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HABERMAS, Jurgen. a ideia kantiana de paz perpétua

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dida superacáo do nacionalismo. Na verdade, para que es se contexto
de comunicacáo se estabeleca parece faltar apenas um desencadeamento
por via jurídica constitucional. Também a exigencia de urna língua
comum - ingles como second first language [segunda primeira lín-
gua]- poderia deixar de representar um empecilho intransponível,
haja vista a situacáo atual da educacáo escolar formal nos países euro-
peus. Identidade européia nao pode significar nada senáo unidade na
pluralidade nacional; para isso, a propósito, após o aniquilamento da
Prússia e o equilíbrio entre as diversas confissóes religiosas, o federa-
lismo alemáo nao oferece um mau modelo.
7
A idéia kantiana de paz
perpétua - a distancia
histórica de 200 anos'
A"paz perpétuh", que o~bade St. Pierre já invocara, ~
para Kant um ideal ¡que deve conferir atratividade e forc;:~
elucidativa a idéia da condicao cosmopolita. Com isso, Kant
acrescentaurn~terceira dimensáo a teoria do direito: aodi-
reito público e ao dít~íto internacional vem sornar-se o direi-
to cosmopolita. Essa inovacáo traz muitos desdobramen-
tos. A ordem republicana de um Estado constitucional ba-
seado sobre direitos humanos nao exige apenas urna imersáo
atenuada em relacóes internacionais dominadas pela guer-
ra, no ámbito do direito internacional. Mais que isso, a condi-
cáo jurídica no interior de um mesmo Estado deve antever
como término para si mesma urna condicáo jurídica global
que una os POyOS e elimine as guerras: "A idéia de urna consti-
tuicáo em consonancia com o direito natural do ser humano,
isto é, que os obedientes a lei, unidos, também devam ser ao
mesmo tempo legisladores, subjaz a todas as formas de Es-
tado; e a esséncia comum - que, de acordo com essa idéia,
cabe chamar de ideal platónico - nao é apenas quimera,
mas sim a norma eterna para toda a constituicáo burguesa
* Traducáo: Paulo Astor Soethe.
184 A INCLUSAo DO OUTRO 185
em geral, e afasta toda guerra" (Streit der Fakultaten, Werke VI, 3641).
Surpreendente aí é a conseqüéncia: ce ••• e afasta toda guerra". Isso
aponta para que as normas do direito das gentes, que regulam a guer-
ra e a paz, só devam estar vigentes de maneira peremptória, isto é, só
devam vigorar até o momento em que o pacifismo jurídico, ao qual
Kant apontou em seu texto "Sobre a paz perpétua", tenha levado ao
estabelecimento de urna categoria cosmopolita e, portanto, a supres-
sao da guerra.
Naturalmente, Kant desenvolve essa idéia segundo os conceitos
do direito racional e no horizonte de experiencia de sua época. As
duas coisas afastam-nos de Kant. Com o imerecido "saber melhor"
alardeado pelas geracoes mais jovens, reconhecemos hoje que a cons-
trucáo sugerida por Kant enfrenta dificuldades conceituais e já nao se
mostra mais adequada a nossas experiencias históricas. Por isso, tra-
tarei primeiro de rememorar as premissas assumidas por Kant como
ponto de partida. Elas dizem respeito a todos os tres passos de seu
raciocínio: tanto a definicáo do fim imediato, a paz perpétua, a defi-
nicáo do verdadeiro objetivo, a forma jurídica de urna alianca entre
os POyOS,e a solucáo histórico-filosófica do problema aí proposto, a
concretizacáo da idéia da condicao cosmopolita (I). A isso sucede a
pergunta sobre como se apresenta a idéia kantiana a luz da história
dos últimos duzentos anos CH) e de que maneira essa idéia precisa
ser reformulada em vista da situacáo mundial em nossos di as (IH). A
alternativa esbocada por juristas, politólogos e filósofos a reinciden-
cia em urna condicáo natural suscito u restricoes ao universalismo do
direito cosmopolita e a política de direitos humanos, que podem ser
atenuadas por meio de urna diferenciacáo adequada entre direito e
moral em relacáo ao conceito de direitos humanos (IV). Essa diferen-
ciacáo também apresenta a chave para urna metacrítica dos argumentos
de Carl Schmitt contra os fundamentos humanistas do pacifismo ju-
rídico, argumentos a propósito bem-sucedidos sob o ponto de vista
da história de sua recepcáo (V).
e
Kant determina por via negativa o objetivo dessa almejada "con-
dicáo jurídica" entre os POyOScomo supressáo da guerra: "Nao deve
haver guerra", deve-se dar fim ao "funesto guerrear" ["Encerramento"
da Doutrina do Direito, Werke IV, 478). O anseio por urna paz desse
tipo é fundamentado por Kant com a referencia aos males ocasiona-
dos pelo tipo de guerra que os príncipes da Europa vinham travando
na época, com o auxílio de exércitos mercenários. Entre esses males
ele nao menciona em primeiro lugar as vítimas fatais, mas sim os "hor-
rores da violencia" e as "devastacóes", sobretudo as pilhagens e ern-
pobrecimento do país por causa do ónus da guerra e, como possíveis
conseqüéncias suas, a subjugacáo, a perda da liberdade e o domínio
estrangeiro. A isso vem sornar-se a brutalizacáo dos costumes, quando
os súditos sao instigados pelo governo a acóes injurídicas, a espiona-
gem e a difusáo de notícias falsas ou a perfídia - tal como nos papéis
de atirador de elite ou assassino profissional, por exemplo. Aqui se
revela o panorama da guerra restrita que, no ámbito do assim chamado
direito das gentes, fora institucionalizado no sistema das potencias in-
ternacionais, como instrumento legítimo para a solucáo de conflitos.
O encerramento de urna guerra como essa define a situacáo de paz. E
assim como determinado tratado de paz póe fim aos males de urna
guerra em particular, dessa mesma forma urna alianca pela paz deve
"encerrar todas as guerras para todo o sempre" e suprimir como tais
todos os males ocasionados pela guerra. É esse o significado da "paz
perpetua" A paz, dessa maneira, é circunscrita da mesma maneira que
a própria guerra.
Kant pensava aí em conflitos espacialmente delimitados entre
Estados e aliancas em particular, e nao em guerras mundiais. Pensava
em guerras travadas entre gabinetes e Estados, e nao em guerras na-
cionais ou civis. Pensava em guerras tecnicamente delimitadas, que
permitem a distincáo entre tropas de combate e populacáo civil, mas
nao em guerrilha e terrorismo. Pensava em guerras com objetivos po-
liticamente delimitados, e nao em guerras de aniquilamento ou ba-
nimento, ideologicamente motivadas". É sob a premissa da guerra de-
1. Na seqüéncia, farei as citacoes de acordo com a 5tudienausgabe das obras de
Kant da Wissenschaftlichen Buchgesellschaft de Darmstadt, publicada pela Insel-Verlag,
Frankfurt am Main, 1964. As indicacóes sem mencáo do título referem-se ao tratado
"Sobre a paz perpetua", Werke VI, 195-251.
2. Emborta Kant mencione em sua doutrina do direito o "inirnigo injusto': "cuja
vontade expressa trai urna máxima segundo a qual nao seria possível haver paz alguma
186 A INCLUSAoDOOUTRO A IDÉIAKANTIANADEPAZPERPÉTUA187
limitada que a normatizacáo do direito internacional se estende a con-
ducao da própria guerra e ao regramento da paz. O direito "a guerra",
o assim chamado ius ad bellum, anteposto ao direito "na guerra" e ao
direito "no pos-guerra" nao é rigorosamente direito algurn, porque só
expressa o livre-arbítrio concedido aos sujeitos do direito internacional
em condicáo natural, ou seja, na condicáo extralegal da relacáo consi-
go mesmos (Werke VI, 212). As únicas leis penais que intervém nessa
situacáo extralegal - ainda que sejam cumpridas apenas por tribu-
nais do próprio Estado beligerante - referem-se ao comportamento
na guerra. Crimes de guerra sao crimes cometidos na guerra. Apenas
o alargamento do conceito de guerra, ocorrido nesse meio tempo, e a
respectiva ampliacáo do conceito de paz iráo despertar a nocáo de que
a própria guerra - sob a forma da guerra de ataque - é ela mesma
um crirne, merecedor de censura e reprovacáo. Para Kant ainda nao
há o crime da guerra.
A paz perpétua é um elemento característico importante, mas
nao passa de um sintoma da condicáo cosmopolita. O problema con-
ceitual que Kant precisa resolver é a conceitualizacáo jurídica de urna
condicáocomo essa. Ele precisa indicar a diferenca entre direito cos-
mopolita e o direito internacional clássico, manifestar o elemento es-
pecífico desse ius cosmopoliticum.
Ao passo que o direito das gentes, como qualquer direito em
condicáo natural, tem vigencia apenas peremptória, o direito cosmo-
polita acabaria definitivamente com a condicáo natural, assim como
faz o direito sancionado na forma estatal. É por isso que Kant, para
ilustrar a transicáo a urna condicáo cosmopolita, recorre sempre a
analogia com o primeiro abandono de urna condicáo natural, que,
com a constituicao de determinado Estado com base no contrato so-
cial, possibilita aos cidadáos do país urna vida de liberdade assegurada
por via legal. Assim como terminou a condicáo natural entre indiví-
entre os povos se ela se tornasse regra geral" (§ 60, Werke VI, 473), os exemplos que ele
apresenta - a ruptura de contratos do direito internacional ou a divisáo de um país
vencido (como a Polonia, em seu tempo) - deixam claro o status acidental dessa
figura de pensamento. Uma "guerra punitiva" contra inimigos injustos continua sendo
uma nocáo sem maiores conseqüéncias enquanto continuarmos contando com Esta-
dos soberanos. Pois nao é possível para os Estados soberanos reconhecer uma instancia
judicial que julgue de maneira imparcial as violacóes a regras nas relacóes interestatais,
sem que eles restrinjam sua própria soberania. Somente a vitória e a derrota sao deci-
sivos sobre "de que lado está o direito" (Werke VI,200).
