para o modelo até os dias atuais: Unidade Tática, Unidade Teórica, Responsabili- dade Coletiva e Federalismo. A exposição de experiências históricas e de acúmulo entre e a partir destas organizações 30 poderia resultar em toda uma tese. Mas, para ressaltar aqui neste trabalho, de comum entre estes modelos organizativos está: a seleção de ingresso (partido de quadros); a não participa- ção em eleições estatais (anti-eleitoralismo); a ação de tipo minoria ativa (em contra da con- cepção de vanguarda de classe); a estrutura federativa interna e defendida como modo de organização social (federalismo político); o uso sistemático da força, em conflitos coletivos e de tipo massivo (ação direta como meio priori- tário de gerar fatos políticos); projeção das es- truturas sociais organizadas como prioritárias, eliminando a intermediação profissional (pro- tagonismo popular) e a existência de possibili- dade de crítica e promoção interna, crescendo o aumento de responsabilidades políticas segun- do o grau de compromisso do militante (demo- cracia interna e renovação). Os exemplos históricos dados acima são re- ferenciais não exclusivos. Para a tese, tomamos como base de diálogo as experiências da Federa- ção Anarquista Uruguaia (FAU, fundada em 1956, ver Mechoso 2005, pp.313-316) e da Federação Anarquista Gaúcha (FAG, fundada em 1995, ver FAG 2006). Cabe uma ressalva importante. Em 31 nenhum momento afirma-se que as três organi- zações aqui citadas são mais importantes histori- camente do que outras, e no caso do anarquismo latino-americano, que a ideologia se encerra no especifismo praticado no Cone Sul. Estas são as referências deste que escreve, havendo outras em distintos territórios do planeta. CARACTERÍSTICA DA ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DOS ANARQUISTAS O debate iniciado neste sub-tópico tem a explícita intenção de aproximar o anarquismo politicamente organizado do Cone Sul da América Latina com o movimento libertário de Espanha e Europa. Sabe-se que a aproximação conceitual leva seu tempo e o debate tem de ser solidário, respeito- so e tolerante entre companheiros de ideologia. É importante ressalvar que não se trata por tanto de um receituário acabado. Esta forma organizativa vem sendo construída passo a passo há 52 anos. Embora emita opinião pessoal – e por isso assino este texto - baseio os conceitos nos acordos já exis- tentes, aprovado em nível federal e compartilhados pelo secretariado conjunto FAU-FAG. Como já foi dito acima, o conceito fundamental da organização política dos anarquistas militantes é 32 o de círculos concêntricos. Este conceito é simples e implica em separar as formas de atuação. O político específico corresponde ao ideológico e é para os anarquistas militantes politicamente organizados na federação. Também já foi dito que a organização política não é de massas, portanto não tem filiação aberta. Compreendemos que os níveis político-social e social, devem ser massivos e abertos a tod@s os militantes populares. O político-social é para um setor afim, que compartilha um estilo de trabalho, mas não necessariamente ideológico. No caso do Es- tado Espanhol, entendo que o anarco-sindicalismo hoje praticado pela CGT (Espanha) corresponde a este nível de atuação. Já o nível social propriamente dito é para a classe e o povo como um todo. Este corresponderia às instâncias gerais de luta, propor- cionando a organização do tecido social-produtivo que é o pilar do Poder Popular. Também repetindo o já afirmado, reco- nhecemos que, com os devidos ajustes, vemos que esse formato não é “novidade”. Já era apli- cado durante a 1ª Internacional pelos membros da Aliança. Na segunda metade do século XIX, nossa ideologia era reconhecida em um orga- nismo especificamente anarquista (a Aliança), atuava com força dentro de um setor da AIT 33 (a chamada ala federalista) e a partir desta corrente, peleava duro contra a outra ala, cen- tralista-estatista, sob a hegemonia da condu- ção político-burocrática do alemão Karl Marx, exilado em Londres (Inglaterra). Infelizmente a história hegemônica afirma mais que nada a personalidades e não às organizações onde cen- tenas de lutadores dedicaram toda uma vida. A Aliança tinha a Bakunin como mais um de seus referentes, mas não o único. Esta organização política fazia o elo de força entre a organização de base, a luta operária massiva e participava nasinsurreições sociais da época, considerando que a forma insurrecional clássica de então era o levante citadino e o levante de camponeses. Um exemplo nítido de insurrecional popular urbana foi a própria Comuna de Paris (1871) Cita-se aqui a Aliança para lembrar que o círculo específico dos anarquistas militantes é tão antigo quanto à própria ideologia. Con- vêm ressaltar uma característica do especifis- mo praticado no Cone Sul em relação a outros modos de organização do anarquismo. Nossas federações são flexíveis na tática, como nas formas de organização da classe. E, inflexíveis naquilo que é estratégico, como no anti-esta- 34 tismo e na opção de câmbio mediante um pro- cesso revolucionário tendo o povo organizado como protagonista. A DEMOCRACIA POLÍTICA DE BASE LIBERTÁRIA É comum escutarmos que a democracia representativa está em crise e ao mesmo tempo o sentido de democracia política está cada vez mais em alta. Concluindo o final da primeira década do século XXI e observando a luta anti- globalização na emergência de novos agentes sociais, chegamos a algumas conclusões. Um, que os valores democráticos de liberdade de expressão, reunião, manifestação, crença e di- fusão de idéias são essenciais a uma sociedade igualitária. Dois, que a idéia de democracia como igualdade jurídica é válida e necessária para evitar qualquer tipo de sociedade elitizada. Três, que o ritual democrático com desigualdade econômica e injustiça social é uma casca vazia e não leva a lugar algum. Nada do que estamos escrevendo aqui é novidade para a matriz de pensamento liber- tário. Esta teoria na forma de Poder Popular anti-estatista recobra valor e força a partir da 35 última década do século XX. As esquerdas exis- tentes no mundo hoje se vêem na obrigação de dialogar com um conjunto de movimentos, de identidades, associações em defesa de interesses e vontades de autonomias societárias pouco