Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
PENAL II – PARTE ESPECIAL VALDINEI CORDEIRO COIMBRA Advogado (OAB/DF) Mestre em Direito Penal Internacional pela Universidade de Granada (Esp) Especialista em Direito Penal e Processual Penal pelo ICAT/UNIDF Especialista em Gestão Policial Judiciária – APC/Fortium Coordenador do www.conteudojuridico.com.br Delegado de Polícia PCDF (aposentado) Ex-analista judiciário do TJDF Ex-agente de polícia civil do DF Ex-agente penitenciário do DF Ex-policial militar do DF vcoimbr@gmail.com CÓDIGO PENAL - TÍTULO I – DOS CRIMES CONTRA A PESSOA Capítulo I – Dos crimes contra a vida – Do Aborto (Arts. 124 ao 128 do CP) 4.ABORTO: Conceito. Entendimento acerca do início da vida. Formas de aborto. Objeto jurídico. Classificação. Elemento subjetivo. Sujeito ativo. Sujeito passivo. Espécies: autoaborto, consentimento para aborto pela gestante, aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante, aborto provocado por terceiro com o consentimento da gestante. Crime qualificado pelo resultado. Aborto necessário e aborto resultante de crimes contra os costumes Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: (Vide ADPF 54) Pena - detenção, de um a três anos. Aborto provocado por terceiro Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de três a dez anos. Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: (Vide ADPF 54) Pena - reclusão, de um a quatro anos. Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior (reclusão, de três a dez anos), se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência Forma qualificada Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte. Aborto necessário Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54) I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. Considerações gerais: Aborto ou abortamento é a interrupção da gravidez, da qual resulta a morte do produto da concepção. É com a fecundação que se inicia a gravidez – a partir de então já existe uma nova vida em desenvolvimento, merecedora da tutela do Direito Penal. Há aborto qualquer que seja o momento da evolução fetal – a proteção penal ocorre desde a constituição do ovo ou zigoto até a fase em que se inicia o processo de parto, pois a partir de então o crime será de homicídio ou infanticídio. Classificação doutrinária: a) aborto natural: é a interrupção da gravidez oriunda de causas patológicas, que ocorre de maneira espontânea (não há crime); b) aborto acidental: é a cessação da gravidez por conta de causas exteriores e traumáticas, como quedas e choques (não há crime); c) aborto criminoso: é a interrupção forçada e voluntária da gravidez, provocando a morte do feto; d) aborto permitido ou legal: é a cessação da gestação, com a morte do feto, admitida por lei. Esta forma divide-se em: d.1) aborto terapêutico ou necessário: é a interrupção da gravidez realizada por recomendação médica, a fim de salvar a vida da gestante. Trata-se de uma hipótese específica de estado de necessidade; d.2) aborto sentimental ou humanitário: é a autorização legal para interromper a gravidez quando a mulher foi vítima de estupro. Dentro da proteção à dignidade da pessoa humana em confronto com o direito à vida (nesse caso, do feto), optou o legislador por proteger a dignidade da mãe, que, vítima de um crime hediondo, não quer manter o produto da concepção em seu ventre, o que lhe poderá trazer sérios entraves de ordem psicológica e na sua qualidade de vida futura; e) aborto eugênico ou eugenésico: é a interrupção da gravidez, causando a morte do feto, para evitar que a criança nasça com graves defeitos genéticos.; f) aborto econômico- social: é a cessação da gestação, causando a morte do feto, por razões econômicas ou sociais, quando a mãe não tem condições de cuidar do seu filho, seja porque não recebe assistência do Estado, seja porque possui família numerosa, ou até por política estatal. No Brasil, é crime. Objeto jurídico: A vida do feto ou embrião. No aborto provocado por terceiro, sem o consentimento da gestante (art. 125), protege-se também a integridade física e psíquica da gestante. Alguns ainda acrescentam a tutela do interesse demográfico do Estado1. Início da vida: a vida humana tem início a partir da fecundação. O cientista Jerome Lejeune, professor da universidade de René Descartes, em Paris, que dedicou toda a sua vida ao estudo da genética fundamental, descobridor da Síndrome de Down (mongolismo), afirma que “quando os 23 cromossomos masculinos se encontram com os 23 cromossomos da mulher, todos os dados genéticos que definem o novo ser humano estão presentes. A fecundação é 1 GÓMEZ, Alfonso Serrano. Derecho penal – parte especial, p. 69. o marco inicial da vida. Daí para frente, qualquer método artificial para destruí-la é um assassinato”. 