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INSTITUTO DE ENSINO SUPERIOR DO ESPÍRITO SANTO FACULDADE DO ESPÍRITO SANTO – UNES CURSO DE DIREITO BRUNO MARTINS RIBEIRO BASTOS VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM COMO FATOR DE RESPONSABILIDADE CIVIL EM DECORRÊNCIA DO ABUSO DE DIREITO CACHOEIRO DE ITAPEMIRIM 2013 BRUNO MARTINS RIBEIRO BASTOS VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM COMO FATOR DE RESPONSABILIDADE CIVIL EM DECORRÊNCIA DO ABUSO DE DIREITO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Direito da Faculdade do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Esp. André Fachetti Lustosa CACHOEIRO DE ITAPEMIRIM 2013 BRUNO MARTINS RIBEIRO BASTOS VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM COMO FATOR DE RESPONSABILIDADE CIVIL EM DECORRÊNCIA DO ABUSO DE DIREITO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Direito da Faculdade do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito. Aprovado em 09 de julho de 2013. COMISSÃO EXAMINADORA _____________________________________________ Profº. Esp. Ricardo da Silva Malini Presidente _____________________________________________ Profº. Esp. Eduardo Cavalcante Gonçalves _____________________________________________ Profª. Esp. Marcela Clipes Dedico à minha Sara, amor e inspiração, companheira de todos os momentos, incentivo e apoio em todos os desafios, presença marcante, sabedoria incomum; e às nossas pequenas e amadas Cléo e Malú, frutos desse amor, nascidas ao longo dessa caminhada; fontes constantes de energia e motivação para galgar novos desafios. AGRADECIMENTOS O agradecimento especial ao mestre e amigo André Fachetti. Seu entusiasmo e o amor com que se dedica a tudo o que faz, torna o aprendizado instigante e prazeroso. André, você é peculiar, inspiração para o bem e estímulo à competência. Agradecimento também especial à minha família: Sara, peça fundamental nessa conquista, em quem encontrei apoio e incentivo desde o momento em que cogitei pela primeira vez buscar essa nova profissão. Nessa caminhada, vários foram seus papeis, seja como companheira e confidente, como amiga e conselheira ou ainda como a professora exemplar que foi, é e sempre será; Aos meus pais, irmãos, cunhadas, sogro e sogra; e, principalmente, às pequenas Cléo e Malú, presentes de Deus em nossas vidas, recebidos no decurso dessa jornada. Agradeço ainda aos companheiros de caminhada, amigos conquistados ao longo desses cinco anos de convívio quase que diário, e que dificilmente sairão de minha memória; e aos professores, peças essenciais nessa trajetória; muitos deles, amigos adquiridos. E por fim, mas não menos importante, agradeço a Deus pela oportunidade do aprendizado, por todas as pessoas mencionadas e pela sabedoria, discernimento e saúde com que me contempla. Que venham os novos desafios! "Talvez não tenhamos conseguido fazer o melhor, mas lutamos para que o melhor fosse feito, não somos o que deveríamos ser, não somos o que iremos ser, mas graças a Deus não somos o que éramos." Martin Luther King BASTOS, Bruno Martins Ribeiro. Venire contra factum proprium como fator de responsabilidade civil em decorrência do abuso de direito. 2013. Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Direito – Faculdade do Espírito Santo, Cachoeiro de Itapemirim, 2013. RESUMO Quando um indivíduo, em uma determinada relação extracontratual, comporta-se de maneira tal capaz de gerar certa expectativa em outra parte em relação à realização de um negócio futuro ou à manutenção de um atual e, posteriormente, age de forma contraditória ao primeiro comportamento, independentemente se de boa ou má-fé, frustrando a expectativa inicialmente criada, incorre no venire contra factum proprium. Por certo, com o comportamento posterior contraditório, há violação a um dos deveres anexos oriundos da boa-fé objetiva que orbita a conduta primária, acarretando dano à parte confiante. Mas não há previsão legal específica de responsabilização suplementar em tal circunstância, visto que o tema ainda é muito recente no ordenamento jurídico brasileiro. Contudo, embora o ponto em questão não reste tipificado em lei, existe vasta construção doutrinária e jurisprudencial atinente e que, na prática, adotam a violação do princípio da Boa-fé Objetiva (trazido pelo Código Civil de 2002) como fundamento suficiente para responsabilizar civilmente aquele que fere os padrões de lealdade e honestidade que se espera das partes que se relacionam. Na doutrina o referido estudo é conhecido por Teoria dos Atos Próprios. Este trabalho irá abordar estas construções doutrinárias e jurisprudenciais; em especial, o instituto do venire contra factum proprium como fator de responsabilidade civil em decorrência do abuso de direito. Palavras-chave: Venire contra factum proprium. Teoria dos Atos Próprios. Responsabilidade Civil Extracontratual. Boa-fé Objetiva. Teoria do Abuso. BASTOS, Bruno Martins Ribeiro. Venire contra factum proprium como fator de responsabilidade civil em decorrência do abuso de direito. 2013. Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Direito – Faculdade do Espírito Santo, Cachoeiro de Itapemirim, 2013. ABSTRACT When a person, in a determined extra contractual relationship, behaves in a manner capable of generating certain expectation elsewhere regarding the future performance of a business or maintaining a current and subsequently acts contradictory to the first behavior, regardless of whether good or bad faith, thwarting expectations initially created, incurs the venire contra factum proprium. Certainly, with the subsequent behavior contradictory, there a violation of the duties attached from the objective good faith orbiting the primary duct, causing damage to the relying party. But there is no specific statutory accountability further in this condition, since the theme is still very new in the Brazilian legal system. However, although not the point at issue remains typified by law, there is extensive construction doctrinal and jurisprudential regard and that, in practice, adopt the violation of the principle of good faith Objective (brought by the Brasilian Civil Code of 2002) as sufficient grounds to blame civilly one who violates the standards of fairness and honesty expected of parts that relate. Doctrine in this study is known as Theory of Equity Acts. This study will address these doctrinal and jurisprudential constructions: in particular, the institute's venire contra factum proprium liability as a result of abuse of rights. Keywords: Venire contra factum proprium. Theory Equity Act. Liability Extra contractual. Objective Good Faith.Theory Abuse. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 11 2 PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. .................................................................................... 13 2.1 Evolução Histórica. ................................................................................................................ 13 2.1.1 A origem no Direito romano ............................................................................................... 13 2.1.2 Boa-fé no Código Civil Napoleônico .................................................................................. 14 2.1.3 Boa-fé no Código Civil Alemão .......................................................................................... 15 2.1.4 Boa-fé no Direito brasileiro. ................................................................................................ 16 2.2 Conceito .................................................................................................................................. 18 2.3 Distinção entre Boa-fé Subjetiva e Boa-fé Objetiva .............................................................. 19 2.4 O Princípio da Boa-fé e sua tríplice função ............................................................................ 20 2.4.1 Função interpretativa ........................................................................................................... 22 2.4.2 Função integrativa ............................................................................................................... 23 2.4.3 Função limitadora ................................................................................................................ 23 3 TEORIA DO ABUSO. .............................................................................................................. 25 3.1 Direito Subjetivo. ................................................................................................................... 25 3.2 Ato ilícito e Responsabilidade Civil ....................................................................................... 26 3.2.1 Ato ilícito ............................................................................................................................. 26 3.2.2 Responsabilidade Civil ........................................................................................................ 27 3.2.2.1 Responsabilidade Civil Subjetiva ..................................................................................... 28 3.2.2.2 Responsabilidade Civil Objetiva ...................................................................................... 28 3.2.2.2.1 Elementos essenciais da Responsabilidade Civil Objetiva ........................................... 