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Texto enviado à Revista Juris Poiesis OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de; LOURENÇO, Daniel Braga. Em prol do Direito dos Animais: inventário, titularidade e categorias. Jurispoiesis (Rio de Janeiro), v. 12, p. 113-157, 2009. TÍTULO: O direito ao Direito dos Animais: notícias, titularidade e categorias. Fábio Corrêa Souza de Oliveira1 Daniel Braga Lourenço2 Resumo: Este artigo pretende abordar os principais avanços relativos ao tema dos direitos dos animais. Analisam-se a importância e a evolução da temática assim como a sua validação filosófica. A filosofia dos direitos dos animais coloca marcada ênfase na discussão dos direitos dos animais propriamente ditos. Aborda-se a distinção conceitual entre as concepções do bem-estar animal e a dos direitos dos animais, já que a última demanda, de modo mais intenso e amplo, a abolição das instâncias de exploração dos 1 Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Estácio de Sá (UNESA), Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Coordenador do Núcleo de Direito Constitucional do IBMEC/RJ. Mestre em Direito e Doutor em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisador Visitante e Pós-Graduação Lato Sensu na Faculdade de Direito de Coimbra (2004 – CAPES). Pós- Doutorando em Teoria do Estado e Teoria da Constituição na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) (2007-2009 – CNPQ). 2 Professor de Biodireito e Direito Ambiental da Faculdade de Direito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ. Doutorando em Direito pela UNESA na área de “Direitos Fundamentais e Novos Direitos” e Mestre em “Direito, Estado e Cidadania” pela Universidade Gama Filho - UGF/RJ. Especializou-se em Direito do Petróleo Avançado pelo Clube do Petróleo/COPPE e em Direito Ambiental pela Fundação Getúlio Vargas - FGV/RJ, onde também possui MBA em Direito Econômico e Empresarial. É advogado membro do “Animal Legal Defense Fund” - ALDF (Profesional Volunteer), da Humane Society e Professor Colaborador do Centro de Bioética da Universidade de Harvard. Acumula os cargos de Diretor Jurídico do Instituto Abolicionista Pelos Animais - IAA e Assessor Jurídico da ONG Espaço Gaia, ambos trabalhos voluntários. Integra os Conselhos Editoriais da Revista Brasileira de Direito Animal, da Editora Evolução e da Revista Eletrônica Pensata Animal. É autor da obra “Direito dos Animais: Fundamentação e Novas Perspectivas” (Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, 566p.) e de artigos científicos relacionados ao Direito Ambiental, Ética Ambiental, Bioética, e Direito dos Animais. animais. O debate dos direitos dos animais insere-se, portanto, como tema de relevantes questionamentos no campo da filosofia, da ética normativa e do próprio Direito. Palavras-chave: Animais, direito dos animais, bem-estar animal, ética, Abstract: This article documents and analyses the key developments relative to the general premises of animal rights. It shows the importance and the evolution of the category as well as its philosophical validity. Few areas of applied philosophy have witnessed more dramatic growth in the recent past than has bioethics and, relative to the animal issue, the morality of turning animals into food, clothes, performers, competitors and tools for research. In addition, the philosophy of animal rights has had a significant influence on the reinvigoration of the animal rights plea in the sense that at least some nonhuman animals arguably possess the capacity to have interests of their own that should be protected by fundamental rights. The article focuses on the distinction between the animal welfare and the animal rights view, as the former perspective requires, in a broad sense, the abolition of human exploitation of these animals. The animal righst debate, broadly conceived, is an enduring topic in philosophy, normative ethical theory and law. Keywords: Animals, animal rights, animal welfare, ethics, I. NOTA INICIAL Este estudo está afinado, especialmente, à linha Direitos fundamentais e novos direitos, um dos dois eixos temáticos desenvolvidos pelo Programa de Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade Estácio de Sá. O título da linha não poderia ser mais talhado a abarcar a