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1 ______________________________________________________________________ A IMANÊNCIA DO EU PARA A TRANSCENDÊNCIA DO OUTRO. A PROPOSTA DA INTERSUBJETIVIDADE EM EDMUND HUSSERL. (Quinta meditação) Por: Bruno Carvalho Garcia de Oliveira. Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes Edmund Husserl nasce no ano de 1859 em Pronitz (Morávia), era de família judia, porém indiferente no campo religioso. Husserl, depois de estudar matemática, física e astronomia, aventura-se no campo da filosofia a fim de encontrar um saber universal e rigoroso. Dedicando-se à fenomenologia, traz traços insignes de Descartes, e desenvolve uma vasta produção filosófica (em média 40.000 páginas estenografadas!). O que não faz dele um filósofo popular, pelo contrário, suas obras além de não serem muito acessíveis, são de difícil interpretação. O filósofo aplicou-se à fenomenologia dos primeiros fatos da consciência. Husserl apresenta, na raiz de seu pensamento, as seguintes influências principais: Franz Brentano e, por seu intermédio, a tradição grega e escolástica; Bolzano; Descartes; Leibniz; o empirismo inglês e o kantismo. Sobretudo, a influência cartesiana que valora a René Descartes um novo recomeço da filosofia e daqui surge, o que ele chama de, afenomenologia transcendental. No entanto, cabe-nos uma pergunta: o que é fenomenologia? Etimologicamente a palavra fenomenologia (numa junção phaenomeno + logos) significa “ciência dos fenômenos”. É dito que Lambert utilizara esta palavra antes de Husserl (no século XVIII), na quarta parte do NeuesOrganon, para dar base ao saber empírico. Emmanuel Kant e G. W. F. Hegel também fizeram uso da mesma. No entanto, Husserl compreende-a diferente. Para ele, designa (o fenômeno) tudo que intencionalmente está presente à consciência. Desenvolve, consequentemente, a fenomenologia como ciência fundamentadora sob a análise reflexa do conteúdo resultado do ato de pensar enquanto manifesta a realidade. A fenomenologia, irrompida a partir das investigações lógicas de Husserl, apresenta-se como um movimento filosófico, científico e cultural, porém é mais que 2 isso, trata-se de um método de investigação filosófica que pergunta pela essência das coisas. A fenomenologia é a própria filosofia (e não meramente uma corrente, movimento ou escola filosófica). Assim, se nos apresenta como possibilidade do pensar, como mistério de ser. De igual modo, o fenômeno é tudo aquilo que se mostra e se esconde (vela e desvela), tudo aquilo que está em causa (sache– res – coisa). O seu logos é a própria fenomenologia. E ele – o fenômeno – se dá a si mesmo (autodatidade), o que configura o princípio fenomenológico: acolher o que se dá; o que se doa. Sendo, seguramente, ciência das essências e não dos fatos. Essencial e não factual. O nosso fenomenológo desconsidera a proposição kantiana de que a experiência atual não é a verdadeira coisa. Kant separa o fenômeno e a coisa em si, para ele as coisas mesmas (a essência de determinada coisa) não podem ser conhecidas em sua realidade, no entanto, só se tem acesso à coisa como ela se aparece –o que para ele é o fenômeno – e não a coisa em si – noúmenon.Diante disso, Husserl propõe a volta “ás coisas mesmas”, atentou-se ao fenômeno como tal (puro) do modo como se presentifica e mostra-se à consciência. A fenomenologia husserliana fica caracterizada por dar um sentido mais subjetivo ao fenômeno confundindo-se, ou melhor, relacionando-se com a ontologia. Para ele, o sentido do ser e do fenômeno são os mesmo, inseparáveis. A fenomenologia husserliana pretende estudar, pois, não puramente o ser, nem puramente a representação ou aparência do ser, mas o ser tal como se apresenta no próprio fenômeno. E fenômeno é tudo aquilo de que podemos ter consciência, de qualquer modo que seja. Fenomenologia, no sentido husserliano, será, pois os estudos dos fenômenos puros, ou seja, uma fenomenologia pura. (ZILLES, 1996, p. 17 – grifo nosso). Husserl deixa bem claro que fenomenologia não é fenomenismo1, isto é, que tudo exista somente na consciência. Por conseguinte, a reflexão acerca dos fenômenos da consciência é para examinar os diversos sentidos do ser e do que existe à luz das funções da consciência. Tal é, o postulado, que a maior tarefa da fenomenologia consiste em estudar a significação das vivências da consciência. Para ele, a fenomenologia é, seguramente, prima philosophia, pois leva à reflexão – tem seu caráter introspectivo. Dirigir-se ao mundo interior, transcendental (como condição de possibilidades), ideal, porém não falso, é garimpar as riquezas da consciência sem 1No empirismo radical (de David Hume 1711-1776), teoria segundo a qual a natureza não possui qualquer substância, essência ou coisa em si, sendo apenas real e verídico o fenômeno, isto é, tudo aquilo que se oferece à percepção humana. 