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ESMEG – ESCOLA SUPERIOR DA MAGISTRATURA DE GOIÁS APOSTILA DE DIREITO CONSTITUCIONAL Prof. Bruno Pontes - 2012 Direitos autorais reservados. Proibida a reprodução, ainda que parcial, sem autorização prévia (Lei 9.610/98) AULAS 01 E 02 – CONSTITUCIONALISMO, DIREITO CONSTITUCIONAL E CONCEITO E SENTIDOS DE CONSTITUIÇÃO Sumário: I. CONSTITUCIONALISMO E DIREITO CONSTITUCIONAL I.1 Considerações gerais I.2 Sentidos de constitucionalismo I.3 Origem e divisão histórica do constitucionalismo I.4 Neoconstitucionalismo I.5 Direito constitucional I.6 Origem do direito constitucional I.7. Características do Direito Constitucional I.8 Direito constitucional e teoria geral da Constituição I.9 Divisões do direito constitucional 2.0 Direito constitucional processual e direito processual constitucional II. CONCEITO E SENTIDOS DE CONSTITUIÇÃO II.1 Definindo Constituição II.2 Sentidos de Constituição II.3 Outros sentidos de Constituição II.4 Conceito de Constituição II.5 Classificação de constituições II.6 Outras classificações II.7 Classificação da Constituição de 1988 Capítulo I: CONSTITUCIONALISMO E DIREITO CONSTITUCIONAL “Por trás de todo direito há um rasto de sangue”. I.1. Considerações gerais As primeiras conquistas do homem foram contra o próprio homem. O bando que tinha mais força dominava as propriedades, a comida e as fêmeas do outro bando. Por isso, os homens resolveram criar algo poderoso, que pudesse resguardar suas propriedades e gerar, assim, um mínimo de segurança para viver: criaram o Estado, concentrando nele toda a força disponível, transformando-se na primeira grande conquista do homem, enquanto ser social. Se os homens resolveram delegar poderes para o Estado, concentrado nele toda a força necessária para manter a paz social, era de se supor que o Estado acabasse abarcando a tudo e a todos; que acabasse sendo absoluto. A intenção era esta mesma: o Estado deveria ser absoluto, não podendo ser a ele oposto outro poder, outra força, sob pena de balbúrdia, insegurança e fragilidade do próprio Estado. Por isso é que o inglês Thomas Robbes (05.04.1588 – 04.12.1679) chegou a comparar o Estado ao monstro bíblico “Leviatã”, no livro Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil, de 1651, enfocando que seria necessário um contrato social entre os povos para celebrar a paz, porque os homens são egoístas e caminham inevitavelmente para a guerra. Seria necessário, portanto, algo poderoso e soberano para limitar esta fraqueza humana e impor medo aos homens, afastando os problemas que esta fraqueza pode ocasionar, como guerra, caos, injustiças, desordem e insegurança. Era uma época em que o Estado precisava ser forte, daí porque Hobbes afirmou: “Esta é a geração daquele enorme Leviatã, ou antes – com toda reverência – daquele deus mortal, ao qual devemos, abaixo de Deus Imortal, nossa paz e defesa”. O absolutismo estatal deveria, portanto, ser canalizado unicamente para gerar paz, segurança e justiça social. Não foi, entretanto, o que ocorreu. Na verdade, nos primórdios da criação do Estado a humanidade não conhecia o recado do francês Montesquieu (18.01.1689-10.02.1755): todo homem que tem o poder sente inclinação para abusar dele, e segue abusando até encontrar limites. Foi por isso que os homens não imaginaram, originalmente, que o Estado, que é uma ilustração simbólica cuja força se efetiva pelas mãos do homem, se voltaria contra os próprios homens, tornando-se opressor e violento. Não se imaginava que a vontade por mais segurança e justiça acabaria trazendo outras formas de insegurança e injustiça, forjando a humanidade a lutar contra o próprio Estado. Porém, se a conquista do homem contra o próprio homem, criando o Estado, apesar de natural, foi difícil, as conquistas contra o próprio Estado foram ainda mais penosas. Muito mais sob a insígnia do ódio do que propriamente do amor, a humanidade passou a lutar com intensidade em busca de cada direito, dando razão à concepção realista dos direitos fundamentais. Até um dos primeiros direitos do ser humano, o direito ao sepultamento, foi conquistado a duras penas. Não foi à toa que a espada – ou cornucópia - foi parar em uma das mãos da Deusa Têmis, o símbolo da Justiça, porque na verdade não quer representar apenas a força do Direito, mas também as lutas que o antecederam: se foi preciso a utilização da força bruta para conquistar um direito, a Deusa Têmis deixa claro que a mesma força será utilizada para efetivá-lo. O constitucionalismo, ao lado, antes e depois de muitos outros movimentos, surgiu neste momento de assombro da sociedade para com um Estado desvirtuado dos verdadeiros e razoáveis motivos que o fizeram surgir. A sociedade, estupefata, porém mais crítica, organizada e corajosa, começou a se insurgir contra o leviatã, para que fosse preservada a liberdade individual e a propriedade privada, comumente devassadas pelo Estado. É que o Estado absolutista, especialmente o Estado absolutista monárquico, começou a eliminar o espaço individual dos homens, restringindo suas vontades pessoais e inevitavelmente causando a deflagração do movimento liberal: era preciso conter a atividade estatal para dar segurança ao círculo subjetivo do ser humano, por meio da maximização da liberdade individual e limitação legal da vontade estatal. Muitos movimentos, revolucionários ou não, marcaram a história da humanidade. Porém, um deles, o Iluminismo, surgiu forte no Século XVIII, exultando a razão para explicar as coisas e servindo de grande impulsionador do constitucionalismo. Herdeiro do renascimento e do humanismo, o Iluminismo valorizava a razão e o homem, inserindo este como centro do universo (antropocentrismo). Teve a seu favor o gênio de grandes pensadores da humanidade: John Locke (1632-1704), que enfatizou a aquisição de conhecimento do homem pela experiência empírica; Voltaire (1694-1778), ardo defensor da liberdade de pensamento e contumaz crítico da intolerância religiosa; Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que defendia a igualdade de todos por meio de um Estado democrático; Montesquieu (1689-1755), que massificou e deu cientificidade à divisão do poder político em Legislativo, Executivo e Judiciário; e Denis Diderot (1713-1784) e Jean le Rond d’Alembert (1717-1783), que, juntos, reuniram em uma enciclopédia o conhecimento e o pensamento filosófico da época. Após o transcurso de uma longa estrada contra o Estado Leviatã, transcurso muitas vezes marcados por lutas terríveis e sanguinolentas, não demorou para que se sobrepujasse na sociedade o sentimento de que o poder político deveria ser legalmente limitado, não podendo estar livremente solto na cabeça daqueles que detêm o poder, sob pena de inevitáveis arbitrariedades e prejuízos para a liberdade individual. Este sentimento generalizado acabou encontrado um método inteligente de controle do Estado, ao enfatizar a necessidade de um documento superior contendo regras de contenção da atividade estatal e direitos e garantias básicas para que os homens tivessem uma existência digna. Todo o conjunto de forças da sociedade, então, começou a se engajar contra o Estado e contra a falta de cientificidade que imperava. Tanto a sociedade quanto os Conselhos Parlamentares, e até os grandes juristas e filósofos, começaram a lutar para que, em cada país, fosse construído documentos vistosos e suficientemente capazes de limitar e regular o Estado. Era o constitucionalismo, nascendo em prol do homem e de sua liberdade individual e contra as arbitrariedades estatais, epor isso mesmo muitas vezes taxado de subversivo. Portanto, o constitucionalismo significou uma conquista da humanidade, e pode ser considerando um movimento político, ideológico e jurídico que ocorreu durante o Iluminismo, por oposição ao absolutismo, e que tinha por fim estabelecer o regime constitucional em um determinado país para limitar e tornar razoável a atuação estatal, protegendo, assim, a liberdade individual do ser humano. Foi, na verdade, uma técnica jurídica encontrada pelo mundo, que se iniciou precipuamente para que o Estado não violasse os direitos dos cidadãos, e foi avançando para regulamentar cada vez mais a atividade estatal, e com o tempo passou a ter maiores contornos científicos, com é o caso da ideia de superioridade hierárquica em relação às demais normas, força normativa, separação dos poderes, criação de sistema de freios e contrapesos, aumento das previsões constitucionais e concretização da jurisdição constitucional. Necessário enfatizar que o constitucionalismo não nasceu junto com a democracia. Pode-se dizer que o constitucionalismo abriu as possibilidades para se criar a democracia, mas no início o constitucionalismo não tinha a intenção de determinar as formas de participação da sociedade no poder, mas apenas conter este poder. Depois que se fixou a ideia de que o poder estatal deveria ser limitado pela Constituição, logo a humanidade passou a se preocupar com as fórmulas de concretização das constituições, e aí sim houve a grande preocupação de que estas fórmulas incluíssem diretamente a vontade do povo, para efetivação da soberania popular. I.2. Sentidos de constitucionalismo É possível dividir o constitucionalismo em dois sentidos: o amplo e o estrito. No sentido amplo, constitucionalismo significa que todo Estado sempre possui uma Constituição, seja em qualquer época da humanidade. Mesmo não havendo um documento formal chamado de Constituição, há uma constituição, na sociedade, de regulamentações, mesmo que costumeiras. Este sentido amplo enfatiza que sempre haverá regulamentações para as condutas, sempre haverá limites, em decorrência