Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS SOBRE REGIMES INTERNACIONAIS: A ABORDAGEM CONSTRUTIVISTA. Adriana Mesquita Corrêa Bueno* RESUMO O objetivo principal deste artigo é desenvolver uma revisão analítica da literatura contemporânea acerca de regimes internacionais – a abordagem construtivista – e verificar quais as suas contribuições para a análise destes arranjos institucionais. Para tanto, recuperar-se-á brevemente a corrente racionalista de regimes internacionais, que marcou as décadas de 1970 e 1980, período profícuo de produção acadêmica sobre instituições. Proximamente, será retomada a “guinada” construtivista nos estudos da Política Internacional, ocorrida na década de 1990, que incorporou ideias, identidades e conhecimento na conformação dos interesses dos atores do sistema internacional. Nesse contexto, será analisada especificamente a contribuição da perspectiva construtivista para o estudo de regimes, com enfoque no programa de pesquisa das comunidades epistêmicas. Palavras-chave: Construtivismo; Regimes internacionais; Comunidades epistêmicas. ABSTRACT The main objective of this subject is to develop analytical review of nowadays literature about international scheme, the constructive approach, and verify what are their contributions to the analysis of these institutional arrangements. Then in the near future replaced the current racionalist of international, scheme, that marks the decades of 1970 and 1980, period fruitful of academy production about institutions. Soon it will be incorporated by constructive “looping” of studies of international politic, that happened in the decade of 1990 including ideas, identities and knowledge of confirmation about actor’s interest of the international system. In this context, it will be analysed specifically a contribution of a constructive perspective for the studies about schemes, with focus on the searching programs about epistemology communities. Keywords: Constructivism. International Schemes. Epistemology communities. *Discente do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais – “San Tiago Dantas”- UNESP/UNICAMP/PUC-SP. 2 1. INTRODUÇÃO Desde o final da década de 1980, o campo das relações internacionais1 foi enriquecido ao incorporar uma nova escola ao debate, até então dominante, entre neorealistas e institucionalistas neoliberais – posteriormente chamados racionalistas. Trata-se da teoria do construtivismo social, que critica as teorias racionalistas por considerarem os interesses e identidades dos atores como exogenamente dados. Em oposição, o construtivismo resgata e enfatiza as crenças causais e normativas dos decisores e proporciona uma reflexão sobre como a distribuição de conhecimento conforma as identidades, preferências e interesses dos atores. Nesse contexto, este artigo busca verificar o estado-da-arte da literatura contemporânea acerca de regimes internacionais e está dividido em quatro seções. Primeiramente, com o intuito de verificar a contribuição da abordagem construtivista no âmbito proposto, será brevemente resgatado o pensamento inicial sobre a escola de regimes, a partir da análise de textos publicados nas décadas de 1970 e 1980. É neste momento que a definição conceitual de regimes é realizada e, a partir desta, ocorre o desenvolvimento de perspectivas teóricas distintas sobre os regimes e instituições. Num segundo momento, abordar-se-á o surgimento da escola construtivista, por meio de seus principais expoentes e análises de importantes textos desta escola. Discorrer-se-á, também, acerca dos pressupostos fundamentais do construtivismo e os pontos de divergência e de eventual aproximação com a abordagem racionalista. A terceira seção traz o olhar teórico contemporâneo sobre a literatura de regimes internacionais, direcionando seu foco para a análise construtivista dos regimes internacionais, sobretudo por meio do programa de pesquisa denominado comunidades epistêmicas. As considerações finais apresentam os resultados e contribuições da abordagem construtivista para a literatura de instituições e regimes internacionais, a partir do que foi delineado nas seções anteriores, e propõem sugestões para produção de trabalho empírico-teórico no campo das relações internacionais no Brasil. 