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Instabilidade e repressão na literatura feminina

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DEPARTAMENTO DE LETRAS
Pós-graduação em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo 
A Voz na Redoma: Instabilidade Mental e Repressão Social na Literatura Feminina Angloamericana 
Juliana Valadão Lopes
Orientadora: Claudia Fernanda Chigres
Juliana Valadão Lopes
A Voz na Redoma
Instabilidade Mental e Repressão Social na Literatura Feminina Angloamericana 
Monografia apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC-Rio como requisito para obtenção do título de Especialista em Letras. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada. 
Professora orientadora: Claudia Fernanda Chigres
Segundo leitor: Leonardo Bérenger Alves Carneiro
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2017
Dedicatória
Dedico este trabalho respeitosamente à memória de Sylvia Plath, Assia Gutmann e Shura Wevill.
Agradecimentos 
Primeiramente, muito obrigada à minha orientadora, Claudia Chigres, por toda a ajuda, acessibilidade, disponibilidade e amizade que encontrei em você desde os anos da graduação. Foi um prazer poder assistir novamente às suas aulas, sempre extremamente edificantes, e receber a sua orientação foi ainda mais gratificante do que eu imaginei que seria. 
Ao meu segundo leitor, professor Leonardo Bérenger, muito obrigada por ter aceitado tão pronta e solicitamente o convite de avaliar este trabalho.
À Carol, muito obrigada pela disposição em ajudar. Sem o seu auxílio, esta monografia literalmente não estaria pronta.
Por último, mas não menos importante, muito obrigada à Alice, por todo o apoio, mesmo a um oceano de distância. Obrigada por ouvir minhas ideias pelo telefone e por me ajudar a dar forma a elas, por me incentivar nos momentos em que achei que não fosse dar conta e por sempre acreditar em mim. Em todas as páginas desse trabalho, eu não conseguiria encontrar palavras suficientes para te agradecer.
	
Considerações iniciais: mapeando sussurros dispersos
	Esther Greenwood, jovem, americana, solteira, sem filhos, tenta se suicidar ingerindo comprimidos para dormir e acaba sendo internada num manicômio. Laura Brown, jovem, americana, casada, mãe de um menino de três anos, grávida de uma menina, cogita o suicídio, mas opta por abandonar o marido e os filhos. Susan Rawling, meia-idade, britânica, casada, mãe de quatro crianças, se suicida, apesar da amabilidade de sua família, através da inalação do gás do aquecedor. Uma mulher, cujo nome não se sabe, aparentemente jovem, americana, casada, mãe de um bebê, vai paulatinamente enlouquecendo até perder completamente o juízo. Assia Wevill, meia-idade, alemã (mas residindo na Inglaterra), divorciada três vezes, mãe de uma menina de 4 anos, bebe uísque, toma comprimidos para dormir, liga o gás de seu fogão e deita ali em frente com sua filha, Shura, matando a si própria e a menina. Sylvia Plath, jovem, americana, casada, dois filhos pequenos, se suicida, também por inalação de gás de cozinha.
	Pode-se sugerir que, por algum motivo, a loucura tenha tomado conta destas mulheres, personagens, respectivamente, de A Redoma de Vidro (PLATH, 2005), As Horas (CUNNINGHAM, 2003), O Quarto 19 (LESSING, 199-?) e O Papel de Parede Amarelo (GILMAN, 2016), além da escritora Sylvia Plath e do pivô de sua separação com Ted Hughes, Assia Wevill. A medicina tradicional, inclusive, apresentou durante anos a instabilidade mental feminina como uma “predisposição natural” das mulheres à “histeria”, estabelecendo uma relação biológica entre a loucura e a mulher. Haveria, no entanto, uma possível causa alternativa para o estado mental perturbado que as acometeu? [1: Apesar de o romance ser dividido em três partes intercaladas e interligadas - as histórias de Virginia Woolf, Clarissa Dalloway e Laura Brown -, decidi analisar aqui apenas a história desta última, por ser a que se insere melhor na discussão proposta por este trabalho.]
Todas essas mulheres, ficcionais ou não, possuem um contexto histórico e social semelhante. Com a exceção da narradora de O Papel de Parede Amarelo, cuja história se passa no fim do século XIX, todas vivem entre as décadas de 1950 e 1960, nos Estados Unidos ou na Inglaterra. No entanto, mesmo com meio século de diferença entre as obras analisadas, a mentalidade americana com relação ao papel social da mulher pouco mudou nesse tempo: como diz Janet Malcolm em A 
mulher calada, “nos Estados Unidos, o século XIX só foi terminar nos anos 1960”, quando houve, entre muitos outros, um forte movimento feminista e de revolução sexual (MALCOLM, 2012, p. 23). 
Se pensarmos na sociedade americana da época, com suas casas de cercas brancas nos subúrbios, em toda a explosão de prosperidade do pós-guerra simbolizada pela valorização do “American Way of Life”, logo nos vêm à mente a imagem de eletrodomésticos novos, um carro na garagem, um homem trabalhando das 9h às 17h e uma mulher cuidando da casa e dos filhos. Embora a Inglaterra estivesse vivendo praticamente o momento oposto, de devastação após a guerra, o papel destinado às mulheres ainda era o mesmo, mas talvez sem o glamour technicolor do “American Way of Life”. Ainda que a mudança na mentalidade que os movimentos de contracultura proporcionariam já estivesse aparecendo aos poucos, o pensamento dominante, tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos, ainda alocava a mulher necessariamente aos cuidados da casa e dos filhos, atuando como um acessório para a felicidade e satisfação pessoal de um homem – primeiramente do pai e posteriormente do marido. 
	Se a mulher era relegada dentro da própria casa, era de se esperar que também o fosse em outras esferas da sociedade, principalmente no que se refere aos diferentes âmbitos do saber. Durante séculos, a medicina e suas ramificações, assim como inúmeras outras áreas do conhecimento, foram ciências essencialmente masculinas. Excluídas do saber racional e empírico, se perpetua a imagem da mulher como um ser emotivo, que age não de acordo com a razão, mas segundo instintos “naturais”, sendo considerada então um ser de capacidade inferior. Segundo Magali Engel em Psiquiatria e Feminilidade, 
a construção da imagem feminina a partir da natureza (...) implicaria em qualificar a mulher como naturalmente frágil, bonita, sedutora, submissa, doce, etc. (...) Entretanto, muitas qualidades negativas, como a perfídia e a amoralidade, eram também entendidos como atributos naturais da mulher, o que conduzia a uma visão profundamente ambígua do ser feminino. (ENGEL, 1997, p. 332)
	Essa visão ambígua leva a um senso comum da mulher como um ser instável e volátil, o que foi classificado durante muito tempo como "histeria". A palavra, aliás, vem do grego hystéra, que quer dizer “útero”, e vem sendo associada à mulher há milênios: na Antiguidade (e em particular com Hipócrates), o termo era utilizado para descrever transtornos nervosos em mulheres que nunca haviam engravidado; já na Idade Média, “histeria” significava a possessão pelo demônio (MOURA, 2009). Essas concepções do termo nos dizem muito sobre a visão patriarcal da medicina, que associa a instabilidade e o descontrole mental e emocional à natureza feminina, ou, ainda, àquelas mulheres que escaparam do papel social e biológico que lhes foi incumbido: as que não eram mães eram loucas. Afinal, numa sociedade machista, qual a função de uma mulher que não é mãe? 
Com a razão (e, consequentemente, a medicina e a ciência) sendo atribuídas ao homem, à mulher restou a associação à irracionalidade. Com o surgimento da psicanálise, dentro do escopo patriarcal da medicina, a teoria de que mulheres são inconstantes e propensas à "loucura" ganham "contornos de verdade cientificamente comprovada" (ENGEL, 1997, p. 332). De acordo com Renzetti e Curran em Women, Men and Society, "não tem sido rara, através dos tempos, a admissão, por parte dos médicos, de que as disfunções do aparelho reprodutor feminino causem distúrbios psicológicos",sendo que "a 'cura' que os médicos prescreviam era a (...) remoção dos ovários" (RENZETTI; CURRAN, 1992, p. 335). Ou seja: há poucas décadas, segundo a medicina tradicional, a retirada de um órgão exclusivamente feminino curaria a loucura das mulheres.
	No entanto, muito mais do que algo intrínseco à biologia e à psicologia femininas, a noção de que mulheres tendem a desenvolver algum tipo de instabilidade mental parece estar muito mais relacionada a um fator social, cultural e político: à opressão de uma sociedade patriarcal e machista, que tolhe e restringe a área de atuação do sexo feminino através da perpetuação de conceitos e comportamentos morais e sociais. Além disso, a grande expectativa desta sociedade de que a mulher se comporte de determinadas maneiras – como, por exemplo, a imposição do casamento e da maternidade – contribui para estabelecer uma pressão que, literalmente, pode ser enlouquecedora em inúmeros casos. 
	Tratadas como um mero complemento desimportante, não digno de ser ouvido, as mulheres desse período referido acabam por ter suas vozes suprimidas e suas identidades minadas devido ao papel social que precisam desempenhar. Essas vozes, que não conseguem se rebelar contra o sistema por não terem poder o suficiente, encontram a potência da possibilidade de expressão na literatura. Parece haver uma relação entre a repressão da voz feminina, a imobilidade de seus papéis sociais e a instabilidade mental que acomete essas mulheres, e a proposta deste trabalho é justamente investigar como se apresentam essa conexão e seus desdobramentos nos casos supracitados – nos romances A Redoma de Vidro e As Horas, nos contos O Papel de Parede Amarelo e O Quarto 19 e em biografias de Sylvia Plath e Assia Wevill. 