in- fluentes até os anos ’80 e essenciais após o início da luta contra a globalização do capitalismo de tipo financeiro e telemático. O tema da liberdade como valor essencial ao socialismo, e do prota- gonismo do povo podendo decidir por sua conta sem a tutela de uma combinação de tipo Partido- Estado torna-se o pilar de uma esquerda social que hoje está na primeira linha da luta popular no mundo todo. Para concretizar essas vontades em um siste- ma de idéias que possa se tornar teoria política, falta pouco, mas ainda resta um trecho a percor- rer. O foco da disputa no campo dos conceitos (ou seja, das ferramentas de análise e interpretação das realidades) está justo na forma de um siste- ma político de base plural e igualitária. Ou seja, necessitamos reconhecer o direito a existência da diversidade dentro da justiça social. Isto implica pensar em formas de organização social onde a dimensão política (de organizações e partidos de esquerda); religiosa (sem proselitismo nem con- 36 trole da educação ou dos meios de comunicação); de identidades (sejam étnicas, sexuais, culturais, etc.); territorialidades (como os controles comu- nais); do mundo do trabalho (na gestão direta e coordenada com as maiorias) e dos mais variados grupos de interesse estejam contemplados nas decisões fundamentais da sociedade. Para formalizar estas idéias é preciso um passo anterior, que é simples. As esquerdas de intenção revolucionária necessitam compartilhar da idéia da liberdade política funcionando sobre uma base de justiça social. O que nos divide, é saber se essa base societária será estatal ou não. O que nos une é afirmar esta liberdade política dentro da multiplicidade de agentes e sem a disputa estéril por direcionamentos e vanguardas. A política tem regras duras e é um jogo para gente grande. A hegemonia, a referência e a gravitação se dão pelo peso relativo de cada força atuando no tabuleiro de possibilidades. Mas ter gravitação não implica necessariamente em ter conduta visando hege- monismo ou direção total de uma luta. É possível avançar na horizontalidade e, fruto de experiências político-sociais, arriscamos aqui uma modelagem. Para os fins deste ensaio, as experiências de controle territorial exercida por distintas forças 37 insurgentes em nosso continente vão servir de analogia. O exemplo abaixo é real, ocorreu na dé- cada de ’80 em um país sul-americano. Detalhe, os beligerantes de esquerda não eram anarquistas, embora executassem um programa muito seme- lhante ao que defendemos. Exemplo histórico. Vamos supor um terri- tório liberado pela insurgência onde se mescla selva e montanha e fica distante cerca de 1000 kms da capital de um país fictício. Assume-se que este mesmo se encontra em guerra civil (não declarada e não reconhecida pela ONU). Nesse terreno, nos municípios onde a esquerda beli- gerante opera, torna-se a força hegemônica em armas e na maioria das vezes tinha o monopólio da força. Mas, sabiamente, isso não implica em monopólio da representação política. A estrutu- ra da sociedade seria dividida em Assembléias Regionais Populares, onde todos os grupos de interesse, sindicatos, movimentos populares, delegados de micro-regiões e organizações de esquerda tinham seus delegados com voz e voto. Na arena política de representação popular (tipo Congresso do Povo), os insurgentes conformam uma força a mais nesse universo de decisão po- lítica, com o mesmo peso de voto dos demais. 38 Das Assembléias Regionais saem delegados para a Assembléia Nacional, que era, logicamente, o conjunto de representações e territórios onde os insurgentes tinham hegemonia. Esta Assembléia não contava com delegados regionais de zonas onde outra força beligerante hipotética (uma de corte autoritário, centralizador e estatista) seria hegemônica e menos ainda de lugares onde a democracia representativa burguesa e estatal se fazia presente. Por fim, é desta instância mais ampla de delegação de base e regionalizada de onde saem linhas e demandas para a política geral nos lugares onde a força insurgente atuava. Que lições e exemplos podem ser tirados desta experiência? Primeiro, que mesmo nas condições mais adversas é possível a organização de base e o estímulo da participação política. Segundo, que a diversidade dentro da igualda- de de direitos e justiça social é perfeitamente aplicável. Isto se dá se a hegemonia da força e a gravitação política têm as condições de exercer este tipo de democracia. Terceiro, que se no caso, não fosse apenas uma organização no uso da força, mas uma série de organizações políticas compartilhando o mesmo plano de trabalho das Assembléias (Regionais e Nacional) este seria 39 perfeitamente executável. Quarto, que qualquer organização social de protagonismo popular sempre se verá confrontada com o status quo e a estrutura de poderes das classes dominantes. A variável é o tipo e forma de confrontação, podendo ser desde uma luta avançada e dura como a do exemplo dado dos ’80, até a luta de massas e popular exercida pelos movimentos indígenas e comunitários em algumas cidades e regiões latino-americanas a partir do ano 2000. Quinto e por fim, é essencial compreender que o conceito aplicado pela força insurgente à organização social no território liberado é o de PODER POPULAR. Isto significa uma estrutura de delegação política aos militantes votados di- retamente pelos segmentos do povo organizado, que constroem instâncias de regulação social e é de onde vem a soberania popular por excelência. Esse modelo, aplicado em países onde o Estado existe e não está em guerra com o povo mas, é alvo de disputa de blocos de poder (como acon- tece neste momento em Venezuela), entra em funcionamento quando as organizações políticas e movimentos populares disputam as parcelas de podernão-estatal através de conselhos co- munais, mesas técnicas (para temas como água, 40 luz, saneamento, saúde e etc.) ou território auto- organizados (de forma total ou parcial). Por fim, um sistema político semelhante poderia ter sido aplicado na Catalunha de 1936 a partir do Comitê Central das Milícias, no caso, sob hegemonia e controle social quase total da CNT/FAI. O mesmo se deu na Frente de Aragón e em outras regiões do planeta com ou sem hegemonia integral dos anarquistas organizados. Bruno Lima Rocha 41 A HISTÓRIA NA