da cultura da sociedade e dos diversos métodos de controle social e de relacionamento humano. Até na mais afastada aldeia indígena, haverá formas razoáveis e aceitas de regular a conduta dos integrantes do grupo, mesmo que a regulamentação não esteja expressa em um documento. No sentido estrito, constitucionalismo significa uma técnica jurídica elaborada para colocar em um documento escrito superior, a tutela das liberdades e regular os poderes do Estado, limitando-os para o fim de impedir a opressão e o abuso. Interessante notar que o sentimento do constitucionalismo surgiu de forma ampla, mas o constitucionalismo conhecido na doutrina constitucional é aquele em sentido estrito. Afinal, não haveria como lutar por um documento superior, se a sociedade não aceitasse, culturalmente, a necessidade de afunilar as suas grandes reservas morais e éticas, inclusive contra o Estado, em uma Constituição. I.3. Origem e divisão histórica do constitucionalismo É costume destacar que a origem formal do constitucionalismo está nas Constituições escritas e rígidas dos Estados Unidos da América, de 1787, e da França, de 1791, consequência das Revoluções Burguesas deste final do Século XVII. Foi a partir destes momentos da história da humanidade que o mundo definitivamente se inclinou para a necessidade de cada país ter sua Constituição, e nela constar a organização do Estado, suas limitações, além da previsão de direitos e garantias fundamentais para os cidadãos. Muitos movimentos e revoluções propiciaram a existência do constitucionalismo. É o caso da Revolução inglesa do Século XVII (iniciada com a Revolução Puritana de 1640 e concluída com a Revolução Gloriosa 1688), que significou, em apertada síntese, a limitação ao absolutismo monárquico pela transferência dos poderes para o Parlamento. Também é possível citar o movimento, na própria Inglaterra, que forjou a Magna Carta de 1215. Esta Carta, aliás, é considerada como a origem medieval do constitucionalismo no mundo, porque limitou os poderes do então Rei João Sem Terra. Porém, o mundo realmente despertou definitivamente contra o Estado Leviatã, e passou à Idade Contemporânea, após a Independência Americana de 1776 e a Revolução Francesa de 1789. A partir destes momentos únicos da história da humanidade, o mundo foi todo mudado e as ideias constitucionalistas passaram a campear a mente da burguesia, das elites em geral e, em muitos casos, até mesmo da plebe, manuseada muitas vezes, é verdade, mas sem dúvida beneficiada pela existência de uma Constituição então inexistente ou inexpressiva em face do Estado. Por isso é correto dizer que a base do Direito Constitucional é a estrutura do Estado e os direitos fundamentais. Esta base foi lançada na Revolução Francesa, quando seus operadores, frêmitos, lançaram ao mundo o art. 16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, surgida em meio à Revolução Francesa e que posteriormente serviu de base para a Declaração dos Direitos Humanos de 1948. O dispositivo dizia: “Toda sociedade na qual não está assegurada a garantia dos direitos e determinada a separação dos Poderes, não tem Constituição”. O mundo deve às duas revoluções que antecederam as constituições dos Estados Unidos de 1787 e da França de 1791, o sentimento constitucional, até então adormecido. A partir daí, a sociedade mundial acordou para a necessidade de cada país ter uma Constituição soberana, austera, simbólica, e que representasse os anseios mais devotos da sociedade e que fosse sempre um marco na limitação do Poder Público. Veja que o constitucionalismo surgiu entrelaçado com a ideia de liberalismo1, isto é, com a ideia de preservação da liberdade individual, no campo econômico, político, religioso e intelectual, contra as investidas e as interferências insensatas e arbitrárias do Poder Público. Naquele momento histórico do final do Século XVIII, que suscitaram as revoluções nas então colônias da Inglaterra (Estados Unidos) e na França, o mundo estava sendo contaminado com as ideias liberais. A maior prova disto é que Adam Smith havia publicado o seu livro A Riqueza das Nações, no ano de 1776, que iniciou a consolidação do capitalismo ao sustentar que a iniciativa privada em busca do busca do lucro é uma força imensa que incrementa a capacidade e a criatividade humana, produzindo riquezas, desenvolvimento, libertação do ser humano e bem estar comum. Por isso, o constitucionalismo foi influenciado decisivamente pelo liberalismo, no sentido de que as constituições poderiam frear as intervenções arbitrárias do Poder Público e, consequentemente, atingir o objetivo maior, que era dar segurança aos indivíduos para, com liberdade individual, viver e produzir, mesmo que para isso tivesse que se arriscar. Por fim, resta lembrar que a doutrina costuma dividir o constitucionalismo sob a perspectiva histórica: 1 Pode-se dizer que as Revoluções Americana e Francesa provocaram o aparecimento do Estado Liberal: Estado estruturado política e juridicamente para não intervir da economia e na liberdade do cidadão, deixando a sociedade livre para ditar, com suas próprias forças, seu próprio destino. As consequências foram: a) superação do absolutismo estatal, especialmente o absolutismo monárquico; b) aparecimento do Estado mínimo (intervenção mínima possível na esfera particular dos cidadãos) e dos direitos fundamentais de primeira geração (liberdades públicas – liberdade de ir e vir, de expressão, de associação e de reunião, liberdade religiosa, direito de propriedade, direitos políticos -, que garantem uma abstenção do Estado); c) Estado começa a ser laico (separação do Estado com a religião);d) ideia mais sólida de soberania popular (a fundamentação do poder se desvincula das questões transcendentais e religiosas e passa a ser ligada à vontade da nação, do povo, ambiente próprio para a teorização do Poder Constituinte, feito por Emmanuel Sieyès. Adiante, veja mais detalhadamente em Poder Constituinte). Constitucionalismo Antigo, ou da Antiguidade. Foi o surgimento tímido das características do constitucionalismo junto ao povo hebreu, a partir do momento em que o povo sentiu-se incomodado com atos estatais que estariam violando a moral religiosa/bíblica, fiscalizando-os por seus profetas, inclusive com a criação, ainda no distante Século V antes de Cristo, das cidades com características democráticas (Cidades-Estados gregas, com democracia direta e maior participação popular). Constitucionalismo Medieval. Trata-se do constitucionalismo surgido durante a Idade Média (476 d.C-1453 d.C), e teve como marco a Magna Carta de 1215 (Carta do Rei João Sem Terra). Foi, na verdade, um movimento liderado pela burguesia inglesa que, aproveitando-se dos fracassos do Rei João Sem Terra, que havia perdido batalhas importantes para ampliação do império britânico, acabou impondo limites à vontade do monarca, especialmente para proteção contra a fúria tributária e acusatória do Estado Monárquico Absolutista da Inglaterra. Constitucionalismo Moderno. Inaugurado com as constituições dos Estados Unidos de 1787 e da França de 1791, marcando uma época de instrumentos normativos escritos que continham a atividade estatal, após a influência do Iluminismo e do liberalismo no mundo para que o Estado não interferisse na liberdade individual dos homens, liberando-os para agirem conforme seus méritos. O constitucionalismo moderno foi o responsável pela noção atual de que Constituição é uma norma superior a todas as demais, escrita, codificada e imperativa, que impõe divisão de poderes, assegura os direitos e garantias individuais e estabelece as vigas-mestras do Estado, com fundamento na soberania popular, e que só pode ser modificada por meio de um processo mais rígido que o processo de modificação das outras leis (não se pode perder de vista que esta noção não é de toda correta, tendo-se em vista a existência de constituições não-codificadas e não-escritas, como é o caso da Inglaterra). Constitucionalismo Contemporâneo. Fase atual do constitucionalismo, também conhecido como neoconstitucionalismo (vide a seguir), com valorização das constituições e desvalorização da lei, em face da incapacidade desta de conter os abusos do Estado e de seus governantes. Daí porque as constituições passaram a representar a esperança do povo, incluindo nelas todos os clamores, com a consequência de torná-las analíticas, carregadas de várias matérias e muitos programas e metas vinculantes para o Estado (dirigismo estatal). A fase atual superou, sem dúvida, aquele momento da histórica em que as constituições eram apenas instrumentos de coordenação e organização do governo, sem força normativa e vinculante, vistas como símbolos de mudança histórica. A era atual é da “Constituição Total” (“totalitarismo constitucional”), porque engloba tudo e a todos, dirigindo a atuação do Estado (“Constituição Dirigente”, que exige ações do Estado), não mais se prestando apenas a limitar a atuação do Estado por meio da fixação de direitos e garantias individuais (“Constituição-Garantia”, que exige abstenção do Estado). Por isso, o constitucionalismo atual acaba produzindo várias situações, como é a superação do positivismo e o aparecimento do pós-positivismo, a normatividade dos princípios, os novos métodos de interpretação constitucional e o maior papel político do Judiciário, incrementando seu protagonismo na vida da sociedade. I.4. Neoconstitucionalismo Hoje se fala em neoconstitucionalismo, para enfocar um novo movimento, surgido após a 2ª Guerra Mundial, para que as constituições fossem mais abrangentes, aumentando a jurisdição constitucional, incluindo normas programáticas de cunho social e com