30 3.2.2.2.2 Responsabilidade Civil Objetiva no ordenamento jurídico brasileiro ........................... 32 3.3 O abuso de direito e seu fundamento (art. 187, CC/02). ........................................................ 33 3.4 Diferenças entre o exercício regular do direito e o abuso. ..................................................... 35 4 DESDOBRAMENTOS DOUTRINÁRIOS E JURISPRUDENCIAIS QUE DEMONSTRAM O ABUSO DE DIREITO NAS ESFERAS CONTRATUAL E EXTRACONTRATUAL. ............................................................................................................. 37 4.1 Na esfera contratual. ............................................................................................................... 38 4.1.1 Tu quoque ............................................................................................................................ 38 4.1.2 Adimplemento substancial .................................................................................................. 41 4.1.3 Violação positiva dos contratos ........................................................................................... 43 4.2 Na esfera extracontratual. ....................................................................................................... 46 4.2.1 Supressio e surrectio ............................................................................................................ 46 4.2.2 Litigância de má-fé .............................................................................................................. 48 5 VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM ............................................................................... 51 5.1 Origem .................................................................................................................................... 51 5.2 Conceito .................................................................................................................................. 52 5.3 Aplicabilidade do Instituto (jurisprudência) ........................................................................... 54 5.4 Expectativa de direito ............................................................................................................. 56 5.5 Elementos caracterizadores do venire .................................................................................... 57 5.5.1 Dos comportamentos contraditórios .................................................................................... 57 5.5.1.1Em regra, cada comportamento, individualmente considerado, deve ser válido. ............ 58 5.5.1.2 Necessidade de repercussão da conduta na órbita jurídica alheia .................................... 59 5.5.1.3 Inexistência de vínculo obrigacional na segunda conduta (venire) que seja necessariamente proveniente da primeira (factum proprium) ...................................................... 59 5.5.1.4 Os comportamentos podem ser comissivos ou omissivos ................................................ 60 5.5.1.5 O segundo comportamento deve acarretar certa frustração que enseje a piora na situação do outro indivíduo .......................................................................................................... 60 5.5.2 Da contradição ..................................................................................................................... 61 5.5.3 Do dever acessório que está sendo violado ......................................................................... 64 5.6 Consequências Jurídicas do venire ......................................................................................... 66 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS: ................................................................................................... 69 7 REFERENCIAS ........................................................................................................................ 72 11 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho abordará a temática em torno do instituto conhecido por venire contra factum proprium, uma construção doutrinária e jurisprudencial, que encontra esteio ainda na Roma antiga, e que vem sendo aplicado no direito brasileiro em escala crescente e em seus mais variados ramos, visando promover a equidade entre as partes de uma relação jurídica extracontratual viciada com a violação de deveres anexos provenientes da boa-fé objetiva, consequência do exercício abusivo de direitos subjetivos. Para tanto, no primeiro capítulo será tratado o princípio da boa-fé objetiva, berço do instituto, estudando a origem e traçando seu conceito a fim de compreender sua essência – finalidade e objetivos. Fortalecendo ainda o entendimento em torno do princípio, será traçado um paralelo entre a boa-fé objetiva e a boa-fé subjetiva, com o fito de melhor delinear aquela, em estudo. Feito isso, será a vez de apontar seus fundamentos no ordenamento jurídico brasileiro, presentes no Código Civil de 2002 e no Código de Defesa do Consumidor de 1990. No capítulo há ainda a abordagem da tríplicefunção do princípio, quais sejam: as funções interpretativa, integrativa e limitadora. Dando sequência ao estudo, no capítulo seguinte será discutida a chamada teoria do abuso, que se consubstancia no exercício abusivo – em excesso – de um direito subjetivo que, via de regra, coaduna-se com a violação de um dos deveres anexos originados com a boa-fé objetiva. Para melhor se inferir o tema, será vista a diferença entre o uso regular de um direito e o uso abusivo. Tem-se então que da conduta abusiva exsurge um ato ilícito e, com ele, um dano com consequente dever de reparação fundamentado no artigo 187 do Código Civil de 2002 – responsabilidade civil objetiva. Cada um desses temas será explanado, fazendo-se ainda a distinção entre responsabilidade civil contratual e extracontratual. Prosseguindo, no terceiro capítulo serão analisados os demais institutos decorrestes dos desdobramentos doutrinários e jurisprudenciais que demonstram o abuso de direito nas esferas contratual – tu quoque, violação positiva do contrato e adimplemento substancial – e extracontratual – supressio e surrectio e litigância de má-fé. Por fim, no quarto e último capítulo será abordado o instituto do venire contra factum proprium em si, sua origem, seu conceito, a amplitude de sua aplicabilidade, seus elementos 12 essenciais – caracterizadores – e as consequências jurídicas possíveis em cada caso, fazendo- se ainda uma abordagem sobre expectativa de direito. O objetivo do trabalho é demonstrar que o instituto do venire contra factum proprium, embora consideravelmente novo no Brasil, vem sendo amplamente adotado pela jurisprudência pátria, nos mais diversos ramos de atuação, inobstante à ausência de previsão legal no ordenamento jurídico brasileiro, sendo um importante instrumento utilizado na promoção da equidade entre as partes de uma relação jurídica extracontratual em situações específicas carentes de regramento. Com fito de se alcançar tal objetivo, adotar-se-á a pesquisa bibliográfica, bem como jurisprudencial, como fontes essenciais de informação, haja vista que o objeto subsiste de construções doutrinárias e jurisprudenciais. Desta feita, visando uma análise abrangente, a pesquisa recairá, quanto à parte doutrinária, sobre publicações que vão de doutrinadores clássicos, como Silvio de Salvo Venosa, a doutrinadores adeptos de uma visão mais moderna, como Pablo Stouze/Rodolfo Pamplona, Nelson Rosenwald/Cristiano Chaves Farias, Flávio Tartuce, Carlos Roberto Gonçalves, Sérgio Cavalieri Filho e Maria Helena Diniz. Quanto à esfera jurisprudencial, serão analisados, em confronto com a doutrina estabelecida, julgados recentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça que versam sobre a temática, além de julgados provenientes de tribunais inferiores. 13 2 PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA 2.1 Evolução Histórica 2.1.1 A origem no Direito romano A Boa-fé, como princípio, encontra esteio na mitologia romana, mais precisamente na deusa Fides1, cuja divindade era invocada no ato da celebração dos negócios, com o fito de lhe conferir credibilidade. A palma da mão era, então, consagrada à deusa e, por isso, os contratantes apertavam as mãos no término do negócio, a fim de sacramentar o ajustado (NEVES, 2000). De tal modo, o pacto celebrado estaria sob a proteção de Fides e quem o descumprisse estaria sujeito a sua ira2. A referida celebração passou a ser chamada de fides, ou fides romana. Daí, também, a origem da palavra fé, ou, no Latim, fides, que significa "confiança", "crença", "credibilidade". A fé é um sentimento de absoluta crença em algo ou alguém, mesmo que não haja nenhum tipo de evidência que certifique a verossimilhança da proposição em questão. É uma atitude contrária à dúvida e está intimamente ligada à confiança (7GRAUS, 2011-2012). Àquela época, em que se invocava a divindade em meio às tratativas, a boa-fé ainda não pertencia ao mundo jurídico, mas os romanos tinham na fides seu elemento inaugural que possibilitaria tal concatenação; o culto à deusa Fides dá início a essa transformação. 