188 A INCLUSAo DO OUTRO
duos abandonados a si mesmos, também deve findar a condicáo na-
tural entre Estados belicistas. Em um tratado publicado dois anos
antes da concepcáo de Sobre a paz perpétua; Kant ve entre esses dois
processos um paralelo bastante rigoroso. Ele também menciona aqui
a destruicáo do bem-estar e a perda da liberdade como o mal maior,
e entáo prossegue: "Diante disso nao há outro meio possível senáo
um direito das gentes baseado em leis públicas, dotadas de poder, e as
quais cada Estado tenha de se submeter (segundo a analogia de um
direito burgués ou do direito estatal de pessoas particulares); - pois
urna paz geral e duradoura, por meio de um assim chamado equilí-
brio das potencias na Europa, é quimera e nada mais" ("Über den Ge-
meinspruch", Werke VI, 172). Ainda se fala aqui em um "Estado das
nacóes" em geral, a cujo poder cada Estado em particular deve se ade-
quar, de maneira voluntária. Decorridos apenas dois anos, contudo,
Kant irá distinguir cuidadosamente entre "liga das nacóes" e "Estado
das nacóes"
Pois essa condicáo doravante denominada "cosmopolita" deve se
distinguir da condicáo jurídica atinente ao interior de cada Estado:
nela os Estados nao se submetem a um poder superior, tal como fa-
zem os cidadáos em particular em relacáo as leis coativas, mas cada
qual mantém sua independencia. A federacáo de Estados livres, como
prevista, renuncia de urna vez por todas ao instrumento da guerra
para a relacao dos Estados entre si, e deve manter intacta a soberania
de seus membros. Os Estados em associacao duradoura preservam
sua dupla competencia e nao se diluem em urna república investida
de qualidades estatais. Em lugar da "idéia positiva de urna república
mundial" surge a "sub-rogacáo negativa de urna alianca que refuta a
guerra" (Werke VI, 213). Essa alianca deve surgir dos atos soberanos
de vontade expressos em contratos do direito internacional, conce-
bidos agora nao mais nos moldes do contrato social. Pois os contra-
tos já nao fundamentam quaisquer postulacóes legais a que os mem-
bros possam recorrer, mas apenas unem estes últimos em torno de urna
alianca perdurável- em torno de "urna associacáo duradouramente
livre" O que leva esse ato de unificacáo em torno de urna liga das na-
coes a superar a débil forca vinculativa do direito internacional nada
mais é senáo sua marca de "permanencia': Kant mesmo compara a
liga das nacóes a um "con gres so estatal permanente" ("Doutrina do
direito", § 61).
A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 189
É evidente a contradicáo desse construto. Pois em outra parte
Kant entende por congresso "táo-somente um agrupamento arbitrá-
rio de diversos Estados, dissolúvel a qualquer tempo, e nao urna uniáo
(como a dos Estados americanos) que se funda sobre urna constitui-
cáo estatal" ("Doutrina do direito", Werke IV, 475). Kant nao explicou,
porém, nem como garantir a permanencia dessa uniáo, da qual de-
pende "a natureza civil" da harrnonizacáo de conflitos internacionais,
nem como fazé-lo sem a obrigacáo jurídica de urna instituicao análo-
ga a constituicáo. Por um lado, ele quer preservar a soberania dos
membros, com a ressalva sobre a dissolubilidade do contrato; é o que
sugere a comparacáo com congressos e associacóes voluntárias. Por
outro lado, a federacáo, que fomenta a paz de forma duradoura, deve
distinguir-se de aliancas passageiras, e isso através de um sentimento
por parte dos membros, que os mova a se considerar abrigados a sub-
meter a própria razáo de Estado ao fim comum declarado em conjun-
to, qual seja "nao resolver seus conflitos ( ... ) por meio da guerra, mas
( ... ) como que mediante um processo". Sem esse momento da obri-
gacáo o congresso de Estados pela paz nao pode tornar-se "perma-
nente", a associacáo voluntária nao se pode firmar como "duradoura",
ela permanece atrelada, isso sim, a constelacóes de interesse instáveis
e acaba por decair - como veio a ocorrer mais tarde com a Liga das
Nacóes de Genebra. Kant de fato nao pode ter em mente urna obriga-
cáo jurídica, mesmo porque sua liga das nacóes nao é concebida como
urna organizacáo com unidades coordenadas, que conquista urna qua-
lidade estatal e com isso urna autoridade coercitiva. Portanto, ele pre-
cisa fiar-se exclusivamente em urna uniáo moral dos governos entre si.
Por outro lado, isso é quase inconciliável com as realistas e austeras
descricóes da política contemporánea feitas por Kant.
O próprio filósofo ve inteiramente o problema, só que ao mes-
mo tempo o encobre, usando para isso um mero apelo a razáo: "Quan-
do (um) Estado diz: 'Nao deve haver guerra entre mim e outros Es-
tados, mesmo sem que eu reconheca qualquer outro poder legislativo
acima de mim que assegure meu direito, ou eu o direito dele', entáo
nao se pode compreender de modo algum em que elemento eu pre-
tendo fundar a confianca em relacáo a meu direito, a menos que caiba
a razáo unir ao conceito do direito das gentes justamente a sub-rogacáo
da alianca social burguesa, ou seja, o federalismo livre" (Werke VI,
212). Essa asseveracáo, no entanto, deixa suspensa a pergunta deci-
190 A INCLUSAo DO OUTRO
,
siva sobre como assegurar a permanencia da autovinculacáo de Esta-
dos que continuam sen do soberanos. Isso ainda nao diz respeito -
nota bene - a questáo empírica da aproximacáo a urna idéia, mas
sim a versáo conceitual dessa mesma idéia. Se a alianca entre os povos
nao deve constituir um evento moral, mas sim jurídico, entáo nao lhe
devem faltar as qualidades de urna boa "constituicáo de Estado", tal
como Kant as esclarecerá poucas páginas adiante - isto é, as quali-
dades de urna constituicáo que nao se abandona a "boa forrnacáo
moral" de seus membros, mas que na melhor das hipóteses pode esti-
mular essa mesma forrnacáo.
Sob o ángulo da história, foi certamente muito realista a reserva
manifestada por Kant em face do projeto de urna comunidade consti-
tucional dos povos. O Estado democrático de direito recém-nascido
das Revolucóes Americana e Francesa ainda era a excecáo, nao a regra.
O sistema das potencias funcionava sob o pressuposto de que somen-
te Estados soberanos podiam ser sujeitos do direito internacional. A
soberania externa significa a capacidade do Estado de afirmar sua in-
dependencia na arena internacional, ou seja, manter a integridade de
suas fronteiras, se necessário com a forca militar; e soberania interna
significa a capacidade, baseada no monopólioda forca, de preservar a
tranqüilidade e a ordem no próprio país, com recursos do poder ad-
ministrativo e do direito positivo. A razáo de Estado define-se por prin-
cípios de urna política de poder prudente, que inclui guerras delimi-
tadas, e segundo os quais a política interna permanece sob o primado
da política externa. A clara separacáo entre política externa e interna
baseia-se em um conceito de poder estrito e discernidor, que se mede
em última instancia pelo modo como o detentor do poder faz uso da
forca polícial e militar disponível nos quartéis.
Enquanto esse universo estatal clássico-moderno determina o
horizonte intransponível, toda perspectiva de urna constituicáo cos-
mopolita e que nao respeite a soberania dos Estados surge necessaria-
mente como irreal. Isso explica também por que a possibilidade de
urna uniáo dos povos sob a hegemonia de um Estado poderoso, que
Kant vislumbra na imagem de urna "monarquía universal" (Werke VI,
247), na verdade nao representa qualquer alternativa: sob as premissas
já mencionadas, tal condueño do poder teria que ter por conseqüéncia
o "mais terrível despotismo" (Werke VI, 169). Como Kant nao chega a
transpor esse horizonte de experiencias, acaba sendo igualmente difí-
A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 191
cil crer em urna motivacáo moral para a criacáo e rnanutencáo de urna
federacáo de Estados livres e comprometidos em urna política conjun-
ta de poder. Para a solucáo desse problema, Kant esboca urna filosofia
da história com intencóes cosmopolitas, cuja tarefa é tornar plausível,
a partir de urna "intencáo da natureza" ainda oculta, a "consonancia
entre política e moral", tao improvável em um primeiro momento.
Kant menciona essencialmente tres tendencias naturais que vém ao
encontro da razáo, e as quais cabe a tarefa de explicar por que urna
alianca entre os POyOS poderia corresponder ao interesse próprio e
esclarecido dos Estados. Sao elas: a natureza pacífica das repúblicas
(1), a forca geradora de comunidades, própria do comércio interna-
cional (2) e a funcáo de cunho político da opiniáo pública (3). Um
olhar histórico sobre esses argumentos é elucidativo em um duplo
sentido. De um lado, eles foram falsificados em seu manifesto teor
significativo pelos desenvolvimentos dos séculos XIX e XX. De outro
lado, direcionam a atencáo para desenvolvimentos históricos que apre-
sentam urna dialética peculiar. Na verdade, es ses desenvolvimentos
revelam em primeiro lugar que as premissas subjacentes a teoria de
Kant, firmadas sob as condicóes percebidas em fins do século XVIII,
já nao estáo mais corretas; por outro lado, no entanto, eles também
depóem em favor de que urna concepcáo do direito cosmopolita, refor-
mulada de acordo com os novos tempos - em conformidad e com a
maneira como interpretamos as condicóes já bastante diversas deste
final do século XX -, bem poderia aplicar-se a urna constelacáo de
forcas predisposta a aceita-los,
( 1) O primeiro argumento afirma que as relacóes internacionais
perdem seu caráter belicista a mesma medida que se impóe nos Esta-
dos a forma de governo republicano; pois as populacóes de Estados
constitucionais democráticos, movidas por interesses próprios, com-
pele m seus governos a desenvolver políticas de paz: "Quando se con-
vida os cidadáos do Estado a manifestar-se sobre a necessidade de ha-
ver guerra, nada mais natural que eles, ao se verem obrigados a decidir
sobre os encargos que a guerra acarretará sobre si mesmos, tenham
sérias dúvidas quanto a dar início a um jogo tao nocivo." Essa suposi-
cáo otimista foi refutada pela forca mobilizadora de urna idéia que
192 A INCLUSAo DO OUTRO
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Kant, em 1795, ainda nao podia conhecer em sua ambivalencia: penso
aqui na idéia de nacáo, O nacionalismo foi certamente um veículo da
transformacáo de súditos em cidadáos ativos que se identificam com
o Estado a que pertencem. Isso porém nao tornou o Estado nacional
mais pacífico do que seu antecessor, o Estado dinástico absolutista".