superioridade hierárquica em relação às outras normas. É dizer: não basta apenas a Constituição limitar a atuação estatal, exigindo da mesma uma abstenção, porque é preciso que a Constituição exija uma ação estatal para melhorar as condições de vida do povo, passando ela a ser o ponto de partida para obrigar a todos, com possibilidade dos atos inferiores serem nulos. O neoconstitucionalismo confunde-se com o constitucionalismo contemporâneo. As constituições surgiram sintéticas, muitas vezes como símbolos de um momento histórico de ruptura. Portanto, natural serem pouco carregadas de matérias, porque bastava a inserção de um ou dois assuntos essenciais, como divisão do poder e direitos e garantias individuais, até porque o importante era a revolução e o sentimento social expressado na Constituição. O mundo, porém, assustou-se com a capacidade malévola do Estado, em especial após as calamidades da 2ª Guerra Mundial, e enxergou nas constituições um porto seguro para despejar todas as suas ansiedades. O marco histórico deste novo direito constitucional é a Lei Fundamental de Bonn (Constituição Alemã de 1949), com a consequente criação do Tribunal Constitucional Federal em 1951, e a Constituição da Itália de 1947, e a também consequente criação da Corte Constitucional em 1956. A partir de então, foi gerado um amplo movimento com novas características, que desembocaram especialmente na redemocratização e da expansão da jurisdição constitucional, como ocorreu em Portugal em 1976 e na Espanha em 1978. É possível dizer que o neoconstitucionalismo desenvolveu-se na Europa, ao longo da metade do século XX, e no Brasil tardiamente após a Constituição de 1988. Como não poderia deixar de ser, o termo neoconstitucionalismo pode ser contestado, na medida em que a nova onda de ver e sentir as constituições pode muito bem ser chamado de uma nova fase do constitucionalismo, ou então apenas a ratificação do desenvolvimento do constitucionalismo. É até possível falar em constitucionalismo primitivo, antigo, moderno e pós-moderno, ou contemporâneo, mas o importante, de todo modo, é destacar que a sociedade mundial elegeu a Constituição para nela desembocar os anseios e valores que vão se cristalizando, e enxergar nela o local correto de depositar uma “esperança civilizada”. Por certo que não basta descarregar as ansiedades na Constituição, mas é, sem dúvida, um ótimo começo, porque demonstra cada vez mais a necessidade de concretizar sentimento constitucional, para integrar a sociedade em um compromisso nacional estampado no documento supremo. Pode-se dizer, também, que o neoconstitucionalismo caracteriza-se pelo pós-positivismo, isto é, certa confluência entre o jusnaturalismo e o positivismo. Isto ocorreu porque o jusnaturalismo procurava dar proximidade entre lei e razão, sempre baseado na filosofia e nos princípios universalmente aceitos, mas pecava por ser metafísico e anticientífico, dando margens a excessivas subjetividades, daí a insegurança. Era baseado no direito livre: o aplicador do direito deve vislumbrar primeiro uma decisão justa, e depois buscar um fundamento para a decisão. O jusnaturalismo, portanto, se preocupava com a limitação com o direito naturalmente considerado pelo grupo social, e acabava influenciando as decisões, no sentido de não haver um vínculo inicial e intenso do julgador com a lei, daí porque seu principal método era o casuísmo (decisão de acordo com o caso e a ética pessoal do julgador). Por outro lado, o positivismo buscava a objetividade científica e acabava por colocar o Direito, a justiça e a filosofia, na lei, supervalorizando-a e criando uma legalidade estrita. O positivismo deu ensancha a injustiças e autoritarismo, como ocorreu no fascismo e no nazismo, que sempre agiram sob a proteçãoda lei, porque sempre havia o risco de colocar toda a ideologia política, as vaidades pessoais dos governantes, na lei, sem que ninguém pudesse discordar, interpretar ou tê-la por inválida (decisão de acordo com o silogismo). Qual das possibilidades deveriam ser extirpadas: a insegurança do jusnaturalismo ou a possibilidade de injustiça do positivismo? Se de um lado a lei poderia ser usada para limitar as mentes e colocar, à ferro e fogo, a ideologia de quem está no poder, por outro lado o jusnaturalismo deixa passear em mares desconhecidos, a liberdade do julgador. Diante desta confessada divergência, deste antagonismo angustiante, surge o pós-positivismo como forma de suplantar os defeitos do positivismo e do jusnaturalismo, buscando enfatizar suas vantagens para, sem nunca desprezar o direito posto, valorizar uma nova interpretação baseada na justiça, na ética, sem autoritarismo e sem excesso de subjetividades. É um meio-termo entre o folgazão e o severo, entre o chiste e o hirto: nem tanto ao céu e nem tanto à terra. A verdadeira intenção do neoconstitucionalismo é a mudança de paradigma, especialmente para: a) reconhecer a força normativa da Constituição; b) expandir a jurisdição constitucional; e c) forçar novas elaborações de interpretação constitucionais: a) Reconhecer a força normativa da Constituição. A Constituição não é mais um documento meramente político, para somente organizar os Poderes e deixar para a conformação discricionária legislativa e política, a concretização do seu espírito, porque passa a ter força normativa para ser aplicada na vida social, uma vez que cria mecanismos próprios de coação e cumprimento forçado. É dizer: a Constituição não é mais um depósito de promessas vagas e sugestões sem aplicabilidade. b) Expandir a jurisdição constitucional. As Constituições criaram mecanismos judiciais para sua real efetivação, em especial a criação de Cortes Constitucionais em quase todos os países europeus, dando ao Poder Judiciário o poder para fiscalizar o cumprimento das normas constitucionais, que passaram a abarcar várias questões que antes não constavam dos textos constitucionais, chegando mesmo a ser prolixa em alguns casos. No Brasil, já em 1965 foi a CF/46 emendada para criar a ação direta de inconstitucionalidade, ou chamada de ação genérica naquela época, e com a CF/88, foram criados outros diversos mecanismos, como a ação direta de inconstitucionalidade por ação e por omissão, a ação declaratória de constitucionalidade (EC 03/93), a arguição de descumprimento de preceito fundamental, além da quebra do monopólio do Procurador-Geral da República para propositura das ações diretas; c) Forçar novas elaborações de interpretação constitucional. Em relação às normas infraconstitucionais, um modelo tradicional de interpretação já era conhecido e amplamente utilizado, que se baseava na interpretação gramatical, histórica, sistemática e teleológica, com os critérios hierárquico (lei superior prevalece sobre lei inferior), temporal (lei posterior prevalece sobre lei anterior) e especial (lei especial prevalece sobre lei geral). Neste modelo tradicional para as normas infraconstitucionais, existia um processo de subsunção dos fatos às normas, onde estas oferecia uma solução abstrata para os problemas jurídicos, sem muita indagação minuciosa, e o juiz, seu aplicador por excelência, cabia apenas identificar tecnicamente a norma para ser aplicada ao problema, já que se pressupunha que os problemas estavam todos resolvidos abstratamente pelas normas. A interpretação constitucional, entretanto, deveria ir além deste modelo tradicional, mesmo sem desconsiderá-lo, porque a norma constitucional é o ápice do sistema, e tem estrita relação com os maiores valores e princípios de toda a nação, daí porque é preciso complementação do método tradicional com a inclusão específica de princípios, como é o caso da simetria, da supremacia e da unidade da Constituição, do efeito integrador, da máxima efetividade, da concordância prática, da relatividade e da conformidade funcional, além de métodos próprios (jurídico, tópico-problemático, hermenêutico- concretizador, científico-espiritual e normativo-estruturante) (vide adiante: Interpretação e Aplicação da Constituição) . Assim, a função da norma é outra, assim como a do juiz, porque nem sempre ela consegue relatar abstratamente a solução para os casos concretos, vivos e cheios de detalhes, e o juiz, por isso, já não pode mais ficar adstrito à legalidade estrita e à técnica, porque adentra no próprio processo de criação do Direito, valorando-o para encontrar a solução possível e justa. Não por outro motivo, a interpretação tradicional não se adéqua, por exemplo, aos novos fatores constitucionais, como é o caso da colisão de princípios e direitos fundamentais (antinomia jurídica imprópria), exigindo a técnica interpretativa da ponderação, para que o intérprete faça concessões recíprocas entre as normas, para mantê-las vivas e operantes, o que possibilita prevalecer uma delas, que tenha “maior valor para o caso concreto”, realizando mais adequadamente a vontade constitucional, assim como a técnica interpretativa da argumentação, para, quando o conflito for difícil de resolver, dar vazão a uma razão prática, isto é, prevendo sempre as consequências da decisão e a possibilidade de utilizar um fundamento jurídico que possa ser utilizado genérica e universalmente para os casos similares. As consequências mais visíveis, provocadas por tais fatores característicos da quebra de paradigma, são: A constitucionalização dos direitos (o que implica em tornar as constituições cada vez mais analíticas) A irradiação da Constituição para todos os Poderes A valorização do Judiciário para adequar as relações de poder, ponderando-as A aplicabilidade direta da Constituição a diversas situações A intensificação da importância da interpretação conforme a