VISÃO DE ANARQUISTAS Objetiva-se analisar como foi abordada a História por alguns pensadores e “teóricos” do anarquismo. Para atingir este objetivo, foi feita uma revisão de alguns textos de anarquistas “clássicos”, que se destacaram como pensado- res e filósofos do movimento anarquista inter- nacional: Proudhon, Bakunin, Kropótkine e o historiador Rudolf Rocker. Parte-se do princípio de que uma das funções da História é servir de instrumento para a transformação da sociedade, e que é utilizada pelos mais variados “agentes sociais” como “guia para ação”. O trabalho ini- cia com uma definição de passado ontológico e epistemologia do passado. Logo se apresentam as discussões atualizadas sobre a produção do conhecimento histórico, sua “evolução”. Em seguida, constrói-se o cenário, como os histo- riadores vinham pensando e discutiam sobre seu oficio, ou seja, o cenário em que se inserem os escritos anarquistas sobre a história. Faz-se uma “analise de conteúdo” destacando trechos em que os autores citados acima dedicaram al- 42 gumas linhas para escrever sobre a História. Para concluir, compara-se a analise com o contexto histórico e as discussões atualizadas. INTRODUÇÃO É difícil saber se este trabalho é uma história da História a partir do pensamento anarquista ou se é uma história do pensamento anarquista e suas concepções de História. Talvez seja um pouco de cada. O que se pretende saber é como os anarquistas entendiam a História, tanto no sentido ontológico quanto no epistemológico. É importante destacar como e por que se faz o estudo da História no pensamento anarquista. A história ontológica é o passado real e concre- to, a História epistemológica significa a construção de um saber, uma disciplina, uma ciência (teoria e método) compreendendo também seu discurso (historiografia). Os procedimentos da analise se- guirão a técnica da “comparação” dos modelos, e a relação ao contexto da produção literária. Rodrigo Quesada Monge diz que, com o fim do projeto do Capitalismo de Estado (mono- poliza), ocorre, principalmente após 1989, um crescente descrédito na teoria marxista para 43 interpretação da história. Muitos historiadores utopistas e sonhadores ficam, assim, órfãos de um projeto teórico de uma filosofia da história. O historiador afirma que, se forem revisados os trabalhos investigativos dos grandes historia- dores anarquistas como Nettlau, Paul Avrich, Rudolf Rocker, Murria Bookchin y Howard Zinn, somente para recordar alguns exemplos, aparece um exaustivo levantamento documental unido a um desmedido compromisso político e social com as implicações morais e políticas do seu ofí- cio.1 Para saber no aspecto teórico e metodológico a prática historiográfica dos anarquistas, correto seria analisar as produções historiográficas des- tes. Escolher um período e conjuntura e estudar esta produção. Porém esta tarefa não é obra para nenhum pesquisador solitário. A intenção deste artigo é bem mais modesta e limitada ao discur- so, ao que se afirma sobre “como deve ser” e não necessariamente ao que realmente é. José Carlos Reis escreve que a história, assim como toda cultura ocidental, passou por uma transição entre o século XVIII e o século XX. Esta transição caracteriza-se pelo iluminismo 1 RESENDE, Paulo-Edgar e Edson Passeti. Pier- re-Joseph Proudhon.Política. São Paulo. Ed. Ática, 1986.p.16. 44 (racionalista, globalizante e moderno), o estru- turalismo e o pós-estruturalismo. O projeto iluminista vê a história como “espírito universal”, que progressivamente vai “tomando consciência de si”. O projeto moderno e iluminista é extremamente otimista, crê no poder da razão. A hipótese iluminista é hegeliana, não pode não ter sentido. A história seria então governada pela razão. A história, segundo Carlos Reis, é a busca de sentido e não vontade de potência. O projeto iluminista legi- tima toda violência contra o passado-presente, que é considerado um entrave para o progresso e evolução.2 No século XX, o movimento estruturalis- ta veio desconfiar deste sujeito consciente em busca da liberdade. A convicção de que a razão governa o mundo foi posta sob suspeita. Passou- se a duvidar do progresso, do evolucionismo, do eurocentrismo, da razão racionalista. O homem não é totalmente sujeito e livre, e a sociedade não é guiada por uma teleologia. De acordo com José Carlos Reis, a história deveria dedicar-se mais ao repetitivo, cíclico, resistente, inerte e estrutural. Deveria dedicar-se à realidade empí- rica, produzindo um saber objetivo e conceitual. O estruturalismo ainda se diz racionalista, po- 2 Ibidem. p.70. 45 rém procura a razão a contrapelo, onde ela se esconde, acaba adotando um determinismo in- consciente. Os estruturalistas são contrários às utopias, pois discordam do fato de misturar a filosofia com a ciência. A utopia só faz sentido dentro de um raciocínio típico-ideal, uma abs- tração que permite conhecer a realidade. 3 A segunda fase do estruturalismo, o pós- estruturalismo, não duvida da razão, isto é, não acredita na própria existência da razão. Não procuram mais verdades históricas, nem essenciais, nem aparentes, nem manifestas e nem ocultas. O universal não é pensável, a unificação é impossível. O conhecimento his- tórico pós-estrutural é antiestrutural, parcial, limitado, individual, em migalhas. Não se quer neutralidade, passividade, serenidade e univer- salidade. Não existe uma razão, moral, verdade universal. A partir dos anos 80, o homem não é mais o horizonte do historiador, a história deixou de ser análise do passado para produzir mudanças no presente etc. Acima foi transcrito como Carlos Reis des- creve a relação e influencia da cultura ocidental na concepção de história e na prática historio- gráfica. Esta trajetória que ocorreu aproxima- 3 Ibidem. p.33s. 46 damente entre os anos 30 e 80 do século XX. Carlos Reis diz que uma bandeira que vem ganhando adeptos entre os historiadores é a proposta defendida pelo historiador francês F. Dosse. Este autor defende um retorno ao pro- jeto inicial da Escola dos Annales, que se pode destacar: a mesma relação interdisciplinar com as ciências sociais, a mesma referencia à histó- ria problema, a mesma resistência e substitui- ção do marxismo. A compreensão e o aprimo- ramento do saber histórico, absorvendo todo o avanço possível das ciências humanas e sociais, esta em gestação. Para Dosse: A lógica mesma da ação mantém aberto o campo dos possíveis, em uma reabertura das potencialidades do presente alimentada pelos possíveis não averiguados do passado. A função da história continua, portanto, viva, e o luto das visões teleológicas pode se tornar uma chance para se repensar o mun- do do amanhã. Enfim, procura-se entender como os anarquis- tas viam a história, enquanto o que ficou para trás, em que medida e como esta história influencia o presente e o futuro dos indivíduos e da sociedade. 