Pois sob a perspectiva dos movimentos nacionais, a auto-afirmacáo
clássica do Estado soberano ganha as conotacóes de liberdade e inde-
pendencia nacional. E por isso a consciencia moral republicana dos
cidadáos deveria comprovar-se em sua prontidáo a lutar e morrer pelo
POYO e pela pátria. Com razáo, Kant viu nos exércitos mercenários de
seu tempo instrumentos para o "uso de pessoas como meras máqui-
nas na máo de um outro", e exigiu a instauracáo de exércitos; ele nao
pode prever que a rnobilizacáo macica de jovens em servico militar
obrigatório, inflamados pelo sentimento nacionalista, ainda iria oca-
sionar urna era de guerras de libertacáo catastróficas e descontroladas,
do ponto de vista ideológico.
Por outro lado, nao está totalmente errada a nocáo de que urna
condicáo democrática no interior do Estado sugere para ele um com-
portamento externo pacifista. Na verdade, exigencias histórico-esta-
tísticas demonstram que Estados de constituicáo democrática nao tra-
vam menos guerras do que regimes autoritários (de um tipo ou de
outro); demonstrarn, porém, que esses Estados se comportam de ma-
neira menos belicista nas relacóes entre si. Esse resultado permite fa-
zer urna leitura interessante", A medida que as orientacóes universalistas
valorativas de urna populacao acostumada a instituicóes liberais im-
pregnam também a política externa, as guerras travadas pela coletivi-
dade republicana, mesmo que ela no todo nao se comporte de manei-
ra pacífica, assumem um caráter diverso. Com os motivos dos cida-
daos, altera-se também a política externa do Estado que integram. O
uso de forca militar nao é determinado exclusivamente por urna razáo
de Estado essencialmente particularista, mas também pelo desejo de
fomentar a expansáo internacional de formas de Estado e de governo
náo-autoritárias, Quando, porém, as preferencias valorativas se expan-
dem para além da percepcáo de interesses nacionais e em favor da
3.Cf. H. Schulze, Staat und Nation in der Europaischen Geschichte. München, 1994.
4. Cf. D.Archibugi; D. Held (orgs.), Cosmopolitan Democracy, Cambridge, 1995.
Introducáo, pp. 1055.
A ID~IA KANTIANA DE PAZ PERP~TUA 193
afirmacáo da democracia e dos direitos humanos, entáo se alteram
também as condicóes sob as quais funciona o sistema de potencias.
(2) A história, que nesse meio tempo já podemos observar em seu
conjunto, agiu de maneira analogamente dialética em relacáo ao se-
gundo argumento. De modo imediato, Kant errou, mas de maneira in-
direta também teve razáo, Pois Kant viu na crescente interdependencia
das sociedades ("Doutrina do direito", § 62) - incrementada pela cir-
culacao de informacóes, pessoas e produtos, e em especial na expansáo
do comércio - urna tendencia que favorece a uniáo pacífica dos po-
vos. As relacóes comerciais em expansáo no início da Era Moderna in-
tensificam-se e acabam por constituir um mercado mundial que, se-
gundo a opiniáo de Kant, deveria fundamentar "através do proveito
próprio mútuo" um interesse pelo asseguramento de relacóes pacíficas:
"Com a guerra nao pode subsistir o espírito comercial, que se apodera
cedo ou tarde de cada um dos povos, Pois já que entre todos os poderes
a que se subordina o poder estatal o poder financeiro seja talvez o mais
confiável, os Estados véem-se compelidos a fomentar a paz valorosa"
(Werke VI, 226). Certamente Kant ainda nao havia aprendido - tal
como Hegel irá fazé-lo logo a seguir, com a leitura dos economistas in-
gleses' - que o desenvolvimento capitalista iria resultar em um con-
tlito entre classes sociais que ameaca duplamente a paz e a presumível
disposicáo para a paz, demonstrada justamente pelas sociedades politi-
camente liberais. Kant nao póde antever tampouco que as tenso es so-
ciais, fortalecidas em um primeiro momento no decorrer de urna in-
dustrializacáo capitalista acelerada, iriam onerar a política interna com
lutas de classee direcionar a política externa as vias de um imperialis-
mo belicoso. Ao longo do século XIX e da primeira metade do século
XX, os governos europeus serviram-se reiteradamente da forca propul-
sora proporcionada pelo nacionalismo, a fim de desviar os conflitos
sociais para fora e neutraliza-los por rneio de éxitos na política externa.
Só após a catástrofe da Segunda Guerra Mundial, quando se esgotam as
fontes de energia do nacionalismo integral, urna pacificacáo bem-suce-
dida do antagonismo de classes, promovida pelo Estado social, modi-
fica a situacáo interna das sociedades desenvolvidas, a ponto de o entre-
lacamento económico mútuo entre as economias nacionais - ao me-
nos no universo da OECD - poder levar a urna espécie de "economi-
zacáo da política internacional'", em face da qual Kant alimentara a
forte expectativa de um efeito pacificador. Hoje em dia, meios de cornu-
nicacáo, redes e sistemas ramificados em geral compelem a um adensa-
mento das relacóes sociais e simbólicas em nível global, que tém por
conseqüéncia efeitos recíprocos desencadeados por acontecimentos
tanto locais quanto muito distantes? Esses processos de globalizacáo
deixam cada vez mais vulneráveis as sociedade complexas, com sua infra-
estrutura tecnicamente debilitada. Ao passo que conflitos militares entre
as grandes potencias nucleares tornam-se cada vez mais improváveis,
pelos riscos imensos que isso implicaria, cresce abertamente o número
de conflitos locais, com um número de vítimas grande e assustador.
Por outro lado, a globalizacáo questiona pressupostos essenciais do
direito público internacional em sua forma clássica - a soberania dos
Estados e as separacóes agudas entre política interna e externa.
Agentes náo-estatais como empresas transnacionais e bancos pri-
vados com influencia internacional esvaziam a soberania dos Estados
nacionais que eles mesmos acatam de um ponto de vista formal. Hoje
em dia, cada urna das trinta maiores empresas do mundo em opera-
cáo movimenta urna receita maior que o produto nacional bruto de
noventa dos países representados na ONU, considerados individual-
mente. Mas mesmo os governos dos países economicamente mais for-
tes percebem hoje o abismo que se estabelece entre seu espaco de acáo
nacionalmente delimitado e os imperativos que nao sao sequer do co-
mércio internacional, mas sim das condicóes de producáo integradas
em urna rede global. Estados soberanos só podem ter ganhos com suas
próprias economias enquanto se tratar aí de "economías nacionais"
sobre as quais eles possam exercer influencia por meios políticos. Com
a desnacionalizacao da economia, porérn, em especial com a integracáo
em rede dos mercados financeiros e da producáo industrial em nível
global, a política nacional perde o domínio sobre as condicóes gerais
de producao" - e com isso o leme com que se mantém em curso o
nível social já alcancado.
5. Cf. G. Lukács, Der junge Hegel, Zürich, 1948.
6. D. Senghaas, "Internationale Politik im Lichte ihrer strukturellen Dilemmata".
In: Wohin driftet die Welt?, Frankfurt am Main, 1994. pp. 121 ss. Na citacao acima, p. 132.
7. Eis como A. Giddens define "globalizacáo", in: The Consequences of Modernity,
Cambridge, 1994, p. 64[ ed. br.: GIf)[)ENS,A., As consequéncias da modernidade, Sao Paulo,
Unesp,1991].
8. Cf. R. Knieper, Nationale Souveranitat, Frankfurt am Main, 1991.
194 A INCLUSAO DO OUTRO A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 195
9. Cf. I. S. Nye, "Soft Power" Foreign Poliey, n. 80, pp. 153-171,1990.
se deve querer tal coisa, porque a posse do poder inevitavelmente corrói
o livre juízo da razáo, Mas que os soberanos e os POyOSsoberanos que
dominam a si mesmos segundo as leis da igualdade nao eliminem nem
calem a classe dos filósofos, e deixern-na, sim, falar publicamente-
ora, isso é insuspeito e indispensável para o esclarecimento dos oficios
de ambos" (Werke VI, 228).
Como demonstra pouco tempo depois na peleja sobre o ateísmo,
em torno de Fichte, Kant tinha boas razóes para temer a censura.
Também queremos ser complacen tes com a confianca que o filósofo
depositava na forca de convencimento da filosofia, e com sua elo-
qüéncia; o ceticismo histórico em face da razáo surge no século XIX,
e foi apenas em nosso século que intelectuais cometeram a grande
traicáo. O que mais importa aqui é que Kant naturalmente ainda
contava com a transparencia de urna opiniáo pública visível em seu
todo, marcada pela literatura, acessível a argumentos e sustentada
por membros de urna camada de cidadáos cultos relativamente pe-
quena. Ele nao pode prever a transforrnacáo estrutural dessa opi-
niáo pública burguesa em urna outra, dominada pelos meios eletróni-
cos de comunicacáo, semanticamente degenerada e tomada por ima-
gens e realidades virtuais. Ele nao pode intuir que esse universo de
um Esclarecimento "loquaz" pudesse ser refuncionalizado tanto no
sentido de um doutrinamento sem linguagem quanto de um embuste
com a linguagem.
Provavelmente, esse véu da insciéncia explica o animo em face
da antecipacáo de urna opiniáo pública mundial- antecipacáo de
bem largo alcance, mas que hoje em dia se revela clarividente. Pois ela
só agora se configura, ou seja, após o evento da cornunicacao global:
"Iá que a comunidade dos POyOSda Terra (l), causa de tanto alarme
no passado, logrou chegar tao longe, a ponto de se poder sentir a vio-
lacáo do direito ocorrida em um local do planeta em todos os demais
locais, também assim a idéia de um direito cosmopolita nao é um tipo
de imaginacáo fantasmática e exagerada do direito, mas sim um com-
plemento necessário ao direito público e internacional em favor dos
direitos humanos e portanto da paz perpétua; e se podemos nos sen-
tir lisonjeados por nos aproximar continuamente dessa paz perpé-
tua, isso só pode acontecer sob essa condicáo [qual seja, a de que haja
urna opiniáo pública mundial em funcionamento, J. Habermas 1"·
( Werke VI, 216 s.).
Ao mesmo tempo torna-se indiferenciado para os Estados sobera-
nos o limite constitutivo entre política interna e externa. A imagem da
política clássica de poder nao se altera apenas mediante pontos de vista
normativos complementares a política de democratizacáo e direitos hu-
manos, mas também por meio de urna difusáo muito peculiar do poder.