Constituição As constituições estão sofrendo nítida influência das teorias materiais, ao largo das teorias processuais, porque a insegurança que as guerras, o poder do Estado e a frivolidade das relações humanas dos dias atuais, parecem forçar um movimento retilíneo e intenso de sobrecarregamento das constituições, inserindo nelas todos os assuntos possíveis. Nela se insere questões econômicas, políticas, sociais e jurídicas, e ela não se basta como simples instrumento de governo; as constituições não servem mais para manter o status quo, porque elas hoje são frutos da esperança do povo para que o status seja alterado a partir delas. Por isso, o movimento hoje em voga, diante de um mundo cada vez mais inseguro, onde a percepção de injustiça assola até as mentes sãs, é de expandir a jurisdição constitucional, até como forma de prevenção e de defesa da sociedade. Este movimento ressalta que o paradigma de Constituição-protetora, de Constituição- garantia, desvinculada da política e do Estado, deve ser mudado, uma vez que é a partir deste supremo instrumento da sociedade – a Constituição -, é que a felicidade deve ser buscada. Mesmo reconhecendo a impossibilidade de se mudar os fatos reais da vida humana simplesmente através da lei, o movimento ressalta que a Constituição, muito mais que uma mera lei, é uma caixa onde se depositam as esperanças e que tem força para iniciar a mudança do status quo, dando razão e eficácia à existência do próprio Estado, no sentido de forjá-lo a cada vez mais distribuir justiça. Por isso é que Pietro Sanchis resumiu bem as novas exigências do neoconstitucionalismo: “Mais princípios que regras; mais ponderação que subsunção; mais Constituição que lei; mais juiz que legislador”. Aliás, a teoria unidimensional do ordenamento jurídico, que defende a ideia de que não há mais divisão entre Direito Público e Direito Privado,acaba recebendo apoio do neoconstitucionalismo, na medida em que este, ao sobrecarregar as constituições, leva para o Direito Público diversos assuntos que, no passado, eram próprios do Direito Privado, como as relações familiares (arts. 226 e ss.), questões relacionadas à Educação, Cultura e Desporto (arts. 205/217), ambiente de trabalho (art. 7º) e até regras sobre a atividade econômica do empresariado (arts. 170 e ss.), sem esquecer que os direitos e garantias fundamentais têm, hoje, eficácia horizontal (entre os particulares). Assim, o neoconstitucionalismo, ao constitucionalizar direitos antes pertencentes apenas ao nível infraconstitucional, e muitos deles apenas ao Direito Privado, acaba aproximando ainda mais o Direito Público do Direito Privado. Não podemos esquecer que o neoconstitucionalismo, malgrado seus inegáveis fatores positivos, apresenta alguns perigos, a seguir resumidos: a) Banalização e descrédito da Constituição. Se todos os assuntos estão na Constituição, estando ela cheias de promessas que não podem ou não são cumpridas, a sociedade começa a desacreditar na sua força e na sua utilidade, o que é muito perigoso, porque dá oportunidade de diminuir o papel do texto constitucional na construção de uma sociedade mais justa. Isto acaba criando, também, brechas para que vários direitos e garantias individuais e sociais sejam retirados do texto constitucional, impedindo que a rigidez seja uma garantia contra mudanças; b) Falta de flexibilização2. Como uma grande quantidade de assuntos acabam parando na Constituição, a sociedade acaba sendo impedida de mudar temas que devem ser adaptados às mudanças da realidade social. Como a Constituição é rígida e analítica, vários assuntos que precisam ser modificados com urgência ou com a necessária rapidez, à vista também da rapidez com que a sociedade muda, o Congresso fica impossibilitado de adaptar a Constituição aos valores atuais da sociedade, inclusive não podendo dispor na legislação infraconstitucional. Veja o que ocorreu no caso da exigência de separação judicial por mais de um ano para tornar possível o divórcio. Como era uma exigência constitucional (art. 225, §6º, antes da EC 66, de 13.07.2010), vários casais se separavam e, mesmo não divorciados, passavam a viver maritalmente com outras pessoas, demonstrando claramente que o texto aprovado em 1988 estava em descompasso com a sociedade, e este descompasso não foi alterado antes em face da rigidez necessária para alterar a Constituição. O mesmo pode ser imaginado quanto à regra imposta no §2º do art. 230, que garante gratuidade dos transportes coletivos urbanos aos maiores de 65 anos: mesmo que a expectativa de vida da população cresça vertiginosamente, o legislador infraconstitucional fica impossibilitado de adaptar a questão à nova realidade, justamente porque é preciso modificar o texto constitucional por um processo mais rígido, que nem sempre é possível efetivar. Não por outro motivo é que, vez por outra, surgem propostas de reduzir o tamanho da CF/88, como ocorre com a PEC 341/2009, que pretende sintetizar a Constituição brasileira para que nela constem apenas normas materialmente constitucionais, passando de 250 para 62 artigos, até porque, do jeito que está, ela se apresenta como um colcha de retalhos, cheia de dispositivos que deveriam estar na legislação ordinária. 2 A respeito da plasticidade da Constituição, e sua adaptabilidade à realidade social, vide “Constituição Plástica”, na Classificação das Constituições, e também “Plasticidade da Constituição”, no tópico referente à Interpretação e Aplicação da Constituição. I.5. Direito constitucional Diversos são os conceitos de Direito Constitucional, porém todos na mesma índole doutrinária de destacá-lo como o ramo que se estuda os elementos constituidores do Estado (daí Direito “Constitucional”, isto é, que constitui o Estado). José Afonso da Silva, por exemplo, diz que o Direito Constitucional é “o ramo do Direito Público que expõe, interpreta e sistematiza os princípios e normas fundamentais do Estado” (Curso de Direito Constitucional Positivo, 32ª edição, Malheiros, 2009, p. 34 - grifei). Uadi Lamego Bulos, por sua vez, enfatiza que “Direito Constitucional é a parcela da ordem jurídica que compreende a ordenação sistemática e racional de um conjunto de normas supremas encarregadas de organizar a estrutura do Estado e delimitar as relações de poder” (Direito constitucional, 2007, Saraiva, p. 2 - grifei). Alexandre de Morais também: “O Direito Constitucional é o ramo do Direito Público, destacado por ser fundamental à organização e funcionamento do Estado, à articulação dos elementos primários do mesmo e ao estabelecimento das bases da estrutura política” (Direito constitucional, Atlas, 2007, 22ª edição, p. 1 - grifei). Afonso Arinos de Melo Franco diz que “O Direito Constitucional é o estudo metódico da Constituição do Estado, da sua estrutura institucional político-jurídica” (Direito constitucional: teoria da constituição; as constituições do Brasil, RJ, Forense, 1981, p. 4). Manoel Gonçalves Ferreira Filho trilha o mesmo caminho: “Direito Constitucional é o conhecimento sistematizado das regras jurídicas relativas á forma do Estado, à forma do governo, ao modo de aquisição e exercício do poder, ao estabelecimento de seus órgãos e aos limites de sua ação” (Curso de direito constitucional, Saraiva, SP, 2005, p.4). Por isso, hoje é comum afirmar que o Direito Constitucional é considerado como um ramo do Direito Público - na verdade o Direito Público por excelência - porque visa o estudo das normas que estruturam o Estado. O Direito Constitucional não teria, em princípio, por objetivo tratar das relações entre os cidadãos, mas sim a ontologia estatal, muito embora a relação do Estado com os cidadãos seja algo, hoje em dia, natural para o Direito Constitucional em face dos direitos e garantias fundamentais. Entretanto, cabe uma observação, no sentido de que hoje o Direito Constitucional não pode mais ser visto apenas como um ramo do Direito Público que tem normas destinadas única e exclusivamente para regulação do tratamento cidadão-Estado e do próprio Estado, visto que os próprios direitos fundamentais têm eficácia horizontal, isto é, uma eficácia que regula a relação entre os cidadãos, sem esquecer que as normas constitucionais sobre a ordem econômica são destinadas para a regulação da relação entre trabalhadores e a iniciativa privada. Além do mais, os conhecidos direitos sociais trabalhistas, que estão tutelados na Constituição, visam proteger o trabalhador na sua relação com a iniciativa privada, e não unicamente na sua relação com o Estado. Isto é assim porque as constituições, objetos básicos do Direito Constitucional, nasceram sucintas, e realmente com a intenção de regular apenas alguns aspectos da relação do Estado com o cidadão. Eram as primeiras ondas de direitos fundamentais, consideradas de primeira geração, que visavam limitar a atuação do Estado, exigindo uma abstenção. As constituições, então, nasceram “garantistas”, ou “negativas”, e por isso se preocupavam apenas com a regulamentação do Poder Público. Porém, com o neoconstitucionalismo e o sobrecarregamento das constituições com vários temas (e, claro, gerando problemas, como a prolixidade e a maior dificuldade de adaptação das normas às novas realidades, apesar da mutação constitucional, mas também soluções, como a maior garantia e segurança), está razoavelmente cristalizado no mundo que as constituições não devem, apenas, tratar do Estado em si mesmo e sua relação com a sociedade; deve ir além, para expandir suas normas para regular a relação entre os membros da sociedade, sob o influxo de valores sensíveis, como é o caso da dignidade, do respeito ao meio ambiente e, de resto, dos valores aceitos