perspectiva aqui esposada; como se diz comumente, cai como uma luva. Isto seja pela expressão direitos fundamentais, seja pela expressão novos direitos. Expõem-se e defendem-se, neste texto, novos direitos integrantes de um novo Direito, enquanto cadeira, ramo do conhecimento, qual, o Direito dos Animais. E, nesta esteira, direitos fundamentais para além da espécie humana, direitos fundamentais dos animais (não-humanos), com o que se poderia, em certa medida, retratar como novos direitos fundamentais. A nomenclatura é feliz: direitos fundamentais e não direitos humanos, vez que mais larga, holística, capaz de manifestar o reconhecimento de que outros seres, para mais dos humanos, têm dignidade intrínseca, direitos próprios. A vertente Direitos fundamentais e novos direitos, como flagrantemente explicita o seu título, traz uma carga visionária, manifesta cláusula aberta, dirige os olhos para o futuro ainda quando não o (ante)veja ou vislumbre. A presente investigação se propõe a oferecer sinalizações de um vindouro possível. Que seja melhor para todos os viventes, a natureza, o planeta, irmanados, onde espera a emancipação daqueles hoje submetidos pela força, contra a vontade, escravizados, instrumentalizados, ceifados. O dominador a que estamos de apontar, dada a sua condição moral, frente às escolhas que faz, o juízo entre certo e errado, é, imperioso admitir, nesta lei da selva, o homem. O porvir, conquanto não esteja, ao menos em parte, encampado pelo dever-ser do sistema jurídico vigente. Por isto, parcialmente, é compreensão de lege ferenda. Se o presente é o passado do futuro, façamo-lo desde já. Um último registro de começo. Como ficará patente ao longo do trabalho que se apresenta, o reconhecimento do Direito dos Animais não se dá por caridade humana, não está a depender do alvedrio do homem. É preciso, neste ponto, inverter o referencial. Rompe-se, nesta pedra de toque, com o antropocentrismo: o homem é a medida de todas as coisas (Protágoras). Não é o homem que dá o Direito, que confere os direitos. O homem não é senhor, amo. A humildade é bem-vinda. Ele, em um raciocínio, sentimento, de equivalência, como antes dito, reconhece. Em que pese o caráter histórico das elaborações humanas, o contato entre sujeito e objeto, entende-se que a afirmação do Direito dos Animais é dever humano, correspondente ao direito dos animais a terem os seus direitos aceitos, respeitados. Daí porque notar e acolher o direito ao Direito dos Animais. II. INTRODUÇÃO3 Em meio ao conjunto de novidades concebidas na Ciência Jurídica, há uma que se afigura como a maior, o grande novel, pois que de raiz, novidade de fundo, quebra de paradigma nuclear. Não é mais do mesmo e nem variação acerca do mesmo tema: os direitos humanos. A novidade fulcral, sob qualquer ângulo, é o despontar, o paulatino avanço e difusão do que se vem a chamar de Direito dos Animais. Muito embora a progressiva aceitação do Direito dos Animais pela comunidade acadêmica e jurídica em geral, segue ordinariamente percebida com ares de estranhamento, de excentricidade. Às vezes, com incredulidade ou com escárnio.Fazendo uma analogia com a teoria dos movimentos sociais tal qual proposta por John Stuart Mill, pode-se dizer que a recepção ao Direito dos Animais passa, costumeiramente, por três estágios: 1º) ridicularização, 2º) oposição violenta e 3º) aceitação.4 Se é assim, poder-se-ia cogitar que a esmagadora maioria da humanidade está situada no primeiro ou no segundo estágio. Porém, não parece ser deste modo. É que a posição amplamente majoritária é a da indiferença. E a indiferença é, em muitas ocasiões, sinônimo de ignorância. Ninguém pode se importar com o que desconhece, não existe estreitamento, conexão. O curioso, nesta seara, é que o saber está a um passo 3 Em considerações desta matiz, OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Direito dos Animais. In: Função social do Direito Ambiental. (Coord. Mauricio Mota) Rio de Janeiro: Campus, p. 324-347, 2009. 