3 recorrer ao transcendente, o mundo exterior real e empírico. O que nos resta é procurarmos as evidências apodíticas2 na subjetividade transcendental pela descrição dos fenômenos puros. Somente no regresso às coisas mesmas há, de maneira plena e originária – e com evidência –, o encontro com a realidade. A grande crítica de Husserl volta-se ao psicologismo (e, consequentemente, ao historicismo e naturalismo). Para ele a ciência natural é ingênua em seu ponto de partida, também a psicologia, na medida em que se torna psicofísica. A ingenuidade que salienta consiste em reduzir à experiência o método da ciência experimental. A chave do problema está na concepção naturalista que tende à coisificação de tudo, a pejoratividade em reduzir os níveis de ser, do ideal-espiritual ao extenso-matemático (físico). Dessa forma, o psicologismo trouxe consigo algumas consequências negativas e contrassensos que desembocam no relativismo cético e no antropologismo (exacerbado). Em sua confusão, tornou-se cego para o ser ideal, além de ignorar a pergunta pela essência da verdade e pelo sentido de ser. Nas meditações cartesianas, Husserl retoma as meditationes de prima philosophia de Descartes como ‘pano de fundo’ da fenomenologia transcendental. Aqui, Husserl elenca principais aspectos de sua fenomenologia como: redução transcendental (epoché) e fenomenologia eidética. Com isso, busca atingir uma verdade originária, algo que não possa gerar a menor margem de dúvida, um conhecimento certo, que não gere erro. Um saber universal. Dessa forma, volta-se para as coisas em si mesmas, a realidade que se mostra: o fenômeno. São cinco as meditações abordadas, no entanto, aqui nos atentaremos à quinta meditação que trata do “desvendamento da esfera de ser transcendental como intersubjetividade monadológica”. Delimitamos ainda mais o assunto de nosso trabalho ao tratarmos (de modo introdutório e simplório) a imanência do Eu para a transcendência do Outro. A fenomenologia transcendental (própria estrutura da subjetividade) é a fenomenologia da consciência – o fenômeno instaura-se no campo imanente da consciência – e visa à busca da essência do conhecimento a priori. A redução eidéticaconsiste na descrição dessa estrutura e a epoché, da qual utiliza o filósofo, é 2 “Em geral entende-se por evidência um saber certo e indubitável. Entre os antigos, a evidência costuma ser considerada como um fato objetivo, como o manifestar-se de um objeto qualquer como tal. Significa o aparecimento do que é verdadeiramente e é por isso manifesto que exclui a possibilidade de dúvida e, portanto, de erro. A evidência é um critério de verdade e de certeza.” (ZILLES, 1996, p. 22). 4 abstenção de toda realidade a fim de partir de uma plena liberdade3. Não se diz que o filósofo duvidará das coisas existentes, mas sim, que irá colocá-lasentre parênteses a fim de não ter, em sua filosofia, a concepção do senso comum – atitude natural – que se opõe à atitude filosófica. Sempre lembrando que Husserl almeja uma filosofia como ciência de rigor que se atém ao que é indubitavelmente (sem dúvida alguma) evidente. Para ele, o que leva à redução, isto é, a colocar entre parênteses a realidade como concebe o senso comum, é a intencionalidade. Noutras palavras, Husserl introduz a epoché para designar a suspensão do juízo (em relação à existência) como ferramenta para sua fenomenologia transcendental. Outro termo muito caro a Husserl é autodatidade que é o dá-se em si mesmo, como intuição, uma visão direta e imediata. Daqui, podemos esclarecer que a razão faz parte da subjetividade transcendental. O “ego cogito puro” é a personagem que se torna formador de si e do mundo que o circunda – autoconstituição. Há sempre uma co- relação, co-pertencimento entre o sujeito e o objeto, entre eu e o mundo, entre perceber e o percebido (consciência e objeto). O “[eu] puro” compõe o núcleo de toda constituição4 de si e do mundo (mundividência). Este mundo, dubitável pela tese que formamos sobre ele, é pluralidade de “eus”. Esse eué cartesiano, isto