universalmente,que devem ser efetivados pelo Estado, pela sociedade e pelos homens em geral. I.6. Origem do direito constitucional Apesar de o constitucionalismo ter origem formal nas Constituições da França e dos Estados Unidos, é comum afirmar que a origem do Direito Constitucional escrito está nos pactos, nos forais, nas cartas de franquia, nos contratos de colonização e nos pactos sociais. Isto ocorre porque o Direito Constitucional surgiu antes mesmo do constitucionalismo estrito, a partir da necessidade de estudar toda a constituição de normas que regulassem e limitassem, de uma forma ou de outra, o Estado, isto é, a partir da necessidade de estudar as fórmulas encontradas pela humanidade para regular a vida estatal e com ela manter um relacionamento razoável, mesmo que estas fórmulas não possam ser analisadas sob o influxo do que hoje se conhece como Constituição. Pactos eram acordos entre o rei e a nobreza (burguesia), para fixar o modo mínimo de gerir o governo e as garantias individuais. É até possível imaginar que as primeiras garantias escritas contra o Estado surgiram pela necessidade que os reis tinham de incrementar suas vaidades e necessidades pessoais, pois precisavam de comerciantes para trazer as oferendas, e estes se aproveitaram para exigir um mínimo de respeito por parte do Estado. Exemplos: Magna Carta, de 1215 – João Sem Terra e os Barões; “Petition of Rights”, de 1628 – Rei Carlos I fez acordo para se proibir a cobrança de dádiva, empréstimo ou benevolência somente a uma pessoa, pois a cobrança tinha que ser para todos – origem do princípio da isonomia e da igualdade tributária; “Habeas Corpus Act”; “Bill of Rights”, de 1687, que foi um documento escrito mais geral, com previsão de garantias e direitos individuais, regulou exigência de impostos, porte de arma, eleições, imunidade parlamentar e governo representativo. Forais, próprios da Europa medieval, permitiam aos burgueses se autogovernarem. Cartas de franquia davam franquias a algumas corporações de terem independência para exercerem suas atribuições – início da autonomia dos entes da federação, do Judiciário etc. Contratos de colonização: contratos entre as Colônias da América do Norte, para viverem em paz e com respeito mútuo – reforço da autonomia administrativa, política e financeira destas Colônias em face do Poder Central. Pacto social: a autoridade dos governantes se funda em contrato com os súditos (compromisso do príncipe de governar com justiça - Thomas Robbes, O Leviatã, 1599-1679; Rosseu, O Contrato Social, 1712-1778). Estes antecedentes são a origem formal do Direito Constitucional escrito. Eles, reunidos, forjaram um documento escrito com normas gerais para determinado país, porque foram as fontes primeiras de um sentimento que, posteriormente, grassou no mundo e teve seu estopim nas revoluções americana e francesa no final do Século XVIII. Como se vê, os movimentos que fizeram ecoar os pactos, os forais, as cartas de franquia, os contratos de colonização e os pactos sociais, foram muito antigos, e eles tinham a missão de confrontar o monarca, em uma época dominada pelo absolutismo. Daí porque alguns costumam dizer que o constitucionalismo é dividido em constitucionalismo antigo, quando a preocupação maior era tal confrontação, e o constitucionalismo moderno, quando a sociedade, já suficientemente livre do absolutismo, começou a perceber que era preciso uma Constituição voltada para as regras básicas de organização e limitação do Estado, e previsão de garantias e direitos individuais e sociais. I.7. Características do Direito Constitucional Merece friso, as características do Direito Constitucional expostas por Kildare Gonçalves Carvalho, Direito Constitucional – Teoria do Estado e da Constituição – Direito Constitucional Positivo – 17ª edição, DelRey Editora, 2011, pp. 01/02). Para ele, as características são estas – com minhas observações: a) supremacia – está no ápice da ordem jurídica, já que estuda justamente as normas hierarquicamente superiores; b) transversalidade – se o Direito Constitucional está no ápice do sistema jurídico, deve ter um caráter dialógico (dialogar com outras ciências) para poder estabelecer as opções dogmáticas para toda a sociedade nacional (tem que ter um intertexto aberto); c) politicidade – como o Direito Constitucional estuda a Constituição, e esta rege as relações de poder, muitas vezes tal Direito impõe decisões baseadas em critérios políticos, e não critérios puramente técnico-jurídicos. Esta característica faz com que o STF, naturalmente, tenha funções políticas, e não meramente técnicas-jurídicas (vide adiante, no Poder Judiciário); d) estadualidade – o Direito Constitucional, já se disse, é o estudo de tudo aquilo que “constitui” o Estado; daí não há Estado sem o Direito Constitucional, porque todo Estado tem uma Constituição, escrita ou costumeira. Existem, até, teorias que igualam o Estado com o Direito, até porque determinado país surge quando a sua Constituição é construída; e) legalismo – o legalismo é uma característica do Direito Constitucional porque até este Direito preocupa-se com suas fontes, e uma grande fonte é a Constituição, que é uma norma. Afinal, estamos na era do constitucionalismo de Direito, com constituições escritas; f) fragmentarismo – o Direito Constitucional, basicamente, é principiológico, porque ele visa estudar os fundamentos gerais do Estado e da sociedade insertos no texto constitucional (evidentemente que, com o neoconstitucionalismo, muitos temas são tratados até à exaustão pelas constituições analíticas). Por isso, não pode tal Direito se ocupar de detalhes e regulamentações excessivas, deixando para o legislador infraconstitucional completar sua obra. Então, o Direito Constitucional e a Constituição não completam a normatização dos temas, porque impõe fragmentos gerais dos principais temas na Carta Política (neste sentido, veja a seguir que não há, via de regra, o princípio da reserva constitucional); g) juventude – o Direito Constitucional surgiu depois das Revoluções Liberais do final do Século XVIII, em especial na França e na Itália, e por esta razão vários temas do Direito Constitucional Geral (Poder Constituinte, hermenêutica, teoria da Constituição – conceito, objeto, classificação, tipos, natureza das normas constitucionais etc.) ainda estão em estudo, sem conclusões razoável e universalmente aceitas. A face mais atual desta juventude é o neoconstitucionalismo, que provoca várias discussões, em especial diante dos novos métodos e princípios de hermenêutica constitucional (normativo estruturante, científico espiritual, hermenêutico concretizador, tópico problemático, princípios da presunção de constitucionalidade, da unidade, do efeito integrador, da concordância prática etc.) e da jurisdição constitucional, cada vez mais atuante nas relações de poder; h) abertura – o Direito Constitucional não pode ser fechado, e o próprio ordenamento jurídico não é assim tão puro como idealizava Hans Kelsen, justamente porque deve absorver experiências, estudos, ideias e realidades das demais ciências e das complexidades da sociedade moderna, até por ser transverso e fragmentário. Nas Ditaduras, o Direito Constitucional é fechado, no sentido de que não se abre para as experiências da sociedade, porque geralmente o que é dever do cidadão para com o Estado. Ousaria acrescentar, também, que o Direito Constitucional tem a característica da inicialidade, porque para compreender os demais ramos do Direito, primeiro o estudioso deve ir na fonte do sistema jurídico, que é a Constituição. Daí existir a teoria da Dupla Finitude do Direito (vide a seguir), justamente porque o Direito não pode regredir indefinida e infinitamente, já que nasce na Constituição. I.8. Direito constitucional e teoria geral da ConstituiçãoComo foi visto, o Direito Constitucional costuma ser definido como o ramo do direito público que analisa, identifica e sistematiza os princípios e normas fundamentais do Estado, e tem por objeto a constituição estrutural do ente estatal. A base do Direito Constitucional é a estrutura do Estado e os direitos fundamentais, daí porque é a disciplina básica do Direito Público. Assim, não se pode confundir a doutrina do direito constitucional com a teoria geral da Constituição. A doutrina é específica para o estudo da ordem jurídica constitucional de determinado Estado, daí porque se trata de um ramo interno do direito público, e a teoria cuida do estudo abstrato, generalizado, tentando identificar pontos comuns que formam uma verdadeira teoria geral válida para todos os ordenamentos. Ao estudarmos a Constituição do Brasil, estaremos diante do Direito Constitucional brasileiro; ao se estudar os institutos constitucionais que se mostram estáveis em todas as constituições, ou pelo menos na maioria delas (Poder Constituinte, Conceito e Classificação de Constituição e Direito Constitucional – teoria da Constituição-, Métodos de Interpretação etc.), estaremos diante da Teoria Geral da Constituição. I.9. Divisões do direito constitucional Também em função desta peculiaridade diferencial, é costume dividir o Direito Constitucional em: a) geral; b) especial; e c) comparado. a) Direito constitucional geral (ou comum) procura unificar e delimitar pontos comuns nas Constituições (conceito de Poder Constituinte; classificação das Constituições; métodos de interpretação). Interessa à Teoria Geral do Direito Constitucional e garante a cientificidade do Direito Constitucional (teoria da Constituição); b) Direito constitucional especial (particular, positivo ou interno), se dedica aos estudos de determinada Constituição de um determinado Estado (Brasil, Itália, Portugal etc.); c) Direito constitucional comparado, é a referência à parte do direito constitucional que estuda as diversas constituições, comparando seus contrastes e suas semelhanças (método comparativo). O direito constitucional comparado utiliza-se de três critérios básicos: 1) Temporal – compara as diversas Constituições do mesmo Estado (no Brasil, comparação com as Constituições de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1988). É possível, então, falar em direito constitucional comparado pela análise de constituições do mesmo país. É também chamado de diacrônica; 2) Espacial – comparação entre constituições de Estados diferentes, privilegiando-se a comparação entre Estados da mesma região – América Latina, Europa, Ásia etc. Muitos chamam este critério de sincrônica; 3) Mesma forma de Estado – compara constituições entre Estados com a mesma forma de Estado – comparação entre países que adotaram a forma federativa, por exemplo. 