2 Objeto material: É o feto, em todas as modalidades de aborto criminoso. Deve haver prova da gravidez3 – se a mulher não estava grávida, ou se o feto já havia morrido por outro motivo, estará configurado crime impossível por absoluta impropriedade do objeto (CP, art. 17). O feto deve estar alojado no útero materno e não se exige que tenha viabilidade. Não há proteção do Direito Penal na gravidez molar (em que ocorre desenvolvimento anormal do ovo ou “mola”), nem na gravidez extrauterina, que representa uma situação patológica. Descarte ou destruição de óvulo fecundado in vitro: a manipulação genética que permite a reprodução assistida é pela Lei n. 11.105/2005, que estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados. Referida Lei não prevê incriminação para o descarte ou destruição de embriões criados e preservados em laboratórios. Os tipos penais incriminadores do aborto previstos no Código Penal se referem à interrupção da gravidez natural, com vida intrauterina. O embriocídio não é punido no Brasil. Sujeito ativo: A gestante, nas modalidades tipificadas pelo art. 124 do Código Penal (crimes próprios), e qualquer pessoa, nos demais casos (crimes comuns). Os crimes previstos no art. 124 do Código Penal são de mão própria (somente a gestante pode cometê-los). Admitem apenas participação (induzimento, instigação, auxílio material), e são incompatíveis com a coautoria. Quem realiza atos abortivos na gestante com o seu consentimento, responde pelo art. 126. Sujeito passivo: O feto. No aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante (CP, art. 125), há duas vítimas: o feto e a gestante. 2 ADI n. 3510‐DF, proposta em face do art. 5º, seus incisos e parágrafos da Lei n. 11.105, de 24 de março de 2005, que permitem a realização de pesquisas científicas com células‐tronco embrionárias. Em 29 de maio de 2008, por 6 votos a 5, a ação foi julgada improcedente. 3 •Exame pericial indireto: “A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido da possibilidade de exame de corpo de delito indireto no crime de aborto” (STF: HC 97.479/PA, Rel. Min. Ellen Gracie, 2ªTurma, j. 12.06.2009). Comportamento proibido: provocar significa dar causa ou determinar; consentir quer dizer dar aprovação, admitir, tolerar. O objeto das condutas é a cessação da gravidez, provocando a morte do feto ou embrião. Meios de execução: Crime de forma livre, admitindo qualquer meio de execução, comissivo ou omissivo, físico ou psíquico. A omissão, para ser penalmente relevante, depende da existência do dever de agir (CP, art. 13, § 2º). Elemento subjetivo: É o dolo, direto ou eventual. Não existe aborto culposo como crime contra a vida – quem provoca aborto por culpa responde por lesão corporal culposa contra a gestante, pois os ferimentos nela provocados são consequência natural da manobra abortiva. Se a própria gestante agir culposamente e ensejar o aborto, o fato será atípico (princípio da alteridade). Aborto resultante de agressões: Se o sujeito agride uma mulher, que sabe estar grávida, com a exclusiva intenção de lesioná-la, mas produz culposamente o aborto, responde por lesão corporal gravíssima (CP, art. 129, § 2º, V). Consumação: Dá-se com a morte do feto, no útero materno ou depois da prematura expulsão provocada pelo agente. É desnecessária a expulsão do produto da concepção. Tentativa: É possível, em todas as modalidades de aborto criminoso. Se a intenção do agente era ferir a gestante o crime será de lesão corporal grave em face da aceleração do parto (CP, art. 129, § 1º, IV). Manobras abortiva + expulsão do feto com vida + nova agressão e morte: Se o procedimento abortivo acarretar na expulsão do feto com vida e, em seguida, o agente realizar nova conduta contra o recém-nascido, para matá-lo, haverá concurso material entre tentativa de aborto e homicídio (ou infanticídio, se presentes os elementares do art. 123 do CP). Manobras abortiva + expulsão do feto vivo + morte: Se o agente praticar a conduta abortiva e o feto for expulso com vida, morrendo posteriormente em decorrência da manobra realizada, o crime será de aborto consumado. Ação Penal: É pública incondicionada, em todas as modalidades do crime de aborto. Competência: É do Tribunal do Júri (CF, art. 5º, XXXVIII, d). No caso do autoaborto e ao consentimento para o aborto (art. 124), cabe suspensão condicional