47 Também se procura saber em que medida a His- tória, enquanto saber, se constitui em ciência e, se para os anarquistas, é possível uma previsibilidade e o estabelecimento de leis históricas. HISTORIA E HISTORIOGRAFIA (DE 1840 A 1940) A delimitação temporal paratrabalhar deveu-se ao fato de ser o período que abrange a produção dos “teóricos” que serão analisados. As produções de Proudhon que iniciam por volta de 1840 e a de Rudolf Rocker, em 1937. As discussões sobre filosofia e teoria da história da segunda metade do século XIX e da primeira metade do século XX, serão o contraponto para análise e comparação da produção dos teóricos anarquistas. Cenário habitado por discussões de historiadores historicistas e a Escola Metódica como Leopold von Ranke, Taine e Fustel de Coulanges, Gabriel Monod, Charles Seignobos, Charles Langlois. Aparece a concepção de his- tória enquanto ciência social com a transição entre Henri Berr e o movimento dos Annales com Lucien Febvre e Bloch. Os principais historiadores antes de 1840 eram conhecidos como românticos. Produziam 48 uma história com comprometimento político, como Michelet e Tocqueville. São eles que estão publicando suas histórias neste período, em defesa das experiências republicanas e demo- cráticas liberais. Até aproximadamente 1860 vai a hegemonia dos historiadores românticos com forte ligação com a filosofia. O historicismo, ou a “Escola Metódica” e positiva, pretende elevar a história à categoria de ciência. Leopold von Rank defende a separação da filosofia da histó- ria, ele critica a metafísica hegeliana e acredita que a história constitui um saber cientifico na medida em que se detém no empírico, nos fatos e na individualidade histórica. Emana um es- pírito positivo que abrange a história, e passa a predominar entre os historiadores, inicia-se uma luta contra a influência da filosofia da história na ciência da história. A ciência histórica quer ser objetiva, quer formular enunciados adequados ao seu objeto e que sejam válidos para todo tempo e lugar, como estimavam que faziam as ciências naturais�. A história procura encontrar fatos e descobrir verdades, a história é a ciência da observação. No final da década de 70 do século XIX, Gabriel Monod inicia uma produção voltada para o método histórico, empreitada levada adiante 49 também por Charles Langlois e Seignobos. No final do século XIX, este esforço de criar uma his- tória cientifica, dividiu-se em três proposições: A proposição rankiana, que aproxima a história das ciências naturais; a orientação de Dithey, que quer descobrir o que há de especifico no conhecimento histórico e cria a concepção de ciência social, lugar onde se destaca a história; e o marxismo. Ao iniciar o século XX, ocorre um perío- do transitório entre a “Escola Metódica” e a “Escola dos Annales”, onde Charles Péguy, F. Simiand, Dithey e Henrii Berr constroem uma concepção de história relacionada às ciências sociais. A história esta, então, entre as ciências sociais e não entre as ciências naturais. O objeto de estudo do historiador é o próprio homem, a sociedade humana. Dosse escreve que o projeto da Escola dos Annales é um projeto de espírito de “Frente Popular”, e para demonstrar isto ele traça o itinerário de alguns membros fundadores da Escola. No inicio da vida intelectual, Lucien Febvre era socialista fervoroso; segundo Dosse, ele escreve, entre 1907 e 1909, no Lê Socialiste Comtois, órgão semanal da federação do Doubs da SFIO (Seção Francesa da Internacional Ope- rária). No dia 21 de março de 1909, redige mais 50 da metade da primeira página do jornal com quatro artigos: “Viva a vida! Abaixo a autoridade”. Em 1909, ele escreve em um artigo: “Ah querido velho Proudhon¹ E há pessoas que dizem que você está morto! Vai, esteja tranquilo: a personalidade humana se empertigará, enfim, ela que há tantos séculos vinha se corrompendo, imutável nessa degradação. Ela solta com uma voz ainda fraca, mas que não é mais tímida, o grito libertador que você mesmo soltava: nenhuma autoridade!” François Dosse diz que Lucien Febvre vê no discurso marxista ao mesmo tempo uma concepção tão voluntarista e factual quanto à da história tradicional e tam- bém sua forma de espiritualismo econômico. Portanto, a Escola dos Annales procura se constituir, por seus fundadores em 1929, numa alternativa à história tradicional e à história marxista, com a emergência do econômico e do social na História. Lucien Febvre e Marc Bloch veem na teoria das probabilidades, na teoria da relatividade da medida temporal e espacial, a possibilidade de a história aspirar, ao estatuto de ciência, contanto que critique os testemunhos do 51 passado, elabore fichas de leitura, teste as hipóteses, passe do dado ao criado. Segundo Dosse, eles acreditam que a pesquisa histórica pode tomar emprestada a via das pesquisas causais a partir da crítica dos documentos, mesmo se aos olhos dos promotores dos An- nales ela deva se precaver contra toda meta- física, contra todo monismo de causalidade. Dosse escreve que o projeto dos Annales é indissociável de sua dimensão estratégica: Todo projeto cientifico é inseparável de um projeto de poder /.../. Vontade de convencer e vontade de poder estão unidas como a luz e a sombra. ANARQUISMO O anarquismo pode ser entendido como uma ideologia, matriz de pensamento e teo- ria revolucionária. Como movimento político e social, com propósitos revolucionários aparece entre os operários na Associação Internacional dos Trabalhadores (A.I.T), também conhecida como “Primeira Internancional” (1864) e nos grupos de conspiradores revolucionários orga- nizados por Bakunin, que seguiam as ideias fe- deralistas e mutualistas de Proudhon. 