é, propõe-se como coisa pensante e pensa o real a partir do subjetivo. Husserl, ao deparar-se com esse eu cartesiano, quer descoisificá-lo, pois se trata da vida originária, viver cotidianamente, esse eu é evento do mundo! É vida! Vida originária porque se dá na intuição direta, vê o que se mostra, no “eu sou” presentifica-se a relação vivência e vivenciado. Somente o “eu puro” não pode passar pela redução fenomenológica, sendo ele que determina a percepção do vir-a-ser. O ego (mônada) é centro de uma vida que percebe o mundo. Cada ego possui um mundo que vê sob uma perspectiva singular, evidencia o fenômeno da vida intencional. Da percepção podemos apreender o perceber e o percebido. O primeiro como intentio – cogito cartesiano –, noésis. O segundo como intentum – cogitatum/cogitata –, noema. A visão que é capaz de ilustrar como tudo isso acontece, por exemplo. A visão percebe aquilo que se doa à vista, o perceber e o percebido. No entanto, isso só acontece 3Apesar de que os dois termos fossem aqui empregados, em certo sentido, distintos a epoqué já é a própria redução, embora, Edmund Husserl use-os como equivalentes. 4Constituir é sempre remontar da intuição à origem, na consciência, do sentido de tudo que é, origem absoluta. Aqui, o próprio sujeito se constitui pela reflexão sobre sua própria vida, que é muitas vezes irreverentemente irrefletida. 5 por causa de um terceiro elemento – a luz –, que, na verdade, é o primeiro; logo o ver e o visto só o são a partir da luz. E a luz aqui é perceptividade. A condição de possibilidade – que é, singularmente, estruturante – é perceptividade. O perceber dá a coisa “em carne e osso”, oferece abertura de mundo e constitui o grau máximo da intuição, quer apreender e ver o simples (schilidites sehen) é o esforço da fenomenologia. A intencionalidade (da própria percepção) tem a ver com o sentido mesmo de interesse (inter-esse/ser entre = abertura). Representa o modo de estarmos (ser) no mundo. Nas coisas mesmas é que se dão nossos relacionamentos. A abertura revela as possibilidades que se me dão. O que não é estranho desde a mais terna idade humana já que na brincadeira (no simples ato de brincar de uma criança) o mundo imaginativo e inventivo instaura-se como uma grande aventura, abre-se um mundo. O homem está a todo o momento interpretando (há uma semelhança, aqui, entre hermenêutica e fenomenologia), o que éum ato nato ao homem, pois em todas as circunstâncias ele é convidado a não somente observar, mas interpretar os sinais de seu tempo, isto é, a colocar-se como inter-mediário dos sentidos possíveis que seu tempo parece oferecer- lhe. Nesse sentido é que a apreensão do ego transcendental evoca o sujeito como possibilidade, como tomada de consciência universal de nós mesmos e de relação como mundo. Pela constituição do mundo podemos dividir (didaticamente) o “eu” em duas gêneses ou sínteses (passiva e ativa). Na gênese passiva o “eu” é afetado, ou seja, ele é atingido por tudo aquilo que o circunda. A apercepção – consciência desperta –abre-lhe o campo de percepção de mundo como consciência sensível à vida. O que na vida se apresenta a nós, de qualquer forma, como acabado, como coisa real que não passa de coisa (abstração feita de todos os predicados que o espírito pressupõe e caracterizam a coisa como martelo, mesa, produto da atividade estética), é mostrado de maneira original e como “ele mesmo” pela síntese da experiência passiva (HUSSERL, 2001, p. 94). É por esta abertura que nós nos comunicamos com todos os outros “eus” que tecem o mundo presente e, assim, que se inicia como “ego” uma investigação profunda da “coisa” meditando e mergulhando nos “fenômenos”. 6 Enquanto gênese ativa, o “eu” é ativo. A objetividade do mundo é dada como fruto (construção) do nosso pensar e não pelo dado da natureza. As invenções humanas, o objeto técnico, a história, dentre outros, são frutos da arte humana. O “ego puro” dá sentido a todas as coisas a partir de uma tomada de consciência de si mesmo. Diz-se ego como mônada por sua unidade que constitui uma totalidade. Unidade entre corpo (sujeito como ser-no-mundo; continuidade do eu) e alma (vida da vida; que anima a vida do corpo). As nossas relações dizem de nossas histórias que revelam o homem como “eu constituído”. A fenomenologia – como idealismo transcendental (em uma nova perspectiva) – é a explicitação do “ego” como sujeito de possibilidade, nesse sentido perceber o mundo é perceber o outro – alter ego –, o que acontece automaticamente. O “eu transcendental” ao dirigir-se à realidade objetiva depara-se com o “outro que eu” igualmente doador de si (de sentido) para qual minha consciência tenciona-se. Cabe- nos, sob tal perspectiva, indagarmo-nos o que é o outro, o que é o alter ego? Em contraposição ao solipsismo5, Husserl concede ao outro, em certo sentido, um protagonismo próprio: “mas o que acontece então com os outros egos? Eles não são por certo simples representações e objetos representados em mim das unidades sintáticas de um processo de verificação que se desenvolve ‘em mim’, mas justamente nos ‘outros’” (2001, p. 105). O alter é dotado de vida própria, é um outro que eu. O sentido do outro depende do sentido do eu. O sentido é conferido ao eu e ao próprio para, depois, ser outorgado ao mundo e ao outro. Husserl cede ao alter egoà teoria transcendental da experiência do outro, isto é, endopatia, o outro semelhante a mim. Segundo o filósofo, trazemos conosco mesmo a percepção de outros egos como “ego puro” – existência absoluta. Podemos encontrar um primeiro fio condutor no próprio sentido das palavras: “os outros”, um “outro eu”. Alter quer dizer alter ego, e o ego que aí está implicado sou eu mesmo, constituído no interior da esfera da minha vinculação “primordial” de maneira única como unidade psicofísica (como homem primordial), como um eu “pessoal”, imediatamente ativo no meu corpo único e intervindo por meio de ação imediata no mundo ambiente primordial; além disso, sujeito de uma vida intencional concreta, sujeito de uma esfera psíquica que se 5Doutrina segundo a qual só existem, efetivamente, o eu e suas sensações, sendo os outros entes (seres humanos e objetos), como partícipes da única mente pensante, meras impressões sem existência própria [Embora freq. considerado uma possibilidade intelectual (caso limite da filosofia idealista), jamais foi endossado integralmente por algum pensador.] 7 relaciona consigo mesma e como “mundo”. Todas essas estruturas estão à nossa disposição; e elas assim estão nos seus aspectos típicos, elaboradas pela vida consciente, com suas formas familiares de decurso e de complicação (HUSSERL, 2001, p. 124). Husserl irá dispor de outro modo de conhecer a realidade. A percepção, logo, não é a única via. A experiência mediata também é válida como experiência. Ou seja, o corpo animado – que é o outro – se me apresenta como outra subjetividade. Alter ego. Sendo irredutível a minha subjetividade. O oposto do eu tem que seu outro eu. Ao ego só pode opor-se, propriamente, um alter ego. Na experiência do meu próprio corpo radica a experiência que tenho de corpos alheios e, por sua mediação, tenho experiência da subjetividade alheia, de uma segunda via transcendental distinta da minha (ZILLES, 1996, p. 17). A intersubjetividade encontra-se na união (de pessoas) pela experiência da endopatia. Destarte que, a redução fenomenológica conduz a duas certezas – estruturas – universais da vida: minha vida e a do outro. Há uma apercepção, instantaneamente, recíproca intersubjetiva do ego e do alter ego. Que quero dizer é que a única coisa capaz de opor-se a mim é o oposto de mim. Assim, o nós – isto é, o “eu” como mônada tem no horizonte outras mônadas constituindo um autoestranhamento de mim nele a gerar uma singularidade que, como chama Husserl, forma/compõe/estrutura o nós – é a própria intersubjetividade transcendental que forma/constitui o mundo como validade objetiva. Noutras palavras, o processo de comunicabilidade entre o “eu” com o “outro”, isto é, o “si mesmo” vinculado a “outros eus” pela intencionalidade do ego. O presente elo entre “eu” e “alter ego” coloca-se como seres lançados no mundo com infinitas possibilidades. Husserl tem uma importância fundamental nesse sentido. Porém, suas proposições acerca do outro abriram caminhos as mais variadas interpretações como a de Martin Heidegger e Emmanuel Lévinas. Para Heidegger, o outro não é meramente o outro, mas co-partícipe de um mundo compartilhado. É co-existente. O ser-no-mundo é, portanto, ser-com-os-outros. Em seu dasein revela seu caráter mitsén. 