do processo, desde que presentes os demais requisitos exigidos pelo art. 89 da Lei 9.099/1995, tendo em vista a pena mínima de 1 ano. Anúncio de substâncias, objeto ou processo para manobras abortivas: Constitui contravenção penal a conduta de anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto (art. 20 do Decreto-lei 3.688/1941, LCP). No Projeto do novo CP (PLS 236) prevê no seu art. 127 § a punição por prisão de seis meses a um ano. Concurso com o delito de associação criminosa: Se três ou mais pessoas se associarem para o fim específico de cometer abortos (exemplo: clínica ilegal para abortamentos), responderão pelo art. 288 do CP em concurso material com os abortos eventualmente cometidos. Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento: O art. 124 do Código Penal contém duas figuras típicas: a) Provocar aborto em si mesma – autoaborto (1.ª parte) e b) Consentir para que terceiro lhe provoque o aborto (2.ª parte). Na primeira hipótese (autoaborto), a gestante efetua contra si própria o procedimento abortivo. Não há tentativa de aborto quando a mulher busca suicidar-se, mas permanece viva, pois não se pune a autolesão (princípio da alteridade). Se da tentativa de suicídio resultar o aborto, à mulher deve ser imputado o autoaborto (dolo eventual) – há quem entenda não existir crime, pois o aborto seria consequência lógica da autolesão. Admite a participação. O partícipe do autoaborto pratica homicídio culposo ou lesão corporal de natureza culposa, se ocorrer morte ou lesão corporal de natureza grave em relação à gestante, sendo inaplicável o art. 127 do Código Penal. Quando a gestante provoca em si mesma o aborto legal ou permitido, duas situações podem ocorrer: 1ª) tratando-se de aborto necessário ou terapêutico (CP, art. 128, I), não há crime, em face da exclusão da ilicitude pelo estado de necessidade; e 2ª) na hipótese de aborto sentimental ou humanitário, o fato é típico e ilícito, pois nessa modalidade somente é autorizado o aborto praticado por médico. É de se reconhecer, contudo, a incidência de uma dirimente, em face da inexigibilidade de conduta diversa (causa supralegal de exclusão da culpabilidade). Na segunda hipótese (consentimento para o aborto), a grávida autoriza um terceiro, que não precisa ser médico, a fazê-lo. O Código Penal abre uma exceção à teoria monista ou unitária no concurso de pessoas (art. 29, caput), sendo a gestante autora do crime tipificado pelo art. 124, 2.ª parte, e o terceiro, autor do crime definido pelo art. 126. É crime de mão própria – somente a gestante pode consentir e deve ter capacidade e discernimento para tanto, o que se evidencia por sua integridade mental e por sua idade (14 anos ou mais). O consentimento deve ser válido. Admite participação, respondendo o partícipe pelo art. 124 do CP (conduta vinculada ao consentimento da gestante) ou pelo art. 126 (conduta vinculada à do terceiro que provoca o aborto). Aborto provocado por terceiro com o consentimento da gestante (art. 126): Também se trata de exceção à teoria monista ou unitária no concurso de pessoas (art. 29, caput), respondendo a gestante pelo crime definido no art. 124, 2ª parte (consentimento para o aborto), e o terceiro pelo delito contido no art. 126 (aborto consentido ou consensual), ambos do Código Penal. O consentimento da gestante deve subsistir até a consumação do aborto – se, durante o procedimento, ela solicitar ao terceiro a interrupção das manobras letais, mas não for obedecida, para ela o fato será atípico, e o terceiro responderá pelo crime delineado pelo art. 125 do Código Penal. Se o terceiro cometer o fato por incidir em erro sobre o consentimento da gestante, plenamente justificado pelas circunstâncias, a conduta deverá reputar-se praticada com o seu consentimento. Admite participação, respondendo o partícipe pelo art. 124 (conduta vinculada ao consentimento da gestante) ou pelo art. 126 (conduta vinculada à do terceiro provocador do aborto). Aborto qualificado pelo resultado: as hipóteses elencadas caracterizam causas de aumento de pena e são aplicáveis ao aborto praticado por terceiro, com ou sem o consentimento da gestante (arts. 125 e 126), por expressa disposição legal. São hipóteses de crimes qualificados pelo resultado, de natureza preterdolosa (aborto doloso e lesão corporal ou morte culposas). Aplica-se o art. 19 do Código Penal: “Pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente”. Casuísticas entre aborto, lesão e morte da gestante: a) se em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo a gestante sofre