2.0. Direito constitucional processual e direito processual constitucional A doutrina diferencia direito constitucional processual e direito processual constitucional. Direito constitucional processual é o direito que estuda as normas processuais da Constituição, e direito processual constitucional é o direito que estuda as normas da Constituição que visam efetivar os direitos constitucionais por meio da jurisdição constitucional. Assim, os princípios do juiz natural, do devido processo legal, da ampla defesa, a análise da existência ou não do duplo grau de jurisdição no corpo da Constituição, da fundamentação das decisões, da proibição de provas ilícitas, e as regras de competência dos Tribunais, seriam próprios do direito constitucional processual. Por outro lado, os instrumentos de controle concentrado de constitucionalidade (ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade, a arguição de descumprimento de preceito fundamental, a representação interventiva), assim como todas3 as garantias constitucionais que visem tornar eficaz um direito constitucional (“habeas corpus” para garantir o direito de locomoção; o mandado de segurança para garantir o direito líquido e certo contra abuso de autoridade; o “habeas data” assegurar o direito de conhecer as informações relativas à sua pessoa, constantes de registros ou banco de dados de entidades governamentais ou de caráter público, ou para retificação dos dados; mandado de injunção para garantir o direito a ter uma norma regulamentadora que torne viável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania), seriam próprios do direito processual constitucional. Pode-se até dizer que a criação, ou maior enfoque nos institutos da Constituição que visam efetivar ela mesma, é consequência direta da evolução do constitucionalismo que procura, a cada dia, não só carregar o texto constitucional de modo irresponsável, mas também criar mecanismos para efetivá-lo. Se o Direito faz surgir uma nova área, o direito processual constitucional, que visa estudar mais a fundo os mecanismos de efetivação do espírito constitucional, porém por meio da jurisdição constitucional, acaba abrindo os olhos dos outros ramos do conhecimento para que sejam criados, também, estudos específicos de efetivação do desejo constitucional, com mecanismos próprios, como ocorre ou sói ocorrer, com a economia constitucional, a sociologia constitucional, a filosofia constitucional e assim por diante. O Direito Constitucional acaba sendo cada vez mais dialógico, porque não pode ficar sem dialogar permanentemente com as outras áreas do conhecimento, devido a característica política e cultural da Constituição. Isto não deixa de ser acalentador. 3 Todas as garantias constitucionais podem ser enquadradas no Direito Processual Constitucional? Veja a importância de se definir o “Direito Processual Constitucional”: se ele for definido, como foi anteriormente, como “ramo do direito que estuda as normas da Constituição que visam efetivar os direitos constitucionais por meio da jurisdição constitucional”, pode-se dizer que nem todas as garantias constitucionais são enquadradas no Direito Processual Constitucional, porque existe uma delas, o “Direito de Petição”, que não busca na jurisdição constitucional uma forma de efetivar o espírito constitucional. Como sabe, “Direito de Petição” (CF/88, art. 5º, XXXIV, “a”) é um direito constitucional posto à disposição dos cidadãos para que eles possam levar ao conhecimento dos poderes públicos um fato ilegal ou abusivo, contrário ao interesse público, para que as medidas possam ser tomadas, mas é exercido em qualquer dos Poderes invocando suas funções administrativas, e não a função jurisdicional (assim, mesmo se exercido perante o Judiciário, não se faz por meio da jurisdição, mas sim por meio da função atípica administrativa deste Poder). Capítulo II: CONCEITO E SENTIDOS DE CONSTITUIÇÃO II.1. Definindo Constituição Constituição é a lei fundamental e suprema de um Estado, verdadeiro estatuto jurídico fundamental da sociedade. A Constituição, que é objeto de estudo do Direito Constitucional, tem por fim estabelecer o conteúdo referente à composição e ao funcionamento da ordem política desse Estado. Engloba, portanto, a organização do poder, a distribuição da competência, o exercício da autoridade e os direitos e as garantias individuais e sociais da pessoa humana. Atualmente, em face do neoconstitucionalismo, na Constituição não se limita apenas na regulamentação do Estado, porque também tem normas direcionadas para a sociedade, como é o caso da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, os direitos dos trabalhadores e a regulamentação da ordem econômica. Deste modo, no conceito de Constituição moderna, devem estar inclusas as normas não só para a regulamentação da atividadeestatal, mas também aquelas destinadas para a sociedade. Apesar desta rápida análise, importante frisar que não há uma pacificação em relação à definição de Constituição, até porque a teoria geral da Constituição está em andamento, com tentativas de formulações que atravessam, inclusive, os séculos. De todo modo, há maior tranquilidade doutrinária a respeito do que uma Constituição deveria se ocupar, isto é, do que deveria constar em uma Constituição. Tudo que deveria estar na Constituição seriam assuntos materialmente constitucionais, e já foram relacionadas anteriormente (composição e funcionamento da ordem política estatal). Inicialmente, a Constituição nasceu como norma fundamental de organização jurídica do Estado. É dizer: a Constituição seria um documento, superior a todas as outras normas do país, com destinação para organizar o Estado, e todas as circunstâncias que esta organização envolve, como é o caso da tripartição dos Poderes, da forma de Estado e de Governo, do sistema de Governo, do exercício das competências, das formas de acesso ao Poder e aos cargos públicos, da responsabilidade das autoridades etc. Com o neoconstitucionalismo, a Constituição não pode mais ser vista apenas como uma fórmula de organização jurídica do Estado, porque ela não é mais destinada única e exclusivamente para tratar dos assuntos estatais. Em face das teorias materiais da Constituição que, ao contrário das teorias processuais, há um sobrecarregamento da Constituição com diversas matérias, como forma de maior proteção da sociedade. Isto, inevitavelmente, fez da Constituição um documento que vai além da mera regulação jurídica do Estado, e acabou se transformando de instrumento até de regulação da própria relação dos cidadãos. O exemplo mais gritante desta extensão é o tratamento que a Constituição dá, muitas vezes invariável em diversos países, aos direitos dos trabalhadores em face dos patrões, relacionamento este que se estabelece entre particulares, e não entre Estado e particulares. Da mesma forma, os próprios direitos fundamentais hoje têm uma função horizontal, para ter eficácia inclusive entre os cidadãos, vez que já ultrapassada apenas a sua eficácia vertical, que visava regular a relação cidadão-Estado – afinal, os direitos fundamentais nasceram para limitar a atividade do Poder Público. Ainda é possível verificar que não é raro nas constituições do mundo moderno o tratamento, por normas constitucionais, da atuação dos agentes que atuam no mercado, muitas vezes em uma tentativa de equilibrar o Estado Liberal com o Estado Social. Na Constituição brasileira de 1988, por exemplo (art. 170), existem diversos princípios que devem ser respeitados pelo agente que atua na ordem econômica, princípios estes que, apesar de servirem de base para a atuação estatal, devem ser respeitados pelos particulares em suas relações. Em todos estes casos citados, a Constituição não existe apenas para regular a atividade estatal, daí porque o conceito de Constituição não pode se vincular apenas a uma forma de regulação jurídica do Estado. Ela deve ser vista, também, como forma de dar alguns contornos a vários aspectos da relação entre os particulares. Assim, muito embora existam alguns pontos fundamentais e inarredáveis na formulação de um conceito de Constituição, e por isso incluem-se automaticamente como normas materialmente constitucionais, ainda existem outros que precisam de maior desenvolvimento para se saber se devem ou não ser considerados como integrantes de tais normas. Não por outro motivo, é possível verificar em praticamente todos os doutrinadores, a forte tendência de se levar em consideração os diversos sentidos que a Constituição oferece, sobressaindo os sentidos jurídico, político, sociológico e culturalista. Dificilmente se encontra um doutrinador que desconsidera os sentidos, quando trata do conceito da