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Psicóloga clínica formada pela UNIP-SP, com especialização em Psicologia Analítica pela UNISAL – Centro Universitário Salesiano de São Paulo. Resumo: STEIN, Murray. Consciência solar, consciência lunar: ensaio sobre os fundamentos psicológicos da moralidade, da legalidade e da noção de justiça. Murray Stein; [tradução Maria Sílvia Mourão Netto]. São Paulo: Paulus, 1998. Introdução A partir da sua prática clínica, lendas e mitologias gregas, Stein (1998) apresenta-nos um ensaio sobre os fundamentos psicológicos da moralidade, da legalidade e da noção de justiça. O autor diferencia dois polos de consciência – um firmemente inserido na comunidade da humanidade e outro abarcando o universo como um todo. O ensaio está dividido em quatro capítulos: a complexidade da consciência; consciência solar; consciência lunar; relações entre a consciência solar e a consciência lunar. Seguindo este mesmo formato, exponho meu entendimento a respeito do tema em questão. Consideramos a moral como um conjunto de regras e valores de uma sociedade, fazendo parte da cultura, e a ética como a reflexão teórica sobre a moralidade feita pelos especialistas, no caso, os filósofos, ou ainda a capacidade individual de questionar a moralidade social. De acordo com esta visão, podemos deduzir que a evolução da humanidade só acontece devido ao nosso potencial criativo, que se mostra capaz de transcender as pressões sociais e seus costumes. Consequentemente isto promove a mudança de paradigmas. Nesse contexto, a ética e o desenvolvimento moral estão sendo abordados com enfoque na dimensão emocional e psicológica. O objetivo desse paper é sintetizar as principais ideias e conceitos relatados por Stein (1998) de tal forma que possa ser usado como elemento complementar nos estudos e compreensão da psicopatologia junguiana. Jussara Veiga Silva Zardo 2 A complexidade da consciência Se observarmos atentamente os acontecimentos do nosso dia a dia, constataremos as manifestações dos diversos tipos de “consciências”; fala-se com muita frequência em consciência profissional, social, artística, pessoal etc. Talvez, isto justifique os sentimentos de culpa que carregamos por questões ligadas à comida, bebida, sexo, dinheiro, relacionamento e uma série de outras atividades no meio onde estamos inseridos. A consciência também cria um estado psicológico de ambivalência, no seguinte sentido “Eu quero isto, mas é preciso aquilo”. Na nossa sociedade, justiça existe onde o “outro” é tratado na mesma proporção que o si mesmo. Porém, a consciência demasiado refinada torna-se neurótica; buscando fazer a “coisa certa”, de maneira perfeita, acabamos refinando a percepção. Assim valemo-nos da racionalização, e desconsideramos o aspecto instintivo da consciência. No universo psicológico, a totalidade é constituída de aspectos conscientes e inconscientes do indivíduo. Os termos ego, complexo e arquétipo referem-se a partes dessa totalidade. O ego é o “eu”, os complexos são trechos autônomos da personalidade que existem de acordo com as experiências individuais e os arquétipos são dinamismos (comportamento e percepção) também autônomos, porém, de natureza impessoal (coletivo), herdados tanto quanto a estrutura genética. Para a consciência o ego não tem privilégios, ou seja, o que ela exige não é necessariamente o “meu bem”, mas “o bem” no sentido amplo do termo, menos pessoal. Alimentamos a ilusão de que o ego é capaz de dominar os complexos psíquicos, sendo que ele domina apenas os efeitos dos complexos e, em curto prazo. A consciência parece se comportar como um complexo autônomo, mas ela opera como uma força poderosa, que o ego não tem condições de monopolizar; seu teor é mais arquetípico do que pessoal, o conteúdo varia de acordo com a cultura. Como todos os arquétipos, a consciência é em si mesma um dinamismo complexo e nela também estão presentes as polaridades, podendo afetar a vida de uma pessoa, pois a mensagem que traz é sempre possível de retificação. A consciência é percebida como porta voz interno dos valores sociais, podendo também defender os direitos e necessidades da vida emocional não vivida e relegada ao esquecimento da própria pessoa. A consciência pode fazer o ego se curvar em favor do grupo, mas pode agir da mesma forma para o bem da criança interior abandonada, da sombra reprimida. Os relatos e explicações da consciência podem ser classificados em duas posturas distintas: uma diz que “A consciência consiste em valores e normas morais sociais introjetadas” (visão sociopsicológica) e outra diz que “A consciência é a voz de Deus ou dos deuses” (visão religiosa). A primeira é redutiva e psicossociológica, associamos com o aspecto solar, tendo como função pressionar o ego a servir às normas, aos ideais e aos valores coletivos. A segunda é espiritual e transcendental, e a ela associamos o aspecto lunar; que exige do ego o 3 sacrifício dos próprios objetivos e valores em nome de outros, pelo menos diferentes dos seus. Para cada um desses tipos de consciência, o momento do sacrifício é diferente, sendo que no segundo caso, as razões são indistintas, não defendidas racionalmente nem estribadas numa argumentação razoável. Consciência Solar e Consciência Lunar No Quadro 1 sintetizamos as principais diferenças entre a consciência solar e a consciência lunar. Quadro 1 Principais diferenças entre consciência solar e consciência lunar Consciência Solar Consciência Lunar Consciência patriarcal. Consciência matriarcal. Acessível à percepção consciente, e existe na luz. Alicerces parcialmente irracionais, incognoscíveis e maleáveis. Seus valores podem ser confirmados pelos outros. É a com-ciência, o “saber junto”. É mais como a voz de Deus do que uma pressão social (Jung, 1958). Impessoal. Identifica-se com figuras de autoridades e de atitudes