	Resumidamente, A Redoma de Vidro trata de uma jovem estudante universitária que, após passar um mês fazendo um estágio numa revista de moda em Nova York, volta para casa e, devido a uma série de fatores, tenta o suicídio. Posteriormente, ela é internada em um manicômio e vai gradualmente melhorando durante o tratamento. A parte que escolhi analisar de As Horas traz a história de Laura Brown, jovem dona de casa que quer fazer um bolo de aniversário para o marido e que, quando o bolo não dá certo, se frustra com a própria incapacidade de encarnar o papel que lhe foi socialmente designado, passando a repensar o que fará no futuro. Ao perceber que realmente não consegue continuar desempenhando as funções de mãe, esposa e dona de casa, Laura abandona a família. De forma semelhante, em O Quarto 19, Susan Rawling se inquieta cada vez mais com algo que ela parece não saber bem definir e busca ficar sozinha, longe dos filhos e do marido – num primeiro momento, na própria casa e, ao perceber que a própria casa a perturbava, num hotel, onde, após passar incontáveis tardes, se suicida. Por último, a narradora de O Papel de Parede Amarelo parece sofrer de depressão pós-parto e, para ajudar a mulher a melhorar, o marido, que é médico, aluga uma casa de campo para a mulher descansar. Apesar dos esforços contrários da esposa, o marido insiste que ela passe os dias num quarto com um papel de parede amarelo que, por motivos que serão explorados mais à frente, transtornam a mulher a ponto de levá-la à loucura.
	Apesar de lidar com quatro narrativas literárias, optei por analisar a vida apenas da escritora de A Redoma de Vidro. Deve-se ter em mente que este romance, assim como praticamente toda a obra de Sylvia Plath, é uma narrativa autoficcional. Evidentemente, os dados biográficos da autora não são essenciais para a compreensão da história; no entanto, um trabalho acadêmico que não discuta esta relação entre vida e obra no caso de Sylvia seria, no mínimo, negligente. Ao lidar com A Redoma de Vidro, é praticamente impossível distinguir fato de ficção ou até mesmo separar nitidamente quem é Esther Greenwood e quem é Sylvia Plath. Desta forma, quaisquer aparentes confusões entre escritora e narradora não são falhas devido a um descuido, mas sim resultado esperado de uma complexidade própria da escrita plathiana. Sobre esta ambiguidade, a pesquisadora Ana Cecília Carvalho diz: "precisamos admitir que sua escrita obriga-nos a permanecer no inquietante limite em que a vida do autor, sua obra e sua morte se entrelaçam indissociavelmente." (CARVALHO, p. 44, 2003). [2: Segundo Diana Klinger, a autoficção seria aquele texto em que “ficção e não ficção não remetem a territórios nitidamente separados”, ou seja: seria uma categoria híbrida entre a ficção e a autobiografia. “Sendo ao mesmo tempo ficcionais e (auto)referenciais, estes romances problematizam a ideia de referência e assim incitam a abandonar os rígidos binarismos entre ‘fato’ e ‘ficção’.” (KLINGER, 2012, p. 11)]
Portanto, a fim de fornecer passagens que complementem o sentido de seu romance, analisarei trechos de biografias que de alguma forma discorram sobre como Plath percebia e sentia essas pressões quanto ao que se esperava dela enquanto mulher, tendo em mente que, como vida e obra se confundem, é esperado haver contradições ou pontos que aparentemente não se encaixam - Sylvia, assim como qualquer outra pessoa, era bastante contraditória.
	Como falar da literatura de Plath é falar também de sua vida, consequentemente, é necessário abordar as vidas de Ted Hughes, seu ex-marido, e Assia Wevill, amante de Hughes. Anos após o seu suicídio – e talvez devido a ele –, Plath foi se tornando uma figura cada vez mais mitificada, conquistando uma legião de leitores apaixonados. Muitos destes leitores atribuem ao casal Hughes-Wevill a causa do suicídio de Plath, o que levou a uma série de vandalismos no túmulo da escritora: repetidamente, tentaram apagar o sobrenome “Hughes” da lápide de Sylvia. Hughes, em junho de 1962, iniciou um affair com Assia, enquanto ainda estava casado com Sylvia – seus filhos, Frieda e Nicholas, tinham, respectivamente, dois anos e cinco meses. Depois que Sylvia descobriu a traição, ela e Hughes se separaram (mas não se divorciaram, o que justifica o sobrenome na lápide) e Plath entrou numa depressão profunda, muito provavelmente devido à traição e consequente separação, se suicidando em fevereiro de 1963. 
Precisamos especular, com base em diários e cartas, sobre ações de pessoas reais que já foram tão mitificadas que poderiam ser também encaradas como personagens. Particularmente, não gostaria de escolher uma versão em detrimento da outra, pois estaria assim excluindo possibilidades de análise válidas e complementares. Encaro cada um aqui como pessoas reais e, simultaneamente, como personagens, e acredito que não há alternativa a esse hibridismo. Da mesma forma, excluir Assia Wevill da história de Plath ou simplesmente a retratar como uma Jezebel pérfida seria uma ação que não só corroboraria com o machismo que perpassa toda a vida de Sylvia como também seria um ponto de vista reducionista e que seguiria o senso comum. Analisando as ações de Assia, vemos que, assim como Esther-Sylvia, ela também foi vítima de uma sociedade patriarcal opressora; no entanto, ainda que sem intenção, ela lutou contra os padrões impostos a ela por ser uma mulher.
Assim, discutirei ao longo deste trabalho dois temas principais, que se complementam: primeiramente, a rigidez dos papéis sociais destinados à mulher e como isso contribui para gradativamente levá-las à instabilidade mental. Procurarei, ainda, quais são as possibilidades de escape dos papéis – isto é, se houver alguma. Paralelamente, analisarei a supressão dessas vozes femininas, como esta repressão também pode influir no agravamento da loucura e como as mulheres encontram, através da literatura, um meio de expressão. Como desdobramentos dessas questões, investigarei a loucura feminina como um comportamento já esperado da mulher, assim como a repressão sexual como um mecanismo de controle patriarcal. 
Embora os casos aqui analisados narrem histórias de pelo menos cinco décadas atrás, a relevância do presente trabalho se justifica pela atualidade do tema, dentro e fora do escopoliterário. Segundo Lúcia de La Rocque e Leila Assumpção Harris, “a nova compreensão, por parte da mulher, de seu estado de opressão, resulta então numa literatura de cunho feminista que, não raro, descreve mulheres enlouquecidas pelo exíguo papel que lhes era permitido pela sociedade” (DE LA ROCQUE; HARRIS, 2006, p. 142). É justamente isso que encontramos em todas as narrativas aqui analisadas. Os papéis sociais destinados à mulher, ainda que bem mais flexíveis hoje, ainda encontram ecos e amarras no pensamento das décadas de 1950 e 1960. Dessa forma, é necessário seguir buscando uma desconstrução destes papéis e, ao mesmo tempo, uma maior expressão da voz feminina, suprimida por séculos.
10
 
Entre gritos histéricos e murmúrios indefinidos: a loucura como papel da mulher
Segundo Luiz Costa Lima em Persona e Sujeito Ficcional, a diferença entre pessoa e persona seria que a primeira nasceria de útero materno e a segunda nasceria da sociedade – portanto, não haveria pessoa sem persona (LIMA, 1991). A relação entre persona e papel social se dá devido ao fato de que, por ser um sujeito social, a persona precisa, necessariamente, cumprir com determinada função e seguir o que a sociedade espera dela. Como diz Claudia Chigres, “a cada persona, [há] um papel a ser desempenhado”. Ela continua: “Assumir papéis na sociedade significa assumir uma forma de comprometimento com o teatro do mundo”, levando em conta o “universo de expectativas” a que estamos expostos (CHIGRES, 1995, p. 65). Podemos dizer que as personagens aqui analisadas, ao rejeitarem ou tentarem fugir de seus papéis sociais como mães e esposas, consequentemente rechaçam esse comprometimento com o “teatro do mundo” ou são incapazes de continuar esse contrato implícito devido à exaustão mental que esta representação causa nelas. 
Sobre esta sensação de incapacidade frente à atuação dos papéis cotidianos femininos, que geralmente envolvem a submissão diante de um homem, Davi Ferreira de Pinho defende que Esther Greenwood, personagem de A Redoma de Vidro, tem uma “inabilidade de transformar-se no Outro inexperiente subjugado à superioridade do homem desbravador” (PINHO, 2009, p. 62), enquanto Cunningham diz sobre Laura Brown em As Horas:
Está possuída (parece estar piorando) por uma sensação meio onírica, como se estivesse nos bastidores, próxima da hora de entrar em cena e atuar numa peça para a qual não está adequadamente vestida e para a qual não ensaiou como devia. O que, pergunta-se, estaria errado com ela. (CUNNINGHAM, 2003, p. 39)
	Da mesma forma, Esther também se pergunta o que estaria errado com ela (PLATH, 2005, p. 2), já que, como aspirante a escritora, estagiando numa revista de moda em Nova York (ela é de Massachusetts), com ingressos para desfiles, balés e festas, ela deveria estar se divertindo como nunca. De certa forma, cada uma é considerada ou se considera louca porque foge do universo de expectativas. É um ciclo paradoxal: elas vão enlouquecendo enquanto seguem os padrões, mas, 
ao mesmo tempo, são consideradas loucas ou instáveis perante a sociedade quando tentam fugir das expectativas.
	Se “uma pessoa, portanto, é percebida como um repertório de papéis que acabam por configurar uma identidade” (CHIGRES, 1995, p. 65), é esperado que a individualidade dessas mulheres se dissolva em meio a papéis tão extenuantes de desempenhar. É por causa dessa falta de limites e definição entre identidade individual e papel social que Susan Rawling, de O Quarto 19, se depara com o vazio ao fugir dos papéis e se encontrar consigo mesma no quarto de hotel – ela é apenas mãe e esposa e, quando não desempenha essas funções, se depara com o nada em si. Rawling não tem individualidade e, consequentemente e sob este ponto de vista, poderíamos dizer que Susan é muito mais persona que pessoa – isto é, se encararmos que o conceito de “pessoa”, além de estar ligado ao sentido biológico de ter nascido de útero materno, está também necessariamente relacionado ao desenvolvimento de uma individualidade. 