Constituição. Isto ocorre não apenas porque ainda está se formando uma teoria geral da Constituição, mas também porque a Constituição é, sem dúvida, um documento escrito que suscita todo tipo de discussão (ideológica, filosófica, social, política, jurídica, antropológica, cultural). A consequência não poderia ser senão a suscitação de diferentes visões e concepções do que vem a ser este documento escrito, do que vem a ser a Constituição, sendo de fato importante tratar dos diversos “sentidos da Constituição” ou “concepções da Constituição”, logo após a evolução histórica, porque assim é mais fácil compreender porque alguns pensam diferente de Hans Kelsen, e entendem que a Constituição não é um fator meramente jurídico. Se houver consciência de como foi o difícil caminho percorrido pelo constitucionalismo, logo será possível saber que não se pode desconsiderar, em cada sociedade, os fatores sociais e políticos envolvidos na formação constitucional. Talvez seja até possível enfatizar que a teoria geral da Constituição caminha para uma não-definição, isto é, caminha para sedimentar a ideia de que Constituição não pode ter um conceito único e intangível, porque é a mais nobre das leis, o fundamento e a aspiração da comunidade que é regida por ela, e por isso deve sempre ter uma maleabilidade para que cada país eleja o que lhe é constitucionalmente adequado. Muitas vezes, o que é materialmente constitucional para um país, não é para outro, em função das suas peculiaridades culturais, políticas e históricas, daí porque pode-se até encontrar alguns requisitos básicos para se conceituar uma Constituição, como é o caso de ser ela hierarquicamente superior e limitar a atuação estatal, mas não é possível definir todos os requisitos e nem afunilá-los em uma definição geral para o mundo. Nesse sentido, pode-se até fazer um esforço de imaginação para considerar que até mesmo a separação dos Poderes, pode ser que em determinado país não seja importante, em função das suas peculiaridades. II.2. Sentidos de Constituição A divisão clássica dos sentidos da Constituição é esta: sentido sociológico, sentido político e sentido jurídico. Há, porém, quem ainda fala no sentido culturalista. Vejamos: a) SSEENNTTIIDDOO SSOOCCIIOOLLÓÓGGIICCOO Este sentido foi pinçado da obra de Ferdinand Lassalle, polonês, nascido em 11.04.1825, que era um grande orador e contagiava a plateia com suas ideias. Para ele, Constituição é fato social, e não apenas uma norma; é, na verdade, o valor e a realidade social que representam a Constituição. O bloco de palavras no documento é apenas folha de papel, que pode ser manuseada sempre ao gosto dos valores sociais. Por isso, é preciso dividir a Constituição em Constituição Real (fatores reais de poder) e Constituição Escrita (folha de papel). Ele dizia que a Constituição são os fatores reais de poder, e estes fatores “são essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas da sociedade em apreço, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são”. Provocativo, dizia mais: “Vamos supor, por um momento, que um grande incêndio irrompeu e que nele queimaram-se todos os arquivos do Estado, todas as bibliotecas públicas, que o sinistro destruísse também a tipografia concessionária onde se imprimia a Coleção legislativa e que ainda, por uma triste coincidência — estamos no terreno das suposições — igual desastre se desse em todas as cidades do país, desaparecendo inclusive todas as bibliotecas particulares onde existissem coleções, de tal maneira que em toda a Prússia não fosse possível achar um único exemplar das leis do país. Suponhamos isto. Suponhamos mais que o país, por causa deste sinistro, ficasse sem nenhuma das leis que o governavam e que por força das circunstâncias fosse necessário decretar novas leis. Julgai que neste caso o legislador, completamente livre, poderia fazer leis a capricho de acordo com o seu modo de pensar?”O que delimitaria a ação do legislador, e da própria sociedade e dos órgãos públicos, seria, neste caso, como a própria Constituição, os fatores reais de poder. Exemplo desta situação temos aos borbotões, inclusive no Brasil: A partir de março de 1964, quem coordenava as relações de poder era a Constituição de 19464 ou os fatores reais de poder nas mãos da Junta Militar? E na Alemanha Nazista, a Constituição de Weimar de 1919 ordenava as forças reais do país ou era os fatores reais de poder de Adolf Hitler? 4 Lembre-se que o Ato Institucional n. 01, baixado pela Junta Militar em 09.04.1964, manteve a Constituição de 1946. b) SSEENNTTIIDDOO PPOOLLÍÍTTIICCOO Se o sentido sociológico deve-se ao pensamento de Lassalle, o sentido político deve-se às ideias do alemão Carl Schimtt (11.07.1888-07.04.1985). Para ele, Constituição é uma “decisão política fundamental”. Constituição é o Poder Constituinte, que rege os fatores e valores sociais, para colocar em um documento o que o povo decidiu colocar. Não se trata, então, de mera decisão política sobre a forma do Estado, mas sim uma decisão política como consequência dos anseios sociais, mas tais anseios só podem ser “constitucionalizados” através de uma decisão política fundamental em dado momento. De que adianta, então, a existência de fatores reais de poder, se a sociedade não decide tomar uma decisão política fundamental de condensar estes fatores em um determinado momento? É possível fazer uma referência entre o que hoje se entende com normas materialmente constitucionais e formalmente constitucionais, e o que este sentido se propôs, porque a visão política destaca que a Constituição é aquilo que é mais importante e que deve estar na Constituição; o que não deveria estar lá é apenas lei constitucional, apesar de estar. O sentido político, então, divide a Constituição em Constituição propriamente dita e leis constitucionais. Schimtt criticava o positivismo jurídico, na medida em que este deslocava as questões fundamentais do direito político para a Teoria Geral do Estado. Assim, sua Teoria da Constituição buscava superar a divisão entre Teoria Geral do Estado, Direito Constitucional e Política, para reabilitar o político na análise dos temas da teoria constitucional. c) SSEENNTTIIDDOO JJUURRÍÍDDIICCOO O principal pensador deste sentido é Hans Kelsen (11.10.1881-19.04.1973), austríaco, naturalizado estadunidense. Para ele, a Constituição é norma, que deve ser vista como tal, sem considerações políticas, ideológicas, sociológicas ou antropológicas. É o jurista o seu principal investigador, e não o filósofo ou o sociólogo, porque a Constituição é norma pura. A Constituição é aquilo que temos na nossa mão, aprovada e cheia de princípios e regras que devem ser respeitados. Hans Kelsen teorizou que o jurista deve ser alheio a valores – neutralidade. Deve, necessariamente, estar como o símbolo da justiça e da neutralidade vista nos olhos vendados e na balança – Themis e Minerva -, pois as emoções podem contaminar a norma jurídica. c.1) Sentido lógico-jurídico - “lógica hipotética”. Como Kelsen não aceitava a Constituição como algo sociológico, e sim como algo puramente normativo, foi obrigado a justificar este pensamento com outro pensamento meramente formal, e dizer que o pressuposto lógico da Constituição era esta hipótese lógica de hierarquia. Para Kelsen, a estrutura hierárquica do processo de criação do direito termina em uma norma que dá fundamento e unidade para todo o ordenamento jurídico5 (A norma fundamental é hipotética, e não está positivada sequer na Constituição, porque está acima dela, de modo que haveria uma “Constituição em sentido lógico-jurídico” responsável por instituir um órgão criador do direito, órgão este em grau inferior, responsável por estabelecer as regras básicas para se elaborar todo o resto da legislação. Este órgão superior seria a “Constituição em sentido lógico-jurídico”, e a o órgão inferior, seria a “Constituição em sentido jurídico-positivo”. Este sentido é, na verdade, um esforço de ficção jurídica para manter a autopoiese do Direito6. c.2) Sentido jurídico-positivo. Este sentido destaca a existência de uma norma superior suprema, escrita em um documento positivado, que valida todas as demais. Esta norma suprema só pode ser alterada em condições especiais, e com base nela é que se vai formar todo o ordenamento jurídico de determinado país. 5 Esta concepção acaba dando ensejo à Dupla Finitude do Direito: o início do Direito se dá com a Constituição e termina com a coisa julgada. A ordem jurídica tem dois extremos: o início, com a Constituição, e o fim, com a coisa julgada, não podendo regredir nem progredir indefinidamente. 6 Hans Kelsen lutava pela autonomia científica do Direito, considerando este um sistema autopoiético, isto é, um sistema com bases próprias bastante em si mesmo, porque tinha estrutura científica que não precisaria de apoio ou fundamentação exterior, de modo que seus elementos seriam produzidos e reproduzidos internamente em uma interação circular e fechada. Assim, quando uma norma não estava suficientemente clara, ou quando houvesse uma aparente lacuna, o jurista não deveria procurar o esclarecimento ou a complementação em questões exteriores ao Direito, como nas ideias e teorias filosóficas, econômicas e políticas, mas sim em outras normas dentro do próprio sistema jurídico, continuando neste trajeto, de forma sucessiva, até uma causa finita, que era a Constituição. d) SSEENNTTIIDDOO CCUULLTTUURRAALLIISSTTAA - “Constituição Total” A Constituição seria a expressão cultural total da sociedade, em determinado momento histórico e influenciando na sua evolução cultural. Esta nova concepção reafirma que a existência de uma Constituição Total, que envolve todos os sentidos, até mesmo os filosóficos, e acaba dando uma perspectiva unitária. A Constituição é produto do fato cultural que influencia a sociedade naquele momento, fato cultural este que deve ser tutelado pelo direito à cultura (normas constitucionais referente à cultura, ao ensino e ao desporto). Se a Constituição deve reunir os mais importantes valores da sociedade, é preciso entender, então, que a Constituição é aquilo que é adequado para determinada sociedade no momento histórico em que a norma fundamental é elaborada. II.3. Outros sentidos de Constituição Muito embora existam basicamente quatro sentidos, que doutrinariamente se tenta fixar para a Constituição, a teoria do direito constitucional mostra-se ávida por vários outros sentidos, próprios de estudiosos no tema. Muito embora exista a tentativa de dar um sentido unitário da Constituição, envolvendo todos os outros sentidos (Constituição Total), existem outros tantos sentidos. Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco (Curso de Direito Constitucional, Saraiva, 2007, pp. 6 e ss.), resumem bem os diversos sentidos hoje em voga sobre a Constituição, apresentados pelo constitucionalista português José Joaquim Gomes Canotilho: Constituição como garantia do “status quo” econômico e social (Ernst Forsthoff). Neste caso, a Constituição é indiferente à necessidade de mudança, porque tal mudança deverá ocorrer pela Política. A Constituição é axiologicamente neutra e visa, apenas, manter o estado das coisas. Constituição como instrumento de governo (Hennis). A Constituição é uma lei processual, que regula e define os limites da atividade política, não podendo ser sobrecarregada com outros assuntos (esse sentido, portanto, é adepta das teorias processuais da Constituição, no sentido de que ela não pode estar sobrecarregada de muitos assuntos). Constituição como processo público(Peter Häberle). A Constituição deve ser entendida e ter um sentido após um processo público de interpretação, não podendo ficar limitada apenas à interpretação de um único órgão (Corte Constitucional) diante do pluralismo da sociedade, isto porque ela é destinada ao público, não sendo possível definir, de modo claro, seu real sentido sem antes passar por este processo de publicidade (Constituição aberta à sociedade dos intérpretes). Constituição como ordem fundamental e programa de ação que identifica uma ordem político-social e o seu processo de realização (Bäulin). A Constituição não pode ser vista apenas como um instrumento de governo ou de manutenção do “status quo”, e sim como um instrumento de transformação social, com definição dos processos de conformação política em uma perspectiva sociológica. Constituição como programa de integração e representação nacionais (Krüger). Para que a Constituição dure, e não se banalize, ela deve conter apenas as questões que forem sedimentadas no espírito da sociedade, não podendo, portanto, ser depósito de questões que são facilmente alteradas pelo tempo. Por isso, Constituição é aquilo que contém o espírito de integração nacional sobre a totalidade política da sociedade, isto é, somente as questões materialmente constitucionais, não incluindo aquilo que se refere às questões econômicas e trabalhistas, por exemplo. Constituição como legitimação do poder soberano, segundo a ideia de Direito (Burdeau). A Constituição é a criadora do Estado de Direito e racionalizadora do poder e da atividade dos governantes. O Poder, então, não está nas mãos de quem o exerce provisoriamente, mas sim está nas mãos da Constituição, daí porque o Poder é de Direito, totalmente despersonalizado; Constituição como ordem jurídica fundamental, material e aberta, de determinada comunidade (Hesse). A Constituição é a reunião de todos os sentidos, em face da inexistência de uma opinião dominante sobre sua essência (daí porque aberta, para sintetizar todos os sentidos). A preocupação é encontrar um sentido que não seja desafiado, suficientemente genérico e abstrato para propiciar um conceito definitivo e seguro. II.4. Conceito de Constituição Todos os sentidos (jurídico, sociológico, político, culturalista, de Forsthoff, Hennis, Häberle, Bäulin, Krüger, Burdeau, Hesse), demonstram que a teoria do direito constitucional e da própria Constituição ainda está caminhando, talvez porque ainda está caminhando a própria humanidade. Como a Constituição é algo importante, sensível e definitivo para a sociedade, seus reais contornos só serão definidos na medida em que a própria sociedade universal encontrar um parâmetro de conduta estável. Enquanto em um país houver prática de horrores, e no outro a vida social estiver adequada, haverá aqui e acolá uma diferenciação no conceito de Constituição e no próprio processo constitucional. Se a Constituição não fosse o que ela é para a sociedade (muitas vezes seu retrato, muitas vezes sua única esperança, muitas vezes seu engodo), poderia haver uma definição mais adequada. De todo modo, a falta de definição de um sentido único é prova de que a Constituição não pode regular apenas parte dos valores da sociedade. Por isso, é possível perceber que a teoria constitucional caminha de fato para uma Constituição Total, onde se agrupa todos os sentidos, mas que só pode ter um sentido constitucionalmente adequado aos valores da sociedade. A Constituição só poderá ser entendida dentro da situação, dentro do contexto em que está inserida, daí se fala em sentido adequado. Não há como, portanto, fixar uma teoria geral da Constituição válida universalmente. Talvez a teoria geral da Constituição seria justamente eficaz se se chegasse à conclusão de que não há uma teoria geral; ou, então, se se chegasse à conclusão de que a teoria geral deveria levar em consideração, no conceito de Constituição, as realidades de cada país onde ela está inserida, ou, em uma trocadilho, levar em consideração as realidades que fizeram inserir a Constituição no mundo jurídico daquele país. O que não se pode negar, é que, para conceituar uma Constituição, não podem ser negados os seguintes aspectos: superioridade hierárquica, validade e unidade. Sem perigo de errar, portanto, pode ser conceituada como norma superior de determinado sistema jurídico, dando-lhe validade e unidade, e que nasce para regular os assuntos mais importantes para o país onde está inserida. Resumidamente, também pode-se dizer que Constituição é a norma mais importante para a sociedade que a construiu. II.5. Classificação das constituições Tradicionalmente, a classificação das constituições nasceu objetiva, considerando-se apenas o seu conteúdo (materiais e formais); a sua forma (escrita e não escritas), o seu modo de elaboração (dogmática e histórica), a sua origem (popular e outorgada) e a sua estabilidade (rígida, flexível e semirrígida). Posteriormente, na classificação foi considerado também o critério da extensão (Constituições analíticas/dirigentes e Constituições sintéticas/negativas/garantista), e atualmente já existem outros tantos critérios, que precisam ser lembrados (critério dogmático, ontológico, sistemático, estrutural, de legitimidade material). A) CLASSIFICAÇÃO QUANTO À ORIGEM: PROMULGADA, OUTORGADA E PACTUADA Esta classificação enfatiza a maneira como uma Constituição foi elaborada, as formas e modos fixadas como base para que determinada Constituição pudesse surgir. Daí porque para esta classificação, interessa a que Poder Constituinte deve a sua criação. A.1) CONSTITUIÇÃO PROMULGADA (Democrática, Dogmática, Votada ou Popular) É a Constituição formada com base na Assembleia Nacional Constituinte, esta, por sua vez, convocada com o fim específico de constituir uma nova Constituição, eleita pelo povo. Foi o caso das Constituições brasileiras de 1891, 1934, 1946 e 1988. Nas constituições promulgadas, o exercício do Poder Constituinte é realizado pelo seu titular (povo). A.2) CONSTITUIÇÃO OUTORGADA (Imposta) Tal Constituição nasce de um órgão constituinte não popular (Constituições brasileiras de 1824, 1937, 1967 e 1969). Nestas constituições, diz-se que o exercício do Poder Constituinte não foi realizado pelo seu titular, havendo usurpação do Poder Constituinte. CONSTITUIÇÕES CESARISTAS: Os governantes destas épocas, geralmente ditadores, até como forma de “ficar com a consciência tranquila”, buscam métodos para popularizar, democratizar a Constituição que nasceu da força, e não do seio do povo. O governo, normalmente ditatorial, submete ao povo, mediante plebiscito ou referendo, a Constituição que foi imposta, para que o povo possa aprová-la. Estas Constituições impostas, submetidas à consulta popular, são chamadas de “constituições Cesaristas”. Daí porque a doutrina não costuma classificar as constituições Cesaristas nem como promulgadas e nem como outorgadas, porque na verdade é um misto de promulgação, porque existe forma de participação popular, e outorga, vez que é criada apenas pelo ditador, pela junta militar ou pelo grupo que domina o poder. A Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937, no art. 187 previa consulta popular para ratificação de seu texto, nestes termos: “Esta Constituição entrará em vigor na sua data e será submetida ao plebiscito nacional na forma regulada em decreto do Presidente da República”. Nas constituições Cesaristas, há previsão de forma de democracia direta, porque a Constituição é imposta pelo ditador, ou pelo grupo ditatorial, e o povo apenas faz análise posterior ao texto pronto e acabado (referendum), ou até uma análise prévia do texto que será imposto (plebiscito). O art. 187 da CF/37, portanto, foi atécnico quando fez referência a “plebiscito”, que
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