1 “a deusa fides (fé), divindade reconhecida por cives (cidadãos romanos) e por non–cives (peregrinos), era invocada na celebração dos negócios de peregrinos entre si e dos negócios entre peregrinos e cidadãos romanos. Ela velava pelo cumprimento desses negócios, castigando os faltosos e protegendo os cumpridores. Tinha a sua sede na palma da mão direita (cf. Cicero, De Off. 1,7,23 e Tit. Livius, Historia 1,21,4; 23,9,3). Por isso, os contraentes davam um aperto das mãos direitas (dexteararum porrectio) para imprimir solenidades à promessa. Desaparecido o culto da deusa fides, ficou o aperto das mãos direitas como sinal de confiança mútua.” CRUZ, Sebastião, apud CUNHA, D. M. F. Bona Fides. Jus Navigandi, Teresina, 10 dezembro 2005. Disponivel em: <http://jus.com.br/revista/texto/7674/bona-fides>. Acesso em: 01 março 2013. 2 ACEBO, F. Gómez, La buena y la mala fe en la teoria general del Derecho privado: su encuadramiento en la teoria general del derecho y su eficacia en el Codigo Civil. In RDP - Editorial Revista de Derecho Privado: Madrid, 1952, p. 104. Neste mesmo sentido, Max Kaser, Direito Privado Romano. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1999 p. 104 que ensina: O poder do patronus, é, nos tempos antigos, um poder pleno, que apenas é atenuado pelo dever de lealdade do patrono, assegurado por direito sacral; as XII tábuas (sic) determinam: patronus si clienti fraudem facerit, sacer esto, i. e., a quebra de lealdade contra o seu cliente expõe o patrono à vingança dos deuses. Nesta mesma perspectiva, o estrangeiro, que se coloca como hóspede sob a proteção de um Romano ou do Estado Romano, goza como cliens (dependente) de uma maior proteção, porque seu patrono (patronus) está obrigado à fidelidade (fides) que lhe deve por direito sacral, p. 114. Apud CUNHA, D. M. F. Bona Fides. Jus Navigandi, Teresina, 10 dezembro 2005. Disponivel em: <http://jus.com.br/revista/texto/7674/bona-fides>. Acesso em: 01 março 2013. 14 Assim, o direito romano arcaico guarda intima relação com o surgimento do instituto da boa- fé, uma vez que a fides romana é invocada ou referida nos atos mais solenes da vida habitual da época – casamento, clientela, tutela, empréstimos, entre outros (CUNHA, 2005). Mais adiante, a palavra fides passou a ter a acepção que conhecemos hoje: fidelidade. O preceito, inicialmente, foi puramente ético; as partes deviam respeitar a palavra dada (NEVES, 2000). Posteriormente a fides ultrapassa sua origem de preceito moral e religioso e, mantendo sobretudo suas profundas raízes na moral, passa exprimir ideia de promessa, isto é, passa a ater as pessoas ao cumprimento de suas palavras. De fato, a evolução da fides para a bona fides, é o momento em que, no direito romano, o sistema legal foi renovado pela influência de ideias de equidade. Os romanos expandiram tal instituto e influenciaram o direito europeu que, por sua vez, deu origem ao direito moderno e contemporâneo. Isso posto, reveste-se de importância o estudo da boa-fé nos países europeus, em especial na Alemanha, em Portugal e na França, sendo este último de considerável contribuição para o direito civil em geral, eis que dele exsurge a primeira grande codificação; e, quanto à boa-fé, a Alemanha, sobressaindo-se aos demais por ser o país onde o estudo do instituto obteve desenvolvimento incomparável (DANTAS JÚNIOR, 2007). 2.1.2 Boa-fé no Código Civil Napoleônico O artigo 1.134 do Código Napoleônico – Código Civil francês de 1804 –, traz uma novidade, qual seja, a de que as convenções legalmente formadas valeriam como lei para os contraentes, hoje conhecido como princípio pacta sunt servanda,segundo o qual o contrato obriga as partes nos limites da lei. A importância de referido dispositivo para o estudo da boa-fé se dá em razão do sentido de lealdade que o substancia, rompendo com o formalismo exacerbado e impositivo do Direito romano (MARKY, 1997), pois se as partes contratantes declarassem sua vontade de maneira livre, o contrato pactuado deveria ser respeitado, mesmo sem a observância de outras formalidades como a tradição e o registro imobiliário. 15 Há ainda, no texto do Código Civil francês, diversas menções à boa-fé, sendo a grande maioria relacionada ao desconhecimento de certa circunstância de fato, quer dizer, o indivíduo, em sua esfera perceptiva – subjetiva – desconhecia, por exemplo, que determinado animal negociado estivesse doente, negociando-o de boa-fé; ou seja, não diziam respeito a um padrão de comportamento esperado no âmbito das relações, v.g., probidade, lealdade, sinceridade, honestidade, entre outros; em síntese, tais menções dizem respeito ao aspecto subjetivo – no âmbito pessoal de percepção – da boa-fé até então conhecida do direito romano. Apenas um dispositivo do código em comento parece se dissociar do referido aspecto subjetivo: o artigo 1.1343 de onde se depreende a imposição aos contraentes do dever de executar os contratos de boa-fé. Tem-se, no caso, a boa-fé como um padrão esperado de comportamento, diferente da subjetividade da boa-fé romana, lastreada na ignorância de uma situação (DANTAS JÚNIOR, 2007). Todavia, sua interpretação – e consequentemente, aplicabilidade – dependia de respaldo externo ao Código, visto se tratar de uma regra geral (genérica) sem parâmetros traçados de emprego em cada caso concreto. Como, para os franceses, o Código Napoleônico se bastava, inviabilizando balizas externas, a regra carente de parâmetro padeceu diante de tal dificuldade intransponível. 2.1.3 Boa-fé no Código Civil Alemão O desenvolvimento da doutrina da boa-fé veio com a entrada em vigor do Código Civil Alemão – BGB, em 1900, abrangendo suas variantes objetiva e subjetiva – estabelecendo-se consideráveis deveres a serem fitados pelos contratantes no decurso da relação contratual. O contrato, então, deixa de estar vinculado somente às disposições nele expressas, e se obriga a garantir o alcance das expectativas legitimamente criadas na contraparte, por esta ter confiado que determinados interesses seus seriam atendidos no desenrolar do contrato já celebrado; ou seja, em síntese, desconsidera-se a intenção expressa das partes contratantes. 3 Artigo 1134: Acordos legalmente formadas têm força legal entre aqueles que foram feitas. Pode ser revogado por mútuo consentimento ou por razões permitidas por lei. Deve ser realizada de boa fé. 16 Assim, a noção que hoje se tem da boa-fé, em especial quanto à sua vertente objetiva, bem como a inspiração para a disciplina no Código Civil Brasileiro de 2002, devem-se em grande parte à experiência alemã (GUERSONI, 2006). 2.1.4 Boa-fé no Direito brasileiro Dantas Júnior (2007) nos ensina que no Brasil, que fora fortemente influenciado pelo Código Napoleônico e, um pouco menos, pelo BGB Alemão, nada de inovador ou diferente foi acrescido ao instituto. A influência recebida se deve ao fato de que, no século XIX, por não haver internamente cursos de direito, os juristas brasileiros eram todos formados na Europa, em especial na França e na Alemanha. Logo, resta evidente a conformação com o saber jurídico adquirido, atrofiando qualquer tendência com vistas à evolução do pensamento daquele instituto (DANTAS JÚNIOR, 2007). No Código Civil de 1916, apareceu pontualmente, de maneira tímida e específica, a abordagem da boa-fé enquanto norma de conduta, presente no artigo 1.4434, que trata do contrato de seguro. Todavia, prevalece em seu bojo, predominantemente, o seu alcance subjetivo, sempre ligado ao desconhecimento de certa circunstância de fato e garantindo tratamento privilegiado à parte prejudicada pela ignorância respectiva. Observa-se, portanto, a ausência de uma regra geral que abarque todas as situações, ou, ao menos, todos os contratos, capaz de fixar padrões de conduta consubstanciados nos preceitos da boa-fé. Ressalta-se, entretanto, que o Código Comercial brasileiro, de 1850, ao apresentar algumas regras de interpretação dos contratos comerciais, tratou de maneira explícita da boa-fé como norma de conduta.5 4 Art. 1443. O segurado e o segurador são obrigados a guardar no contrato a mais estrita boa fé e veracidade, assim a respeito do objeto, como das circunstâncias e declarações a ele concernentes. (grifo nosso). 17 A positivação explicita do princípio da boa-fé veio com a vigência do Código de Defesa do Consumidor – CDC –, Lei nº 8.078, de 11 de Setembro de 1990, em seus artigos 4º, III; e 51, IV. O artigo 4º, III, do CDC, traz a boa-fé como um viés da interpretação que permitirá o alcance do equilíbrio entre a tutela do consumidor e o desenvolvimento econômico e tecnológico. Por seu turno, o artigo 51, IV, do CDC, veicula a boa-fé como cláusula geral, a ser preenchida em cada situação concreta para a identificação da obrigação injusta ou abusiva, estabelecida em desfavor do consumidor. Nesse ponto, importante se faz abrir um parêntese para que se entenda a distinção entre princípios e cláusulas gerais. Nos dizeres de Judith Martins-Costa (2000, p. 274 ), tem-se que: As cláusulas gerais constituem o meio legislativamente hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico, de princípios valorativos, expressos ou ainda inexpressos legislativamente, de standards, máximas de conduta, arquétipos exemplares de comportamento, das normas constitucionais e de diretivas econômicas, sociais e políticas, viabilizando a sua sistematização no ordenamento positivo. Complementando, Nelson Nery (2002, p. 5 a 7) aduz que: As cláusulas gerais têm função instrumentalizadora [...], porque vivificam o que se encontra contido, abstrata e genericamente, nos princípios gerais de direito e nos conceitos legais indeterminados, são mais concretas e efetivas do que esses dois institutos. Deve-se ainda anotar que, diferentemente dos princípios, as cláusulas gerais, para que existam, devem estar expressas. Continuando, além de tais dispositivos, o CDC/1990 traz ainda em seu bojo inúmeras exigências concretas atinentes aos deveres acessórios que seguem com a obrigação, entre eles, 5 Interessante mencionar ainda que, embora na Alemanha seus tribunais já decidissem amparados pela boa-fé, seu Código Comercial, que é de 1861, não trouxe uma única disposição relativa ao instituto. 