	Em seu ensaio Profissões para Mulheres, Virginia Woolf discorre sobre algumas dificuldades com que autoras se deparam na hora de escrever. Talvez ainda mais incômoda que a necessidade de dividir a atenção da escrita com afazeres domésticos e o cuidado dos filhos seja a figura que Woolf retoma do poema de Coventry Patmore: "O Anjo do Lar", uma persona feminina que é encarada como modelo de conduta para mulheres e exerce uma influência, indiretamente, sobre as personagens aqui analisadas. Segundo Virginia: 
Ela era extremamente simpática. Imensamente encantadora. Totalmente altruísta. Excelente nas difíceis artes do convívio familiar. Sacrificava-se todos os dias. (...) Seu feitio era nunca ter opinião ou vontade própria, e preferia sempre concordar com as opiniões e vontades dos outros. E acima de tudo - nem preciso dizer - ela era pura. Sua pureza era tida como sua maior beleza - enrubescer era seu grande encanto. Naqueles dias - os últimos da rainha Vitória - toda casa tinha seu Anjo. (WOOLF, 2013, pp. 11-2)
	O Anjo do Lar era o ideal de comportamento para uma mulher vitoriana, mas este modelo se perpetuou e não se restringiu apenas à Inglaterra. Segundo Pinho, “Sylvia Plath recusa o vitorianismo ainda presente na formação da identidade feminina moderna”, e isso se mostra em sua obra através de Esther, que “se sente perseguida por uma redoma de vidro que flutua sobre sua cabeça, moldando-a, prendendo-a à tradição da feminilidade; situando-a como o ‘Anjo do Lar’”. (PINHO, 2009, pp. 59-60). Sylvia Plath, nos anos 1960, escreve The Applicant (O pretendente), uma sátira a este modelo vitoriano que ainda vigorava nos Estados Unidos e na Inglaterra. Nesta perspectiva, a mulher é uma “boneca viva”, que costura, cozinha e fala, sendo desprovida de um caráter humano – o uso do pronome pessoal “it”, empregado normalmente para objetos inanimados ou animais, reforça a objetificação da mulher:
A living doll, everywhere you look.
It can sew, it can cook,
It can talk, talk, talk.
(…)
My boy, it’s your last resort.
Will you marry it, marry it, marry it. (MALCOLM, 2012, p. 153)[3: “Uma boneca viva, sem pôr nem tirar. / Costura, cozinha / e fala, fala, fala sem parar. / Rapaz, é teu último recurso. / Com ela casarás, casarás, casarás.”]
A imagem desta mulher-boneca como o ideal de esposa (porque mulher era, e em alguns círculos ainda é, sinônimo de esposa) é reforçado, ainda que para ser posteriormente desconstruído, em As Horas. Laura tenta fazer um bolo de aniversário para o marido e vai ficando cada vez mais nervosa e frustrada ao ver que o bolo não sai como o esperado. A imperfeição do bolo é o símbolo da inaptidão de Laura para a vida como mãe, esposa e dona de casa, e por isso que é tão importante para ela que consiga fazer um bolo impecável. Ao contrário do que se possa imaginar, Laura (assim como Sylvia, Susan e a narradora de O Papel de Parede Amarelo) realmente se esforça para se ajustar o melhor possível no papel que lhe foi designado enquanto mulher: 
Ela quer ser amada. Ela quer ser uma mãe competente, lendo calmamente para o filho, ela quer ser uma esposa que põe uma mesa perfeita. Ela não quer, de jeito nenhum, ser a mulher estranha, a criatura patética, cheia de manias e raivas, solitária, enfezada, tolerada, mas não amada. (CUNNINGHAM, 2003, p. 85)
	No entanto, ao mesmo tempo em que busca se enquadrar, Laura se questiona constantemente sobre seus papéis. Esther Greenwood, aluna brilhante como Laura, também reflete sobre as personas que deve desempenhar (sem, entretanto, querer se encaixar no padrão): Laura como mãe e esposa, Esther como futura escritora que não quer se casar porque não quer abrir mão de sua carreira para tomar conta da casa e dos filhos. Em um trecho do livro, Esther imagina como seria sua rotina casada: teria que acordar às sete, fazer o café da manhã para o marido, lavar a louça e arrumar a cama quando ele saísse para o trabalho e fazer um bom jantar para quando ele retornasse de seu fascinante diade trabalho. Segundo Esther: 
Parecia uma vida monótona e desperdiçada para uma garota com 15 anos de notas máximas, mas eu sabia que assim que o casamento era, porque cozinhar e limpar e lavar era tudo o que a mãe de Buddy Willard fazia da manhã à noite, e ela era esposa de um professor universitário e tinha sido ela mesma professora em uma escola particular. (PLATH, 2005, p. 84)
	Além da repulsa à subserviência que ela talvez precisasse enfrentar ao se casar, Esther também demonstra verdadeira ojeriza à maternidade. Ao terminar de descrever Dodo Conway, uma de suas vizinhas, mãe de sete crianças, Esther vocifera: "Crianças me enjoam" (p. 117), como estivesse tentando se distanciar ao máximo da possibilidade de ser relacionada ou comparada a Conway. Segundo Lúcia de La Rocque, "ela sabe que, ao tornar-se mãe, dificilmente poderá ir contra as expectativas da sociedade e desenvolver suas aptidões literárias, ou quaisquer outras expectativas que possa nutrir em relação à vida profissional." (DE LA ROQUE, 2001, p. 517). La Rocque continua analisando o pavor de Esther com relação à maternidade ao transcrever a fala de Buddy, namorado da personagem, em que ele diz: 
“(...) depois que ela tivesse filhos, ela mudaria seu modo de pensar e 'não desejaria mais escrever poemas'. A narradora reage a esta afirmação pensando que 'talvez fosse verdade que quando uma mulher se casa e tem filhos, é como se ela passasse por uma lavagem cerebral e que depois disso ela passa a andar como se estivesse entorpecida como uma escrava em um estado totalitário'.” (DE LA ROQUE, 2001, pp. 517-8)
 	Analisando a relação de maternidade de Susan Rawling (O Quarto 19) e Laura Brown (As Horas), percebemos que esta descrição de Esther, a princípio exagerada, apresenta semelhanças com o estado das personagens. Ambas sentem este entorpecimento, essa apatia enlouquecedora frente às atividades que envolvem a maternidade e o matrimônio. É curioso que Michael Cunningham e Doris Lessing tenham escolhido mostrar a loucura pela apatia, ao contrário de Charlotte Perkins Gilman, que a mostra através da histeria de sua personagem anônima em O Papel de Parede Amarelo. Seja essa uma escolha consciente ou não, o fato de Susan e Laura enfrentarem uma depressão e subsequente entorpecimento diante de seus papéis sociais contribui para a quebra da percepção da mulher como naturalmente histérica. O narrador de As Horas corrobora com esta ideia ao descrever os questionamentos internos de Laura:
Será que é assim, enlouquecer? Jamais imaginara que seria assim – quando pensava em alguém (numa mulher como ela) perdendo o juízo, via berros e choros, alucinações; mas naquele momento pareceu-lhe claro que havia uma outra maneira, bem mais silenciosa; uma maneira baça e irremediável, rasa, tanto assim que qualquer emoção tão forte quanto a dor teria sido um alívio. (CUNNINGHAM, 2003, p. 114)
Esther, da mesma forma, sente um misto de apatia e depressão pelo presente e ansiedade pelo futuro, expressas em um tom cínico que perpassa toda a narrativa (tom este que também é onipresente nos diários de Sylvia Plath). Sua depressão e ansiedade paralisantes parecem estar intrinsecamente ligadas à expectativa do que ela fará no futuro: seguirá carreira acadêmica, jornalística ou será mãe e esposa? Numa das partes mais icônicas de A Redoma de Vidro, a protagonista diz que vê sua vida se desenrolar diante de si como uma figueira:
Um figo significava um marido e um lar feliz com filhos, outro era uma poetisa famosa, outro, uma professora brilhante, outro era E.G., a surpreendente editora, outro era a Europa, a África e a América do Sul (...), e acima de todos esses figos havia muitos outros que eu não conseguia entender. Vi-me sentada sob essa figueira, morrendo de fome, só porque não podia decidir qual figo escolheria. Queria-os todos, e escolher um significava perder o resto; incapaz de me decidir, os figos começavam a murchar e apodrecer, e um a um caíam no chão a meus pés. (PLATH, 2005, pp. 76-7, grifo meu)
	Esther demonstra através dessa passagem a ansiedade com que ela encara seu futuro, potencializada pela noção de que escolher um é perder o resto; como ela se sente incapaz de escolher apenas uma opção, corre o risco de perder todas. O que pode parecer perfeitamente conciliável para uma mulher do século XXI era quase excludente nos anos 1950: como cuidar dos filhos e da casa era uma ocupação em tempo integral, a opção de ter um marido e filhos praticamente anulava a possibilidade de seguir uma carreira. Em um trecho de A Redoma de Vidro, Esther diz a seu namorado, Buddy Willard:
Bem, você estava certo. Eu sou neurótica. (...) Se ser neurótica é querer duas coisas excludentes ao mesmo tempo, então eu sou neurótica pra caramba. Vou continuar pulando entre coisas mutuamente excludentes pelo resto dos meus dias. (PLATH, 2005, p. 94)
Apesar de a depressão e a ansiedade de Esther não serem causadas exclusivamente por uma pressão da sociedade pelo fato de ela ser mulher, é inegável que sua condição feminina é um agravante para o desenvolvimento da sua instabilidade mental. Numa época em que se casar e ter filhos era um imperativo para mulheres, Esther sente que escolher ser esposa e mãe seria o mesmo que abandonar todas as outras possibilidades de carreira e se resignar a uma vida pacata e pouco emocionante. Além disso, a jovem imagina que se casar seria necessariamente se subjugar ao marido, o que fica claro pelo trecho em que ela diz que "odiava a ideia de servir homens de qualquer jeito" (p. 76), dizendo em seguida: "Esta é uma das razões pelas quais eu nunca quis me casar. A última coisa que eu queria era segurança infinita (...). Eu queria mudanças e empolgação." Aliás, este é um reforço da ideia de que não gostaria de se casar, pois já havia deixado claro anteriormente: "nunca tive intenção de me casar" (p. 26).
É interessante analisar que, com a exceção de Esther, que se mostra altamente observadora e perceptiva à situação das mulheres ao seu redor, todas as outras personagens já são (ou foram) casadas e têm filhos. De certa forma, o casamento e a maternidade legitimam a instabilidade delas, dando uma causa para a apatia e não encarando a loucura como algo inerente à condição feminina. [4: Não podemos nos esquecer, no entanto, que Sylvia Plath já era mãe e esposa enquanto escreve A Redoma de Vidro. Por mais que o trecho abarque seus anos como estudante universitária, é impossível não se questionar o quanto da Plath mãe e esposa faz estes pronunciamentos quanto à maternidade e ao matrimônio.]