1 Para fins de análise, esta autora considera as relações internacionais como campo e não disciplina. Campo pode ser definido como um segmento com lógica própria, imbuído de autonomia relativa, interdependência em relação a outros campos e autoreferência. Para maiores informações, consultar: CRUZ, S. C. V. (2005) Um prisma ex-cêntrico: o campo das relações internacionais no Brasil e os desafios da época. In: Seminário Internacional Visões da Periferia: representações, teorias, e questões na disciplina de Relações Internacionais fora do centro, Rio de Janeiro, Brasil. 3 2. A ORIGEM DAS TEORIAS DE REGIMES INTERNACIONAIS: DEFINIÇÕES CONCEITUAIS E A ABORDAGEM RACIONALISTA. A origem das teorias de regimes internacionais encontra-se na década de 1970, mais precisamente com a publicação do artigo “International responses to technology: concepts and trends” (Ruggie, 1975). Neste, John Gerard Ruggie suscitou a discussão acerca da tensão existente entre política e ciência no que tange aos desafios tecnológicos em três níveis distintos: cognitivo, regimes internacionais e organizações internacionais. A partir da definição de John Ruggie de regimes internacionais,2 iniciou-se um amplo debate entre teóricos e acadêmicos das relações internacionais sobre essa categoria. Quase uma década após o artigo de Ruggie, Stephen Krasner propôs uma nova definição para regimes internacionais: “... conjuntos de princípios implícitos ou explícitos, normas, regras e procedimentos em torno dos quais as expectativas dos atores convergem em uma dada área das relações internacionais” (Krasner, 1982: 2. Tradução nossa). Desta forma, pode-se apreender quatro critérios fundamentais para a formação de um regime, quais sejam: princípios, normas, regras e procedimentos. O primeiro critério abordado, princípios, pode ser entendido como crenças de fato, que definem os objetivos a serem conquistados pelos membros do regime; é preciso ressaltar que há princípios explícitos e implícitos – aqueles se caracterizam pela normatização e institucionalização político-jurídica dos princípios, estes, pela institucionalização de comportamentos, ou seja, por um viés sociológico. Pode-se, então, afirmar que os princípios implícitos precedem a formulação dos explícitos, pois os primeiros estão enraizados nas sociedades. A disseminação de tais princípios os transforma em um hábito e, a partir daí, é possível a institucionalização dos mesmos. A função básica das instituições é regular as ações que ocorrem dentro de determinado grupo social; segundo Berger e Luckmann, “as instituições, também, pelo simples fato de existirem, controlam a conduta humana estabelecendo padrões previamente definidos de conduta, que a canalizam em uma direção” (Berger; Luckmann, 1999: 80). O segundo, normas, como padrões de comportamentos definidos em termos de 2 Para Ruggie, regimes internacionais são “conjuntos de expectativas mútuas, regras e regulações, planos, energias organizacionais e comprometimentos financeiros que são aceitos por um grupo de Estados” (Ruggie, 1975: 570-571). Nota-se que o autor leva em consideração as expectativas mútuas entre os atores, diferentemente da definição proposta pela correnteracionalista, que será vista no decorrer desta seção. É possível, então, perceber o elemento construtivista presente na definição de Ruggie. 4 direitos e obrigações, que conferem legitimidade ou ilegitimidade à ação dos membros. O terceiro critério, regras, pode ser entendido como prescrições ou proibições específicas para a ação, podendo ser mais facilmente alteradas, se comparadas às normas e aos princípios. Finalmente, o último, procedimentos, como práticas predominantes para realizar a escolha coletiva, implementar princípios e alterar regras (Keohane, 1984: 57 e ss). A definição conceitual de regimes internacionais realizou-se no contexto do debate neorrealismo x neoliberalismo, o qual contribuiu para o desenvolvimento de duas teorias de regimes: a neorealista, para quem o poder constitui-se na variável-chave e os atores buscam ganhos relativos e a institucionalista neoliberal, cuja variável central é os interesses e, assim, os atores objetivam maximizar seus ganhos absolutos. Os principais expoentes destas teorias de regimes são os neorealistas Stephen Krasner e Susan Strange e os institucionalistas neoliberais Robert Keohane e Robert Axelrod.3 Ambas correntes seguem a mesma orientação metateórica, o racionalismo, e passaram a ser questionadas com o surgimento de uma escola teórica baseada no cognitivismo: o construtivismo social. 