4 Tal analogia é feita pelo importante documentário Terráqueos (Earthlings), produção estadunidense de 2005. Documentários constituem uma excelente fonte de conscientização, com alto impacto na questão dos animais (uma imagem vale mais do que mil palavras). Na produção brasileira, entre outros, veja-se A carne é fraca, feito pelo Instituto Nina Rosa. curto, muito perto, bastando atentar para o entorno, para o que se processa diante de nós a cada dia: animais enjaulados em zoológicos, pássaros em gaiolas, animais criados e abatidos para alimentação e/ou vestuário, caça esportiva, animais sacrificados em supostas práticas religiosas, animais em circo, touradas, rinhas, e.g. Todavia, é devido observar que a indiferença não é conseqüência tão somente da ignorância. Pode-se ser indiferente também àquilo que se sabe. E, no que tange aos animais, tal atitude é igualmente freqüente. Tanto que muitos preferem não saber mais para não verem as suas convicções ou comportamentos abalados. Daí outra barreira, às vezes de dificílimo vencimento ou até intransponível, que o caminhar do Direito dos Animais enfrenta: a decisão deliberada por não tomar ciência. É compreensível: uma postura de preservação, de manutenção de hábitos, de uma tradição, de um sentido de conforto. É que o Direito dos Animais impõe descentrar ou centrar o homem em outro lugar, sobre outros pilares. Uma acentuada transição de paradigmas: intensamente revolucionário, algo similar à virada copernicana. E mudanças drásticas não costumam acontecer sem estremecimentos, resistências, sem notas dramáticas, sem rompimentos, sem perda ou, melhor, troca. A questão pode gerar desconforto, ferir suscetibilidades. Vale observar que inclusive entre os especialistas, os doutos, entre os cultores dos direitos fundamentais, do Direito Ambiental, predomina, usualmente, a falta do saber ou da reflexão, a desídia pela matéria, o descuido. Normalmente, a meditação é centrada no homem, o único personagem, o mais é contexto, figurante, paisagem. Muitos respondem: com tantos e graves problemas humanos, não é cabível se ocupar dos animais. Em uma ilustração singela: diante do grande número de seres humanos vivendo nas ruas, sem o mínimo existencial, soa absurdo pensar e agir a bem dos animais que também estão ao léu, abandonados, sujeitos a toda sorte de infortúnios, violências, doenças, fome, sede, frio. É sentença consoante o paradigma da simplicidade (Edgar Morin), tributária de sistema binário, disjuntivo, que opera na exclusão, uma lógica dualista, maniqueísta, incapaz de absorver a complexidade do problema. Não existe alternativa: é preciso escolher entre o homem e o animal, que estão em oposição. Este juízo de confrontação, o qual de pronto coloca o interesse humano acima de qualquer outro, não permite a integração. Basta ver a produção jurídica brasileira tradicional ou convencional para atestar como a abordagem é incipiente. Quase sempre a temática passa despercebida ou depreciada, tanto pela literatura quanto por eventos (congressos, palestras, debates). Mas, como já aduzido, há, também no cenário acadêmico nacional, uma novidade, uma doutrina diversa da corriqueira, uma outra tese que, embora seja ainda bem minoritária, vem ganhando espaço, adeptos, e a passos largos. Nada obstante a sua pouca idade, conta cerca de uma década, já tem motivos de sobra para ser celebrada. Segue um ligeiro inventário. Obra precursora é Direito dos Animais, que data de 1998, autoria de Laerte Fernando Levai. Dois anos após vinha a público o livro A tutela jurídica dos animais, de Edna Cardozo Dias. No ano seguinte, Direito dos Animais, de Diomar Ackel Filho. Na seqüência, em 2003, O Direito & os animais, de Danielle Tetü Rodrigues. Mais recentemente, em 2008, Os animais e o Direito, de Eduardo Luiz Santos Cabete, e Direito dos Animais: fundamentação e novas perspectivas, de Daniel Braga Lourenço, além da obra coletiva intitulada A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos humanos: uma discussão necessária. No corrente ano, 2009, o livro Abolicionismo animal, de Heron José de Santana Gordilho. No ano de 2007 foi lançada a Revista Brasileira de Direito Animal, única publicação do gênero no Brasil. Cumpre destacar também a produção de Sônia Felipe: entre outros textos, os livros Por uma questão de princípios: alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais e Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas, assim como lembrar das preciosas contribuições de Rita Leal Paixão, Tamara Bauab Levai, João Epifânio Regis Lima, Sérgio Greif e Thales Trez (relativamente ao tema da