Se a medicina foi uma área que de certa forma legitimou o corpo feminino como o lugar da loucura, não é aleatório o paralelo entre o poder patriarcal e a medicina tanto em A Redoma de Vidro quanto em O Papel de Parede Amarelo. No primeiro, Buddy Willard, namorado de Esther, é um jovem estudante de medicina. Numa das passagens mais emblemáticas da obra, ele a leva para assistir a um parto. Antes de entrar na sala, Will, amigo de Buddy e o residente encarregado pelo parto, diz a Esther, em tom de brincadeira: "Você não deveria ver isto. (...) Você nunca irá querer ter um filho se assistir. Eles não deveriam deixar mulheres assistirem. Seria o fim da raça humana" (PLATH, 2005, p.65). Descrevendo a mesa onde a mulher estava deitada como "uma horrível mesa de tortura", Esther fica incomodada com um barulho "inumano" que a mulher emite o tempo todo. A seguir, Plath retrata o parto, um momento em que a medicina – e um médico homem – está em pleno domínio do corpo da mulher, e esse é claramente, pelo menos para a mulher em questão, um momento de agonia, dores físicas e confusão mental:
Mais tarde, Buddy me contou que a mulher estava sob o efeito de um remédio que a faria esquecer que ela tinha tido qualquer tipo de dor e que, quando ela praguejava e gemia, ela não sabia realmente o que estava fazendo, porque estava numa espécie de sono crepuscular. 
Eu pensei que parecia exatamente o tipo de remédio que um homem inventaria. Ali estava uma mulher com dores terríveis,obviamente sentindo tudo, ou ela não gemeria daquele jeito, e ela iria direto para casa e faria outro bebê, porque o remédio a faria esquecer o quão ruim a dor tinha sido, quando todo o tempo, em alguma parte secreta dela, aquele corredor de dor, longo, cego, sem portas e sem janelas estaria esperando para se abrir e a trancar novamente. (PLATH, 2005, p. 66)
	Já em O Papel de Parede Amarelo, a relação da narradora com a medicina se dá essencialmente pela presença e controle do marido, John, que é médico. Ele frequentemente, ao longo do conto, usa sua dupla autoridade – como marido e como médico – para minar a voz da esposa, que convalesce de uma depressão pós-parto. Ao expor seus sentimentos sobre como o quarto a faz sentir – e ao pedir que fossem embora da casa onde estavam hospedados pelo verão, ou, ao menos, que ela fosse transferida para outro quarto: o papel de parede amarelo do quarto em que ela dorme sem dúvida contribui para deixar a personagem ainda mais ansiosa. Como resposta, a mulher ouve de John comentários como "É claro que eu faria isso se você estivesse correndo qualquer tipo de perigo, mas você está realmente melhor, ainda que não perceba. Sei do que estou falando, querida. Sou médico" (p. 40) e "Trata-se de uma ideia falsa e tola. Não confia em minha palavra de médico?" (p. 42). Segundo Chigres, “Se a medicina cala a mulher pelo poder de diagnosticá-la como histérica, o papel do médico, à época quase exclusivamente masculino, associado ao papel do marido, reforça a incapacidade da mulher de poder legislar sobre seu próprio corpo” (Comunicação pessoal, 2016). 
	A narradora vai ficando cada vez mais perturbada pelo papel de parede, e, por mais que tente encontrar algum sentido no padrão da estampa, ela acaba se frustrando cada vez mais ao não conseguir definir uma continuidade no desenho. Ao analisar as possibilidades extradiegéticas de significação do papel de parede, a que mais se encaixa na perspectiva deste trabalho é a de que o padrão repetitivo significaria um padrão comportamental opressor que sufoca e enlouquece as mulheres. A mulher observa o padrão de uma cama presa ao chão, ou seja, de um lugar de total imobilidade. Esta interpretação é corroborada pela narradora, ao dizer que “para além do padrão em primeiro plano” há uma forma repetida. Segundo ela, “parece uma mulher inclinada para a frente, rastejando em segundo plano”, que parece “sacudir o padrão, como se quisesse sair.” (GILMAN, 2016, pp. 38-40). A personagem ainda diz que "a depender de como se olha para elas, cada folha parece independente (...) Por outro lado, porém, elas se conectam na diagonal." (p. 32). Ou seja, ao mesmo tempo em que cada caso é individual, que cada mulher é singular, faz também parte de um conjunto, de um sistema. 
	É importante ressaltar que os impasses que Laura, Esther, Susan e a narradora de O Papel de Parede Amarelo enfrentam devido à sociedade machista não estão necessariamente ligados aos seus namorados e maridos. É verdade que os companheiros de Esther encarnam com propriedade arquétipos masculinos machistas, mas os maridos de Laura e de Susan não parecem ser opressores de forma alguma. A questão não está centrada no caráter dos personagens como indivíduos, mas nos seus papéis enquanto perpetuadores (conscientes ou não) de uma estrutura que subjuga a mulher a uma estagnação social. Sobre John, o marido da narradora de O papel de parede amarelo, a pesquisadora Márcia Tilburi diz: 
Embora o marido, um médico, seja apresentado como homem amável e bem-intencionado, logo fica evidente que o tratamento que confere à esposa, baseado em atitudes do século XIX em relação às mulheres, é uma fonte importante de sua aflição, e talvez um cruel instigador dela, ainda que inadvertidamente. (GILMAN, 2016, p. 89)
	Da mesma forma, o conto O Quarto 19, de Doris Lessing, demonstra como o marido e os quatro filhos de Susan são compreensivos, carinhosos e prestativos, indicando que eles, enquanto indivíduos, não são a causa da insatisfação e inquietação da mulher. O que realmente perturba a personagem é como seus papéis enquanto mãe e esposa parecem dominar sua vida interna e externa, minando qualquer possibilidade de desenvolvimento de uma personalidade ou de uma existência fora da vida do lar. Quando ela tenta se acostumar com um tempo para cuidar e conviver consigo mesma, sem se preocupar com os horários das crianças ou do marido, o que Susan encontra é o vazio – e prefere esse vazio de passar horas num quarto de hotel sem fazer nada a voltar para casa e ser mãe e esposa full-time. Assim como a narradora de O Papel de Parede Amarelo, Susan sucumbe aos poucos à loucura, e, assim como Sylvia Plath e Assia Wevill, a personagem se suicida através da inalação de gás.
	Assim, é notório que a condição de instabilidade mental de todas as personagens analisadas está necessariamente ligada ao seu gênero através dos papéis sociais que as mulheres são forçadas a assumir; no entanto, ao contrário do que uma medicina patriarcal poderia sugerir, não é algo intrínseco à sua biologia enquanto mulheres que as levam à depressão. Analisando o caso de Esther (e estendendo às outras personagens), sua doença é resultado de sua condição "não só pela sua ligação com o seu palpável medo de casar-se e ter filhos, mas pela sua paralisação (...) em relação à vida e às oportunidades que cruzam seu caminho, escolhas nas quais influi, sem dúvida, o fato de ser mulher." (DE LA ROCQUE, 2001, p. 518).
	As personagens subvertem o que se espera delas – submissão, passividade e silêncio – e redimensionam suas vozes ao rejeitar a voz masculina dominante em suas vidas, tendo em mente as particularidades de cada caso: Esther se recusa a casar e ter filhos; Laura decide acabar com o casamento; Susan rejeita o papel de mãe e de esposa (e, ao fazer isso, rejeita a própria existência); a narradora de O Papel de Parede Amarelo subverte a ordem através da escrita, ao manter um diário escondida do marido; e, com a exceção de Esther, todas abandonam os filhos, ainda que de maneiras diferentes. Há uma espécie de movimento circular e consequente que permite que elas enxerguem o absurdo da sociedade em que se encontram devido à instabilidade mental que sofrem e, ao mesmo tempo, essa instabilidade é uma das consequências das pressões sofridas por essa sociedade. A loucura é, assim, causa e consequência da subversão ao poder.
	
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Repressão dos gemidos: a sexualidade como mecanismo de controle
	Em A Redoma de Vidro, o embate entre o ímpeto de dar vazão ao desejo sexual e o medo de engravidar perpassa a narrativa de forma clara. A maternidade se apresenta como um caminho no qual ela precisaria abdicar de todas as outras possibilidades de futuro, e representaria a renúncia da carreira e da vida intelectual. Da mesma forma, Laura Brown em As Horas precisa abandonar a maternidade (e o marido) para ter não só uma carreira, mas também uma vida própria, visto que, na sociedade estadunidense da década de 1950, ser mãe e dona de casa era um "trabalho" em tempo integral, significando, quase que necessariamente, a impossibilidade de uma carreira. Apesar de Laura não “desgostar” nem do filho, ela deixa claro o quão sobrecarregada fica com a necessidade constante de ser mãe: “Por instantes, ela quer apenas ir embora – não machucá-lo, jamais faria uma coisa dessas – mas ser livre, inocente, irresponsável” (CUNNINGHAM, 2003, p. 68).
	A questão da divisão, não muito bem definida no caso dessas mulheres, entre as categorias de pessoa e persona entra mais uma vez aqui. O ato sexual, que estaria no âmbito da individualidade, se reflete diretamente num possível papel social. No entanto, apenas Esther, enquanto a única das personagens aqui analisadas que é solteira e sem filhos, traz isso como uma angústia constante, talvez também por sua juventude e curiosidade sexual. Enquanto os homens que Esther conhece podem ter uma vida sexual ativa e não necessariamente ligada ao seu papel social enquanto pai e marido, ela própria, enquantomulher, vê o sexo restrito e inexoravelmente vinculado à maternidade e ao matrimônio. 