3. A GUINADA CONSTRUTIVISTA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: O PAPEL DAS IDÉIAS, IDENTIDADES E DO CONHECIMENTO NA CONFORMAÇÃO DOS INTERESSES. A teoria construtivista, também chamada reflexivista, das relações internacionais originou-se no final da década de 1980, mais especificamente com a publicação de “World of our making: rules and rule in social theory and international relations” (University of South Carolina Press, 1989), por Nicholas Onuf. Nesse período, iniciou- se um amplo debate – sobretudo no âmbito da teoria das relações internacionais norte- americana – entre neorrealistas e neoliberais (racionalistas) e teóricos críticos. O aporte construtivista surgiu como um contraponto às escolas racionais, enfatizando a importância de estruturas normativas (normative frameworks) e materiais na formação das identidades dos atores políticos e na relação mútua entre agentes e estruturas. 3 Para uma discussão aprofundada das teorias racionalistas de regimes, ver HASENCLEVER, A.; MAYER, P.; RITTBERGER, V. (2004) Theories of international regimes. 2e. Cambridge: Cambridge University Press. 5 Em 1992, Alexander Wendt publica seu texto clássico do construtivismo “Anarchy is what states make of it: the social construction of power politics” e, a partir deste, o construtivismo se subdivide em duas vertentes: a wendtiana, que busca estabelecer uma conexão entre o racionalismo e os reflexivistas, à qual também pertence John Gerard Ruggie, e a corrente construtivista crítica, da qual fazem parte Robert Cox, Nicholas Onuf e Friedrich Kratochwil. A essência da teoria construtivista encontra-se nos conceitos de estrutura e identidade. A primeira corresponde à interação de padrões e à interação entre agentes, idéias e práticas – que é denominada intersubjetividade – e é construída socialmente. Já o segundo conceito, identidade, constitui-se na base dos interesses dos atores. Pode-se apreender três pressupostos fundamentais do construtivismo, quais sejam: constituição mútua de agentes e estruturas; compreensão da condicionalidade das estruturas não-materiais sobre as identidades e interesses dos atores e importância equitativa entre estruturas normativas e materiais, já que ambas moldam o comportamento dos atores internacionais. Pode-se afirmar, então, que esse aporte é dialético, pois reconhece que atores e estruturas influenciam-se mutuamente. Os construtivistas negam antecedência ontológica tanto aos agentes quanto à estrutura e afirmam que ambos são coconstituídos. Wendt propõe uma abordagem denominada estruturacionismo (structurationism), que une “o melhor dos dois mundos” (Wendt, 1987: 339) das teorias neorealista e do sistema-mundo e confere tanto aos agentes quanto às estruturas a mesma posição ontológica. Segundo ele, O problema agente-estrutura é, na realidade, dois problemas inter- relacionados, um ontológico e outro, epistemológico. O primeiro problema, e mais fundamental, diz respeito à natureza de ambos, agentes e estruturas e, já que os dois se afetam mutuamente de algum modo, também às suas inter-relações. Em outras palavras, que tipo de entidades são (ou, no caso de estruturas sociais, são mesmo entidades?) e como se inter-relacionam? Há, basicamente, duas formas de se abordar esta questão: tornar uma unidade de análise ontologicamente primitiva ou dar-lhes o mesmo e, portanto irredutível, status ontológico. [...] Esta conceituação [estruturacionista] nos força a repensar as propriedades fundamentais de agentes (estatais) e estruturas do sistema. Em troca, permite-nos utilizar agentes e estruturas para explicar algumas das 6 propriedades-chave de cada um como efeitos do outro, ver agentes e estruturas como “co-determinados” ou entidades “mutuamente constituídas”. (idem. Tradução e grifo nossos.) Ainda no texto de 1992, Wendt advoga que a anarquia não possui uma lógica única de conflito e competição; antes, a anarquia pode reverter tanto lógicas de conflito quanto de cooperação, dependendo de como os Estados a utilizam. No excerto acima, observa-se que, para o autor, os agentes são estatais. Desta forma, pode-se inferir que a