Sob acrescente compulsáo a que se estabelecam formas de cooperacáo,
ganha significado sempre maior a influencia mais ou menos direta sobre
a estruturacáo das situacóes de que se pode tirar proveito, a influencia
sobre o estabelecimento de contatos ou a interrupcáo de vias de comuni-
cacao, e sobre a definicáo de pautas e problemas. Freqüentemente, a
influencia que se exerce sobre as condicóes circunstantes sob as quais
outros agentes tomam suas próprias decisóes acaba sen do mais impor-
tante que a imposicáo direta dos próprios objetivos, o exercício de po-
der executivo ou a ameaca por meio da violencia", O "soft power" recalca
o "hard power" e priva os sujeitos - a partir dos quais Kant concebera
a associacáo de Estados livres - da base de sua independencia.
(3) Por sua vez, a situacáo é semelhante no que diz respeito ao
terceiro argumento, proposto por Kant para minimizar a suspeita de
que a projetada alianca entre os POyOSnao passasse de urna "idéia fer-
vorosa". Em urna coletividade republicana, os princípios da constitui-
cáo afiguram parámetros segundo os quais é preciso poder avaliar a
política publicamente. Governos como esses nao se podem permitir
"fundar publicamente a política apenas com base em torneios da pru-
déncia" (Werke VI, 238) - mesmo que eles se vejam obrigados a cum-
prir sua funcáo apenas da boca para fora. Em tal medida, a opiniáo
pública cidadá e de cunho político tem urna funcáo controladora: por
meio da crítica aberta, ela pode impedir a concretizacáo de intencóes
"avessas a luz do día" inconciliáveis com máximas publicamente defen-
sáveis. Além disso, segundo a opiniáo de Kant, a opiniáo pública deveganhar urna funcáo programática amedida que os fil6sofos, na funcáo
de "professores públicos do direito" ou intelectuais, "falem aberta e pu-
blicamente sobre as máximas da condueño da guerra e prornocáo da
paz", e a medida que possam convencer o público de cidadáos da cor-
recáo de seus princípios. Foi provavelmente o exemplo de Frederico 11
e Voltaire que Kant teve em vista ao escrever a comovente sentenca a
seguir: "Nao é de esperar que reis filosofem ou filósofos reinem; nem
196 A INCLUSAoDOOUTRO A ID~IAKANTIANADEPAZPERP~TUA197
Os primeiros acontecimentos que de fato eh amara m a atencáo
de urna opiniáo pública mundial e que polarizaram as opinióes em
proporcóes globais foram provavelmente a Guerra do Vietná e a Guer-
ra do Golfo. Só mais recentemente, e em urna seqüéncia muito rápi-
da, a ONU organizou urna série de conferencias sobre questóes de
abrangéncia planetária envolvendo a ecologia (no Rio de Ianeiro), os
problemas do crescimento populacional (na cidade do Cairo), da po-
breza (em Copenhague) e do clima (ern Berlim). Podemos entender
essas "cúpulas mundiais", e tantas outras, ao menos como tentativas
de exercer urna pressáo política sobre os governos, seja pela simples
tematizacáo de problemas de importancia vital mediante urna opi-
niáo pública de ámbito mundial, seja por um apelo direto a opiniáo
internacional. Por certo nao se pode ignorar que essa atencáo susci-
tada temporaria mente e ligada a temas muito específicos é canaliza-
da, hoje como ontem, por meio de estruturas das opinióes públicas
nacionais, que se esforcam por partilhar certo entrosamento. É ne-
cessária urna estrutura de sustentacáo, para que se estabeleca a comu-
nicacáo permanente entre parceiros distantes no espa<;:o, que in-
tercambiem ao mesmo tempo contribuicóes de mesma relevancia so-
bre os mesmos temas. Nesse sentido ainda nao há urna opiniáo públi-
ca global, nem tampouco urna opiniáo pública de alcance europeu,
tao urgentemente necessária. Mas o papel central que vém desernpe-
nhando organizacóes de um novo tipo, ou seja, as organizacóes nao-
governamentais como Green Peace ou Anistia Internacional- e isso
nao só em conferencias como as mencionadas antes, mas em geral,
no que diz respeito a criacáo e mobilizacáo de urna opiniáo pública
supranacional-, é sinal claro de que certos agentes ganham influen-
cia crescente na imprensa, como forcas que fazem frente aos Estados,
surgidas a partir de algo semelhante a urna sociedade civil internacio-
nal, integrada em redelO•
O papel da divulgacao na imprensa e da opiniáo pública, que
Kant destacou com razáo, faz voltar os olhos a coesáo entre a consti-
tuicáo jurídica e a cultura política de urna coletividade'". Pois urna
cultura política liberal constitui o território em que as instituicóes
da liberdade podem lancar raízes, mas é ao mesmo tempo o meio
sobre o qual se concretizam avances no processo de civilizacáo polí-
tica de urna populacao". Por certo, Kant fala do "crescimento da cul-
tura" que levaria a "um maior ajuste em torno de principios" (Werke
VI, 226); ele também espera que o uso públíco das liberdades comu-
nicativas se transforme em processos de esclarecimento que, pela via
da socializacáo política, afetem o posicionamento e a forma de pen-
sar de urna populacáo. Nesse contexto ele fala da "participacáo afe-
tiva no Bem, da qual nenhum cidadáo esclarecido que o concebe por
completo pode se eximir de ter" ("Idee zu einer Allgemeinen Ges-
chichte", Werke VI, 46 s.). Essas observacóes, porém, nao ganham
significado sistemático algum, porque a formacáo conceitual dico-
tómica da filosofia transcendental separa o que é interior do que é
exterior, a moralidade da legalídade. Kant ignora em especial a coe-
sao - criada por urna cultura política liberal- entre a contemplacáo
prudente de interesses, o discernimento moral e o costume, entre a
tradicáo e a crítica. As práticas de tal cultura intermedeiam a moral,
o direito e a política, e configuram ao mesmo tempo o contexto ade-
quado a urna opiniáo pública que exige processos políticos de apren-
dizado13. É por isso que Kant nao precisaria ter recorrido a urna in-
tencáo natural metafísica, caso quisesse explicar de que maneira "urna
convergencia patológico-forcosa em direcáo a urna sociedade pode
tornar-se, afinal, em um todo moral" ("Idee zu einer Allgemeinen
Geschichte", WerkeVI, 38).
Essas consideracóes ·críticas demonstram que a idéia kantiana da
condicao cosmopolita tem de ser reformulada, caso nao queira per-
der o contato com urna situacáo mundial que se modifico u por com-
pleto. Haverá facilidade em se fazer a revisáo cabível no ámbito con-
ceitual básico, pelo fato de a própria idéia nao haver estacionado, por
assim dizer. Afinal, ela passou a ser assumida e implementada pela
política, desde a iniciativa do presidente Wilson e a fundacáo da Liga
das Nacóes em Genebra. Depois do fim da Segunda Guerra Mundial,
10. Sobre a "despedida do mundo dos Estados': v. E. O. Czempiel, Weltpolitik im
Umbruch, München, 1993, pp. 105s5.
11. Cf. as contribuicoes de Albrecht Wellmer e Axel Honneth in: M. Brumlik;
H. Brunkhorst (orgs.), Gemeinschaft und Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1993, pp.
173ss. e 260ss.
12. Cf. o texto que intitula: J. Habermas, Die Normalitat einer Berliner Republik;
Frankfurt am Main, 1995, pp. 167ss.
13.Sobre o "povo como soberano em aprendizado", d. H. Brunkhorst, Demokratie
und Differenz, Frankfurt am Main, 199ss.
198 A INCLUSAo DO OUTRO A IDhlA KANTIANA DE PAZ PERPhTUA 199
a idéia da paz perpétua ganhou urna forma palpável nas instituicóes,
declaracóes e políticas das Nacóes Unidas (bem como em outras or-
ganizacóes supranacionais). A forca desafiadora das incomparáveis
catástrofes do século XX colidiu com a idéia, empurrando-a. Em face
desse contexto sombrio, o espírito do mundo, como se expressou He-
gel, esquivou-se com um salto.
A Primeira Guerra Mundial pos as sociedades européias em con-
fronto com os assombros e horrores de um conflito desenfreado quan-
to ao uso de recursos técnicos e propagacao espacial; a Segunda Guerra
Mundial confrontou-a com os crimes em massa de um conflito ideolo-
gicamente descomedido. Sob o véu da guerra total tramada por Hitler
cumpriu-se urna ruptura civilizacional, que desencadeou urna como-
cáo em nível mundial e propiciou a transicáo do direito internacio-
nal ao direito cosmopolita. De urna parte, a proscricao da guerra, já
declarada no Pacto de Kellogg, de 1928, foi transformada pelos tribu-
nais militares de Nürenberg e Tóquio em instrucáo judiciária penal.
Esta última nao se limita aos delitos cometidos na guerra, mas incri-
mina a própria guerra como delito. Daí para diante é possível perse-
guir "o delito da guerra': De outra parte, as leis penais foram esten-
didas a "crimes contra a humanidade" - a acóes legalmente determi-
nadas por órgáos do Estado e cumpridas com o auxílio de inúmeros
membros de organizacóes, altos funcionários, servidores públicos,
pessoas particulares ou ligadas a negócios. Com essas duas inovacóes,
pela primeira vez os sujeitos estatais do direito internacional viram-se
desprovidos da hipótese genérica de inocencia associada a urna su-
posta condicáo natural.
mopolita tem de ser institucionalizado de tal modo que vincule os
governos em particular. A comunidade de POyOS tem ao menos de
poder garantir um comportamento juridicamente adequado por par-
te de seus membros, sob pena de sancóes, SÓ assim o sistema de Esta-
dos soberanos em constante atitude de auto-afirmacao, instável e ba-
seado em ameacas mútuas poderá transformar-se em urna federacáo
com instituicóes em comum, que assumam funcóes estatais, ou seja,
que regulem a relacáo de seus membros entre si e controlem a obser-
vancia dessas regras. O estatuto diferenciado das relacóes internacio-
nais reguladas por contrato, que por si mesmas constituem mundos
a parte, terá de ser modificado pelo estabelecimentode urna relacáo
interna de base regimental ou constitucional. Esse sentido está con-
templado na Carta das Nacóes Unidas, que proíbe guerras de agressáo
(com a interdicáo do uso da violencia no artigo 2, 4) e que autoriza o
Conselho de Seguranca a tomar medidas adequadas, inclusive acóes
militares, nos casos graves em que "haja urna ameaca ou violacáo da
paz, ou quando estiverem ocorrendo acóes de ataque" (capítulo VII).