Anne Stevenson, na biografia de Sylvia Plath, Amarga Fama, apresenta um breve pano de fundo sobre a questão sexual nos EUA da década de 1950: 
Os adolescentes americanos de classe média dos anos 50 obedeciam a um código espantoso de frustração sexual. Tudo era admissível para as moças em matéria de intimidade, menos a única coisa a que essas intimidades deveriam levar. (...) Muito ocasionalmente, relações sexuais completas podiam ocorrer por descuido; mas, em geral, se os parceiros frequentassem a mesma escola ou se considerassem subordinados às mesmas pressões morais, continham-se pouco antes delas. (MALCOLM, 2012, p. 22)
	Sexo ocupa uma parte tão importante da vida da jovem que ela chega a afirmar: "Quando eu tinha 19 anos, castidade era a grande questão. (...) Eu via as
pessoas divididas em pessoas que tinham dormido com alguém e pessoas que não tinham, e essa parecia a única diferença realmente significativa entre uma pessoa e outra." (PLATH, 2005, p. 81). Assim, ao descobrir que seu namorado já tinha tido relações sexuais com uma garçonete, Esther se enfurece com a hipocrisia de Buddy, deixando claro que não sente ciúmes e que a irritação que sente é devido ao fingimento do namorado. Esther diz:
De volta à faculdade, eu comecei a perguntar para uma veterana aqui e ali o que elas fariam se um garoto que elas conhecessem de repente dissesse a elas que ele tinha dormido 30 vezes com uma garçonete vagabunda durante um verão (...). Mas essas veteranas disseram que a maioria dos garotos era assim e que você honestamente não poderia acusar eles de nada até que vocês estivessem ao menos arranjados ou noivos.
Na verdade, não era a ideia de Buddy dormindo com alguém que me incomodava (...). O que eu não conseguia suportar era Buddy fingindo que eu era tão sexual e que ele era tão puro, quando esse tempo todo ele estava tendo um affair com aquela garçonete vadia.” (PLATH, 2005, p. 71).
	Esther decide então que fará sexo com Constantin, um homem que a mãe de Buddy Willard apresenta a ela, mas acaba desistindo em cima da hora. Antes de desistir, no entanto, ela diz que "[se] sentia perfeitamente certa do que ia fazer." (p. 80). A jovem confessa que sabia que poderia engravidar, mas que não se preocupou com aquilo naquele momento. No entanto, se lembra de um artigo que sua mãe a enviou, escrito por uma advogada, casada e com filhos, que dizia que não havia nenhum método completamente eficaz para evitar a gravidez. Esse artigo, que se chamava "Em defesa da castidade", segundo Esther, enumerava razões pelas quais uma garota só deveria dormir com seu marido, mesmo assim só após o casamento.
O ponto principal do artigo era que o mundo dos homens é diferente do mundo das mulheres, e as emoções dos homens são diferentes das emoções das mulheres, e apenas o casamento pode unir propriamente os dois mundos e os dois conjuntos de emoções. (...) Essa advogada disse que os melhores homens queriam ser puros para as suas esposas, e mesmo se eles não fossem puros, eles gostariam de ser aqueles a ensinar sobre sexo às suas mulheres. É claro que eles tentariam persuadir garotas a fazer sexo e diriam que eles se casariam com ela depois, mas assim que ela cedesse, eles perderiam todo o respeito por ela e começariam a dizer que, se ela fez aquilo com eles, ela faria com outros homens, e eles acabariam fazendo a vida dela infeliz. 
(...) Agora, a única coisa que esse artigo não me parece ter considerado era como uma garota se sentia. 
(...) Eu não conseguia suportar a ideia de uma mulher tendo que ter uma vida pura e um homem sendo capaz de ter uma vida dupla, uma pura e outra não.
Finalmente, eu decidi que se era tão difícil encontrar um homem inteligente e viril que ainda fosse puro ao chegar aos 21 anos, eu poderia também esquecer sobre eu mesma me manter pura e poderia me casar com alguém que também não fosse puro. Assim, quando ele começasse a fazer a minha vida infeliz, eu poderia fazer a dele infeliz também (PLATH, 2005, p. 81).
	É significativo que este artigo seja escrito por uma mulher casada, com filhos e, principalmente, com uma carreira, o que mostra que mesmo mulheres com alguma espécie de autonomia podem, com alguma frequência, perpetuar um discurso patriarcal de liberdade justificada para os homens e de constrição para as mulheres. É evidente que a gravidez de uma moça solteira, especialmente na década de 1950, se apresenta como uma ameaça bastante palpável a uma mulher que provavelmente teria pouca estabilidade financeira para cuidar sozinha de uma criança. No entanto, a maioria das razões enumeradas para uma mulher se manter casta é puramente moral, e a personagem, que “está presa entre os papéis de ‘Anjo do Lar’ e femme fatale” (PINHO, 2009, p. 60), passa boa parte da narrativa oscilando entre o que quer fazer e a sua obrigação moral perante as expectativas da sociedade. Ainda segundo Pinho, “Esther se identifica mormente com o papel erótico da femme fatale, precisamente por causa da sujeição da mulher virgem ao homem experiente que o casamento representava” (PINHO, 2009, p. 61). Ao fazer sexo antes do casamento – e claramente esta é uma questão muito importante para Esther -, a jovem demonstra sua tentativa de autonomia. Como ela “odeia servir homens de qualquer maneira”, o sexo se mostra como um mecanismo de não submissão. 
	No seu último dia em Nova York, numa das passagens mais emblemáticas do livro, Esther vai a uma festa e encontra Marco, conhecido de sua amiga Doreen. Após dançar com ele, Esther pergunta por quem ele está apaixonado, ao que ele responde por uma prima de primeiro grau que se tornará freira. Tentando ser compreensiva e ajudar Marco, Esther diz "Se você a ama, amará outra pessoa algum dia." Com isso, Marco a agride, a derrubando no chão:
Marco esperou até que eu estivesse meio levantada. Então colocou as duas mãos nos meus ombros e me atirou para trás. (...) 
Está acontecendo, eu pensei. Está acontecendo. Se eu só deitar aqui e não fazer nada, vai acontecer."
Marco cerrou os dentes na alça no meu ombro e rasgou meu vestido até a cintura. (...) 
"Puta" - a palavra assobiou no meu ouvido.
"Puta"
A poeira baixou, e eu tive uma visão completa da batalha. Eu comecei a me contorcer e morder.
Marco me forçou contra a terra.
"Puta."
Eu investi contra sua perna com o salto afiado do meu sapato. Ele se virou, estendendo as mãos para a ferida.
Então eu fechei minha mão e soquei o seu nariz. (PLATH, 2005, pp. 108-9)
Com o soco, o nariz do homem começa a sangrar, o que faz com que Esther consiga se desvencilhar de Marco e voltar para o hotel. A tentativa de estupro, que parte de um homem de alta classe social, reforça que, naquela sociedade, o comportamento verdadeiramente deplorável não é o do estuprador e sim o de Esther, que age como uma “puta”. Esther não comenta com ninguém sobre esse incidente e não o retoma novamente ao longo da obra, o que sugere que, talvez, ela não tenha dado a devida importância, justamente por ser um comportamento esperado dos rapazes com quem convivia.
Apesar do intenso desejo da consumação do ato sexual, quando ele finalmente ocorre há questões que impedem um prazer duradouro: Esther, assim como Sylvia, tem uma hemorragia após a primeira relação sexual. Embora em A Redoma de Vidro o caso seja contado como uma relação consensual, com a hemorragia sendo uma consequência quase esperada e natural, Sylvia confessa a sua amiga Nancy que Irwin, o homem com quem ela havia tido a relação, a estuprara. De acordo com Carl Rollyson, biógrafo de Sylvia:
Para espanto de Nancy, Sylvia continuou saindo com Irwin. (...) A concepção de abuso sexual na década de 1950 era bastante diferente das atitudes contemporâneas relativas a tal comportamento. Para os Irwins daquela época, as mulheres eram objeto de escárnio, e por culpa própria. (ROLLYSON, 2015, p. 119)
	Algum tempo depois, já internada no manicômio, Esther diz em uma das consultas com a dra. Nolan, sua psiquiatra,que odeia a ideia de estar sob o controle de um homem. "Homens não têm uma preocupação no mundo, enquanto eu tenho um bebê pairando sobre a minha cabeça (...) para me manter na linha." (p. 221) Esther diz a Nolan que agiria de forma diferente se não tivesse que se preocupar com um bebê.
	Num ato de libertação sexual, Esther decide então colocar um diafragma: "Eu subi na mesa de exame pensando: 'Estou alcançando a liberdade, estou livre do medo, livre de casar com a pessoa errada, como Buddy Willard, só por causa do sexo (...). Eu era dona de mim mesma. O próximo passo era encontrar o certo tipo de homem’.” (p. 223). Se libertar sexualmente, para Esther, significa não ter que se subjugar a nenhum homem ou regra moral e social: ela era a própria dona, estava no controle de seu corpo.
	É altamente contraditória a forma como sexo, desejo e maternidade se relacionam numa sociedade patriarcal, e Plath representa bem essa confusão em A Redoma de Vidro. Ao mesmo tempo em que a maternidade paira como uma assombração acima do sexo pré-marital, a partir do momento em que uma mulher é mãe, a maternidade de certa forma mataria o desejo do sexo – tanto nos homens, que se desinteressariam pelas esposas, como nas próprias mulheres, que passam a ser vistas como puras (desde que casadas). Curiosamente, as traições que vieram à tona de Ted Hughes, tanto a Sylvia como a Assia, surgiram depois que ambas já eram mães. 
Assim, a pureza nas mulheres, propagada como algo a ser buscado, é atingida e perpetuada de duas formas, ligadas: com a virgindade e a maternidade (depois do casamento). É como se o sexo fora do casamento fosse associado a um desejo genuíno, enquanto o sexo marital se resumisse a uma mera conveniência. Dessa forma, não é o sexo em si que se apresenta como um problema à pureza, e sim o tabu do desejo sexual feminino.
	Mesmo que Esther busque romper com essa visão ao usar um diafragma e se posicione de forma bastante contrária a se casar e ter filhos, Assia Wevill é ainda mais transgressora: ao se divorciar e abortar três vezes, tendo uma filha bastarda com um homem com quem não é casada, Wevill subverte de forma mais potente a ideia de pureza. Ao se recusar, consciente ou inconscientemente, a se encaixar no arquétipo da esposa dócil, submissa e pura, Assia é frequentemente enquadrada em outros dois modelos: o da femme fatale e o da other woman, a “outra”, com uma identidade sendo estereotipada ainda em função da sua relação com um homem, e muito claramente em função do sexo. Por ter uma filha fora do casamento, a maternidade aqui não anula o desejo. Entretanto, há que se levar em conta que, como especulado anteriormente, a sociedade não só recrimina Assia por ter uma filha fora do casamento, ainda que tenha morado durante muito tempo com Hughes, como também cria empecilhos práticos em sua vida por ser uma mãe “solteira”: vendo que não ia receber muito apoio financeiro e emocional de Hughes, Assia chegou, a fim de encontrar uma figura paterna para Shura, a contatar agências de namoro (KOREN; NEGEV, 2007, p. 192). 