lesão corporal de natureza leve, o terceiro responde somente pelo aborto simples, sem ou com o seu consentimento, restando absorvida a lesão corporal. b) se resulta lesão grave ou gravíssima, culposos, responde pelo aborto, com a causa de aumento de pena de um terço; c) Se do aborto resulta morte culposa, a pena do aborto é duplicada; d) se, no entanto, o terceiro tinha dolo (direto ou eventual) no tocante a ambos os crimes, responde por aborto e por lesão corporal de natureza grave ou homicídio, em concurso (material ou formal imperfeito). Aquele que mata dolosamente uma mulher, ciente da sua gravidez, e assim provoca a morte do feto, responde por homicídio doloso e também por aborto, ainda que ausente a intenção de provocar a morte do feto (quando se mata uma mulher grávida há pelo menos dolo eventual quanto ao aborto).Se o terceiro ignorava a gravidez será responsabilizado por homicídio doloso, sob risco de caracterização da responsabilidade penal objetiva. Aborto legal ou permitido: O dispositivo arrola duas causas especiais de exclusão da ilicitude – o aborto necessário e o aborto no caso de gravidez resultante de estupro. Em ambas, o aborto há de ser praticado por médico. O aborto necessário ou terapêutico: depende de dois requisitos: (1) que a vida da gestante corra perigo em razão da gravidez; e (2) que não exista outro meio de salvá-la. O risco para a vida da gestante não precisa ser atual. Se o médico supõe erroneamente o perigo em razão das circunstâncias do caso concreto, não responde pelo crime em face da descriminante putativa prevista no art. 20, § 1º, do Código Penal. Como a vida constitui-se em bem jurídico indisponível, não se exige o consentimento da gestante para o aborto. Não há crime quando a gestante se recusa a fazê-lo e o médico provoca o aborto necessário. E não são puníveis as lesões corporais resultantes do procedimento cirúrgico. É desnecessária a autorização judicial para o aborto. Se o aborto necessário for realizado por enfermeira, ou por pessoa diversa do médico, havendo perigo atual para a gestante, o fato será lícito, como corolário do estado de necessidade (CP, art. 24); ausente este perigo subsistirá o crime de aborto, com ou sem o consentimento da gestante. O aborto em caso de gravidez resultante de estupro (aborto sentimental, humanitário, ético ou piedoso): deve ser praticado por médico e exige-se o consentimento válido da gestante ou de seu responsável legal, se incapaz. Todavia, se for realizado pela gestante ou por outra pessoa, que não um profissional da medicina, o fato será típico e ilícito, mas é de se reconhecer a incidência de uma dirimente, em face da inexigibilidade de conduta diversa (causa supralegal de exclusão da culpabilidade). Pouco importa o meio de execução do delito: violência à pessoa ou grave ameaça. Será possível o aborto ainda que a gravidez resulte da prática do sexo anal ou de qualquer outro ato libidinoso diverso da conjunção carnal. Da mesma forma, por analogia in bonam partem, é permitido o aborto quando a gravidez resultar de estupro de vulnerável (CP, art. 217-A). É prescindível a condenação e até mesmo a ação penal pelo crime de estupro, bastando a existência de provas seguras acerca da existência do crime. Aborto de feto anencéfalo: Anencefalia é a malformação rara do tubo neural acontecida entre o 16.º e o 26.º dia de gestação, caracterizada pela ausência total ou parcial do encéfalo e da calota craniana, proveniente de defeito de fechamento do tubo neural durante a formação embrionária. O Conselho Federal de Medicina (CFM) considera o anencéfalo um natimorto cerebral, por não possuir os hemisférios cerebrais e o córtex cerebral, mas somente o tronco.1 Consequentemente, sua eliminação em intervenção cirúrgica constitui-se em fato atípico, pois o anencéfalo não possui vida humana que legitima a intervenção do Direito Penal. No julgamento da ADPF 54/DF, ajuizada pela CNTS – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria conduta tipificada nos arts. 124, 126 e 128, incs. I e II, do Código Penal. Desta forma, a Corte reconheceu o direito da gestante de submeter-se à antecipação terapêutica de parto na hipótese de anencefalia, previamente diagnosticada por profissional habilitado, sem estar compelida a apresentar autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão do Estado. Se a gestante ou um terceiro praticar manobras abortivas no sentido de eliminar o feto anencéfalo, estará caracterizado crime impossível, em razão da impropriedade absoluta do objeto material, nos termos do art. 17 do