análise construtivista wendtiana é centrada nos Estados e que se aproxima, em certa medida, da teoria realista, quanto à determinação dos atores internacionais. Ainda, ela considera que o poder é um elemento importante, embora não seja o único a moldar o comportamento e ações dos atores; considera-se que a política de poder é uma idéia resultante das estruturas social e internacional. Para o construtivismo, os Estados formam algo mais complexo do que um sistema: uma sociedade. A análise da política internacional se dá por meio da abordagem tradicional (em oposição à científica), ou seja, por meio do “exercício do julgamento” e não pela verificação e prova. Ademais, a escola construtivista traz as normas para o centro do estudo das relações internacionais, o que a aproxima da Escola Inglesa.4 Os segundo e terceiro pressupostos construtivistas estão relacionados às identidades dos agentes e o papel das estruturas normativas, que são comparadas de forma equitativa às estruturas materiais, na conformação das identidades e interesses dos mesmos. As identidades dos atores são construídas pelas estruturas normativas por meio de três mecanismos: imaginação, comunicação e constrangimento. As normas institucionalizadas condicionam, assim, a ação dos policy makers. De acordo com Finnemore e Sikkink (1998), normas são padrões de comportamento apropriado para atores com uma dada identidade.5 Neste sentido, as normas podem desempenhar dois 4 A Escola Inglesa remete à tradição grociana e confere significativa importância ao Direito, à ordem e às normas internacionais. Ainda, defende a existência de uma sociedade internacional, apesar da existência da anarquia. Caracteriza-se pela objetividade científica, negação do behaviorismo e cientificismo, no âmbito metodológico, e utilização do método sociológico e análise institucional. Para maiores informações, consultar: BULL, H. (2002) A sociedade anárquica. Brasília: Editora da UnB/IPRI; WIGHT, M. (2003) A política do poder. Brasília: Editora da UnB/IPRI e SUGANAMI, H. (1983) The structureof institutionalism: an anatomy of British mainstream International Relations. International Relations, 7(5): 2363-2381. 5 Finnemore e Sikkink (ibidem: 891) alertam para o fato de que instituições e normas são categorias distintas. Instituições são, conforme definição proposta por Oran Young (1989: 32. Tradução nossa), “práticas sociais que consistem em papéis facilmente reconhecidos agrupados em conjuntos de regras ou 7 papéis: mudança e constrangimento do comportamento dos atores. À medida que as normas e as idéias que as compõem são alteradas, o comportamento dos atores também o é. Contudo, apesar da aparente dicotomia teórica entre racionalidade e normatização, entre a abordagem racionalista e a construtivista, estas não devem ser entendidas como mutuamente excludentes; antes, “a racionalidade não pode ser separada de qualquer episódio politicamente significativo de influência ou mudança normativa, assim como o contexto normativo condiciona qualquer episódio de escolha racional” (ibidem: 888. Tradução nossa). Portanto, evidencia-se que as diferenças entre as correntes teóricas racionalistas e construtivistas não residem na questão da racionalidade, já que o construtivismo afirma que a racionalidade e a escolha têm um papel importante na análise das ideias e normas; antes se trata de arraigadas concepções metodológicas que ambas as escolas, racionalista e reflexivista, não pretendem renunciar. Finnemore e Sikkink (ibidem: 917) afirmam que este embate favorece a produção intelectual mais aprofundada acerca das idéias, normas, instituições e identidades e seus respectivos papéis na mudança política, pois nenhuma escola está inteiramente satisfeita com suas conclusões. Portanto, a fim de obter avanços teóricos sobre estas questões, faz-se necessário a superação dos debates e discussões puramente metodológicos. Isto pode ser percebido, em certa medida, na literatura contemporânea sobre instituições e regimes internacionais, cujo enfoque repousa sobre a ontologia destes arranjos, permitindo, assim, quando cabível, a assimilação de pressupostos racionalistas. 