Por outro lado, é expressamente vedado as Nacóes Unidas intervir em
assuntos internos de um Estado (cf. o artigo 2,7). Cada Estado man-
tém o direito a autodefesa militar. Em dezernbro de 1991, a Assem-
bléia Geral corroborou esse princípio (em sua Resolucáo 46/182): "A
soberania, integridade territorial e unidade nacional de um Estado, em
consonancia com a Carta das Nacóes Unidas, térn de ser inteiramente
. d ,,14respeita as .
Com essas regulamentacóes ambíguas, que a um só tempo limi-
tam e garantem a soberania própria a um Estado em particular, a
A revisáo conceitual básica diz respeito a soberania externa dos
Estados e ao caráter modificado das relacóes interestatais (1), a sobe-
rania interna dos Estados e as restricóes normativas da política clássi-
ca de poder (2), e ainda a estratificacáo da sociedade mundial e a urna
globalizacáo dos riscos, algo necessário a partir de urna conceitualizacáo
modificada do que entendemos por "paz" (3).
(1) Como já se demonstrou, nao é consistente o conceito kantia-
no de urna alianca dos POyOS firmada de forma duradoura e capaz de
respeitar, ao mesmo tempo, a soberania dos Estados. O direito cos-
14. Com a surpreendente construcao de "direitos fundamentais do Estado", I,
Isensee defende urna proibicáo qualificada de intervencóes "contrarias as crescentes
tendencias de degradacao" (cf. "Weltpolizei für Menschenrechte" luristische Zeitung;
ano SO, fase. 9, pp. 421-430, 1995): "O que vale para os direitos fundamentais dos
individuos, mutatis mutandis; vale também para os 'direitos fundarnentais' dos Esta-
dos, sobretudo no que diz respeito a sua igualdade soberana, sua autodeterminacáo
de soberanía pessoal e territorial" (p. 424; e, nesse mesmo sentido, p. 429). A consti-
tuicáo de urna analogia entre a soberania dos Estados reconhecida pelo direito inter-
nacional e a liberdade garantida segundo os direitos fundamentais de pessoas natu-
rais do direito nao apenas ignora o status fundamental dos direitos subjetivos indivi-
duais e o talhe individualista das ordens jurídicas modernas, mas também o sentido
especifica mente jurídico dos direitos humanos como direitos subjetivos dos cidadáos
de urna ordem cosmopolita.
200 A INCLUSAO DO OUTRO A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 201
Carta presta contas a urna situacáo transitória. As Nacóes Unidas ainda
nao dispóem de forcas próprias de combate, tampouco de forcas que
elas pudessem empregar sob comando próprio, nem muito menos
de um monopólio do poder. Elas dependem, para fazer valer suas
decisoes, da cooperacáo voluntária dos membros capazes de tomar
parte nas acoes. Essa base de poder bastante precária preciso u ser com-
pensada com o estabelecimento de um Conselho de Seguranca ao
qual foram integrados como membros permanentes da Organizacáo
Mundial as grandes potencias com direito a veto. Isso certamente re-
sultou em que as superpotencias, ao longo de décadas, bloquearam-se
mutuamente. E na medida em que o Conselho de Seguranca toma
certas iniciativas, faz um uso altamente seletivo de seu espa<;:ode atua-
cáo ponderativo, com cuidado para nao ferir o princípio do tratamen-
to igualitário'". Esse problema voltou a ser atual com o episódio da
Guerra do Golf016. O Tribunal Internacional em Haia tem apenas um
significado simbólico, ainda que nao totalmente desimportante; ele
só entra em acáo mediante requerimento e nao é, com seus veredictos,
capaz de obrigar os governos (o que voltou a se evidenciar no caso
Nicarágua versus EUA).
A seguran<;:a internacional, ao menos nas relacóes entre as poten-
cias nucleares, nao se garante hoje pelas delimitacóes normativas da
ONU, mas sim por acordos em torno do controle de armamentos, e
sobretudo pelo estabelecimento de "parcerias de seguranca" Esses con-
tratos bilaterais determinam inspecóes e impóern acóes coordenadas
a grupos de poder concorrentes, de modo que se manifesta, para além
da transparencia dos planejamentos e da previsibilidade dos motivos,
urna confiabilidade nao-normativa em relacáo as expectativas, funda-
mentada de maneira puramente racional-finalista.
(2) Por considerar intransponíveis as barreiras da soberania esta-
tal foi que Kant concebeu a uniáo cosmopolita como urna federacao
de Estados, e nao de cidadáos, Isso foi tao pouco conseqüente de sua
parte quanto remeter toda condicáo jurídica ao direito original cabí-
vel a toda pessoa "enquanto ser humano", e nao somente a condicáo
que afete questóes internas do Estado. Para Kant, todo indivíduo tem
direito as mesmas liberdades segundo leis gerais C'sobre as quais to-
dos decidem, levando em conta todos os demais, da mesma forma que
cada um o faz, levando em conta a si mesmo"). Essa fundamentacáo
do direito em geral com base nos direitos humanos assinala os indi-
víduos como portadores de direitos e confere a todas as ordenacóes
jurídicas modernas um talhe imprescindivelmente individualista'", Se
Kant, no entanto, considera essa garantia de liberdade - "o que o ser
humano deve fazer segundo as leis da liberdade" - como o que há de
"mais essencial na intencáo de se alcancar a paz perpetua'; "e isso se-
gundo todas as tres dimensóes do direito público: o direito do Estado,
das gentes e o direito cosmopolita" (Werke VI, 223), entáo ele de fato
nao pode fazer que a autonomia dos cidadáos seja mediatizada pela
soberania dos respectivos Estados.
Antes de mais nada, o cerne do direito cosmopolita consiste em
que ele se lance por sobre as cabecas dos sujeitos jurídicos coletivos do
direito internacional, que se infunda no posicionamento dos sujeitos
jurídicos individuais e que fundamente para esses últimos urna condi-
cáo nao-mediatizada de membros de urna associacáo de cidadáos do
mundo livres e iguais. Carl Schmitt compreendeu esse ponto central e
percebeu que segundo essa concepcáo "todo indivíduo é ao mesmo
tempo cidadáo do mundo (no sentido jurídico pleno da palavra) e
cidadáo de um Estado em particular'l'". [á que a dupla competencia
recai sobre "a federacáo mundial dos Estados", e os indivíduos assu-
mem nessa comunidade internacional urna posicáo juridicamente
imediata, o Estado em particular transforma-se assim "ern mera com-
petencia de determinadas pessoas, que entram em cena com um duplo
papel de funcao nacional e internacional,,19. A competencia mais im-
portante de um direito que se infunde por meio da soberania dos Es-
tados é a responsabilizacáo de pessoas em particular por crirnes come-
tidos em servicos prestados sob ordens do Estado ou na guerra.
Também quanto a isso o desenvolvimento até os dias de hoje foi
para além de Kant. Em seqüéncia a Carta do Atlántico de agosto de
1941, a Carta das Nacóes Unidas de junho de 1945 obriga os Estados
15.Cf. os exemplos dados por Chr. Greenwood, "Gibt es ein Recht auf humanitare
Intervention?", Europa-Archiv, n. 4, pp. 93-106,1993. Na citacáo acima, p. 94.
16. Cf. J. Habermas, Vergangenheit als Zukunft. München, 1993. pp. 10-44.
17. Cf. pp. 229ss., infra.
18. Em um comentario a obra de Georges Scelle, Précis de droit des gens, Paris.
vol. 1, 1932; vol. 2, 1934:C. Schmitt, Die Wendung zum diskriminierenden Kriegsbegriff
(l938),Berlin, 1988,p. 16.
19. Cf. Schmitt, 1988, p. 19.
202 A INCLUSAO DO OUTRO A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 203
membros em geral a observancia e cumprimento dos direitos huma-
nos. Eles receberam um detalhamento modelar por parte da Assem-
bléia Geral com sua "Declaracáo Universal dos Direitos Humanos",
em dezembro de 1948, que continua a desenvolvé-Ios até hoje,em di-
versas Resolucóes". As Nacóes Unidas nao abandonam a defesa dos
direitos humanos somente a seu cumprimento nacional; dispóem tam-
bém de um instrumental próprio para a constatadio de eventuais vio-
lacóes dos direitos humanos. Para os direitos fundamentais de teor
social, económico e cultural, limitados apenas pela "medida do possí-
vel", a Comissáo de Direitos Humanos instituiu órgáos fiscalizadores
e relatórios de rotina; além disso, para os direitos políticos e de cida-
dania instituiu ainda procedimentos vindicativos.
Teoricamente (ainda que na verdade ela nao seja reconhecida por
todos os Estados subscritores) confere-se maior significado a vindi-
cacao individual do que a vindicacáo apresentada por um Estado em
particular. A vindicacáo individual, a propósito, confere meios jurídi-
cos ao cidadáo em particular contra o governo de seu próprio país.
Até o momento, porém, inexiste um tribunal para acóes penais que
julgue e decida sobre casos comprovados de violacóes dos direitos
humanos. Na Conferencia dos Direitos Humanos de Viena ainda nao
havia sido possível fazer valer a sugestáo de investidura de um alto
comissário das Nacóes Unidas para os Direitos Humanos. Tribunais
instituidos ad hoc para o julgamento de crimes de guerra segundo o
modelo das Cortes Militares Internacionais em Nürenberg e Tóquio
constituem até hoje a excecáo ". Contudo, a Assembléia Geral das Na-
cóes Unidas reconheceu os principios mestres subjacentes aos vere-
dictos pronunciados naquelas ocasióes como "principios do direito in-
ternacional". Em tal medida, nao é verdadeira a afirrnacáo de que esses
processos contra líderes militares, diplomatas, servidores ministeriais,
médicos, banqueiros e grandes industriais do regime nacional-socia-
lista tenham consistido em procedimentos judiciais "únicos", sem for-
ca de precedencia juridicamente constitutiva".
O ponto vulnerável da defesa global dos direitos humanos, de
sua parte, é a falta de um poder executivo que possa proporcionar a
Declaracáo Universal dos Direitos Humanos sua efetiva observancia,
inclusive mediante intervencóes no poder soberano de Estados na-
cionais, se necessário foro Como em muitos casos os direitos huma-
nos teriam de se impor a revelia dos governos nacionais, é preciso
rever a proibicáo de intervencóes prevista pelo direito internacional.