52 Ilustração 01 Ilustração representando o Congresso de Fundação da A.I.T. Os anarquistas são também conhecidos como socialistas libertários, para distinguir-se dos marxistas, que são denominados de socialistas autoritários. Durante a Primeira Internacional, as teses anarquistas revolucionárias defendiam a proposta de uma revolução social, com a cons- trução do socialismo a partir de bases federalistas, e com autogestão socioeconômica. Acreditavam que o socialismo só é possível com liberdade, e por isso defendiam a abolição do “Estado Moder- 53 no”. Os socialistas autoritários (marxistas) eram reformistas, defendiam a conquista do Estado para, através de reformas, irem transformando a sociedade. Enfim, os anarquistas defendem a ideia de uma sociedade sem classes, sem domínio, opressão e exploração. É importante destacar que as concepções de história dos anarquistas, carregam também este componente de disputa, tanto com as concepções conservadoras, quanto com as ideias marxistas. Proudhon: “O movimento da história” Pierre-Joseph Proudhon, francês, nascido em 1809 e falecido em 1865, foi um dos grandes mestres do pensamento socialista do século XIX. Filho de camponeses, tornou-se gráfico e “livre pensador”; em 1837, conquista uma bolsa na Academia de Besançon para cursar letras ou ciência. O conjunto de sua obra se encontra num horizonte de afirmação da sociedade como realidade plural, dotada de forças coletivas, resultantes da união, da harmonia e da convergência de es- forços. Este raciocínio é a arma que esgrime contra o capital e o Estado. Para abordar aspectos do pensamento de Proudhon sobre a História, serão utilizados como fontes dois livros: “Proudhon”, de Paulo-Edgar Re- 54 sende e “Proudhon e Marx”, de Georges Guvitch. Proudhon foi conhecido também como o “homem dos paradoxos”, e suas proposições, realmente, mui- tas vezes eram contraditórias. Para compreender melhor seu pensamento, seria interessante analisá- lo à luz do contexto de produção e encará-los como construção, o que não seria possível nas pretensões deste modesto trabalho. Ilustração 02 Joseph Proudhon 55 Na seleção de textos organizada por Paulo Resende e Edson Passeti, a principal referência feita à História,na obra de Proudhon, foi quan- do Resende e Passeti escrevem: Proudhon afirma não ter um projeto de sociedade, postulando antes um método de análise que possibilite detectar o movimento da história. Não ficou claro, onde, quando e em que obra Proudhon teria feito esta afirmação, porém se buscou identificar nos textos publica- dos este “método que detecta o movimento da história”. Segundo os organizadores da obra, o “movimento da história” aponta na seguinte direção: anarquia industrial, feudalismo industrial (referência ao jacobinismo estatizante), império indus- trial e, finalmente, a república industrial (referente ao mutualismo)�.O “movimento da história’ vai na direção da afirmação econômica da autonomia do trabalho, da negação da apropriação do Ca- pital e da “democracia operária”. Proudhon escreve que, diante da complexi- dade do real, o pensamento humano, no início, apela para um principio de unidade transcen- dente. Aí, surge o dogma, que é a afirmação estática, por cima da diversidade histórica, em que a fé religiosa transparece como passivi- dade. Segundo o pensamento de Proudhon, a 56 metafísica significa a mesma coisa que Deus para as religiões e a procura por um “motor da história” em certas concepções “científicas”. Ao fazer a crítica a toda tentativa totalizadora, e de unidade dogmática, Proudhon opta por chamar sua busca por uma explicação do “movimento da história” de método e não de teoria (para fugir das Leis da metafísica científica). Ele faz questão de afirmar que sua proposta não é exterior, não é transcendente à pratica social, e que a “teoria da lei serial” é um método de conhecimento as- sentado no terreno movediço da realidade plural. Segundo o filosofo, este método estabelece-se na relação de revezamento com a prática. Segundo Proudhon, este método é um pro- cesso bem-determinado de conhecimento, que acompanha o movimento da prática. No pensa- mento dele, quem diz movimento diz série, unidade diversificada. A série é a condição fundamental da ciência, na medida em que a divisão, e não a unidade, é a primeira condição do que existe. Para o anarquista, o conhecimento serial é um tipo de saber que se processa em decorrência de uma relação prá- tica dos homens com o mundo e suas criações, ensejando o desenvolvimento integrado entre teoria e prática.” Proudhon escreve que, na 57 teoria serial, não existe continuidade, pois con- tinuidade é sinônimo de identidade absoluta e é análoga à ideia de substância e de causa. Quem diz substância, fala de algo particular, limitado; portanto, não contínuo nem absoluto. Também ocorre que, se é contínuo, não tem início. Se não inicia, não tem causa. Proudhon diz que a conti- nuidade apresenta-se de fato para nós, mas ela é uma ideia verdadeira somente no momento em que ela apresenta-se anterior à diferenciação dos seres e anterior a nós. A ideia de continuidade é legitima porque a hipótese que ela exprime é em virtude das leis de nosso entendimento, que é obtida da própria observação da série, que é sua contraditória. Assim, a coesão dos corpos e a sucessão dos fenômenos nos dão a ideia de continuidade, mas na verdade esta continuidade não existe em parte alguma.