4. A CONTRIBUIÇÃO DA ABORDAGEM CONSTRUTIVISTA PARA A LITERATURA DE REGIMES INTERNACIONAIS. A abordagem construtivista não descarta totalmente a definição de regimes proposta por Krasner em 1982 (conjuntos de princípios, normas, regras e procedimentos); a diferença reside nos âmbitos epistemológico e ontológico: a postura epistemológica racionalista-positivista contradiz a base ontológica dos regimes internacionais. Assim, os construtivistas acrescentam, enquanto critérios formadores dos convenções que governam relações entre os ocupantes destas regras”. Portanto, normas trabalham com padrões de comportamento, enquanto que instituições, com a forma pela qual as práticas sociais são estruturadas. 8 regimes internacionais, as expectativas mútuas e convergentes e as crenças compartilhadas dos atores. Por meio deste acréscimo analítico, esta abordagem busca produzir um aporte teórico em que alternativas epistemológicas sejam consideradas, a fim de não contradizer a essência ontológica dos regimes: a intersubjetividade. Os regimes são formados a partir de uma autoridade política, que promove a fusão do poder com o propósito social legítimo e representam o comportamento internacional institucionalizado. Ademais, diferenciam-se de outros processos semelhantes por meio de seu elemento normativo6: os atores não apenas reproduzem as estruturas normativas, mas as alteram pelas suas práticas. John G. Ruggie (2002) esmiúça a diferença entre os pares regras e procedimentos e princípios e normas. Os primeiros são considerados instrumentos, por meio dos quais um regime pode vir a ser alterado pelos seus componentes; os segundos, estruturas normativas, que, caso venham a ser alterados, há mudança de regime e não no regime. Aqui, percebe-se o viés construtivista defendido por Ruggie, pois considera o par princípios/normas estruturas normativas, que moldam os interesses dos atores. A força de um regime também pode ser medida por meio de sua efetividade e robustez, o que confere um ponto de aproximação com a perspectiva racionalista; todavia, os construtivistas alertam para o fato de que a força de um regime não se refere, necessariamente, à coerência entre seus critérios constitutivos, já que regimes não funcionam como um maquinário perfeitamente – por que não dizer “positivistamente” – ajustado. Desta forma, pode-se afirmar que a abordagem construtivista no estudo dos regimes internacionais enfatiza o papel das ideias, das normas e do conhecimento como variáveis explicativas do comportamento dos agentes na política internacional. Logo, esta abordagem é conhecida como teoria baseada no conhecimento e é subdividida em cognitivismo forte (strong cognitivism)7 e fraco (weak cognitivism) – este último será analisado a seguir. O cognitivismo fraco caracteriza-se pela ênfase nas origens e dinâmicas das compreensões de mundo dos atores racionais, isto é, a demanda por regimes internacionais depende da percepção dos atores dos problemas internacionais; ainda, admite os Estados como redutores de incerteza, em que incerteza refere-se à 6 O construtivismo, conforme seção anterior, confere significativa importância às normas na análise do comportamento dos atores. 7 O cognitivismo forte centra-se nas origens das compreensões dos atores sobre o ‘Eu’ e o ‘Outro’ e apresenta um modelo sociológico de análise comportamental. 9 incapacidade dos políticos em avaliar as prováveis consequências de suas decisões. Portanto, ele se apresenta como uma visão complementar à teoria racionalista de regimes. Apesar desta proximidade, a agenda de pesquisa do cognitivismo fraco propõe- se a “reconstruir processos de formação e mudança de regime, em termos de aprendizado, [...] [e] busca iluminar como novos conhecimentos podem influenciar a demanda por cooperação baseada em regras entre Estados.” (Hasenclever; Mayer; Rittberger, 2004: 139. Tradução nossa.) O aprendizado desempenha, assim, um importante papel para a formação de regimes internacionais já que proporciona a redefinição do interesse nacional por meio da seleção de novos objetivos e da busca por estratégias apropriadas. Por sua vez, os regimes auxiliam no aprofundamento do conhecimento que provocou sua criação; portanto, a relação entre conhecimento e regimes constitui-se em uma via de mão dupla. Ao retomar a definição cognitivista de incerteza como a incapacidade dos decisores e policy makers em avaliar as prováveis conseqüências de suas decisões, tem- se a necessidade de criar novos canais pelos quais novas idéias circulem entre sociedades e governos que facilitem a coordenação política internacional. Estes canais são chamados comunidades epistêmicas. 