18 o dever de informação, dever de proteção, dever de assistência técnica, entre outros, todos de considerável relevância na análise da boa-fé. O Código Civil de 1916, assim como o Código Comercial de 1850, foram revogados pelo novo Código Civil de 2002, que, por sua vez, trouxe de forma explícita o princípio da boa-fé em seu artigo 422, a partir de quando começam a surgir algumas poucas obras com enfoque principal no tema. Assim, verifica-se que a boa-fé objetiva é um instituto consideravelmente novo no direito positivo brasileiro, embora a doutrina e a jurisprudência pátrias o abordassem com certa constância, principalmente em razão da influência recebida dos tribunais alemães. 2.2 Conceito O referido artigo 422 do novo Código Civil brasileiro de 2002 aduz que os contratantes sãoobrigados a guardar, tanto na conclusão quanto na execução dos contratos, os princípios da probidade e boa-fé. Mas o que é o princípio da boa-fé? Para Carlos Roberto Gonçalves (2010), o princípio da boa-fé demanda que as partes contratantes se comportem de forma correta, não só nas tratativas, mas também no decurso da formação e do posterior cumprimento do contrato pactuado. Mas o que é correto pra um pode não ser pra outro, ou seja, há um aspecto subjetivo no que vem a ser um comportamento correto. Por isso o “agir de forma correta”, mencionado pelo autor, está adstrito a determinados padrões pré-estabelecidos de comportamento tendo ainda em vista os usos e costumes locais. Assim, a boa-fé que se presume é objetiva, ou seja, aquela que impõe ao contratante um padrão de conduta, de agir com retidão, quer dizer, com probidade, honestidade e lealdade, nos moldes do homem médio, consideradas as peculiaridades dos usos e costumes locais, como dito no parágrafo anterior. De tal modo, é recomendável ao juiz que atue mediante a presunção relativa da boa-fé, cabendo a quem alega a má-fé, o ônus de prová-la. 19 Carlos Roberto Gonçalves (2010) nos ensina ainda que o instituto da boa-fé objetiva guarda relação com o princípio de direito segundo o qual ninguém pode se beneficiar da própria torpeza. Já o princípio da probidade, expresso junto ao princípio da boa-fé no artigo 422 do Código Civil de 2002, nada mais é senão um dos aspectos objetivos deste, podendo ser entendido como a honestidade de proceder ou a maneira criteriosa de cumprir todos os deveres, que são atribuídos ou cometidos à pessoa. 2.3 Distinção entre Boa-fé Subjetiva e Boa-fé Objetiva Neste ponto, após tratar por algumas vezes das vertentes subjetiva e objetiva da boa-fé, necessário se faz lhes diferenciar para uma melhor compreensão do instituto em apreço. Carlos Roberto Gonçalves (2010) aduz que o princípio da boa-fé se biparte em boa-fé subjetiva, também chamada de concepção psicológica da boa-fé, e boa-fé objetiva, também denominada concepção ética da boa-fé. Estudada sob a ótica subjetiva, a boa-fé, nos dizeres de Teresa Negreiros (2006), apresenta-se como uma situação ou fato psicológico, ou seja, passa pelo campo das intenções daquele cujo comportamento é objeto de qualificação. A pessoa age sob a íntima convicção de estar de acordo com o direito posto. Em outras palavras, é o agir inocente, sem noção, sem consciência, sob o estado de ignorância, de desconhecimento quanto a determinado fato ou circunstância que, de outro modo, inviabilizaria o negócio pactuado. Nos dizeres de Carlos Roberto Gonçalves (2010), a boa-fé subjetiva serve à proteção daquele que tem a consciência de estar agindo conforme o direito, apesar de ser outra a realidade. O Código Civil de 2002 traz a definição da vertente subjetiva do instituto ao tratar, no artigo 1.201, da posse de boa-fé, de onde se extrai ser de boa-fé a posse se o possuidor ignorar o vício ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa. 20 Por outro lado, a boa-fé objetiva, que acarretou profunda alteração no direito obrigacional clássico, diferencia-se da sua vertente subjetiva por estar associada a um dever de conduta contratual ativo, obrigando as partes a agirem dentro de determinados padrões de comportamento, em colaboração recíproca, tendo em consideração os interesses um do outro com vistas a se alcançar o efeito prático pretendido, que justifica a existência jurídica do contrato celebrado. Em especial, no sentido de não sonegar informações relevantes a respeito do objeto e conteúdo do negócio. Denota-se, portanto, que a boa-fé objetiva se consubstancia em um modelo jurídico, ou seja, abstrato, pois não há hipóteses limitadas de sua incidência; pelo contrário, trata-se de uma norma cujo conteúdo se adapta de acordo com as concretas circunstâncias de cada caso concreto. Isso se observa porque se reveste de variadas formas, não sendo possível elencar, a princípio, todas as hipóteses possíveis em que possa se configurar. 2.4 O Princípio da Boa-fé e sua tríplice função O princípio da boa-fé, conforme melhor doutrina pátria, possui múltiplas funções que, por um número considerável de vezes, prestam auxílio ao magistrado diante de um universo de hipóteses fáticas, permitindo o alcance de resultados mais justos na solução dos casos concretos. Para a maior parte dos doutrinadores, a referida multiplicidade se apresenta de três formas, sendo elas: a) interpretativa; b) integrativa; e c) limitadora. A primeira função – interpretativa – encontra seu fundamento no artigo 113 do Código Civil de 2002, do qual se extrai que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa- fé e os usos do lugar de sua celebração”. Por sua vez, a segunda função – integrativa – está consubstanciada no artigo 442 do mesmo diploma legal, no qual se lê que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé”. Finalmente, a terceira função – limitadora – é depreendida do artigo 187, também do Código Civil vigente, o qual aduz que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao 21 exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Referidas funções são amplamente adotadas pelos juízos e tribunais de todo país a exemplo dos seguintes julgados: PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. RECURSO ESPECIAL. REGISTRO CIVIL. ANULAÇÃOPEDIDA POR PAI BIOLÓGICO. LEGITIMIDADE ATIVA. PATERNIDADESOCIOAFETIVA. PREPONDERÂNCIA.1. A paternidade biológica não tem o condão de vincular,inexoravelmente, a filiação, apesar de deter peso específico ponderável, ante o liame genético para definir questões relativa à filiação. 2. Pressupõe, no entanto, para a sua prevalência, da concorrência de elementos imateriais que efetivamente demonstram a ação volitiva do genitor em tomar posse da condição de pai ou mãe. 3. A filiação socioafetiva, por seu turno, ainda que despida de ascendência genética, constitui uma relação de fato que deve ser reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a parental idade que nasce de uma decisão espontânea, frise-se, arrimada em boa-fé, deve ter guarida no Direito de Família.4. Nas relações familiares, o princípio da boa-fé objetiva deve ser observado e visto sob suas funções integrativas e limitadoras, traduzidas pela figura do venire contra factum proprium (proibição de comportamento contraditório), que exige coerência comportamental daqueles que buscam a tutela jurisdicional para a solução de conflitos no âmbito do Direito de Família. 5. Na hipótese, a evidente má-fé da genitora e a incúria do recorrido, que conscientemente deixou de agir para tornar pública sua condição de pai biológico e, quiçá, buscar a construção da necessária paternidade socioafetiva, toma-lhes o direito de se insurgirem contra os fatos consolidados.6. A omissão do recorrido, que contribuiu decisivamente para a perpetuação do engodo urdido pela mãe, atrai o entendimento de que a ninguém é dado alegrar a própria torpeza em seu proveito (Nemo auditur propriam turpitudinem allegans) e faz fenecer a sua legitimidade para pleitear o direito de buscar a alteração no registro de nascimento de sua filha biológica.7. Recurso especial provido. (1087163 RJ 2008/0189743-0, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 18/08/2011, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 31/08/2011) – (com grifo nosso). APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. CONSUMIDOR. MULTA REFERENTE À PERDA DE COMANDA DE CONSUMO. RETENÇÃO DE CELULAR COMO GARANTIA DE ADIMPLEMENTO. ART. 14, § 1º, DO CDC. ABUSO DE DIREITO. ART. 187, DO CÓDIGO CIVIL. CONDUTAS ABUSIVAS DOS PREPOSTOSDO DEMANDADO. FATO DO SERVIÇO CONFIGURADO. DEVER DE INDENIZAR PELOS DANOS MORAIS SOFRIDOS. - RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABUSO DE DIREITO14§ 1ºCDC187CÓDIGO CIVIL- O abuso de direito encontra expressa previsão legal no art. 187 do CC. Compreensão do instituto a partir do parâmetro constitucional, especialmente o art. 3º, I, CF. O princípio da...187 CC 3º I CF (70042119651 RS , Relator: Leonel Pires Ohlweiler, Data de Julgamento: 14/09/2011, Nona Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 16/09/2011). APELAÇÃO CÍVEL. MEDIDA CAUTELAR DE EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS. CONTA CORRENTE. VERIFICADO O INTERESSE DE AGIR, INDEPENDENTEMENTE DO FORNECIMENTO DE EXTRATOS. ART. 844 E SS. DO CPC. SUCUMBÊNCIA. PRETENSÃO RESISTIDA. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA.844CPC1) Sob pena de violação aos princípios da probidade e boa- fé objetiva, nos termos dos art. 113 e art. 422, ambos do Código Civil, é dever inerente à instituição financeira prestar informações - aos seus clientes - sobre os serviços e produtos que lhe são fornecidos (art. 52, do CDC)- independentemente do fornecimento de extratos bancários, o qual não exime o interesse de agir do autor na propositura de ação cautelar de exibição de 22 documentos.113422Código Civil52CDC2) Nos termos do art. 844 e ss. do CPC, a medida cautelar de exibição judicial, tem lugar, como procedimento preparatório, quando a parte interessada objetiva o acesso a "documento próprio ou comum, em poder de co-interessado (sic), sócio, condômino,credor ou devedor, (...) ou administrador de bens alheios" - em nada havendo que se cogitar na impossibilidade da nomenclatura cautelar da presente demanda.844CPC3) Contestada à obrigação de exibição de documentos, não há que se falar em impossibilidade de condenação ao pagamento de honorários advocatícios - sob a alegação de inexistência de pretensão resistida (ante o afirmado fornecimento prévio de extratos bancários), porque instalada a relação jurídica entre partes, devendo, assim, o julgador condenar o vencido ao pagamento das custas processuais e honorários de advogado - conforme bem ocorreu no caso dos autos. RECURSO NÃO PROVIDO. (7401614 PR 0740161-4, Relator: Hayton Lee Swain Filho, Data de Julgamento: 09/02/2011, 15ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ: 581) – (com grifo nosso). Vejamos, então, cada uma dessas funções em particular. 2.4.1 Função interpretativa Tal função tem por escopo subsidiar o hermeneuta com critérios interpretativos – referenciados em padrões de conduta estabelecidos com base na ética, na moral e nos bons costumes – para a análise do que fora avençado pelas partes contratantes, encontrando o sentido que, segundo tais critérios, melhor se adeque ao caso concreto, sem perder de vista a equidade e a função social dos contratos. Assim, ao interpretar a situação com base no princípio da boa-fé, alcança-se uma melhor definição do que se deve entender por cumprimento pontual das prestações (SCHEREIBER, 2007). Ressalta-se que, diante de um contrato de natureza gratuita, o hermeneuta deve buscar a interpretação, segundo os preceitos da boa-fé, que seja menos onerosa ao obrigado – art. 113 do Código Civil –, ao passo que nos contratos a título oneroso deverá se perseguir a interpretação que prestar o entendimento mais equânime entre as partes – art. 114, do Código Civil. É o que nos ensina Caio Mário da Silva Pereira (2009). Para Dantas Júnior (2007), entretanto, as regras interpretativas mencionadas não estão restritas apenas ao âmbito dos contratos, mas a todas as relações jurídicas em geral, haja vista que essas estão inseridas na parte geral do Código Civil vigente, e não naquela adstrita aos contratos. 23 Complementa Flávio Tartuce (2006, p. 3) dizendo que “na dúvida, os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé (art. 113, CC/02). Em reforço, lembramos a interpretação a favor do consumidor (art. 47 do CDC) e do aderente (art. 423, CC/02)”. 2.4.2 Função integrativa A função integrativa permite trazer ao contexto do contrato deveres secundários ou anexos, consubstanciados na boa-fé, visando suprir as lacunas porventura, complementando o quadro dos efeitos do negócio jurídico. Tal função se faz presente em razão de, no negócio jurídico, ser praticamente impossível que os sujeitos prevejam todas as circunstâncias fáticas que podem surgir na vida real, restando, por vezes, lacunas que exigem preenchimento com vistas a obter o melhor resultado pretendido pela convenção. O mencionado preenchimento será então subsidiado pelo princípio da boa-fé, quando o juiz, diante do caso concreto, considerar-lhe-á e aplicar-lhe-á ao sopesar as várias normas disponíveis, buscando aquela que seja a mais adequada para a solução da situação que se fez inesperada no âmbito do contrato em análise, decorrente de circunstância que não havia sido prevista pelos sujeitos. 2.4.3 Função limitadora Para Flávio Tartuce (2006, p. 3), “a boa-fé objetiva está relacionada com deveres anexos, inerentes a qualquer negócio. A quebra desses deveres caracteriza o abuso de direito (art. 187 do novo Código Civil – função de controle da boa-fé)”. Em outras palavras, o limite atinente à função da boa-fé, em análise, incide sobre os direitos subjetivos e visa afastar o uso abusivo de tais prerrogativas no âmbito das relações jurídicas. O uso abusivo do direito, ou abuso de direito, ocorre quando o indivíduo, fazendo uso de seus direitos subjetivos, excede ao ponto de gerar certo desequilíbrio entre as partes, e isso acontece quando a esfera da boa-fé – que preza dela ética, equidade, honestidade, entre outros 24 deveres de conduta; ou deveres anexos, nas palavras de Flávio Tartuce (2006) anteriormente mencionadas – é ultrapassada, acarretando lesão à contraparte. Os limites ora impostos pelo princípio da boa-fé relativizam o princípio clássico da autonomia da vontade (DANTAS JÚNIOR, 2007). Judith Martins-Costa, citada por Dantas Júnior (2007, p. 231), esclarece que “hoje é pacífica a ideia de que a autonomia deve ser exercida em estreita relação com o respeito à dignidade da pessoa humana e com a promoção do desenvolvimento da personalidade, que devem servir de parâmetro para a vida em sociedade”. Por tal motivo denota-se que referida função se reveste de interesse público, permitindo ao magistrado que afaste cláusulas pactuadas no âmbito da relação privada, ainda que mitigue a vontade das partes. Em síntese, conforme bem ilustra Dantas Júnior (2007), mesmo que em um contrato as partes contratantes adotem cláusula explícita acerca de um dos aspectos do negócio, poderá o juiz afastá-la caso entenda que a mesma não obedece aos comandos do princípio da boa-fé. Esta é a função mais importante do princípio da boa-fé para o presente estudo, tendo em vista que a ela incumbe afastar qualquer possibilidade ou ocorrência do abuso de direitos subjetivos, característico do venire contra factum próprium. Diante desse contexto, faz-se necessário o estudo pormenorizado da teoria do abuso; tema do próximo capítulo. 25 3 TEORIA DO ABUSO 3.1 Direito Subjetivo Muitas são as teorias que tratam da definição do que vem a ser o direito subjetivo, entre elas a Teoria Pura do Direito, de Duguit e de Kelsen que, na verdade, não admitem a existência do referido direito. Trata-se de uma vertente das doutrinas negativistas. Para Kelsen só existe o direito objetivo, definido por Carlos Roberto Gonçalves (2008) como sendo “um conjunto de normas impostas pelo Estado, de caráter geral, a cuja observância os indivíduos podem ser compelidos mediante coerção”. Contudo, as doutrinas afirmativas são as que predominam. Elas admitem a existência do direito subjetivo tanto quanto do direito objetivo, e se desdobramna teorias da vontade, do interesse e mista. Para os idealistas da teoria da vontade, entre eles Friedrich Carl Von Savigny e Bernhard Windscheid, o direito subjetivo consiste em um poder da vontade reconhecido pela ordem jurídica, ou seja, ao indivíduo, detentor da vontade e titular do direito, é dado pleno domínio de sua utilização de acordo com sua conveniência. Contudo, tal teoria recebe críticas consistentes, que apontam sua fragilidade, qual seja, a hipótese de um indivíduo, detentor de direitos subjetivos, mas sem domínio de suas vontades por ser, de alguma forma, incapaz. Já a teoria do interesse, de Rudolf Von Ihering, defende que o direito subjetivo é o interesse juridicamente protegido. A crítica que recebe aduz que o direito subjetivo existe e é eficaz independente do interesse de seu titular. Ele está lá para ser usado mesmo que não haja tal interesse (GONÇALVES, 2008). Por fim, a teoria mista, ou eclética, defendida por Georg Jellinek, reúne vontade e interesse. Para ele direito subjetivo é o interesse protegido que a vontade tem o poder de realizar (GONÇALVES, 2008). 26 Entretanto, como bem delimita Carlos Roberto Gonçalves (ano, p. 08), citando Luigi Ferri e Francisco Amaral: O direito subjetivo, em verdade, não constitui nem poder de vontade, nem interesse protegido, mas apenas ‘um poder de agir e de exigir determinado comportamento para a realização de um interesse, pressupondo a existência de uma relação jurídica. Seu fundamento é a autonomia dos sujeitos, a liberdade natural que se afirma na sociedade e que se transforma, pela garantia do direito, em direito subjetivo, isto é, liberdade e poder jurídico’. Em síntese, o direito subjetivo, segundo Silvio Rodrigues (2002, p. 256), é a “faculdade conferida ao indivíduo de invocar a norma [direito objetivo] em seu favor, ou seja, a faculdade de agir sobre a sombra da regra”. Parafraseando o exposto, o direito subjetivo é aquele que está à disposição de seu titular por meio de uma norma posta – positivada – podendo ser usufruído no momento oportuno e de acordo com a conveniência de seu detentor, respeitados os limites legais. A título ilustrativo, o direito subjetivo de propriedade gera as prerrogativas de usar, gozar e dispor do bem, o que se enquadra no conceito mencionado, conforme nos ensinam Pablo Stouze Gagliano e Rodolfo Pamplona Finho (2011). Tal direito, quando exercido em excesso, ultrapassando os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes, constitui ato ilícito6. 