Se nao inexistir um poder estatal, como no caso da Somália, a Orga-
nizacáo Mundial só intervém com a anuencia dos governos envolví-
dos (foi o que ocorreu na Libéria e na Croácia/Bósnia"). No entanto,
com a Resolucáo 688, de abril de 1991, durante a Guerra do Golfo,
ela de fato trilhou um novo caminho, ainda que nao no sentido da
fundarnentacáo jurídica. Naquela ocasiáo, as Nacóes Unidas remete-
ram-se ao direito de intervencáo que lhes cabe em casos de "ameaca a
seguranca internacional", de acordo com o capítulo VII da Carta; em
tal medida, do ponto de vista jurídico, nessa ocasiáo elas tampouco
intervieram nos "assuntos interiores" de um Estado soberano. Para
os Aliados, entretanto, esteve muito claro que eles estavam fazendo
justamente isso, no momento em que determinaram zonas de proi-
bicáo de vóo sobre o espaco aéreo iraquiano e também quando em-
pregaram tropas de solo no Iraque Setentrional para criar "portos de
fuga" (dos quais a Turquia vinha abusando nesse ínterim), destinados
a fugitivos curdos, ou seja, para defender os membros de urna mino-
ria nacional contra o próprio Estad024• O ministro de relacóes exte-
riores británico falou, na ocasiáo, de urna "expansáo das fronteiras
para o comércio internacional'l".
(3) A revisáo de conceitos básicos que se faz necessária em vista
do caráter modificado das relacóes interestatais e da restricáo norma-
20. Sobre a Conferencia dos Direitos Humanos de Viena, v. R. Wolfrum, "Die
Entwicklung des internationalen Menschenrechtsschutzes", Europa-Archiv, n. 23, pp.
681-690, 1993; sobre o status dos polémicos direitos a solidariedade, cf. W. Huber,
"Menschenrechte/Menschenwürde", Theologische Realenzyklopadie, v. XXII, Berlin: New
York, 1992. pp. 577-602; e ainda: E. Riedel, "Menschenrechte der dritten Dimensión"
Europaische Grundrechte Zeitschrift (EuGRZ), pp. 9-21, 1989.
21. Em 1993, o Conselho de Seguranca constituiu um tribunal como esse para
proceder a perseguicáo de crimes de guerra e contra a humanidade na antiga Iugoslávia.
22. É o que afirma H. Quaritsch em seu Posfácio a Carl Schmitt, Das intemational-
recht/iche Verbrechen des Angriffikrieges (1945), Berlin, 1994. pp, 125-247. No contexto
acima, pp. 236ss.
23. Cf. as análises e conclusóes de Chr. Grenwood, op. cit., 1993.
24. Greenwood (1993) chega a seguinte conclusáo: "Atualmente, já parece estar
mais consolidada a idéia de que as Nacóes Unidas poderiam lancar rnáo de su as atri-
buicóes para intervir em um Estado por razóes humanitárias" (p, 104).
25. Cit. cf. Greenwood, 1993, p. 96.
204 A INCLUSAo DO OUTRO A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 205
tiva do espa<¡:o de acáo de Estados soberanos traz conseqüéncias as
concepcóes de alianca entre os POyOSe de condicáo cosmopolita. Em
parte, as severas normas ora vigentes prestam contas a isso; mas hoje
como ontem persiste urna grande discrepancia entre a letra e o curn-
primento das normas. A situacáo mundial da atualidade pode ser en-
tendida, na melhor das hipóteses, como transicáo do direito interna-
cional ao direito cosmopolita. Muitas coisas parecem indicar, mais que
isso, urna reincidencia no nacionalismo. Nessa linha, o julgamento
depende da maneira como avaliamos a dinámica das tendencias "con-
vergentes': Estávamos acompanhando a dialética dos desdobramen-
tos cujo início Kant havia tido em vista, em sua época, ao falar de urna
condicao pacífica das repúblicas, da forca agregadora dos mercados
globais e da pressáo normativa da opiniáo pública liberal. Hoje, essas
tendencias dizem respeito a urna constelacao imprevista.
Kant imaginara a ampliacáo da associacáo de Estados livres de tal
maneira que um número sempre maior de Estados viesse a cristali-
zar-se em torno do núcleo de urna vanguarda de repúblicas pacíficas:
"Pois quando a felicidade concede as coisas ser de tal modo: que um
POyO poderoso e esclarecido possa formar urna república, entáo essa
fornece a outros Estados um centro de unificacáo federativa, para jun-
tar-se a eles, e depois sempre expandir-se, mais e mais, através de su-
cessivas unificacóes desse tipo" (Werke VI, 211 s.). Na realidade, po-
rém, a Organizacáo Mundial abriga hoje praticamente todos os Esta-
dos sob um mesmo teto, e independentemente de serem republicanos
e de respeitarem ou nao os direitos humanos. A uniáo política do
mundo en contra expressáo na Assembléia Geral das Nacóes Unidas,
na qual todos os governos estáo representados com igualdade de direi-
tos. Com isso a Organizacáo Mundial abstrai nao somente das dife-
rencas de legitimidade de seus membros no interior da comunidade
de Estados, mas também de suas diferencas de status no interior de urna
sociedade mundial específica. E falo de urna "sociedade mundial", por-
que os sistemas comunicacionais e os mercados criaram um contexto
global; mas é preciso falar de urna sociedade mundial "estratificada",
porque o mecanismo do mercado mundial acopla urna produtividade
progressiva a miserabilizacáo crescente, isto é, processos de desenvol-
vimento a processos de subdesenvolvimento. A globalizacáo divide o
mundo e ao mesmo tempo o desafia, enquanto comunidade de risco,
ao agir cooperativo.
206 A INCLUSAo DO OUTRO
~ .:
Da perspectiva das ciencias políticas, o mundo fragmento u -se des-
de 1917 em tres mundos. Certamente, os símbolos do Primeiro, Se-
gundo e Terceiro Mundos assumiram um significado diferente a partir
de 198926• O Terceiro Mundo é constituído hoje de territórios nos quais
a infra-estrutura e o monopólio do poder tém urna formacáo tao de-
bilitada (Somália) ou tao fragmentada (Iugoslávia), nos quaisas ten-
sóes sociais sao tao intensas, e os limiares de tolerancia da cultura po-
lítica, tao baixos, que os poderes indiretos de natureza mafiosa ou fun-
damentalista abalam a ordem interna. Essas sociedades estáo amea-
cadas por processos de decadencia étnicos, nacionais ou religiosos. De
fato, as guerras que ocorreram nas últimas décadas, muitas vezes sem a
devida atencáo da opiniáo pública mundial, foram em sua imensa maio-
ria guerras civis desse tipo. Em contraposicao, o Segundo Mundo foi
marcado pela heranca de políticas de poder que assumiu dos Estados
nacionais europeus resultantes da descolonizacao, Em assuntos inte-
riores, esses Estados compensam situacóes de instabilidade com cons-
tituicóes autoritárias e se enrijecem em suas relacóes externas (como
acontece na regiáo do Golfo, por exemplo), insistindo em sua própria
soberania e na nao- intervencáo. Investem no poder militar e obedecem
exclusivamente a lógica do equilíbrio de forcas. Apenas os Estados do
Primeiro Mundo logram até certo ponto harmonizar seus interesses
internacionais com os pontos de vista normativos que determinam o
nível de exigencia quase cosmopolita das Nacóes Unidas.
Como indicadores da pertinencia a es se Primeiro Mundo, R.
Cooper menciona: urna crescente irrelevancia das questóes ligadas a
fronteiras e a toleráncia em face de um pluralismo legalmente libera-
do, em assuntos interiores; urna influenciacáo recíproca, nas relacóes
interestatais, sobre assuntos tradicionalmente internos e, em geral, urna
fusáo crescente das políticas interna e externa; a sensibilidade em face
da pressáo da opiniáo pública liberal; a refutacáo do poder militar
como meio para a solucáo de conflitos e a fixacao jurídica das relacóes
internacionais; e, por fim, o favorecimento de parcerias que funda-
mentem a seguranca sobre a transparencia e a confiabilidade das ex-
pectativas. É esse Primeiro Mundo que define algo como o meridiano
de um tempo presente, com base no qual se mede a simultaneidade
26. Cf. R. Cooper, "Gibt es eine neue Welt-Ordnung?", Europa-Archiv, n. 18,
pp. 509-516,1993.
A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 207
do que é económica e culturalmente nao-simultaneo. Kant, que como
filho do século XVIII ainda pensava a-históricamente, havia ignorado
tudo isso, e deixado de perceber a abstracáo real que a organizacáo da
comunidade dos POyOScumpre, e a qual ela também deve prestar con-
tas em suas políticas.
A política das Nacóes Unidas só é capaz de considerar essa "abs-
tracáo real" a medida que se empenha em favor da superacáo das ten-
sóes sociais e dos desequilíbrios económicos. Isso, por sua vez, só pode
ter éxito quando se criar, apesar da estratificacáo da sociedade mundial,
um consenso em pelo menos tres direcóes: urna consciencia histórica
partilhada por todos os membros em relacáo a náo-simultaneidade
das sociedades, que no entanto dependem, todas ao mesmo tempo, da
coexistencia pacífica; urna concordancia normativa sobre direitos hu-
manos, cuja interpretacáo ainda causa polémica entre europeus, de
um lado, asiáticos e africanos, de outro": e um entendimento comum
sobre a concepcáo da condicáo pacífica almejada. Kant havia podido
contentar-se com um conceito negativo de paz. Isso hoje é insuficiente,
e nao só por causa do descomedimento na condueño da guerra, mas
sobretudo por causa da circunstancia de que o surgimento de guerras
tem causas sociais.
De acordo com urna sugestáo de Dieter e Eva Seghaas", a com-
plexidade das causas da guerra exige urna concepcao que entenda a
paz como um processo que decorre sem violencia, mas que nao almeja
simplesmente a preservacáo do poder, e sim o cumprimento de pres-
supostos reais para o convívio livre de tensóes entre grupos e POyos.