coletivas. Pessoal e individual pode exigir de alguém o que não requer de outrem. Previsível. Não é criativa, pois mantém o status quo de certos padrões sociais. Muito difícil de predizer. É livre e criativa. Exige o sacrifício de vontades egocentradas – objetivos nobres Surge como uma compulsão mais ou menos irracional, age a seu próprio modo. Fala através da persona, respondendo às expectativas dois pais, colegas e autoridades. Fala a favor do instinto, corpo, matéria. Manifesta-se através do inconsciente, em sonhos, complexos, eventos espontâneos, anseios. Contribui para a repressão do instinto e do impulso, rejeitando partes do “eu”. Contém suas próprias leis de comportamento. Lei do espírito (logos). Lei da carne (instintivo). Relaciona-se com o ego. As mudanças caracterizam-se pelo desenvolvimento cognitivo. Opera através de reações e sintomas corporais – sistema nervoso simpático. Fonte da lei. Fonte da percepção da justiça, não depende da “lei comum” nem a reflete. Divide, eleva, julga e exclui. Inclui, conecta, acolhe. Amor pela lei. Lei do amor. Transcendência vertical (hierarquia) Transcendência horizontal (união) Fonte: Elaborado pela autora, com base em Stein (1998). 4 Relações entre a Consciência Solar e a Consciência Lunar Em alguns momentos a consciência pode insistir no sacrifício dos valores egóicos em nome de um valor espiritual mais nobre, e, em outros, insistir com igual convicção no sacrifício pelo bem do que parece simplesmente um valor instintivo e telúrico. Como decorrência dessa polaridade, tudo o que o ego executar unilateralmente, exclusivamente, “pelo bem da consciência”pode muito bem agir como fator desencadeador da tendência oposta, também “em nome da consciência”. Essa qualidade paradoxal da consciência concede-lhe o que Jung chamou de “validade psicológica”. Para que sejamos considerados plenamente humanos, devemos vivenciar essa dimensão, de maneira autêntica e honesta, assim seremos presenteados com a oportunidade de tornarmo-nos o que somos, mais verdadeiramente e essencialmente. Consciência Solar e Consciência Lunar são dois aspectos de uma única entidade psicológica que confronta o ego com exigências de renúncia aos interesses e gratificações pessoais e imediatos em favor de algum “outro”. Mas qual “outro”: sol ou lua? Ao consultar a própria consciência, as respostas não costumam vir de imediato, porque as questões normalmente são nebulosas e ambíguas. A teoria sociológica ou interpessoal posiciona a consciência como fundamentalmente enraizada nas figuras de autoridade do mundo real, deixando num segundo plano o fator psicológico interno. A consciência solar está relacionada com o ideal de ego, que contrasta com a sombra (partes do eu inaceitáveis à vida social). O ego pode manter a ilusão de que é quase idêntico ao seu ideal, isto até que aconteça algum evento que possibilite a constatação de sua forma rigorosa. Os representantes míticos da consciência solar mostram-se ansiosamente preocupados quanto à preservação de sua posição de autoridade. Tornam-se ansiosos, por medo de perder sua proeminência. Além disso, alguém que cumpriu todos os deveres para com a família e a sociedade, sem questioná-los, pode padecer de uma “consciência pesada” por não ter vivido de forma plena, negligenciando o dever de realizar sua existência individual. Por outro lado, o aspecto solar da consciência cria e mantém a coletividade, com suas normas de conduta, interpretações consensuais de vivência e lei comum. Através de sua insistência na legalidade das referências que alicerçam as tradições de uma sociedade, contribui para a estabilidade e solidez de uma cultura, criando e promovendo o que chamamos de caráter no indivíduo. A consciência lunar questiona os valores absolutos do padrão dominante. Busca relativizar, desfazer a rigidez, conservar as possibilidades de vida, mesmo que estejam no âmbito da sombra. Somente quando a consciência lunar acumular força suficiente para proibir e bloquear mais movimentação dentro do âmbito dominante é que o ego será forçado a enfrentar a situação. O aspecto lunar da consciência quer o cosmo todo, não só um 5 determinado ponto de perfeição nele, fala em favor do pluralismo, por isto também cria conflitos de dever ao manter a integridade diante de uma solução separatista. Mas se buscarmos apenas a lua, ignorando os deveres solares entraremos numa posição de “repressão do fator moral” ou faremos um “mergulho no inconsciente”. Luna pode virar lunático! Acompanhar só a consciência solar neste dilema seria impor à vida a “dolorosa fragmentaridade” da qual fala Jung, esquivar-se ao próprio destino e, daí em diante, viver como uma criatura oca em meio a um mundo carente de paixão e de sentido mais profundo. Dar ouvidos somente à consciência lunar é um convite às punições da culpa, às convulsões que acompanham a morte de um antigo padrão de vida, à incerteza de estar “certo” o que está fazendo. A consciência como arquétipo é também uma união de opostos, nesta dinâmica sempre nos deparamos com conflitos, e para enfrentá-los é necessário muita honestidade e uma boa dose de humildade. Considerações finais Se de um lado existe a pressão social, o dever religioso, a lealdade cultural, e de outro, as inexoráveis exigências da vida, liberdade e justiça para a alma individual; o conflito interno é inevitável. Se seguirmos apenas os ditames de uma das polaridades da consciência, desprezando a outra, esta atitude será psicologicamente inaceitável ou eticamente reprovável. Para conter e suportar o conflito, que muitas vezes vem acompanhado por momentos de crise e sofrimento, temos a opção de promover o diálogo entre os dois polos da consciência. Trilhando por este caminho, muito provavelmente, estaremos indo ao encontro do tão almejado processo de individuação.
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