3.2 Ato ilícito e Responsabilidade Civil 3.2.1 Ato ilícito O ato ilícito, em si, nos dizeres de Maria Helena Diniz (2008), ao parafrasear Orlando Gomes, nada mais é do que a prática de um ato em desacordo com a ordem jurídica, violando direito subjetivo individual. Maria Helena Diniz esclarece ainda que tanto o ilícito civil como o criminal têm o mesmo fundamento ético: a infração de um dever preexistente e a imputação do resultado à consciência do agente”. Contudo, completa, “o delito penal consiste na ofensa à sociedade pela violação de norma imprescindível à sua existência, e o civil, num atentado contra o interesse privado de alguém”, “e a reparação do dano sofrido é a forma indireta de restauração do equilíbrio rompido (DINIZ apud PEREIRA, 2009, p. 551-552). 6 Art. 187 do Código Civil de 2002. 27 Os efeitos provenientes do ilícito civil são: caducificante; invalidante; autorizante; e, por fim, indenizante. O efeito caducificante se refere à perda ou restrição de direitos em decorrência do ilícito civil praticado, v. g., o pai, que afasta o filho da escola injustificadamente, perde o exercício do poder familiar como consequência punitiva de tal ilicitude praticada. Por sua vez, o efeito invalidante corresponde a nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico em consequência do ato ilícito. A guisa de exemplo, ocorre quando determinado contrato deixa de observar um ou mais requisitos de validade do negócio jurídico expressos no artigo 104 do Código Civil brasileiro de 2002. Já o efeito autorizante diz respeito ao surgimento de um direito superveniente de uma parte em consequência do ilícito civil praticado pela contraparte, a exemplo da revogação de doação em caso de ingratidão. Por fim, e mais importante para o presente estudo, tem-se o efeito indenizante consistente no dever de indenizar a contraparte pelos prejuízos/danos materiais e/ou morais que lhe foram ocasionados por conta do ilícito civil praticado pela parte adversa. Tal efeito decorre da responsabilidade civil do agente. 3.2.2 Responsabilidade Civil Como exposto, todo ato ilícito enseja uma responsabilidade civil, pois esta advém da violação de um dever primário que faz surgir para seu infrator um dever secundário, qual seja, o de indenizar aquele que sofreu o dano (CAVALIERI FILHO, 2003). A responsabilidade civil pode ser contratual, quando a regra violada provém de um contrato, ensejando, conforme o caso, cobrança de multa de mora/atraso, perdas e danos, juros, correção monetária, cláusula penal, arras/sinal; mas também pode ser extracontratual, caso em que a norma infringida está expressa em lei, dando azo à indenização por dano material/patrimonial e/ou por dano moral/extrapatrimonial (CAVALIERI FILHO, 2003). 28 Por seu turno, a responsabilidade civil extracontratual pode ser subjetiva (aquiliana ou clássica) ou objetiva. 3.2.2.1 Responsabilidade Civil Subjetiva A responsabilidade civil subjetiva ocorre em situações nas quais é imprescindível a demonstração de dolo ou culpa na conduta do agente. Em suma, o agente tem conhecimento da ilicitude de sua conduta e, ainda assim, a pratica voluntariamente visando se beneficiar em prejuízo alheio7. Essa espécie de responsabilidade era a regra do Código Civil de 1916 e foi trazida para o Código Civil brasileiro, de 2002, como exceção8. 3.2.2.2 Responsabilidade Civil Objetiva Com o advento da modernidade, decorrente da era industrial, do maquinismo e de outros inventos tecnológicos, concomitante ao crescimento da população e do consumo, novas situações foram geradas que não podiam ser amparadas pelo conceito tradicional de culpa (CAVALIERI FILHO, 2003). Cavalieri (2003, p. 38-39) explica a evolução ocorrida nos seguintes termos: Importantes trabalhos vieram, então, à luz na Itália, na Bélgica e, principalmente, na França sustentando a responsabilidade civil objetiva, sem culpa, baseada na chamada teoria do risco, que acabou sendo também adotada pela lei brasileira em certos casos, e agora amplamente pelo Novo Código Civil no parágrafo único do seu artigo 927, artigo 931 entre outros. Surge então a concepção de responsabilidade civil objetiva, aquela que dispensa a demonstração da culpa lato sensu. Contudo, insta ressaltar que para a configuração da 7 Referido instituto resta fundeado no artigo 186 do Código Civil vigente, que manteve a culpa – que já era presente no Código de 1916 em seu artigo 159 – como fundamento da responsabilidade subjetiva. A palavra culpa em questão está sendo empregada em sentido amplo, lato sensu, para indicar não só a culpa stricto sensu, como também o dolo. Como visto, diante da concepção clássica de responsabilidade civil, a reparação do dano só era possível – e ainda o é, em regra – mediante comprovação do dolo ou da culpa. 8 Para que haja a caracterização do ato ilícito e, consequentemente, da responsabilidade civil subjetiva, conforme se depreende do artigo 186 do Código Civil de 2002, é necessário que haja uma ação ou omissão voluntária, que viole direito subjetivoindividual, causando dano a outrem, ainda que exclusivamente moral. 29 responsabilidade civil objetiva, a culpa referida pode ou não existir, o que é irrelevante para a configuração do dever de indenizar (GONÇALVES, 2008). Assim como na responsabilidade subjetiva a responsabilidade civil objetiva está consubstanciada em um ilícito civil, afinal, o princípio do neminem laedere exige de todos a obrigação de cuidado com o próximo. Observa-se, porém, que o ato ilícito objetivo não nasce ilícito, mas lícito. Torna-se ilícito pelo seu exercício anormal e irregular, por ter seu titular excedido manifestamente os limites impostos pela lei, pelos bons costumes e pela boa-fé (abuso de direito). Há, entretanto, a possibilidade de um comportamento lícito do agente acarretar responsabilização objetiva. O ato é lícito, ou seja, está de acordo com as normas legais, contudo provém a uma atividade de risco potencial9. Fabio Ulhoa Coelho (2010) fundamenta a incidência da responsabilidade civil objetiva nas atividades que envolvem risco potencial, como nas relações de consumo e em certos serviços, v. g., transporte aéreo de passageiros, em que é possível dimensionar a probabilidade de um eventual acidente inevitável vir a acontecer; e, por tal motivo, é possível incluir nos preços praticados o dispêndio de uma possível obrigação indenizatória, socializando tal custo – dividindo entre todos os usuários do serviço, ou produto, conforme o caso – o que garante a todos a eventual reparação dos danos que por ventura venham a sofrer em decorrência de referida atividade; é a chamada socialização dos custos. A sociedade, no caso, arca com o custo da modernidade, ou seja, com as facilidades que essa traz. Para Arnaldo Rizzardo (2011), grande parte dos doutrinadores justificam a responsabilização civil objetiva com base na teoria do risco a qual aduz que “todo aquele que dispõe de um bem 9 GONÇALVES, op. cit., p. 31. Apud AGOSTINHO ALVIM, Nos ensina que “primitivamente, a responsabilidade era objetiva, como acentuam os autores, referindo-se aos primeiros tempos do direito romano, mas sem que por isso se fundasse no risco, tal como conhecemos hoje. Mais tarde, e representando essa mudança uma verdadeira evolução ou progresso, abandonou-se a ideia de vingança e passou-se à pesquisa da culpa do autor do dano. Atualmente, volta ela ao objetivismo. Não por abraçar, de novo, a ideia de vingança, mas por se entender que a culpa é insuficiente para regular todos os casos de responsabilidade”. 30 deve suportar o risco decorrente, a que se expõem os estranhos”, complementa, “com maior razão, quando o bem é instrumento que oferece perigo”. A título de incremento, a teoria do risco abarca três espécies de risco: risco empresarial (aquele que exerce atividade econômica, busca o lucro em sua exploração, e submete a massa aos seus riscos, devendo, portanto, arcar com eles), risco administrativo (atinente à responsabilidade do Estado decorrente de suas atividades no encalço do interesse público, cabendo-lhe distribuir suas repercussões econômicas) e risco-perigo (quem se aproveita da atividade que expões direito de outrem a perigo fica incumbido de responder diante da ocorrência de dano) (COELHO, 2010). Carlos Roberto Gonçalves (2008) aduz que: A responsabilidade objetiva funda-se num princípio de equidade, existente desde o direito romano: aquele que lucra com uma situação deve responder pelos riscos ou pelas desvantagens dela resultantes (ubi emolumenum, ibi ônus; ubi commoda, ibi incomoda). Quem aufere os cômodos (ou lucros), deve suportar os incômodos (ou riscos). Assim, o Código Civil brasileiro vigente, em seu artigo 927, parágrafo único, traz expressamente a responsabilidade objetiva proveniente do risco, verbis: “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.” (grifo nosso) 3.2.2.2.1 Elementos essenciais da Responsabilidade Civil Objetiva Os elementos constitutivos indispensáveis para a configuração de responsabilidade objetiva são: a) ação/omissão do agente (fato lesivo voluntário); b) ocorrência de um dano; e c) nexo de causalidade entre o dano e o comportamento do agente. a) Ação/omissão do agente: trata-se de uma conduta, comissiva ou omissiva, que pode ser próprio (do agente), de terceiro que esteja sob a guarda do agente, ou proveniente de animais ou coisas pertencentes ao agente que venham a gerar dano a outrem. Em qualquer hipótese, o ato deve estar presente. 