5. COMUNIDADES EPISTÊMICAS: UM PROGRAMA DE PESQUISA COGNITIVO. A literatura acerca das comunidades epistêmicas coloca-se como um programa de pesquisa relativamente novo, cujos primeiros estudos datam do início da década de 1990, mais precisamente com a edição “Knowledge, Power, and Policy Coordination” do periódico International Organization (1992) sobre comunidades epistêmicas. O objetivo principal deste programa de pesquisa é o estudo empírico do impacto das ideias nas relações internacionais e está profundamente relacionado ao problema da coordenação política internacional. As comunidades epistêmicas são definidas como redes de profissionais com perícia e competênciareconhecidas em um domínio particular e com uma reivindicação autorizada ao conhecimento político relevante dentro desse domínio ou questão e caracterizam-se por: (i) conjunto compartilhado de crenças normativas, (ii) crenças causais compartilhadas, (iii) noções compartilhadas de validade e (iv) iniciativa política comum (Haas, 1992: 3). Daí, pode-se apreender a 10 influência construtivista deste programa de pesquisa, já que objetiva estudar a coordenação política internacional por meio do impacto das ideias, normas e crenças compartilhadas presentes na interação entre os atores no sistema internacional. Outrossim, decorre da relevância dada à intersubjetividade por esta abordagem, que a definição do interesse nacional é essencialmente distinta daquela proposta pelos racionalistas – em suas duas vertentes: neorrealista, que considera o poder e a sobrevivência estatal fundamentais para a formulação do interesse nacional e a institucionalista neoliberal, que considera os Estados maximizadores de utilidade na concepção de seus interesses. Para os autores de comunidades epistêmicas, a origem do interesse nacional é não-sistêmica, isto é, sua origem reside ou na influência direta que as comunidades epistêmicas exercem sobre os Estados na percepção de seus interesses, ou no entendimento proporcionado pelas comunidades epistêmicas de uma questão técnica, o que permite aos decisores inferir seu interesse. Dois aspectos são fundamentais para o surgimento destes grupos de experts técnicos: o Estado administrativo moderno e a presença da incerteza nos processos de tomada de decisão. Quanto ao primeiro, observa-se que a governança pública, desde início do século XX, está mais técnica e científica, quando a ciência passou a ser a principal fonte de autoridade cognitiva.8 Ademais, observa-se a crescente profissionalização e burocratização nos ministérios e instâncias governamentais. O segundo aspecto, a incerteza, está relacionado à complexidade crescente dos assuntos transnacionais complexos com os quais os decisores têm que lidar, dentre os quais se destacam: tecnologia, finanças, saúde e meio-ambiente. O grau crescente de incerteza, associado à incorporação de novas responsabilidades pela governança internacional, levou os políticos a buscarem novos canais de conselho, contribuindo para a melhoria da coordenação política internacional. É exatamente este contexto que favorece o surgimento das comunidades epistêmicas; contudo, para que elas facilitem a coordenação política, também são necessários outros dois elementos, referentes ao caráter técnico das comunidades: alto grau de consenso entre os cientistas e alto grau de institucionalização do conselho científico. Destarte, o conceito de comunidades epistêmicas busca demonstrar que a coordenação em assuntos complexos e técnicos leva os Estados a cooperarem, já que se trata de assuntos com baixo grau de “politização”. Porém, o fato de haver coordenação 8 Ver BARNES, B.; EDGE, D. (eds.) (1982) Science in context. Cambridge: MIT Press. 11 política nestes assuntos, não é garantia de que os Estados cooperarão de fato, ou que não haverá conflitos e divergências.9 É possível, então, inferir que este programa dedica-se a explicar a mudança nas relações internacionais, já que descarta a visão de que a política internacional pauta-se somente por elementos de continuidade, como poder, interesse nacional e escolha racional. Esta abordagem, assim como outras influenciadas pelo construtivismo, busca avaliar como as novas idéias e os conhecimentos adquiridos direcionam os tomadores de decisão e policy makers na formulação de novas políticas que sejam capazes de lidar com os problemas internacionais. Desta forma, as comunidades epistêmicas podem ser caracterizadas, também, como forças motoras de evolução política e não apenas de coordenação. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo buscou realizar a análise crítica da literatura contemporânea acerca de instituições e regimes internacionais, por meio da síntese comentada de textos de diversos autores da corrente construtivista. Para tanto, discorreu-se brevemente acerca da conceituação clássica de regimes internacionais, elaborada na década de 1980, por autores racionalistas. A partir da definição conceitual e com a emergência de uma nova escola na teoria das relações internacionais, o construtivismo social, a literatura sobre arranjos institucionais foi enriquecida, com a incorporação de ideias, normas, identidade e conhecimento no exame da política internacional contemporânea. No âmbito dos regimes, verifica-se que a abordagem construtivista não apresenta em seu programa uma ruptura absoluta com a definição conceitual de regimes proposta pela escola racionalista. Antes, os autores construtivistas buscam o refinamento analítico-teórico do conceito de regimes, agregando à definição clássica realizada por Krasner na década de 1980 dimensões importantes para a compreensão do comportamento dos atores – logo, de sua ação coletiva. São elas: conhecimento, por meio do aprendizado, ideias e identidade; desta forma, esta corrente não se diferencia conceitualmente da racionalista, mas sim, no âmbito epistemológico. 9 A título de exemplo, pode-se citar a questão do meio-ambiente: extremamente complexo, é um tema técnico no qual os cientistas possuem considerável influência sobre os policy makers. Apesar disso, o regime de mudança climática encontra dificuldades para se consolidar, conforme as dificuldades para ratificação do Protocolo de Kyoto demonstram. 12 O programa de pesquisa das comunidades epistêmicas está profundamente relacionado à literatura de regimes e pode ser caracterizado como uma inovação da teoria das relações internacionais, no que tange a um tema longevamente presente na agenda de pesquisa deste campo: a constante busca de explicações para o fenômeno da cooperação entre os Estados. Ademais, prova-se um bom instrumento teórico para compreensão e análise de uma gama variada de questões, marcadas pelo alto grau de complexidade e técnica, presentes na agenda internacional contemporânea. Ressalta-se, ainda, a análise das instâncias de tomada de decisão feita por autores deste programa que retratam com bastante pertinência a pulverização crescente do processo decisório, com a incorporação de agências e ministérios governamentais na consecução da política externa. Entretanto, esta abordagem mostra-se limitada, no que tange à conformação de comunidades epistêmicas internacionais em matéria de assuntos relacionados a questões de segurança militar, soberania e de estratégia – assuntos estes denominados high politics. Esta limitação ocorre em virtude da própria natureza destes temas que, no limite, referem-se à sobrevivência do Estado no sistema internacional e este, enquanto ator egoísta, não objetiva discutir em foros técnicos e/ou multilaterais temas diretamente relacionados à sua sobrevivência. Desta forma, o fôlego explicativo desta teoria restringe-se às questões chamadas low politics, isto é, àquelas relativas a comércio, meio-ambiente, economia, saúde pública – questões que dependem, em última instância, de condições de segurança para produzirem efeitos e, assim, tornarem-se relevantes na agenda política dos Estados. Finalmente, a partir da análise realizada e da conjuntura atual do campo de relações internacionais no Brasil, este trabalho aponta algumas sugestões de trabalhos acadêmicos que objetivem o fortalecimento teórico do campo. Este se encontra num momento de constituição, em que vários programasde pesquisa são estabelecidos à medida que cursos de graduação e pós-graduação em relações internacionais consolidam-se no país. Neste contexto, sugere-se a produção de trabalhos acadêmicos que aprofundem as pesquisas na área de instituições e regimes internacionais, com ênfase no programa das comunidades epistêmicas. 