experimentação animal) e de Carlos Naconecy (fundamentação ética dos direitos dos animais). É fácil perceber o acentuado aumento de atenção que a matéria vem conquistando na academia. Dissertações e Teses de Doutorado, inclusive entre a bibliografia antes citada; bem como Monografias de Graduação e de Pós-Graduação Lato Sensu. No Mestrado em Direito da Universidade Estácio de Sá foi defendida, no ano passado, a Dissertação Tutela dos direitos dos animais, de Mery Chalfun. Com defesa prevista para 2010, escreve sobre o tema, no Mestrado em Direito da UNESA, Tatiana Marselha. Ainda no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da UNESA funciona atualmente, segundo semestre de 2009, a partir da iniciativa da Professora Renata Braga Klevenhunsen, Coordenadora Adjunta do Programa, Grupo de Estudos em Direito dos Animais. Na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) funciona o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Direito Ambiental e Direito Animal, onde trabalha o Professor Heron Gordilho. Até o final deste ano está agendada, na UFBA, a defesa da Dissertação de Tagore Trajano, denominada Animais em juízo: personalidade, capacidade e direitos. Na Universidade Federal de Santa Catarina, no Departamento de Filosofia, há pesquisa institucionalizada acerca do assunto, sob a liderança da Profa. Sônia Felipe. Digna de nota é a pioneira iniciativa da criação da cadeira Direito dos Animais na recém-criada Faculdade de Direito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Na UFRRJ, o aluno, se optar pela especialização em Direito Ambiental, após cursar a disciplina Direito Ambiental, que é obrigatória, no 8º período, irá passar por seis cadeiras específicas ao longo do último ano. Dentre elas, necessariamente, Direito dos Animais. Em 2008, na UFBA, teve lugar o I Congresso Mundial de Bioética e Direito dos Animais, promoção conjunta da UFBA e do Instituto Abolicionista Animal (IAA). Na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ), em fins de julho do ano que segue, aconteceuo 12º Festival Internacional Vegano, realizado pela Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB). Na mesma época, ocorreu o I Encontro Carioca de Direito dos Animais, no auditório da Procuradoria-Geral do Município do Rio de Janeiro (PGM/RJ). No que tange ao Poder Judiciário, vale registrar duas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal. No Recurso Extraordinário nº 153.531-8-SC, o STF julgou a nefasta prática intitulada farra do boi, que mais apropriadamente seria denominada farra com o boi, pois o animal, a toda prova, não se diverte – e é muito espantoso que algum humano se divirta (lazer) com tal ato ignóbil –, ao contrário sofre, é lesionado (com pedras, facas, paus, queimaduras), morto, fere a Constituição. Apesar da proibição, o funesto costume, que habitualmente tem ocasião na época da Semana Santa – nada mais contraditório – continua a acontecer. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.856-RJ, o Supremo declarou a inconstitucionalidade da lei do Rio de Janeiro que regularizava a rinha de galo, outra prática lúgubre, sombria. Atualmente, aguarda julgamento, no STF, o Recurso Extraordinário nº 494.601-RS, que impugna lei do Rio Grande do Sul que autoriza o sacrifício de animais não-humanos em nome da liberdade de culto. O preceito constitucional especialmente em causa, como notório, é o art. 225, § 1º, VII, in verbis: “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo- se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: (...) VII- proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.” Também a rinha de galo – computadas as variações, igualmente macabras, como rinha de cachorro – permanece a acontecer, muito embora a decisão do STF. Em 29 de outubro de 2009, noticiou-se que a polícia civil estorou, na cidade de Volta Redonda, uma das maiores rinhas de galo do Estado do Rio: cerca de 120 animais foram apreendidos, muitos com ferimentos graves, mutilados, cegos. No dia 4 de novembro deste ano, segundo reportagem veiculada pelo Jornal da Paraíba, a juíza da 5ª Vara da Fazenda da Capital, Maria de Fátima Lúcia Ramalho, averbou que a rinha de galo é uma prática lícita (legal, constitucional), sustentando tratar-se de esporte milenar sem nenhuma vedação pelo ordenamento