31 Como exemplo de atos próprios temos as condutas características do abuso de direito, ou seja, situações em que o detentor de um direito subjetivo excede em seu uso gerando dano a um terceiro. Já a responsabilidade por ato de terceiro ocorre nos casos de dano causado pelos filhos, tutelados ou curatelados, sendo responsável pela reparação os pais, tutores ou curadores. Também o empregador responde pelos atos de seu empregado, assim como as pessoas jurídicas de direito público respondem pelos atos de seus agentes e as de direito privado, pelos atos de seus funcionários. Por fim, a responsabilidade decorrente de danos causados por animais e coisas que estejam sob a guarda do agente, que, em regra, é objetiva; isso por conta do aumento do número de acidentes e de vítimas, que não podem ficar ao abandono, irressarcidas, tendo em vista o incremento do desenvolvimento da indústria, de suas máquinas, dos meios de transporte, do consumo, enfim. b) Ocorrência de dano: se não houver dano, não haverá o que reparar. Por isso a ocorrência de um dano, a ensejar o dever de indenizar, é indispensável. Por certo, não haverá ato ilícito, tampouco responsabilidade civil, se da conduta contrária ao direito subjetivo individual não resultar dano ao indivíduo. O dano pode ser moral ou material, também conhecido como patrimonial. Em síntese, denomina-se material, ou patrimonial, via de regra, quando abrange os bens integrantes do patrimônio da vítima, entendendo-se como tal o conjunto de relações jurídicas de um indivíduo apreciáveis em dinheiro. Tal dano subdivide-se em dano emergente e lucro cessante. O dano emergente é aquele que ocasiona uma perda patrimonial, v.g., dano causado em veículo alheio reduzindo seu valor patrimonial, que corresponde ao custo da reparação mais a desvalorização sofrida. De outro lado se tem o lucro cessante, que corresponde à perda, em razão do dano, de um ganho futuro e certo, v.g., o taxista que deixa de auferir receita em razão do dano que fora causado por terceiro em seu taxi. Por sua vez, o dano moral consiste em qualquer sofrimento que não é causado por uma perda pecuniária; abrange todos os bens personalíssimos e é insusceptível de avaliação monetária, sendo possível apenas sua 32 compensação em pecúnia como obrigação imposta ao seu causador, estando esta equiparada mais a uma satisfação do que uma indenização (CAVALIERI FILHO, 2003). c) O nexo de causalidade entre o dano e o comportamento do agente: constitui o elemento essencial que caracterizará, juntamente com os outros dois elementos já mencionados, o ato ilícito, e, com ele, ensejará a responsabilidade civil do agente, eis que demonstra a relação entre causa (do dano) – conduta do agente – e efeito (o dano em si). Em outras palavras, se houver dano, mas a sua causa não estiver relacionada à conduta do agente, não haverá o dever de indenizar (GONÇALVES, 2008). Várias são as teorias utilizadas para explicar a causa, entre elas destacam-se a teoria da equivalência das condições, ou da condição “sine qua non”, a teoriada causalidade adequada e, por fim, a teoria dos danos diretos e imediatos; esta última, adotada pelo Código Civil de 2002, expresso em seu artigo 403, de onde se extrai que “ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo no disposto na lei processual”. Em suma, tal teoria requer que, entre a conduta e o dano, haja uma relação de causa e efeito direta e imediata. Ilustrando, se a vítima de uma agressão, ao ser transportada de ambulância para um hospital, sofre um acidente automobilístico e morre, o agressor, que não tem relação direta e imediata com o acidente, não responde pelo dano da morte (GONÇALVES, 2008). 3.2.2.2.2 Responsabilidade Civil Objetiva no ordenamento jurídico brasileiro A responsabilidade civil objetiva está presente em diversos dispositivos legais, dentre eles destacam-se no Código Civil de 2002 o art. 187, que trata do abuso de direito; art. 927, que traz a obrigação de reparar o dano, independente da culpa, nos casos previstos em lei, ou quando a atividade implicar em risco para os direitos de outrem; arts. 929 e 930, que preveem a responsabilidade por ato ilícito (estado de necessidade); art. 932, em que veicula a responsabilidade dos pais, tutores, curadores, empregadores, por seus filhos tutelados, curatelados, empregados, entre outros; arts. 936, 937 e 938, que tratam, respectivamente, da responsabilidade do dono do animal, do dono do prédio em ruína e do habitante da casa da qual caírem coisas. 33 Diversas outras leis esparsas trazem a responsabilização objetiva, a exemplo da Lei de Acidentes do Trabalho, o Código Brasileiro de Aeronáutica, Lei nº 6.453/77 (que estabelece a responsabilidade do operador de instalação nuclear), Decreto Legislativo nº 2.681, de 1912 (que regula a responsabilidade civil das estradas de ferro), Lei nº 6.938/81 (que trata dos danos causados ao meio ambiente), o próprio Código de Defesa do Consumidor de 1990 em seus artigos 12, 13, 14, 18, 19 e 20, entre outros tantos. 3.3 O abuso de direito e seu fundamento (art. 187, CC/02) O artigo 187 do Código Civil brasileiro de 2002, buscando inspiração no artigo 334 do Código Civil português, expressa regra específica quanto ao abuso de direito ao expor que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Ao analisar esse texto, ainda em fase de previsão de seu projeto, o magistrado trabalhista Cléber Lúcio de Almeida, citado por Arnaldo Rizzardo (2011, p. 115), faz importantes considerações: Os critérios – fim econômico e social, boa-fé e bons costumes – utilizados no Projeto, permitem ao juiz, pela sua generalidade e abstração, decidir se o titular do direito agiu de conformidade com a realidade que o cerca e também atender à constante evolução social... A alusão somente à finalidade econômica e social, à boa-fé e aos bons costumes permite afirmar que o Projeto adotou a teoria objetiva, deixando de incluir a intenção de causar dano a outrem entre os requisitos para a configuração do abuso do direito... O dano, no Projeto, não foi alçado à condição de requisito da configuração do abuso, mas uma de suas consequências possíveis, o que equivale dizer que o abuso pode ser punido ainda que nenhuma lesão ocorra. Para o Projeto, o abuso do direito é o seu exercício com manifesto desrespeito aos limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé e pelos bons costumes. O mencionado artigo é o que encerra o fundamento principal do instituto jurídico em comento no Código Civil de 2002, embora vários outros dispositivos do referido diploma legal o tragam em seu bojo, v. g., o art. 1.277, que concede ao proprietário ou possuidor de um prédio o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização da propriedade vizinha (em abuso de direito); art. 1.299, no qual se lê que : 34 “...o direito que assiste ao proprietário de construir em seu terreno está condicionado não só aos regramentos administrativos, senão também aos direitos de seus vizinhos. Além das limitações definidas pelos artigos subsequentes, o direito de construir comporta outras limitações não definidas casuisticamente em lei, além de outros como o art. 244.” Outros textos legais também consideram o abuso de direito na constituição de suas normas, como o Código de Defesa do Consumidor que veicula várias regras de proteção contra abusos de direito, a exemplo da que permite a revisão de cláusulas que estabeleçam obrigações desproporcionais, artigo 6º, inciso V, entre outras como o artigo 43, §2º; artigo 51 e 51, §1º; artigo 52, §2º; e 54, §2º (RIZZARDO, 2011). Para se verificar a constituição do abuso de direito, há que se observar a existência de alguns requisitos: a) O direito subjetivo da pessoa é certo, reconhecido por lei, ou ela, ao menos, tenha esse direito revestido juridicamente por outra forma, v. g., quando a dita pessoa é titular do direito de retomar a posse de um determinado bem; b) A conduta é praticada pelo agente, detentor do referido direito, durante o exercício desse, como ocorre na defesa da propriedade, na repulsa de uma agressão ou na prática de uma atividade profissional; c) Há, na conduta praticada, um excesso manifesto aos limites estabelecidos pelo seu fim econômico ou social, ou pela boa-fé ou ainda pelos bons costumes. À guisa de exemplo, quando o locador retira à força o locatário inadimplente de seu imóvel, sem ao menos observar o prazo legal; d) Da conduta excessiva resulta a violação de um direito alheio. No exemplo anterior, há violação do direito de o locatário ser previamente notificado do despejo observando ainda o prazo para sua saída, previsto em lei; e) Por fim, dispensa-se a demonstração de culpa, haja vista que o abuso pressupõe a existência do elemento subjetivo. Em outros termos, não cabe pensar em excesso, ou abuso, desvinculadamente da culpa, por mais branda que esta seja. Ela está implícita na conduta abusiva, dispensando sua comprovação (RIZZARDO, 2011). 