Assia se divorciara três vezes (para usar uma metáfora de Plath, poderia se dizer que "devorava homens como o ar"), mas nos textos sobre Sylvia que mencionam Assia, pouco se fala do contexto de seus casamentos ou do significado do matrimônio e do divórcio nas décadas entre 1940 e 1960. Apesar da traição de Assia com David Wevill (que seu segundo marido, Dick Lipsey, tinha conhecimento e não se aborrecia como se poderia imaginar), o casamento entre os dois acabou por "incompatibilidade e estranhamento", o que, na Grã-Bretanha da época, não era razão legal para pedir o divórcio (KOREN; NEGEV, 2007, p. 72). "A corte exigia prova irrefutável de alguma ofensa matrimonial: isto é, crueldade, abandono ou adultério. Assia concordou em escrever um relatório detalhado de seu affair com David Wevill, fornecendo lugares e datas em Cambridge e Londres onde o adultério aconteceu." (KOREN; NEGEV, 2007, p. 72). Para poder se divorciar do primeiro marido, John Steele bancou a parte culpada: precisou ir a um hotel encontrar uma moça arranjada pelos advogados para ser "flagrado" traindo Assia. [5: “And I eat men like air”. Lady Lazarus. In: Ariel: The Restored Edition. 2004, p. 17. Tradução minha. ]
	"Assia não desejava buscar objetivos fixos (...). Ela queria abrir tantas portas quanto pudesse para experiências intelectuais e entusiasmos." (KOREN; NEGEV, 2007, p. 47), o que lembra bastante a célebre metáfora da figueira em A Redoma de Vidro. Para uma sociedade machista, é ameaçador o comportamento independente de Assia. Em vez da espécie de súcubo que enfeitiça homens, Assia seria melhor descrita simplesmente como uma mulher independente e corajosa, que preferiu se divorciar três vezes a se manter em casamentos infelizes e a abortar três vezes, numa época em que divórcios e abortos tinham um peso e um estigma social muito maiores que atualmente.
25
A tentativa da fala: a expressão feminina através da literatura
As mulheres (...) não tinham espaço psicológico para fazê-lo [desenvolver sua criatividade literária], pois sua vida era tomada pelas tarefas domésticas, altamente necessárias à manutenção do poder patriarcal (...). Não é de se espantar, portanto, que muitas mulheres enlouquecessem, submetidas à camisa de força da sujeição e da repressão de seus talentos naturais. (DE LA ROCQUE; HARRIS, 2006, p. 197) 
	Assim como O Papel de Parede Amarelo, de Charlotte Perkins Gilman, outra narrativa autoficcional que trata da instabilidade mental, escrita por uma mulher, A Redoma de Vidro é contada em primeira pessoa. Se por um lado isso reforça a indissociabilidade entre autora e personagem, por outro mostra o desejo de Plath de que Esther Greenwood fale por si mesma, e não através de um narrador "imparcial" que, ainda que onisciente, possa de alguma forma tolher a sua voz. 
	Além de poemas, contos e de seu único romance, Sylvia escreveu uma grande quantidade de diários, que manteve de 1950 a 1963 (dos seus 18 anos aos 30). O que mais impressiona em seus diários não é a semelhança entre o que ela escreve lá e o que publica como "ficção", mas sim a qualidade literária dos seus escritos. Muito provavelmente, Sylvia escreveu aqueles diários não somente como treino para sua obra, mas também para serem lidos. Dessa forma, toda a sua obra em primeira pessoa é uma expressão da própria voz. 
	Quando Plath se suicidou, em 11 de fevereiro de 1963, não havia ainda se divorciado oficialmente de seu ex-marido, o também poeta Ted Hughes; assim, todo o seu espólio ficou nas mãos de Owlyn Hughes, cunhada de Sylvia que, pelo que fica claro nas biografias, não gostava muito da esposa do irmão. Após o suicídio de Plath, houve as mais diversas tentativas de calar a voz que Sylvia deixara através de sua obra, inclusive a destruição de seu último diário por Ted. Se, por um lado, levarmos em conta que este cobre o período da traição de Hughes e sua subsequente depressão e, por outro, analisarmos o tom ácido que ela usa para descrever seus amigos e familiares em A Redoma de Vidro e até mesmo em outras partes de seus diários, podemos supor que seus últimos diários sejam [6: Segundo Janet Malcolm, Owlyn julgava Plath “uma poetisa brilhante, mas uma pessoa cansativa e detestável” (MALCOLM, 2012, p. 87).]
bastante duros com Hughes e talvez até com os filhos, visto que provavelmente ela os tenha escrito com menos filtros que seu romance. Hughes, na primeira versão do prefácio que escreveu para Os Diários de Sylvia Plath, publicado em 1982, escreve:
Esta seleção contém talvez um terço do volume total (...). Dois outros cadernos sobreviveram por algum tempo, livros-razão encadernados em couro marrom como o volume de 57 a 59, e cobrem o período que vai de fins de 59 até três dias antes de sua morte. O último deles continha entradas escritas ao longo de vários meses e eu o destruí porque não queria que os filhos dela fossem obrigados a lê-lo (naquele momento, eu considerava o esquecimento parte essencial da sobrevivência).O outro desapareceu. (MALCOLM, 2012, p. 11. Grifo meu)
	Além de serem obras artísticas em si, os diários lançam luz ao processo de escrita de Plath e ao próprio conteúdo de suas obras "ficcionais". É um consenso entre os biógrafos que Sylvia passou por um período bastante profícuo, de intensa criatividade e produção, nos meses anteriores à sua morte (sua obra-prima, Ariel, foi escrita nesse período). Podemos inferir, assim, que seus diários deste período não só expressariam o turbilhão de emoções que ela estava vivenciando no momento, mas também apresentariam uma grande qualidade artística. Desta forma, a destruição de seu último diário, de toda sua expressão nos seus últimos meses de vida é uma tentativa de tolher uma voz que, devido à dor intensa que provavelmente estaria sentindo, se via livre de freios morais. 
	Em O Papel de Parede Amarelo (publicado pela primeira vez em 1891), a escritora americana Charlotte Perkins Gilman conta a história de uma mulher que, sofrendo possivelmente de uma depressão pós-parto, é levada para uma casa de campo pelo marido, um médico, para que descanse e melhore. Apesar de ser proibida de escrever ou de exercer qualquer atividade intelectual que a possa "perturbar" mais, ela mantém um diário escondido, onde relata o que sente e como vai piorando seu estado mental mesmo sob os cuidados médicos do marido - e, por um lado, ainda que o marido não tenha consciência ou intenção, ele é certamente uma das causas da piora no quadro clínico de sua mulher. 
	Sobre isso, Roberto Ferreira Junior desenvolve:
A relação dessa personagem com o próprio marido, no conto de Gilman, revela a impotência das mulheres do século XIX em negociar espaço e poder decisório com seus esposos. A personagem principal, que nem mesmo possui um nome, é incapaz de realizar seus desejos e tomar suas próprias decisões, sendo muitas vezes tratada pelo marido como se fosse uma criancinha indefesa e mimada. Um de seus atos de resistência às regras impostas pelo cônjuge é continuar escrevendo. (JUNIOR, 2006, p. 193)
É significativo que John, o marido da personagem principal, tenha nome, mas a narradora não. Em muitos dos casos, a falta de nome de um personagem mostra a sua desimportância perante a sociedade em que se encontra. Aqui, apesar de seu anonimato se encaixar na falta de voz que ela tem, outras duas possibilidades de análise se mostram plausíveis: Gilman pode não ter dado um nome para a narradora já que, como a história é autoficcional, a personagem é ela própria; a outra opção para a não identificação é que, desse modo, a história amplia seu potencial de alcance e identificação por parte do leitor.
	Neste conto, Gilman defende a escrita como única voz possível para uma mulher daquela época, voz que, ainda que escondida, pode ser encontrada muito tempo depois (neste sentido, voz como a possibilidade de falar e ser realmente ouvida). Marcia Tiburi indica uma peculiaridade na expressão da narradora que demonstra como a repressão de sua voz a afeta: "As frases curtas e picadas, a brevidade dos parágrafos, que muitas vezes consistem em apenas uma ou duas frases, transmitem o estado mental tenso e angustiado da narradora.” (GILMAN, 2016, p. 88) Mesmo transtornada, com uma voz fraca e potencialmente confusa, a personagem escreve e projeta sua voz.
 Numa sociedade em que a mulher se resume a seus papéis sociais, a escrita se apresenta como o lugar do desenvolvimento da individualidade e da identidade. Como espaço de autorreflexão e autodescobrimento, a escrita permite uma fuga momentânea, em direção a si próprio, da necessidade de desempenho das funções sociais – talvez isso explique de certa forma o surto de criatividade que Sylvia Plath experienciou após a separação com Ted Hughes. Segundo Pinho, “seria impossível separar Plath de Esther: ambas fazem da criatividade, da morte do corpo e do discurso livre dos neuróticos seus atalhos rumo à subjetivação” (PINHO, 2009, p. 69) A loucura ou a instabilidade mental permitem uma maior liberdade de expressão e autorreflexão que as encaminha à subjetivação. A narrativa então se apresentaria como “cura” não em um sentido tradicional de solução favorável e satisfatória da questão, mas como um caminho em direção a uma saída viável. A cura que a literatura – tanto a escrita quanto a leitura – traz para Sylvia, Esther, Laura e a narradora de O Papel de Parede Amarelo não é a saúde de seus corpos físicos, mas sim uma saída à situação mentalmente insalubre em que vivem. Assim, a cura pode, inclusive, piorar o estado de instabilidade mental das mulheres, na medida em que fornece uma solução que, em muitos casos, pode se dar através da morte.