Código Penal. No projeto do novo Código Penal em tramitação no Congresso (PLS 236), o aborto de feto anencéfalo vem catalogado no art. 127, III como conduta não punível, desde que atestado por dois médicos e precedido do consentimento da gestante, ou seu representante legal. Interrupção de gravidez de feto anencéfalo: No julgamento da ADPF 54/DF, ajuizada pela CNTS – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria conduta tipificada nos arts. 124, 126 e 128, incs. I e II, do Código Penal. Desta forma, a Corte reconheceu o direito da gestante de submeter-se à antecipação terapêutica de parto na hipótese de anencefalia, previamente diagnosticada por profissional habilitado, sem estar compelida a apresentar autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão do Estado. Os fundamentos invocados pelo Excelso Pretório foram a laicidade do Estado brasileiro, a dignidade humana, o usufruto da vida, a liberdade, a autodeterminação, a saúde e o pleno reconhecimento dos direitos individuais, especialmente os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Anencefalia é a malformação do tubo neural, a caracterizar-se pela ausência parcial do encéfalo e do crânio, resultante de defeito no fechamento do tubo neural durante o desenvolvimento embrionário. O diagnóstico desta anomalia reclama a ausência dos hemisférios cerebrais, do cerebelo e de um tronco cerebral rudimentar ou a inexistência total ou parcial do crânio. Pode ser diagnosticada clinicamente na 12ª semana de gestação, mediante o exame de ultrassonografia. Os anencéfalos são natimortos cerebrais, e jamais podem se tornar pessoas. Não há vida em potencial, e sim a certeza da morte (incompatibilidade com a vida extrauterina), razão pela qual não se pode falar em aborto. Em síntese, os fetos com anencefalia não gozam do direito à vida, posição em sintonia com as disposições elencadas pela Lei 9.434/1997, a qual versa sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. A obrigatoriedade de preservar a gestação produz danos à gestante, muitas vezes levando-as a uma situação psíquica devastadora, pois na maioria das vezes predominam quadros mórbidos de dor, angústia, luto, impotência e desespero, em face da certeza do óbito. Diagnóstico da anencefalia e antecipação terapêutica: No dia 14 de maio de 2012, atendendo à decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 54/DF, o Conselho Federal de Medicina editou a Resolução CFM nº 1.989/2012, disciplinando a atuação prática dos médicos no tocante à interrupção da gravidez baseada na anencefalia do feto, independentemente de autorização do Estado. Crime impossível: Se a gestante ou um terceiro praticar manobras abortivas no sentido de eliminar o feto anencéfalo, estará caracterizado crime impossível, em razão da impropriedade absoluta do objeto material, nos termos do art. 17 do CP. Classificação sintética doutrinária: trata-se de crime próprio (só a gestante pode cometer); instantâneo (cuja consumação não se prolonga no tempo); comissivo ou omissivo (provocar = ação; consentir = omissão); material (exige resultado naturalístico para sua configuração); de dano (deve haver efetiva lesão ao bem jurídico protegido, no caso, a vida do feto ou embrião); unissubjetivo (admite a existência de um só agente), mas na última modalidade (com seu consentimento) é plurissubjetivo, mesmo que existam dois tipos penais autônomos – um para punir a gestante, que é este, e outro para punir o terceiro, que é o do art. 126; plurissubsistente (configura-se por vários atos); de forma livre (a lei não exige conduta específica para o cometimento do aborto); admite tentativa. Pune-se somente a forma dolosa.1. BIBLIOGRAFIA BÁSICA BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, vol. 2, parte especial, 14ª ed., 2014, Saraiva. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal, 10ª ed., 2014, Forense. PRADO, Luiz Regis Prado. Curso de Direito Penal, vol. único, 13ª ed., 2014, RT. 2. BLIBIOGRAFIA COMPLEMENTAR CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal- vol.2, parte especial, 13ª Ed, 2013, São Paulo: Saraiva. DELMANTO, Roberto. Código Penal Comentado, 5. ed., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. JESUS, Damásio de. Direito Penal, vol. 2, parte especial, 33ª Ed., 2012, Saraiva GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, parte especial, vol. 2, 10 ed., rev., ampl. e atual. Niterói: Impetus, 2013. MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal, vol. II, 25. ed., rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2007
Compartilhar