35 Há que se registrar a fixação do entendimento pelo Enunciado 37 da Jornada de Direito Civil, que confirma a interpretação do artigo 187 do Código Civil de 2002 nos seguintes termos: “a responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe da culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico” (FARIAS, 2005, p. 473). Salienta-se, contudo, hipóteses em que o uso excessivo de um direito poderá ser feito sem a constituição do abuso; tara-se do exercício regular do direito, situações em que o ordenamento jurídico pátrio autoriza ao detentor do direito subjetivo o alargamento do limite que enseja o abuso, o que será visto a seguir. 3.4 Diferenças entre o exercício regular do direito e o abuso Ainda no ponto, compete ressaltar que o exercício regular de um direito (art. 188. I, do Código Civil) não constitui ato ilícito, ainda assim, não pode ser usado em excesso contrariando seus fins econômicos e sociais. Caso seja utilizado em excesso, tem-se o abuso de direito, ou seja, nos dizeres de R. Limongi França (1991), “um ato jurídico de objeto lícito, mas cujo exercício, levado a efeito sem a devida regularidade, acarreta um resultado que se considera ilícito”. Do exposto, conclui-se que no exercício regular, ou normal, de um direito reconhecido, o seu titular gera dano a outrem, mas não há o dever de indenizar uma vez que sua utilização se deu dentro dos limites impostos pelo seu fim socioeconômico, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Nessecontexto, tem-se por exercício regular do direito o credor que penhora os bens do devedor, ou o proprietário que ergue construção em seu terreno prejudicando, não intencionalmente, a vista do seu vizinho. Já o abuso de direito é, como visto, o uso de tais prerrogativas subjetivas em excesso, ultrapassando os referidos limites. Só restará configurado se o direito for exercido em excesso, de maneira irregular ou anormal. 36 São exemplos de abuso: a hipótese de alguém em sua casa ouve som excessivamente alto transpassando os limites de normalidade/razoabilidade; utilização de aparelho que interfere na TV ou no rádio do vizinho; o uso de cercas eletrificadas que possam causar a morte de qualquer pessoa ou animal que a toque propositalmente ou mesmo acidentalmente; o depósito de lixo em terreno próximo à moradia de outrem, entre tantas outras possibilidades. Em todos esses casos, exsurgirá um dever secundário de indenizar, cabendo ao prejudicado a utilização da ação judicial apropriada (DINIZ, 2008). Várias passagens do Código Civil de 2002 reprimem o abuso de direito, v. g., em seus artigos 421 e 422, 1.228, §§1º e 2º, e 1.648. Há também reprimendas ao abuso de direito em legislação extravagante, como se constata na hipótese de limitação ao direito do inquilino em purgar a mora nas ações de despejo em razão da ausência de pagamento, extraído do artigo 62, parágrafo único, da Lei n. 8.245/91. Por seu turno, no cerne constitucional, diversas são as sansões por conduta abusiva, a saber, artigos 14, §§9º e 10, e 173, §4º da Constituição da República de 1988. Já na ceara processual, depreende-se que ao litigante será atribuída a responsabilidade pelo abuso das faculdades que lhe são conferidas, devendo responder por elas nos termos dos artigos 14, parágrafo único, 17, 18 e 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil de 1973. Por fim, destaca-se que para restar caracterizado o abuso de direito, não há exigência da presença do elemento subjetivo, a culpa ou o dolo, sendo necessário apenas o seu exercício distorcido (PELUSO, 2012). Há na doutrina e na jurisprudência pátria desdobramentos que abarcam e fundamentam o abuso de direito, tanto na esfera contratual quanto na extracontratual, assunto que será mais bem desenvolvido no próximo capítulo. 37 4 DESDOBRAMENTOS DOUTRINÁRIOS E JURISPRUDENCIAIS QUE DEMONSTRAM O ABUSO DE DIREITO NAS ESFERAS CONTRATUAL E EXTRACONTRATUAL O direito é muito dinâmico já que provém de uma sociedade em constante evolução. A cada novo dia, a cada novo desafio, uma nova forma de pensar, há o aperfeiçoamento de conduta, do modo de interpretar e agir diante de determinadas situações que se repetem ao longo dos tempos ou se renovam, reinventam-se ou nascem. Diante de tamanho dinamismo, quase sempre mais rápido do que os procedimentos aplicados na feitura das normas, e da consequente difusão do modo de pensar diante de determinado comportamento, resta ao magistrado, no momento do julgamento em um certo caso concreto, entre outros métodos hermenêuticos a ele disponíveis, fazer uso da doutrina e da jurisprudência, já que essas, ao contrario das normas, caminham mais próximas do referido dinamismos, trazendo, muitas vezes, soluções mais adequadas, e por isso mais justas, ao caso em apreço. No estudo do abuso de direito, orbitam alguns desdobramentos de referida natureza, ou seja, doutrinários e jurisprudenciais, que norteiam, como dito, o juiz em suas decisões. Tais institutos em muitas ocasiões terão sua origem em normas, outras em costumes e na boa- fé; em suma, não estão expressamente positivados, por isso são tratados como desdobramentos. No presente capítulo far-se-á o estudo dos desdobramentos relativos ao abuso de direito, que incide em duas cearas de responsabilização, a contratual – relativa ao abuso de direito praticado no âmbito das regras contidas em determinado contrato – e a extracontratual, proveniente do abuso cometido em contrariedade às normas previstas em lei. Na esfera contratual estão presentes os seguintes institutos: tu quoque, violação positiva dos contratos e o adimplemento substancial. Já na esfera extracontratual, será visto o supressio/surrectio, a litigância de má-fé e por fim, o venire contra factum proprium. Esse último, foco principal do presente estudo, será abordado especificamente no próximo capítulo. 38 Na sequência, serão tratados cada um dos institutos mencionados em suas respectivas esferas. 4.1 Na esfera contratual 4.1.1 Tu quoque O termo tem origem na Roma antiga, 43 a.c., quando o imperador Júlio Cesar fora surpreendido com a presença de Marco Júnio Bruto – a quem considerava um filho – entre aqueles que conspiraram seu assassinato. Naquele momento, diante de sua morte eminente, ao ver Bruto, Júlio Cesar exclamou: “Tu quoque, Brutus, tu quoque, fili mili?”, ou seja, “até tu Bruto, até tu, filho meu?”. Tu quoque, então, significa “até tu”, “também tu”, em estado de espanto, surpresa, decepção com a atuação inconsciente de certa pessoa (FARIAS, 2005). Para alguns doutrinadores, Anderson Schereiber e Cristiano Chaves de Farias, o tu quoque seria uma subespécie do venire, sendo este o gênero e aquele a espécie (DANTAS JÚNIOR, 2007). Contudo, Dantas Júnior (2007) é enfático ao escrever que, embora existam semelhanças entre os institutos, prevalecem as diferenças que afastam a assimilação defendida pelos celebres doutrinadores, entre elas o fato de que o venire repousa na proteção à boa-fé, enquanto o tu quoque tem seu cerne na repressão à má-fé. No fundo, parece a mesma coisa dita de outra forma, mas não é. Em outras palavras, o venire tutela a confiança gerada pela conduta exordial em razão da boa-fé; está focada na percepção subjetiva da contraparte, independentemente se o agente atuou ou não com má-fé. De outro lado, o tu quoque visa reprimir a conduta intencionalmente prejudicial do agente. Observa-se, entretanto, que em ambas as situações ocorre o comportamento contraditório, o que, segundo o autor, permitiria a qualificação como hipótese de venire. Mas ao mesmo tempo, essa contradição se mostra reprovável, consubstanciada em inaceitável má-fé do agente, conduzindo à figura do tu quoque por ser essa mais adequada (DANTAS JÚNIOR, 2007). O tu quoque se faz presente, então, quando o indivíduo, no âmbito de uma relação contratual, adota para si uma interpretação mais benéfica e, diante da mesma situação, a adota de forma 39 distinta quando se refere à sua contraparte, visando também se beneficiar em detrimento desta. Observa-se, no caso, um peso e duas medidas, sendo adotada pelo agente, de acordo com a situação, sempre aquela que melhor lhe beneficie, em evidente desequilíbrio e má-fé. É um manifesto comportamento contraditório. A guisa de exemplo, o tu quoque restaria presente diante da situação em que, no âmago de um contrato, o agente defendesse que pelo inadimplemento da obrigação, v. g., pagamento de uma determinada prestação, recairia, após três dias, multa de 1%, quando sua contraparte fosse a inadimplente; enquanto que, nas mesmas circunstâncias, mas sendo o agente o inadimplente, este defenda e aja de acordo com a interpretação de que a referida multa só deve ser aplicada se transcorridos quinze dias do inadimplemento. Embora ainda pouco adotado, considerando os demais institutos, seguem alguns julgados10 a título ilustrativo: 10 RECURSO ESPECIAL. DIREITO CAMBIÁRIO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADEDE TÍTULO DE CRÉDITO. NOTA PROMISSÓRIA. ASSINATURA ESCANEADA.DESCABIMENTO. INVOCAÇÃO DO VÍCIO POR QUEM O DEU CAUSA. OFENSA AOPRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. APLICAÇÃO DA TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOSSINTETIZADA NOS BROCARDOS LATINOS 'TU QUOQUE'
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