Evidentemente, nos setenta anos seguintes à publicação de O Papel de Parede Amarelo, o lugar das mulheres na sociedade mudou e suas vozes foram um pouco ampliadas, mas esta questão da escrita como um lugar da voz feminina permanece. Os diários de Sylvia eram sua voz mais livre e com menos amarras; mesmo que fosse apenas para proteger os filhos dos comentários da mãe, Ted sem dúvidas calou Plath ao destruir o diário que continha escritos dos seus dois últimos anos de vida.
	Não podemos perder de vista que Sylvia, assim como qualquer outra pessoa, possuía vozes múltiplas dentro de si para se constituir e, ao mesmo tempo, que várias vozes diferentes de biógrafos, críticos, leitores, familiares e amigos também constituem a imagem que temos de Sylvia hoje. Eu diria que é praticamente impossível ser neutro em relação a Plath e a Hughes, pois qualquer pessoa que estude a vida e a obra de Sylvia se depara com este conglomerado de vozes que tentam definir a autora. Assim, ao ler sobre seu suicídio em biografias, por exemplo, o leitor é quase sempre convidado a tomar partido e escolher o lado de Plath contra o marido. Sobre isso, Jacqueline Rose diz: “Tudo o que foi escrito sobre a vida de Sylvia Plath, tanto por ela própria quanto pelos que a conheceram, torna imperioso para cada um de nós – e ao mesmo tempo nos impossibilita – escolher um lado” (MALCOLM, 2012, p. 192).
	Conforme pesquisadores decidiram escrever biografias de Sylvia, começou uma nova tentativa de calar a voz da autora. Owlyn Hughes, visando proteger o irmão, impediu muitos biógrafos que gostariam de usar trechos de obras de Sylvia em biografias que não seguiriam suas ordens. Curiosamente, a mais famosa entre as biografias autorizadas, Amarga Fama, de Anne Stevenson, é tida entre os críticos como uma biografia ruim, provavelmente pelos incontáveis cortes que Owlyn fez. 
	Em Lover of Unreason: Assia Wevill, Sylvia Plath's Rival and Ted Hughes’ Doomed Love (KOREN; NEGEV, 2007), única biografia de Assia, e nas biografias de Sylvia ocorre o mesmo fenômeno: uma multiplicidade de vozes fala sobre e por Assia, e pouquíssimas vezes ouvimos a voz de Assia de fato. Aqui, no entanto, a tentativa de calar Assia ao falar por ela é ainda mais cruel que nas biografias de Sylvia, pois ela é retratada sob um ponto de vista praticamente unânime como uma pessoa detestável, fútil, preguiçosa e com caráter dúbio, "com temperamento volátil e levemente neurótica" sendo elogiada apenas no que se refere à sua beleza (KOREN; NEGEV, 2007, p. 188). Se nas biografias de Plath há excertos dos seus numerosos diários, cartas, poemas e contos, no caso de Assia há poucos trechos de diários e são poucas as cartas, partes em que podemos ouvir sua voz diretamente. É evidente que Assia, não sendo uma poeta publicada ou artista célebre, tenha menos material para se buscar informações, ou, ainda que se tenham as informações biográficas, restem grandes lacunas quanto ao que ela sentia e pensava. No entanto, parece que as memórias dos entrevistados, que conviveram com Assia, foram modificadas e editadas (por eles mesmos ou pelos biógrafos) para corroborar com a imagem que foi popularizada - a sedutora insensível que "roubou" Ted Hughes de Sylvia Plath. 
Roberto Ferreira Junior, em As mulheres progressistas de Charlotte Perkins Gilman, trata a “impossibilidade/ interdição do ato de escrever (...)como exemplo da dificuldade feminina de se representar e, portanto, de se comunicar com os donos do poder” (JUNIOR, 2006, p. 193). O esforço de Sylvia e da narradora de O Papel de Parede Amarelo em continuar escrevendo, apesar dos filhos, dos maridos e das condições que se mostram desfavoráveis ao desenvolvimento da criatividade, mostra a necessidade que ambas sentem em se representarem, ainda que ninguém leia. O simples ato da enunciação, em um primeiro momento, já é o suficiente. Elas se comunicam com os donos do poder justamente enquanto literatura, quando o eco de suas vozes amplificadas pelas publicações atinge também aqueles que contribuem para perpetuar o poder masculino.
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Bramidos de liberdade: a tragédia e o escape do papel social
 
	Lúcia de La Rocque, em seu ensaio Médicos e Monstros: a mente feminina à mercê do controle patriarcal da medicina em The Bell Jar, traz a questão dos romancistas brasileiros naturalistas, que "associam a loucura de suas protagonistas à 'fúria do útero'"; "o destino destas mulheres sexualmente descontroladas, segundo a visão dos autores, é o encarceramento ou a morte, a não ser que sejam redimidas através de um casamento convencional ou da maternidade." (DE LA ROCQUE, 2001, p. 515). Ainda que Esther e as outras personagens femininas aqui analisadas estejam longe de serem "sexualmente descontroladas", é impressionante como este ultimato parece reger a vida de todas elas. Troquemos o "descontrole sexual" aqui por "insubordinação à opressão": Esther, se recusando a aceitar sem questionamentos a opção de ser mãe e esposa, tenta a morte e, depois, é encarcerada num manicômio; Susan, de O Quarto 19, tenta primeiro o casamento convencional e a maternidade, mas prefere a morte; a narradora de O Papel de Parede Amarelo, sofrendo de uma depressão pós-parto e enlouquecendo pouco a pouco, é encarcerada em seu quarto; Laura Brown, de As Horas, é a única que parece conseguir se desvencilhar - cogita a morte como escape da maternidade e do casamento, mas consegue evitar o suicídio ao fugir da vida de dona de casa, esposa e mãe. Num trecho do filme As Horas, Laura diz:
Eu deixei meus dois filhos. Eu os abandonei. Dizem que é a pior coisa que uma mãe pode fazer. (...) Há momentos quando você acha que você não se encaixa, e você acha que vai se matar. Uma vez, eu fui a um hotel. Mais tarde naquela noite, eu fiz um plano. O plano era que eu deixaria minha família quando minha segunda filha nascesse, e foi o que eu fiz. Eu me levantei uma manhã, fiz o café, fui até o ponto de ônibus e peguei o ônibus. Eu deixei um bilhete. Arranjei um emprego numa biblioteca no Canadá. Seria maravilhoso dizer que me arrependi. Seria fácil. Mas o que significaria? O que significa se arrepender quando você não tem escolha? É o que você consegue suportar. É isso. Ninguém vai me perdoar. Aquilo era a morte. Eu escolhi a vida. (HORAS, As. Direção de Stephen Daldry. Imagem Filmes, 1 DVD. 115 min).
	Quando Laura diz que “aquilo” – os filhos, o marido, a vida como dona de casa – seria a morte, ela apresenta a chave para tentar compreender algumas das personagens analisadas, principalmente Susan. Laura deixa claro que não “desgosta” nem do filho nem do marido, e a causa do abandono não é esta; Brown 
os abandona porque o fardo de seus papéis sociais anula completamente sua individualidade. Viver daquela forma significaria se resumir a uma existência entorpecida, sem possibilidade de desenvolvimento pessoal, o que seria equivalente a uma morte em vida – e a morte do corpo se mostra como a única possibilidade de saída para Rawling. Laura encontra uma alternativa, da qual não se arrepende, mas esta não se aplica a Rawling talvez por ela não ter uma individualidade significativa o bastante para se sustentar sozinha sem o marido e os filhos. 
Laura, ao chegar ao hotel, demonstra grande nervosismo, e tudo o que ela sente e descreve se assemelha à tensão de um encontro – ainda que seja um encontro consigo mesma. É este encontro que a salva tanto da morte de seu corpo quanto da morte em vida de continuar desempenhando os papéis que ela não podia mais suportar. Quando Susan vai ao hotel e se encontra consigo mesma, no entanto, o que encontra é o vazio.
	Tendo As Horas sido publicado em 1998, é difícil imaginar que a escolha do número do quarto de hotel em que Laura se hospeda tenha sido ao acaso - ela fica no quarto 19, o número do quarto que dá nome ao conto de Doris Lessing (o conto foi publicado em uma coletânea homônima em 1978). Assim, se estabelecem ainda mais paralelos entre Laura Brown e Susan Rawling. A narradora de O Papel de Parede Amarelo, apesar de não estar num hotel, também está numa casa que não é a dela. Esther Greenwood também diz que cogita alugar um quarto para se suicidar, mas acaba ingerindo comprimidos para dormir e se esconde embaixo da casa esperando fazer o efeito (metaforicamente, é como se ela sentisse o peso do lar a esmagando). Assia Wevill e Sylvia Plath, ainda que não estejam hospedadas em nenhum lugar, cometem o suicídio em apartamentos que tinham alugado há poucos meses. Ou seja, todas precisam sair do lar – ou não ter um lar, esse lugar onde exercem o papel social de mãe e esposa – para poderem entrar em contato consigo mesmas através de uma perspectiva de futuro que inclui a loucura, o suicídio ou o abandono de toda família e familiaridade. Segundo Claudia Chigres:
Sair de seu "lugar" favorece uma suspensão das relações cotidianas – nas quais, de certa forma, alienamos ou naturalizamos nossas percepções pelo hábito. Quando o hábito é rompido por qualquer motivo (lembre-se de Beckett – dor ou tédio), uma outra forma de ver/sentir/experimentar as coisas e a nós mesmos acontece. Mas não dura muito, pois nossa tendência é reestabelecer o hábito, pois esse, se de um lado nos aliena, por outro nos conforta. Talvez a quebra continuada do hábito, ou a não garantia de sua reestruturação, acabe por provocar a possibilidade do suicídio. (Comunicação pessoal, 2016)
No caso de Esther, há duas possibilidades de leitura do final. Se focarmos apenas no que nos é contado em A Redoma de Vidro, podemos entender que Esther tem alta do manicômio e se salva da morte. No entanto, por ser muito jovem ainda, não podemos dizer que esta é uma salvação definitiva – e o fato de termos acesso ao futuro de Laura Brown após ela abandonar a família é notório, já que ela é a única que escapa efetivamente da loucura e da morte, ainda que não da tragédia. É como se fosse realmente necessário mostrar que Laura não sucumbiu depois de algum tempo. Não temos, no entanto, nenhum indicativo na própria história do que acontece no futuro de Esther. Ela pode ter se casado, pode ter tido sete filhos como Dodo Conway, pode ter conciliado bem a carreira com a vida conjugal ou pode ter sucumbido às pressões que a deixaram tão ansiosa e deprimida em sua juventude.