� Pierre-Joseph Proudhon escreve que a natu- reza não faz nada bruscamente e nem procede por saltos, mas opera de maneira sucessiva e progressiva. Essa ideia de continuidade é, na verdade, “progresso seriado”. As ideias de continuidade e de progressão parecem realmente se excluir: quem diz progresso diz necessariamente sucessão, transporte, crescimento, passagem, adição, 58 multiplicação, diferença, série, enfim; de maneira que a expressão movimento conti- nuo não é mais que uma metáfora. O autor diz que cada série encerra em si mesmo seu princípio, sua lei, sua certeza. Cada uma das séries é independente, e o conhecimento de uma não supõe nem engloba o conhecimento da outra. O que produz nas ciências a diversidade da série é a diversidade do objeto. Ainda que se possa, por abstração de todo objeto, construir uma teoria geral da seriação, as diversas formas de séries não se explicam umas pelas outras. Não existe ciência universal, porque não há objeto universal. De todas essas considerações, resulta que a metafísica, ou teoria da lei serial, não é ciên- cia, mas método; não é um método especial e objetivo, mas um método sumário e ideal; que ela não prejulga e não exclui nada, aco- lhe todos os fatos e os nomeia sem temor de ser desmentida por nenhum; que ela não pretende de modo algum produzir por si mesma o conhecimento e não se antecipa à observação: bem diferente dos pretensos sistemas universais, construídos com base na atração, expansão, causação, deificação e outros sistemas ontológicos, monumentos da preguiça e da impotência. � 59 Proudhon diz que a série é a antítese da unidade, que se forma pela repetição das combi- nações diversas da unidade. A unidade, por sua vez, é considerada elemento da série, se reveste de todas as formas possíveis: (...) Numa roda de engrenagem, a unidade de série é o dente; num tabuleiro de xadrez, essa unidade é a casa; num poliedro, ela é a pirâmide, tendo seu cume no centro do sólido e sua base na superfície. Proudhon defende a ideia do “sistema”, que configura o conjunto. O sistema é a roda de engrenagem, o tabuleiro etc. Este sistema deve ser compreendido de maneira progressiva, nos termos que o próprio Proudhon define: Sem unidade, nada de verdade, nada de beleza, nem mesmo de moralidade. Um sistema sem unidade é uma contradição; uma dupla justiça é a própria iniquidade. Para Proudhon : (...) a história nos apresenta, numa sucessão lógica e cronológica, os dois princípios – Autoridade e Liberdade –, os mesmos de onde pro- cede todo mal” Ele escreve que, durante todos os tempos e em todas as sociedades, quanto mais um organismo ganha em unidade perde em massa. E que, em toda coletividade, a potência orgâ- nica perde em intensidade o que ganha em extensão e reciprocamente. Acrescenta ele: Essa lei é universal, rege o mundo do espírito tanto quanto o dos corpos; 60 ela se encontra na filosofia, na ciência, no direito, na literatura, na arte, na poesia, na história etc. O escri- tor opõe-se a toda filosofia da história, seja a de Bossuet, de Condercet, de Saint-Simon, de Hegel ou de Herder. Para ele, a filosofia da história nega a responsabilidade do homem coletivo ou individual, na orientação do esforço voluntário, seja no sentido do progresso ou do regresso. Para Georges Gurvitch, na obra de Proudhon está presente a concepção de saber instrumen- tal. No livro “La Célebration du Dimache”, ele escreve que deve existir uma ciência social (sociologia) que guie a revolução social. Para o anarquista, a ciência deve ser um instrumento para a transformação da sociedade. No livro La Création de l’Ordre, Proudhon escreve: As leis da economia política são as leis da história. Nesta passa- gem, Proudhon acredita na existência de Leis na “ciência social”, e que, no caso da história, as leis seriam encontradas na economia política. Para Proudhon, a História não é uma ciência, mas matéria de uma ciência. Ele recusa confiar na ciência histórica do seu presente, que, segundo ele, é uma reconstrução guiada por ideologias da sociedade existente. Em poucas palavras, pode- se perceber que Proudhon acreditava ser possível 61 uma ciência social, e que a História não é uma ciência, mas se utiliza das ciências auxiliares e que, na metade do século XIX, a História era utilizada para fins políticos e ideológicos. Para Proudhon, o progresso é esforço criador e revolução sempre renovada, é visto como a negativa do absoluto. O progresso é a perma- nente mudança, transformação. Ele defende uma dialética realistae empírica por um lado, e da liberdade coletiva criadora por outro. Os resultados não são previsíveis, no sentido de não serem determinados. A dialética proudhoniana prova que, na realidade social, a liberdade e o determinismo social se interpenetram, se com- pletam, se implicam e se polarizam de diversas maneiras. A análise sobre a ideia de História no discur- so de Proudhon ficou prejudicada na medida em que não se teve acesso às obras de Proudhon, mas a interpretações das mesmas. Boa parte das informações apresentadas aqui são frutos de leituras indiretas. Não é necessariamente o que ele disse, mas o que se disse sobre ele. Pelo exposto no texto, é possível afirmar que Joseph Proudhon não quer construir uma teoria abso- luta que explique “toda” a história, mas procura 62 compreender a “Conjuntura” capitalista, a partir da “Revolução Industrial” onde ele fala em quatro tipos de períodos ou estágios da sociedade in- dustrial. Ele procura construir um “método que detecta o movimento da história”. Sua concepção é “progressista” e parte da economia política. O progresso para ele representa a continuidade da ruptura. Os fenômenos desenvolvem-se em uni- dades arranjadas de forma sistêmica, onde cada parte mantém relativa ou total autonomia em relação ao todo. A base da sociedade, para ele, é a “oficina”, por isso ele defende a economia po- lítica. Defende as particularidades na história, o empírico, e que não há determinismo na história. Do que foi escrito acima, fica nítido que Proudhon não reconhecia, na História, uma ciência, que a explicação só é possível a partir da economia po- lítica (ciência auxiliar). Para ele, a história é uma narrativa lógica, cronológica e que é utilizada de forma político-ideológica. Bakunin: a história é a negação do passado. Michael Alexandtovich Bakunin nasceu em 1814 e faleceu em 1876. Pertenceu a uma rica família proprietária de terras na Rússia. 