As regularnentacóes implementadas nao podem ferir a existencia e a
honra dos envolvidos, nem podem restringir demais os interesses vi-
tais e as nocóes de iustica, ao ponto de que as partes conflitantes voltem
a recorrer a guerra, caso se esgotem as possibilidades de acáo. As po-
líticas que se orientam segundo um conceito de paz como esse recor-
reráo a todos os meios aquém do uso do poder militar, inclusive a
intervencáo humanitária, para exercer influencia sobre a situacáo in-
terna de Estados formalmente soberanos, com o objetivo de fomentar
27. Urna sugestáo razoável para se estabelecer um ámbito de discussáo é apre-
sentada por T. Lindholm, "The Cross-Cultural Legitimacy ofHuman Rights" Norwegian
lnstitut of Human Right, Oslo, n. 3, 1990.
28. Cf. D. e E.Senghaas, "Si vis pacern, para pacem", Leviathan, pp. 230-247, 1992.
208 A INCLUSAO DO OUTRO
í"
i
neles urna autonomia auto-sustentável com relacóes sociais admis-
síve~s, a participacáo democrática, a tolerancia cultural e a condicáo
efetiva de um Estado de direito. Essas estratégias nao-violentas em fa-
vor d~ processos de democratizacáo " contam com que as integra<;:óes
globais em rede, nesse entremeio, tenham tornado todos os Estados
em dependentes de seu mundo circunstante, e tambérn sensíveis ao
poder "brando" de influencias indiretas - inclusive a sancóes económi-
cas impostas de maneira explícita.
Com a complexidade dos objetivos e o alto custo das estratégias,
é claro que também crescem as dificuldades de implementacáo; isso
faz com que as potencias em posicáo de lideranca fiquem reticentes
quanto a tomar iniciativas e arcar com os custos. É preciso ao menos
mencionar quatro variáveis importantes para esse contexto: a compo-
sicáo do Conselho de Seguranca que precisa se unir em torno de um
objetivo único; a cultura política dos Estados, cujos governos só se dei-
xam mobilizar em prol de políticas "abnegadas" a curto prazo, quando
tém de reagir a pressáo normativa da opiniáo pública; a forrnacáo de
r~gimes regionais que propiciem só entáo alicerces efetivos a Orga-
ruzacáo Mundial; e, por fim, a incitacáo branda a um comércio coorde-
nado em nível global, cujo ponto de partida é a percepcáo dos perigos
globais. Sao evidentes os perigos resultantes de desequilíbrios ecoló-
gicos, de assimetrias do bem-estar e do poder económico, das tecno-
logias pesadas, do comércio de armas, do terrorismo, da criminalidade
ligada as drogas etc. Quem nao é levado forcosamente a desesperar da
capacidade de aprendizagem do sistema internacional tem de deposi-
tar as próprias esperancas no fato de que a longo prazo a globalizacáo
desses perigos, de modo objetivo, acabo u por integrar o mundo em
urna comunidade de risco involuntária.
A reforrnulacáo da idéia kantiana de urna pacificacáo cosmopo-
lita da condicáo natural entre os Estados, quando adequada aos tempos
de hoje, inspira por um lado esforcos enérgicos em favor da reforma
29. E. O. Czempiel investiga essas estratégias com base em diversos exemplos, tal
como em: G: Sc~warz: '~Intern.ationale Politik und der Wandel von Regirnen', Sonderheft
der Zeztschrift für Politik, Zürich, pp. 55-75, 1989.
209
das Nacóes Unidas e de modo geral a ampliacáo das forcas capazes de
atuar em nível supranacional, em diferentes regióes do planeta. Tra-
ta-se aí de urna melhora da circunstancia institucional de urna política
de direitos humanos que ganhou impulso desde a presidencia de Iimmy
Carter, mas que também sofreu retrocessos sensíveis (1). Essa política,
por outro lado, fez entrar em cena urna forte oposicáo, que ve na tenta-
tiva de imposicáo internacional dos direitos humanos o funcionamento
de urna moralizacáo autodestrutiva da política. Os argumentos contrá-
rios, por sua vez, apóiam-se sobre um conceito vago de direitos huma-
nos, que nao diferencia satisfatoriamente entre direito e moral (2).
(1) A "retórica do universalismo" a qual se dirige essa crítica en-
contra sua expressáo mais objetiva em sugestóes de parámetros segun-
do os quais se deveriam ampliar as Nacóes Unidas, de modo a torná-la
urna "democracia cosmopolita': As sugestóes de reforma concentram-
se em tres pontos: na instalacáo deum parlamento mundial, na am-
pliacáo da estrutura jurídica mundial e na reorganizacáo do Conselho
d 30e Seguranca .
As Nacóes Unidas ainda mantém traeos de um "congresso per-
manente de Estados". Se elas pretendem perder esse caráter de assem-
bléia das delegacóes dos governos, entáo a Assembléia Geral precisa
tornar-se urna espécie de Senado Federal e partilhar suas competencias
com urna Segunda Cámara, Nesse parlamento os povos estariam re-
presentados como a totalidade dos cidadáos do mundo, mas nao por
seus governos, e sim por representantes eleitos. Países que se neguem
a permitir a eleicáo de deputados segundo procedimentos democráti-
cos (e levando em consideracáo suas minorias étnicas) poderiam ser
representados provisoriamente por organizacóes náo-estatais desig-
nadas pelo próprio Parlamento Mundial como representantes das
populacoes oprimidas.
O Tribunal Internacional em Haia nao dispóe de competencia
para propor acusacáo; ele nao pode emitir veredictos obrigatórios e
tem de se restringir as funcóes de um tribunal de arbitragem. Sua
jurisdicáo, além disso, está restrita as relacóes entre os Estados; ela
nao se estende a conflitos entre pessoas em particular ou entre cida-
daos em particular e seus governos. Em todos os sentidos, seria pre-
ciso aumentar as competencias do Tribunal, segundo a linha de su-
gestóes já elaborada por Hans Kelsen meio século atrás". A jurisdicáo
penal, que até hoje só se instalo u ad hoc para processos específicos de
crimes de guerra, teria que institucionalizar-se de forma permanente.
O Conselho de Seguranca foi concebido como poder compensa-
tório da Assembléia Geral, composta de forma igualitária; ele deve
retratar as relacóes efetivas de poder no cenário internacional. Esse
princípio racional, depois de cinco décadas, exige adaptacóes a nova
situacáo mundial. E essas adaptacóes nao deveriam esgotar-se em
urna atualizacáo da representacáo de Estados nacionais influentes (por
exemplo, pela aceitacáo da Alemanha e do Iapáo como membros per-
manentes). Em vez disso, propóe-se que ao lado das potencias mun-
diais (como os EUA) também se conceda um voto privilegiado a regi-
mes regionais (como a Uniáo Européia). No mais, deve-se suprimir a
obrigatoriedade de voto unánime entre os membros permanentes e
substituí-la por regulamentacóes de maioria, apropriadas as diversas
situacóes. O Conselho de Seguranca poderia ser totalmente reformado
segundo o modelo do Conselho de Ministros em Bruxelas, para tor-
nar-se um poder executivo capaz de agir. Os Estados, além disso, só
adequaráo suas políticas externas tradicionais ao imperativo de urna
política interna mundial quando a Organizacáo Mundial puder em-
pregar forcas de conflito sob seu próprio comando e desempenhar
funcóes policiais.
Essas consideracóes sao convencionais, a medida que se orien-
tam por elementos organizativos das constituicóes nacionais. Por cer-
to, a implementacáo de um direito cosmopolita conceitualmente cla-
ro exige um pouco mais de criatividade institucional. O universalis-
mo moral que oriento u Kant em suas aspiracóes continua sendo de
alguma maneira a intuicáo que constitui os parámetros nessa ques-
tao. No entanto, um argumento tem-se voltado contra essa auto-
cornpreensáo moral-pragmática da modernidade " e obtido éxito em
sua recepcáo na Alemanha desde a crítica de Hegel a moral kantiana
da humanidade, com marcas profundas, visíveis até hojeo Sua formu-
31. Cf. H. Kelsen, Peace through Law, Chape! Hill, 1944.
32. Cf. J. Habermas, Der Philosophische Diskurs der Moderne, Frankfurt am Main,
1985. pp. 309ss. [ed. br.: O discurso filosófico da modernidade, Sao Paulo, Martins Fon-
tes, 2000].
30. Sigo aqui D.Archibugi, "From the United Nations to Cosmopolitan Demo-
cracy". In: Archibugi; He!d, op. cit., 1995, pp. 121-162.
210 A INCLUSAO DO OUTRO A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 211
lacáo mais aguda deve-se a Carl Schmitt, com base em urna funda-
mentacáo em parte perspicaz, em parte confusa.
Schmitt confere a frase "quem fala em humanidade tem a inten-
cáo de enganar" a impactante forrnulacáo: "Humanidade, bestialida-
de". Segundo essa concepcáo, o "logro do humanismo" tem suas raízes
na hipocrisia de urna pacifismo jurídico que pretende fazer "guerras
justas" sob o signo da paz e do direito cosmopolita: "Se o Estado com-
bate seu inimigo em nome da humanidade, nao se trata aí de urna
guerra da humanidade, mas sim de urna guerra em que determinado
Estado, di ante de seu opositor bélico, tenta ocupar um conceito uni-
versal, de forma semelhante a quando se tenta abusar de conceitos
como paz, justica, progresso e civilizacáo, a fim de requisitá-los para si
e subtraí-los ao inimigo. 'Humanidade' é um instrumento ideológico
. ul "1 ,,33partic armente un ...
Esse argumento de 1932, ainda voltado contra os Estados Unidos
e as potencias vencedoras em Versailles, será depois estendido por
Schmitt a determinadas acóes da Alianca dos Povos de Genebra e das
Nacóes Unidas. Em sua opiniáo, a política de urna organizacáo mun-
dial que se inspira na idéia kantiana de paz perpétua e que visa a cons-
trucáo de urna condicáo cosmopolita obedece a mesma lógica: o pan-
intervencionismo leva obrigatoriamente a urna pancriminalizacao'"
e, com isso, a perversáo dos objetivos aos quais ela se propóe servir.