8 O mundo da pre-sença libera, portanto, entes que não apenas sedistinguem dos instrumentos e das coisas mas que, de acordo com seu modo de ser de pre-sença, são e estão “no” mundo em que vêm ao encontro segundo o modo de ser-no-mundo [...] são também co-pre- senças (HEIDEGGER, 2001, p. 169 – grifo do autor). Confere-se ao outro o sentido mesmo de ser pre-sença (co-pre-sença), de ser dasein. É co-presença com o ser-aí (mit-dasein). O ser-no-mundo é ser-com-os-outros, assim como “no” o “com” deve ser entendido como existencial e não categórico. O cunho existencial do “como” está, justamente, na base do ser-no-mundo; “no-mundo” que é sempre compartilhado pela “pluralidade de eus” da qual falava Husserl, ou seja, este mundo de vivência é – perpetuamente – partilhado com os outros. Nas palavras de Heidegger, “o mundo da pre-sença é mundo compartilhado” (2001, p. 170 – grifo nosso). A própria noção de mitsén é constitutivo do modo de ser do homem. Todo dasein é mitsén. Lévinas difere tanto de Heidegger como de Husserl. Se, com Husserl, dissemos que o outro, em certo sentido, torna-se protagonista (sobretudo por voltar a ser pensando) – ou em Heidegger ao adquirir um sentido de co-vivente ao ser-no-mundo–, em Lévinas isto é levado à potência. Para ele importa, essencialmente, a condição de outrem do outro. Ao entender o outro como outro eu, apenas, tiro o que lhe é próprio: a condição de ser outro independente daquilo que lhe confiro. Usurpo-lhe seu sentido próprio. A relação com Outrem não anula a separação. Não surge no âmbito deuma totalidade e não a instaura nela Eu e o Outro. [...] A relação entreMim e o Outro começa na desigualdade de termos, transcendentes um em relação ao outro, onde a alteridade não determina o outro formalmente como a alteridade de B em relação a A que resulta simplesmente da identidade de B, distinta da identidade de A. A alteridade do Outro, aqui, não resulta da sua identidade, mas constitui-a: O outro é outrem. (LÉVINAS, 2000, p.229 – grifo nosso). Pela relação de desigualdade, o outro perde sua identidade, ao passo que manter sua pessoalidade é manter sua condição de outrem. Lévinas parece fazer uma inversão. Percorre caminhos ainda inauditos contrapondo toda uma tradição moderna da filosofia, onde as referências partem (todas) do sujeito. É interessante notar, também, que mesmo na relação, no encontro com os outros (com o tu que compartilha o mesmo mundo) a identidade é preservada e a diferença transmuta-se em alteridade. O 9 encontrocom o outro, parte de sua singularidade.Aqui, sua contraposição a Heidegger que afirma haver um contexto para o encontro, para Lévinas o mundo não é condição de mediação para o encontro, porém, sendo o outro portador de um significado próprio, ele vem por si mesmo. O homem, para Lévinas, tem seu sentido na relação com o outro, uma relação autêntica. Com isso, ressalto a importância de Husserl em abordar, de modo fenomenológico, a figura do outro em suas meditações, sobretudo em um tempo onde tal figura encontrava-se adormecida. A quinta medição, singularmente, irá tratar da transcendência para o outro a partir do “ego transcendental”. A intersubjetividade (aqui já abordada) é graças à percepção. Ao reconhecer o “si mesmo” – próprio ego – abre-se à possibilidade de haver “outros egos” e, por não estar só, reconhece-os como “outros eus” e como inserto no meio deles. É a união intersubjetiva pela experiência endopática. Reitero, ainda, que a intersubjetividade – como vivência homogênea da alteridade na reciprocidade – constitui não só a comunidade humana como a minha própria humanidade. Ao apresentar o pensamento de outros autores, como Heidegger e Lévinas, tento demonstrar como a vitalidade do discurso acerca do outro tomou outras proporções (valorativas e positivas!) e voltou a ser o centro do discurso de alguns filósofos moderno-contemporâneos (ainda como Sartre e Martin Buber, por exemplo). 10 ________________________ Referências bibliográficas HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Título original: SeinundZeit. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback e Emanuel Carneiro Leão. Parte I, 10º edição. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2001 (Coleção pensamento humano). HUSSERL, Edmund. Meditações Cartesianas – introdução à fenomenologia. Trad. Frank de Oliveira. São Paulo: Mandras Editora ltda, 2001. _________________. A crise da humanidade europeia e a filosofia. Introd. e Trad. Urbano Zilles. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996 (Coleção filosofia - 41). LÉVINAS, Emmanuel.Totalidade e Infinito. Trad. José Pinto Ribeiro e revisão de Artur Morão. Lisboa – Portugal: Edições 70, 2000. (Coleção Biblioteca de Filosofia Contemporânea).
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