63 Foi na Europa que se converteu ao radicalismo político. Participou das rebeliões que ocorreram em Paris em 1848 e 1849. Era um conspirador nato, viveu a maior parte do tempo de sua vida organizando insurreições, rebeliões, organiza- ções políticas revolucionárias e preso. Nos cur- tos espaços de tempo que possuía, quando não estava em “barricadas” e organizando revoltas, escrevia principalmente artigos para a impren- sa revolucionária e operária. Ilustração 03 Michail Bakunin 64 Dos vários escritos de Bakunin, neste ma- nuscrito, que, mais tarde, torna-se conhecido como Deus e o Estado, ele dedica algumas linhas ao estudo da História. A primeira edição de Deus e o Estado foi, em 1882, publicada em Genebra, o titulo da obra não é de autoria de Bakunin, mas dos organizadores dos textos: Carlo Cafiero e Eliseé Reclus. O texto original foi recolhido de trechos do manuscrito denominado “Império Knouto-germânico” de 1871. Bakunin inicia seus escritos afirmando que três elementos constituem na história, as condições essenciais de todo desenvolvimento humano: 1º) a anima- lidade humana; 2º) o pensamento; 3º) a revolta. À primeira corresponde propriamente a economia social e privada; à segunda, a ciência; à terceira, a liberdade. Bakunin escreve que o homem, com toda sua inteligência, ideias sublimes e aspirações infinitas “é produto da vil matéria”. O revolu- cionário russo define-se materialista e escreve: Sim, os fatos têm primazia sobre as ideias; sim, o ideal, como disse Proudhon, nada mais é do que uma flor, cujas condições materiais de existência constituem a raiz. Sim, toda a história intelectual e moral, política e social da humanidade é um reflexo da sua história 65 econômica. � Para Bakunin, a condição animal no homem é nata, o pensamento é uma faculdade e capacidade, a revolta uma necessidade. A ação progressiva da história se constituiu em combi- nar a faculdade de pensar e de se revoltar. É a potência negativa no desenvolvimento positivo da animalidade humana e que constitui tudo o que há de humanidade nos homens. Para Bakunin, a humanidade é um ato de revolta; assim escreve: O homem se emancipou, separou-se da animalidade e se constituiu homem; ele começou sua história e seu desenvolvimento especificamente humano por um ato de desobediência e de ciência, isto é, pela revolta e pelo pensamento. Para exemplificar a animalidade humana, Bakunin cita como exemplo a invasão da França pela Alemanha. No momento em que se aceita esta origem animal do homem, tudo se explica. A história consiste na negação progressiva da animalidade primitiva do homem pelo desen- volvimento de sua humanidade. Progredir é negar o passado. O autor acredita na “evolução” humana, ele é um evolucionista: O homem, animal feroz, primo do gorila, partiu da noite profunda do instinto para chegar à luz do espírito, o que explica de 66 uma maneira completamente natural todas as suas divagações passadas e nos consola em parte de seus erros presentes. Ele partiu da es- cravidão animal, e atravessou a escravidão di- vina, termo transitório entre sua animalidade e humanidade, caminha hoje rumo à conquis- ta e a realização da liberdade humana. A antiguidade de uma crença ou ideia, longe de provar alguma coisa, deve, pelo contrário, torná-la suspeita entre nós. Justo porque, atrás de nós, está nossa animalidade, e, diante de nós, nossa huma- nidade; a luz humana, a única que pode nos aquecer e nos iluminar, a única que pode nos emancipar, tornar-nos dignos, livres, felizes, e realizar a fraternidade entre nós, jamais esta no princípio, mas, relativamente, na época em que se vive, e sempre no fim da história. Depois de afirmar que jamais devemos olhar para trás, que é necessário olhar sempre pra frente, onde o autor chega falar em “salvação”, ele assim se refere ao estudo do passado: (...) se nos é permitido, se é mesmo útil, necessário, nos viramos para o estudo de nosso passado, é apenas para constatar o que fomos e o que não devemos mais ser, o que acreditamos e pensamos, e o que não devemos mais acreditar nem pensar, o que 67 fizemos e o que nunca mais devemos fazer.� A História, também pode servir como “li- ção”, e como testemunho e recurso argumen- tativo, como nestes exemplos: (...) não faltam as provas da história; ou Numa palavra, não é difícil provar, com a história na mão (...) A contradição de Bakunin está no fato de que ele quer combater a “metafísica”, com outra “metafísica”, fazendo crer que existe um destino histórico. Esta contradição é expressa na passagem a seguir: Ela sabe, enfim, quando não está viciada pelo doutrinarismo teológico ou metafísi- co, político ou jurídico, ou mesmo por um estrito orgulho, quando ela não é surda aos institutos e às aspirações da vida, e que o grande, o verdadeiro objetivo da história, o único legítimo, é a humanização e a eman- cipação, é a liberdade real, a prosperidade de cada indivíduo vivo na sociedade. Para tratar do estudo científico dos fenô- menos sociais, Bakunin escreve que não são individualidades abstratas, mas indivíduos, agindo e vivendo, que fazem a história. Segun- do ele, as abstrações só existem quando condu- 68 zidas por homens reais, e acrescenta: Para esses seres formados, não somente em ideias, mas em reali- dade, de carne e de sangue, a ciência não tem coração. Bakunin escreve que a ciência jamais ab- dicaria de suas teorias eternas; para ele, isso é a “ciência”. Para ele, a ciência não se ocupa do concreto, ela só pode mover-se em abstrações: Sua missão é ocupar-se da situação e das condições gerais da existência e do desen- volvimento, seja da espécie humana em ge- ral, seja de tal raça, de tal povo, de tal classe ou categorias de indivíduos, das causas ge- rais de sua prosperidade, de sua decadênciae dos meios gerais bons, para fazê-los pro- gredir de todas as maneiras. Desde que ela realize ampla e racionalmente esta tarefa, ela terá feito todo seu dever e seria realmen- te injusto pedir-lhe mais. A crítica de Bakunin é posta no momento em que ele afirma que, até o presente momento, toda a história humana foi uma imolação perpétua e sangrenta de milhões de pobres seres humanos em nome de uma abstração impiedosa qualquer: Deus, Pátria, poder do Estado, honra Nacional, di- reitos históricos, liberdade política, bem-público. Bakunin discute a possibilidade da constitui- 69 ção de uma ciência histórica, e faz alguns ques- tionamentos no sentido de saber o seu alcance: A verdadeira ciência da história ainda não existe; quando muito, começam-se a entrever, hoje, as condi- ções extremamente complicadas. Mas suponhamo-la definitivamente feita, o que ela poderá nos dar?� Ele escreve que esta História científica estabelecerá o quadro fiel do desenvolvimento das sociedades que tiveram história. Se ele diz: das sociedades que tiveram história, deixa implícito que em sua concepção existiram sociedades sem história. O ideólogo anarquista escreve: Mas este quadro universal da civilização humana, por mais detalhado que seja, jamais poderá conter, senão, apreciações gerais e, por consequência, abstratas. Sobre os bilhões de indivíduos que forne- ceram a matéria-prima viva e sofredora desta história, Bakunin diz que eles não encontrarão sequer o mínimo lugar nos anais. Desta forma, eles viveram e foram sacrificados pelo bem da huma- nidade abstrata, eis tudo! Ele pergunta: Será preciso censurar a ciência da história? E responde: Seria injusto e ridículo. A ciência é incapaz de abordar os indivíduos, pois estes são inapreensíveis pelo pensamento, pela reflexão, até mesmo pela palavra, que só é capaz de exprimir abstrações. 