normativo pátrio. E a polêmica, mais uma vez, se fez. O que espanta deveras é a ignorância do julgado antes aludido do STF (ADI nº 1.856-RJ), o qual, vez que em controle concentrado/abstrato, opera eficácia erga omnes. Logo, a referida decisão que avalizou o galismo não poderia ter sido tomada, sob pena de desrespeito ao Supremo Tribunal Federal. Na questão do relacionamento entre humanos e animais, a cultura vem ostentando papel ainda mais forte, como justificativa de ações, do que aquele desempenhado nas questões entre humanos, apesar de filosoficamente inconsistente (senso comum). O apelo à cultura é curioso, inúmeras vezes paradoxal e evidencia claramente incoerências e o tanto que há a mudar na conduta humana perante os animais. Um exemplo demonstra otimamente o que se diz. Enquanto redigimos este artigo a opinião pública, ou parte dela, está estarrecida – não que não deva estar, inclusive nós – com a notícia de que se descobriu na cidade de Suzano, na Grande São Paulo, um abatedouro de cachorros e gatos, que eram recolhidos nas ruas, engordados e posteriormente mortos para consumo preferencialmente por orientais (a maior parte da carne era encomendada por restaurantes coreanos). O local, segundo a polícia, funcionava há pelo menos três anos.5 Razão para se assombrar com a notícia não falta. Mas, a pergunta é: por que se abalar apenas quando o processo do morticínio é respeitante aos cães ou aos gatos? E os bovinos, os porcos, os galináceos, os patos, as codornas? O ponto, como se vê, está na discriminação, arbitrária no que toca ao direito (à vida, entre outros) dos animais, ao 5 Veja-se trecho da reportagem: “De propriedade de um casal, que foi preso em flagrante nesta quinta, o abatedouro ficava nos fundos de uma casa. “Eles matavam com um machado e, depois, queimavam o couro com maçarico”, afirmou o delegado Anderson Giampaoli, da 2ª Delegacia de Saúde Pública. Semanalmente, eram vendidas dez carcaças, cada uma variando entre R$ 180 e R$ 220, diz a polícia. (...) No freezer da casa, a polícia encontrou 70 quilos de carne, que incluía, além dos cães, dois gatos inteiros. Segundo os investigadores, o dono da casa contou que pegava qualquer animal na rua. Alguns eram mantidos no quintal esperando pela encomenda.” Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL1376300-5605,00.html. Acesso em 16 nov. 2009. sabor (com o perdão da figura – ou dissabor) da cultura. Assim, ingerir determinada carne pode ser convencionalmente admitido, na dependência da cultura de cada comunidade, ou pode receber o rótulo de carne exótica. E o comércio da tal carne nomeada de exótica, lucrativo, considerado refinado, símbolo de status, em um mundo onde a vida e o corpo são mercadorias, é crescente. Carne de cavalo, de jacaré, de tatu, de capivara, de rã, de javali, de avestruz, entre tantos outras. Por que a morte de uns não gera estranhamento ou ojeriza e de outros sim? Tom Regan, no livro Jaulas vazias, faz um relato similar para chegar à conclusão da incongruência do juízo do homem-médio.6 A coisificação dos animais é decorrência de uma pré-compreensão antiga, arraigada, não refletida e insensível, que tem base inclusive na religião enquanto fenômeno histórico. E, desta feita, os animais não-humanos, de acordo com o pensamento comum, interpretação do direito positivo, ocupam um limbo jurídico: nem são sujeitos de direito e nem são objetos no significado clássico, com os seus caracteres tradicionais. Em um exemplo: nós podemos queimar uma camisa de nossa propriedade, mas não podemos fazer o mesmo com os cães que a lei nos concede em domínio, isto é, a condição de dono que a legislação atribui não permite poder ilimitado sobre a coisa, não é dado fazer o que for com ela. E isto, note-se, independente de prejuízo causado a outro ser humano. Sumamente incrível, terrível, é, em uma formulação antropocêntrica, afirmar que se o seu cachorro tem a pata cortada ou os olhos arrancados pela maldade alheia, por um vizinho destemperado – e a ilustração não é de laboratório, não é rara, os animais variam e os algozes também, contam-se motivos dos mais torpes –, não é o próprio animal, o qual suportou a dor e agora se vê mutilado, que teve direito aviltado, não é ele, a rigor, a vítima, e sim você, porque afrontado no seu estado de