Há, ainda, outra possibilidade de análise: sabendo que Esther foi construída baseada em experiências de Sylvia, podemos ver a vida de Plath como o futuro de Esther, como a continuação da obra. Sob esta perspectiva, Esther se casa, tem filhos e concilia a vida domiciliar com uma carreira como professora e poeta, mas sucumbe à tragédia da mesma forma com o suicídio. Como A Redoma de Vidro é publicado na Inglaterra um mês antes da morte de Sylvia, há que se fazer um esforço para não encarar a morte de Sylvia/Esther como o desfecho natural e extradiegético do livro.
	Segundo Carl Rollyson, Sylvia “sempre (...) retornara ao suicídio como um ato singular e à morte como uma espécie de salvação. (...) Por meio do suicídio, Plath finalmente encontrou uma maneira de recuperar a si mesma” (ROLLYSON, 2015, pp. 305-6). Da mesma forma, Esther só encontrara seu sujeito à beira da morte. Ela demonstra uma “incapacidade de interpretar seu papel enquanto mulher numa sociedade patriarcal” (PINHO, 2009, p. 64), e a morte se apresenta como saída porque é preciso matar o corpo feminino, o corpo dócil, virgem, que se submete ao homem, o corpo quegera o filho, que a faz mulher e a faz ser submetida a diversas situações desagradáveis. Ao mesmo tempo em que a morte se faz imperativa, Esther tem consciência de que o corpo é apenas parte do problema: “É como se o que eu quisesse matar não estivesse naquela pele ou no pulso azul e fino que pulava sob meu polegar, mas em algum outro lugar, mais fundo, mais secreto, e bem mais difícil de atingir” (PLATH, 2005, p. 147). Pinho diz a redoma de vidro que paira ao redor de Esther a impede de quebrar a tradição e viver a infração pela qual ela tanto ansiava. “Ela chega à conclusão de que independentemente de onde se encontre, ela estaria sempre presa nesta redoma” (PINHO, 2009, p. 62).
Analisando a morte do hábito pela dor, que propicia a reflexão sobre os papéis sociais, pensamos no impacto da traição de Hughes em Sylvia. Após ser traída, Sylvia intensifica o processo de reflexão através da escrita e, ao mesmo tempo, abandona, de certa forma, seus papéis sociais. Pouco antes de morrer, Sylvia havia dito para a mãe, segundo Rollyson, que “havia se dado conta de que perdera sua ‘identidade sob o peso das decisões e responsabilidades do último semestre, com as crianças demandando sem cessar’. (...) Ele [Ted Hughes] não estava lá para ajudá-la e passara a representar o homem ausente” (ROLLYSON, 2015, p. 295). Ainda de acordo com Rollyson:
A partir do momento que arrancou o fio do telefone da parede, Sylvia declarou guerra aberta. A esposa que havia posto o marido em primeiro lugar, garantindo que ele disputasse concursos de poesia, sido cozinheira e arrumadeira, deixado a carreira em suspenso e criado os filhos do casal, sumiu. (ROLLYSON, 2015, pp. 282-3)[7: Sylvia descobriu a traição ao ouvir acidentalmente uma conversa de Ted com Assia pelo telefone. Depois disso, Sylvia arrancou o telefone da parede.]
	Até mesmo Assia, que, conscientemente ou não, resistiu tanto contra pressões sociais, sucumbiu no fim. No dia 23 de março de 1969, após uma briga com Ted Hughes, Assia ingeriu barbitúricos e álcool e se deitou, com Shura, em frente ao forno aberto, inalando gás – a mesma forma como Sylvia Plath se suicidara seis anos antes. Na sua carta de suicídio, dirigida ao pai, Assia descreve seu desespero com a sua situação e diz: "Sem marido. Sem um pai para Shura." (KOREN; NEGEV, 2007, p. 204). Isso demonstra que a questão do matrimônio e da maternidade foram relevantes para a sua morte, por mais que ela tenha conseguido lidar relativamente bem com isso durante os anos anteriores. Um pouco adiante, Assia escreve: "Eu tenho vivido no sonho de morar com Ted – e isso acabou. (...) Nunca poderia haver outro homem para mim. Nunca. (...) É necessário saber quando não há mais vida a viver." (KOREN; NEGEV, 2007, p. 204). Esta declaração indica que, para Assia, a vida só valeria se fosse com Ted, o que é mais um indicativo da presença necessária de um homem para uma mulher se sentir satisfeita e feliz – adicionando-se aí as dificuldades de ser uma mãe solteira na década de 1960. Segundo Koren e Negev, "relatórios de polícia mostram que, em 1969, aproximadamente duas mil mulheres se mataram no Reino Unido, a maioria solteiras, separadas, divorciadas e viúvas" (KOREN; NEGEV, 2007, p. 214).
	Apesar de seu suicídio só ter ocorrido em março, a carta para seu pai tinha sido escrita em janeiro, o que indica que seu suicídio e a morte de Shura não foram atos impensados e impetuosos. Além disso, "o uso de múltiplos métodos [de suicídio] indica que não havia volta, e que ela não desejava ser salva" (p. 205), ao contrário de Sylvia Plath, que muito provavelmente esperava ser encontrada ainda com vida – Carl Rollyson diz que “sabendo que uma enfermeira chegaria pela manhã, é possível que Plath esperasse ser salva” (ROLLYSON, 2015, p. 305). Assia diz ainda na carta: "Por favor, não ache que eu sou louca, ou que eu fiz isso em um momento de insanidade. (...) E eu não podia deixar a pequena Shura sozinha. Ela é velha demais para ser adotada." (p. 205) Shura, sua filha, levava o sobrenome de seu marido – Wevill –, mas Assia afirmava que ela era filha de Hughes. Apesar disso, Ted raramente falava sobre esta filha aos amigos e pais em cartas, e, consequentemente, Assia imaginava – talvez com razão – que Hughes não fosse cuidar da filha. Segundo Koren e Negev: 			
Apenas uma vez na sua extensa correspondência com seu irmão Gerald ele mencionou Shura (...), descrevendo o quanto ele precisava de uma babá para seus filhos, como a que Assia tem para 'a garotinha dela'. 'Dela', não 'nossa'. (...) Nos 	poucos poemas póstumos que ele escreveu sobre Assia e mencionou Shura, ele se referiu a ela como filha apenas de Assia, nunca "minha", ou "nossa", ou pelo seu nome. (...) O fardo de cuidar da menina, emocionalmente, fisicamente e financeiramente, sempre foi somente dela. Ela estava certa de que, com ela morta, Shura seria uma criança de segunda classe na casa de Hughes. (KOREN; NEGEV, 2007, p. 213)
	Segundo o psiquiatra forense Philip Resnick, existem cinco tipos de filicídio: por altruísmo, como resultado de psicose aguda, por ser uma criança indesejada ou bastarda, como resultado de maus tratos ou por vingança, para fazer a mãe ou o pai sofrer. De todos, o mais recorrente é o altruísta. Mesmo sabendo que "matar é legalmente errado", a mãe acredita que "deixar a criança sozinha no mundo, e sem mãe, ainda por cima, seria mais terrível que o assassinato" (KOREN; NEGEV, 2007, p.213). Esta parece, sem dúvida, a motivação pela qual Assia matou a filha. 
	É muito próvavel que, por mais que Sylvia tivesse uma propensão a crises depressivas, a forte depressão que a acometeu tenha sido resultado da traição de Hughes e subsequente separação do casal. Isso, no entanto, não transforma Hughes ou Assia em culpados pelo suicídio de Plath. Porém, poderíamos nos questionar se caso Sylvia não visse Hughes de forma tão romantizada e dependente - ou se não fosse socialmente ameaçador para uma mulher ser mãe solteira e divorciada - ela não disporia de mais apoio e condições para lidar com o fim do casamento. Como pessoa e persona se misturam muito mais no caso das mulheres numa sociedade patriarcal, a identidade é construída em função de ser esposa e em ser desejada por um homem. A partir do momento em que o papel social não cabe mais, a identidade entra em conflito. Assim, há duas possibilidades: a tentativa de fuga do papel social ou a anulação da identidade, do eu, da pessoa: a morte.
	Se por um lado Ted não pode ser considerado o culpado das mortes de Assia e Sylvia, por outro, ele se mostrou bastante desrespeitoso à memória de suas duas companheiras. Assia deixou claro que desejava ser enterrada em qualquer cemitério do interior da Inglaterra; Ted, no entanto, decidiu que ela seria cremada, numa cerimônia cristã (ainda que Assia fosse judia). Além disso, apesar de ter escrito um testamento, Assia não o assinou, o que o tornava inválido. Por não ser seu marido, "Ted não tinha nenhum direito legal, mas mesmo assim Hughes foi quem assumiu tudo e decidiu o que deveria ser feito" (KOREN; NEGEV, 2007, p. 209). Isto demonstra que, mesmo após a morte, a mulher muitas vezes continua sob o domínio do marido, ou seja, talvez nem a morte se configure como uma libertação eficaz do poder masculino.
	Mesmo dizendo que Assia foi sua "verdadeira esposa e a melhor amiga" que teve (p. 214), Hughes fez questão de perpetuar a imagem de Assia como uma sedutora pérfida. Em 1990, escreveu Capriccio, uma coletânea de 20 poemas sobre Assia que foi publicada em apenas 50 cópias, onde "não há menção da sua própria força destrutiva, e Assia é culpada por conscientemente se queimar na pira funerária de Sylvia" (KOREN; NEGEV, 2007, p.216). Ainda Koren e Negev, enquanto tentava se esquivar de biógrafos (p.217), 
Hughes começou a compor uma nova versão em versos para a posteridade. Ele começou com Capriccio e depois com Cartas de Aniversário. (...) Ele se dissociou dos dois suicídios e usou as mesmas razões para as decisões de ambas as mulheres em acabar com suas vidas: um

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