70 Esta incapacidade, diz Bakunin, ocorre tanto no presente, quanto no passado. A ciência social, a ciência do futuro, continuará forçosamente a ignorá-los. No que podem contribuir as ciências sociais e a História: Tudo o que temos direito de exigir dela é que nos indique, com mão fiel e segura, as causas gerais dos sofrimentos individuais, e, entre estas causas, ela sem dúvida não es- quecerá a imolação e a subordinação ainda muito frequente, infelizmente, dos indiví- duos vivos às generalidades abstratas; e, ao mesmo tempo, nos mostrará às condições gerais necessárias à emancipação real dos indivíduos vivendo na sociedade. Eis sua missão, eis também seus limites (...)” Fica evidente que Bakunin é adepto da metafísica, chegando a afirmar: Todos os sistemas de metafísica nada mais são do que a psicologia hu- mana se desenvolvendo na história. Ele escreve que a história é feita pelos homens, condicionados pelas condições históricas. Para fecundar os ele- mentos históricos, para fazê-los percorrer uma série de transformações, é necessário um fato vivo, espontâneo, sem o qual podem permanecer muitos séculos ainda em estado de elementos 71 improdutivos. Neste texto de Bakunin, datado de 1871, Deus e o Estado é uma produção que possui como fundo o processo histórico. O autor ini- cia a exposição escrevendo sobre “estágios” ou “etapas” da história da humanidade. Bakunin proclama-se materialista, e escreve sobre as crenças e concepções ideológicas e filosóficas dos seres humanos na história. Trabalha com a ideia de progresso e evolução. Possui uma concepção metafísica da história, deixando transparecer que existe um “objetivo” na his- tória, uma lei suprema etc. Para ele, o último estágio da evolução humana é a necessidade de revolta, que potencializa para a construção da sociedade mais humana. Michael Bakunin diz que não devemos estudar o passado, a Histó- ria, para procurar exemplos positivos, mas sim exemplos negativos, de como não fazer. Justifi- ca dizendo que atrás está nossa animalidade e é na frente que encontramos nossa humanidade. Fica evidente que, para ele, a humanidade não regride, que só existe progresso. Ele acredita que seria possível uma História ciência com suas leis correspondentes. Esta História cientí- fica não estudaria os indivíduos, pois somente 72 trataria de generalidades. Teria como tarefa ilu- minar o caminho para libertação da sociedade e dos seres humanos. Para este anarquista, os in- divíduos não apareceriam na História, somente os grandes conjuntos, grupos e classes. Bakunin afirma que existe algo exterior aos homens que condiciona o rumo da história, porém ele acres- centa que a história é feita pelos homens, condi- cionados, que fecundam os elementos latentes do devir histórico. Assim, percebe-se que Baku- nin concorda com a criação de teorias científicas que expliquem o desenvolvimento da história. Ele possui uma concepção metafísica, hipotéti- co-dedutiva e teórica para o estabelecimento da “ciência social” e da História. Peter Kropótkine: A história no comportamento do homem. Pedro Alekesyvich Kropotkine nasceu em 1842, na Rússia, e faleceu em 1921, no mesmo país. Era de família rica, descendia de nobres russos. Filho de um oficial de alta patente, Kropótkine não quis seguir a carreira militar e preferiu os estudos científicos. Tornou-se geógrafo, publicando várias obras importan- 73 tíssimas, é ainda lembrado pelos geógrafos como o cientista que muito contribuiu para o conhecimento da história da terra. Vai para a Europa, onde se dedica ao estudo e produção intelectual, do que ele chama de “idealismo social”. A ciência passou a ser a serva de seus objetivos revolucionários. Na Suíça, participa ativamente de grupos de revolucionários e conspiradores, identificando-se com os anar- quistas. Passou a produzir e publicar estudos de sociologia, procurando dar ao anarquismo o caráter de ciência. Para ele, a sociedade evo- lui no sentido da concretização da sociedade sem classes e sem o Estado.� A obra escolhida para analisar-se, aqui, foi “A Questão Social”. No prefácio da edição francesa, de fevereiro de 1913, Peter Kropótkine agradece ao histo- riador (anarquista) “Dr. Max Nettlau”, pela ajuda na elaboração das Notas com o grande conhecimento deste último sobre a literatura socialista. 74 Ilustração 04 Peter Kropotkin Ao referir-se aos avanços da ciência, e a contribuição desta para a melhoria, reforma ou revolução da sociedade, Kropótkine cita, entre esses avanços, a “interpretação antropológica da história”. Depois de fazer uma avaliação da contribuição de Darwin para a interpretação dos fenômenos, Kropótkine escreve que a ideia de um contínuo desenvolvimento, da progressiva evolução e gradual adaptação dos indivíduos e sociedades às novas condições, a partir do mo- 75 mento em que estas se modificam, encontrou aplicação muito mais larga que a que, até então, pretendia explicar a origem das espécies. Assim escreve que, se fundamentando nesse principio, tão rico de consequência, foi possível reconstituir, não somente a história dos organismos, mas a própria das instituições humanas. Kropótkine afirma que os estudos de Darwin são os primeiros fundamentos sólidos e científi- cos da História. O evolucionismo fundamenta a história dos hábitos, dos costumes, das crenças e das instituições humanas. Essa fundamentação científica faltava para os cientistas sociais do século XVIII, e que, para ele, é um golpe contra a metafísica do século XIX: Essa história – a das sociedades humanas, das várias instituições sociais e das religiões – podemos agora escrevê-la, norteando-nos pelo fecundo princípio da evolução, sem ne- cessidade de recorrermos às formulas meta- físicas de Hegel, sem ser preciso apelar para ideias inatas, para uma revelação exterior e superior ou ainda para a substância de Kant.
Compartilhar