13 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADLER, E.; HAAS, P. Epistemic communities, world order and the creation of a reflective research program. International Organization, 46(1): 367-390, 1992. ADLER, E. O construtivismo no estudo das relações internacionais. Lua Nova, 47: 201-246, 1999. BAYLIS, J.; OWENS, P.; SMITH, S. The globalization of world politics. 4e. New York: Oxford University Press, 2008. BERGER, P. L.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 18ª ed. Petrópolis-RJ: Vozes. p. 69-172, 1999. BUZAN, B. From international system to international society: structural realism and regime theory meet the English School. International Organization, 47: 327-352, 1993. CRUZ, S. C. V. Um prisma ex-cêntrico: o campo das relações internacionais no Brasil e os desafios da época. In: Seminário Internacional Visões da Periferia: representações, teorias, e questões na disciplina de Relações Internacionais fora do centro, Rio de Janeiro, 2005. FINNEMORE, M.; SIKKINK, K. International norm dynamics and political change. International Organization, 52(4): 887-917, 1998. FINNEMORE, M. Fights about rules: the role of efficacy and power in changing multilateralism. Review of International Studies, 31, Supplement S1: 187-206, 2005. HAAS, E. Why collaborate? Issue-linkage and international regimes. World Politics, 32(3):357-405, 1980. HAAS, P. Introduction: epistemic communities and international policy coordination. International Organization, 46(1): 1-35, 1992 14 HAGGARD, S.; SIMMONS, B. A. Theories of international regimes. International Organization, 41(3): 491-517, 1987. HASENCLEVER, A.; MAYER, P.; RITTBERGER, V. Theories of international regimes. 2e. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. HOPF, T. The promise of constructivism in international relations. International Security, 23(1): 171-200,1998. KEOHANE, R. (1984) After hegemony: cooperation and discord in the world political economy. New Jersey: Princeton University Press, 1984. ______. “Institutional theory and the realist challenge after the Cold War”, 1993.. In: BALDWIN, D. A. (org.) Neorealism and neoliberalism. New York: Columbia University Press. p. 269-300, 1993. ______. NYE, J. Power and interdependence. 3e. New York: Longman, 2001. KRASNER, S. Structural causes and regime consequences: regimes as intervening variables. International Organization, 36(2): 1-21, 1982. NOGUEIRA, J.P.; MESSARI, N. Teoria das relações internacionais: correntes e debates. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. ONUF, N. Institutions intentions and international relations. Review of International Studies, 28(2): 211-228, 2002. RUGGIE, J. G. International responses to technology: concepts and trends. International Organization, 29(3): 557-583, 1975. ______. International regimes, transactions, and change: embedded liberalism in the postwar economic order. International Organization, 36(2): 379-415, 1982. Disponível em: <http://www.columbia.edu/itc/sipa/U6800/readings-sm/rug_ocr.pdf>. Acesso em: 10 jun 2008. 15 ______. What makes the world hang together? Neo-utilitarianism and the social constructivist challenge. International Organization, 52(4): 855-885, 1998. ______. Constructing the world polity: essays on international institutionalization. London and New York: Routledge. Part I: International Organization, p. 41-130, 2002. SMOUTS, M-C. (Org.) As novas relações internacionais: práticas e teorias. Brasília: Editora da UnB, 2004. VIOTTI, P. R.; KAUPPI, M. V. International relations theory: realism, pluralism, globalism and beyond. Boston: Allyn and Bacon, 1985. WENDT, A. The agent-structure problem in international relations theory. International Organization, 41(3): 335-370, 1987. ______ .Anarchy is what states make of it: the social construction of power politics, International Organization, 46: 391-425, 1992. YOUNG, O. International regimes: toward a new theory of institutions. World Politics, 39(1): 104-122, 1986. ______. A eficácia das instituições internacionais: alguns casos difíceis e algumas variáveis críticas, 2000. In: ROSENAU, J. N.; CZEMPIEL, E-O. Governança sem governo: ordem e transformação na política mundial. Brasília: Editora da UnB, 2000.
Compartilhar