(2) Antes de abordar o contexto específico dessas consideracoes,
gostaria de tratar do argumento em geral e chegar, passo a pass o, ao
cerne do problema. As duas assercóes decisivas afirmam o seguinte:
primeiro, a política dos direitos humanos ocasiona guerras que -
disfarcadas de acóes policiais - assumem qualidade moral; segundo,
a moralizacáo classifica opositores como inimigos, de modo que essa
criminalizacáo dá rédeas largas a desumanidade: "Conhecernos a lei
secreta desse vocabulário e sabemos que hoje se pode fazer a guerra
33. C. Schmitt, Der Begriff des Politischen (1932), Berlin, 1963. p. 55. O mesmo
argumento é apresentado por J. Isensee (1995): "Desde que há intervencóes, elas servi-
ram as ideologias, aos princípios confessionais nos séculos XVI e XVII, aos princípios
monarquistas, jacobinistas, humanitários, a revolucáo socialista mundial. Agora che-
gou a vez dos direitos humanos e da democracia. Na longa história da intervencáo, a
ideologia serviu para dourar os interesses de expansáo de poder dos que intervinham
e para ungir a efetividade da medida com uma aura de legitimacáo" (p. 429).
34. Cf. C. Schmitt, Glossarium (1947-1951), Berlin, 1991. p. 76.
mais terrível e cometer as desumanidades mais atrozes em nome da
humanidade,,3s. Os dois enunciados parciais sao fundamentados com
o auxílio de duas premissas: (a) a política dos direitos humanos serve
a imposicáo de normas que sao parte de urna moral universalista; (b)
como juízos morais obedecem ao código de "bem" e "mal", a valoracáo
moral negativa (de um oponente político ou) de um opositor bélico
destrói a limitacáo juridicamente institucionalizada (da confronta-
cáo política ou) do combate militar. Enquanto a primeira premissa é
falsa, a segunda premissa, no contexto de urna política dos direitos
humanos, sugere um pressuposto falso.
Sobre (a): direitos humanos em sentido moderno remontam a
Virginia Bill of Rights e a Declaracáo de Independencia norte-ameri-
cana de 1776, bem como a Déclaration des droits de l'homme et du
citoyen, de 1789. Essas declaracóes sao inspiradas pela filosofia polí-
tica do direito racional, em especial por Locke e Rousseau. Nao é por
acaso, no entanto, que os direitos humanos só assumam urna figura-
cáo concreta no contexto das primeiras constituicóes - justamente
como direitos fundamentais garantidos no ámbito de urna ordem ju-
rídica nacional. Contudo, ao que parece eles tém um caráter duplo:
como normas constitucionais eles gozam de urna validacáo positiva,
mas como direitos cabíveis a cada ser humano enquanto pessoa tam-
bém se confere a eles urna validacáosobrepositiva.
Para a discussáo filosófica", essa ambigüidade foi muito insti-
gante. Segundo urna das concepcóes, o status dos direitos humanos
deve situar-se entre o direito positivo e o direito moral; segundo a outra,
os direitos devem poder aparecer tanto sob a forma de direitos morais
quanto de direitos jurídicos, caso haja coincidencia dos conteúdos -
"como direito válido, de modo preestatal, mas nem por isso como di-
reito já vigente': Os direitos humanos "nao sao, na verdade, assegura-
dos ou negados; em relacáo a eles ou se exercem garantías ou se pra-
ticam violacóes't". Essas forrnulacóes de ocasiáo sugerem que o legis-
lador constitucional traduza para as palavras do direito positivo normas
morais já dadas. Com esse regresso a distincáo clássica entre direito
35. C. Schmitt, 1963, p. 94.
36. Cf. St. Shue, S. Hurley (orgs.), On Human Rights. NewYork, 1993.
37. O. Hoffe, "Die Menschenrechte als Legitimation und kritischer MaBstab der
Demokratie". In: J. Schwardtlander (org.), Menschenrechte und Demokratie, Straísburg,
1981. p. 250. Cf., do mesmo autor, Politische Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1987.
212 A INCLUSAO DO OUTRO A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 213
natural e direito positivo, nao me parece que se tenha trilhado corre-
tamente o itinerário da questáo, O conceito de direitos humanos é de
origem moral, mas também urna manifestacáo específica do conceito
moderno de direitos subjetivos, ou seja, urna manifestacáo da concei-
tualidade jurídica. Os direitos humanos sao já a partir de sua origem
de natureza jurídica. O que lhes confere a aparencia de direitos morais
nao é seu conteúdo, nem menos ainda sua estrutura, mas um sentido
validativo que aponta para além das orden s jurídicas características
dos Estados nacionais.
Os textos constitucionais históricos reportam-se ao direitos "ina-
tos" e tém em geral a forma comemorativa de urna "declaracáo": as
duas coisas tém por tarefa prevenir um mal-entendido positivista, como
diríamos hoje, e expressar que os direitos humanos nao "estáo a dis-
posi¡;:ao"38do respectivo legislador. Mas essa restricáo retórica nao pode
preservar os direitos fundamentais do destino que cabe a todo direito
positivo; também os direitos fundamentais podem ser alterados ou
suspensos, por exemplo no caso de urna mudanca de regime. Como
partes de urna ordem jurídica democrática, e tal como as demais nor-
mas legais, eles gozam de "validade" em um duplo sentido: eles nao
valem apenas de maneira factual, ou seja, nao sao apenas impostos em
virtud e da forca sancionadora do Estado, mas também reivindicam
legitimidade para si, ou seja, devem ser passíveis de urna fundamenta-
cáo racional. Sob es se aspecto da fundamentacáo, os direitos funda-
mentais dispóem mesmo de um status notável.
Como normas constitucionais, eles com certeza desfrutam de
urna precedencia que se manifesta entre outras coisas no fato de se-
rern, como tais, constitutivos da ordem jurídica, e de estabelecerem
assim o ámbito em que se deve mover a legislacáo normal. Entretan-
to, os direitos fundamentais se destaca m no conjunto das normas cons-
titucionais. Por um lado, os direitos fundamentais liberais e sociais
tém a forma de normas genéricas enderecadas aos cidadáos em sua
qualidade de "seres humanos" (e nao de integrantes do Estado). Mes-
mo que os direitos humanos sejam cumpridos táo-sornente no ámbi-
to de urna ordem jurídica nacional, nesse campo validativo eles ga-
rantem direitos para todas as pessoas, e nao só para os integrantes do
Estado. Quanto mais se explora o teor da Constituicáo alemá, tanto
mais se aproxima o status jurídico de quem vive na Alemanha sem ser
cidadáo do Estado alemáo ao de quem é cidadáo alemáo ". É essa va-
lidacáo universal, voltada a seres humanos como tais, que os direitos
fundamentais térn em comum com as normas morais. De certa ma-
neira, o que se revelou com a recente controvérsia sobre o direito de
voto aos estrangeiros, na Alemanha, também se aplica aos direitos
políticos fundamentais. E isso remete a um segundo aspecto, ainda
mais importante. Direitos fundamentais esta o investidos de tal an-
seio de validacáo universal porque só podem, exclusivamente, ser fun-
damentados sob um ponto de vista moral. É certo que as outras nor-
mas jurídicas também sao fundamentadas com o auxílio de argumen-
tos morais, mas em geral a fundamentacáo se dá igualmente com pon-
tos de vista ético-políticos e pragmáticos que se referem a forma de
vida concreta de urna comunidad e jurídica histórica, ou entáo ao es-
tabelecimento concreto de objetivos ligados a determinadas políticas.
Os direitos fundamentais, ao contrário, regulam matérias de tal gene-
ralidade que bastam os argumentos morais para sua [undamentacüo.
Eis aí argumentos que fundamentam a razáo pela qual o assegura-
mento de regras como essas desperta em igual medida o interesse de
todas as pessoas na sua qualidade de pessoas em geral, ou ainda, por
que elas sao igualmente boas para todo mundo.
O modus da fundamentacáo, no entanto, em nada prejudica a qua-
lidade jurídica dos direitos fundamentais, nem faz deles normas mo-
rais. Normas jurídicas - no sentido moderno do direito positivo -
conservam sua conformidade jurídica, nao obstante a natureza das ra-
zóes que ajudem a fundamentar sua pretensáo de legitimidade. Pois as
normas jurídicas devem esse caráter a estrutura delas mesmas, e nao a
seu conteúdo. E os direitos fundamentais, segundo sua estrutura, sao
direitos subjetivos que se podem vindicar em juízo e que térn o sentido,
entre outros, de desvincular pessoas do direito dos mandamentos mo-
rais - e isso de maneira claramente delimitada -, amedida que reser-
vam aos agentes espacos legais em que estes possam agir segundo orien-
tacáo de suas próprias preferencias. Se direitos morais podem ser funda-
38. S. Konig, Zur Begrundung der Menschenrechte. In: Hobbes - Locke - Kant,
Freiburg, 1994, pp. 2655.
39. De todo modo, o teor humanitário-jurídico dos direitos políticos de parti-
cipacáo afirma que cada um tem o direito de pertencer, como cidadáo, a urna coletivi-
dade política.
214 A INCLUSA.O DO OUTRO A IDÉIA KANTIANA DE PAZ PERPÉTUA 215
40. Cf. a análise da estrutura dos direitos humanos em: H. A. Bedau, "Internatio-
nal Human Rights" In: T. Regan; D. van de Weer (orgs.), And lustice for All, Totowa,
1983, p. 297, onde o autor se reporta a Henry Shue: "The emphasis on duties is meant
to avoid leaving the defense of human rights in a vacuum, bereft of any moral signi-
ficance for the specific conduct of others. But the duties are not intended to explain
and generate the duties" ["A énfase nos deveres é para evitar que a defesa dos direitos
humanos caia num vácuo, destituída de todo significado moral para a conduta especí-
fica dos demais. Mas deveres nao foram feitos para explicar ou gerar direitos; ao con-
trário, os direitos é que costumam explicar e gerar deveres"].
41. Cf. S. Konig, 1994, pp. 84ss.
outros direitos subjetivos, eles, e sobretudo eles, térn um teor moral.
Mas a despeito desse teor, os direitos humanos, segundo sua estru-
tura, pertencem a urna ordem do direito positivo e coercitivo que
fundamenta reivindicacóes jurídicas subjetivas que se podem recla-
mar em juízo. Em tal medida, é inerente ao sentido dos direitos hu-
manos o fato de exigirem para si o status de direitos fundamentais
cuja observancia se deve assegurar no ámbito de urna ordem jurídica
subsistente, seja ela nacional, internacional ou global. Mas se esses
direitos sao confundidos até hoje com direitos morais, isso ocorre por-
que, nao obstante sua pretensáo de validade universal, foi só nas or-
dens jurídicas nacionais de Estados democráticos que eles puderam
assumir urna forma positiva inequívoca. Para além disso, eles só con-
tam com urna validacáo atenuada por parte do direito internacional e
ainda esperam pela institucionalizacáo no ámbito da ordem cosmopo-
lita concebida

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