proprietário. O animal? É coisa! A concepção antropocêntrica embala o especismo. Especismo é o preconceito alicerçado na espécie, discriminação contra as outras espécies, atribui direitos aos membros de uma espécie em detrimento das demais, ou seja, o critério é o pertencimento ou não à espécie. Espécie humana, claro. Desconsideram-se os interesses dos outros seres, tornados objetos, instrumentos do homem. Desconsideram-se fatores de igualdade, como a capacidade de sofrer, de sentir dor, o direito à vida, à liberdade. É binário, simplista: dentro (da espécie humana, titular de direitos) ou fora (da espécie humana, não possuidor de direitos). Porém,esta noção vem denotando sinais de enfraquecimento, de desgaste, mostra-se insuficiente, é cada vez mais questionada, abandonada. Uma (outra) virada copernicana está em curso. III. VOZES DISSIDENTES Conforme se verificou, restou consolidada no âmago da moralidade ocidental a visão de que o homem ocupa o centro de todas as preocupações. Nesse sentido, fácil é verificar que a maioria esmagadora dos sistemas jurídicos opera sob as bases da dicotomia pessoa-coisa(animal) e que, portanto, a história das sucessivas gerações de direitos passa a ser identificada como uma forma de inclusão social e jurídica da própria espécie humana e tão somente dela. Artificialmente construiu-se a ideia de que a categoria humano é a única fundante e coincidente com a noção de “direito”. 6 “Pelas razões que explico na parte I, pessoas como eu – pessoas que acreditam nos direitos dos animais – sentem, em relação às águias e elefantes e porcos e toninhas, a mesma coisa que a maioria sente em relação a cães e gatos”. REGAN, Tom. Jaulas vazias. Porto Alegre: Lugano, 2006, p. 3. Entretanto, esse processo de auto-identificação do direito com o ser humano é também uma triste história de exclusão, a exclusão de tudo aquilo que não se enquadre nessa categoria de humanidade. Nunca é demasiado lembrar que muitos seres humanos foram, em determinados momentos, retirados arbitrariamente da esfera da consideração moral e jurídica.7 Ao longo da história sempre houve vozes dissidentes, que se posicionaram contra o paradigma da instrumentalização da vida animal. Da tradição greco-romana, em apertada síntese, poderíamos lembrar dos importantes nomes de Plutarco e Porfírio8, que defendiam abertamente a existência da racionalidade em determinadas espécies, bem como de Sêneca e Ovídio, que centraram esforços na demonstração das capacidades sensitivas dos animais. Não poderíamos deixar de citar o elucidativo exemplo de Pitágoras, que acreditava firmemente na teoria da transmigração das almas entre homens e animais (metempsicose) e que recomendava, com igual fervor, a abstinência do consumo de carne. Mais recentemente, já nos séculos XVIII e XIX temos a importante obra do teólogo Humphry Primatt, A dissertation on the duty of mercy and the sinn of cruelty against brute animals, publicada em Londres em 1776, mesmo ano da revolução pela independência estadunidense. Primatt sustentava a precisa ideia de que a inclusão na comunidade moral deveria levar em consideração interesses comuns compartilhados e não a simples configuração biológica dos seres vivos. O pai do utilitarismo clássico, Jeremy Benhtam, em 1789, ano da Revolução Francesa, tendo lido Primatt, publica Uma introdução aos princípios morais e da legislação, tendo afirmado que a capacidade de sentir dor e de sofrer, presente nos animais, deve ser levada em consideração no cômputo da moralidade9. As primeiras normas ligadas diretamente à proteção dos animais surgiram neste cenário, no início do século XIX na Inglaterra (Martin´s Act – 1822) e França (Lei Grammont – 1850), e a elas seguiu-se a fundação das primeiras entidades protetoras dos 7 Os cristãos, nos primeiros tempos que se seguiram à crucificação de Jesus, em espetáculos grotescos, no coliseu romano, no qual, inclusive ao lado ou contra animais, explorados, como objetos, em prol da diversão da turba, disputando a própria vida sob pena do perecimento de outra, eventos sanguinários, brutais, componentes da suposta evolução civilizatória de Roma. Na outra margem, os bárbaros, os subjugados, sem direitos ou apenas com os direitos outorgados, benevolamente, pelo senhor, pelo dominador. Ao longo da história, para mais ilustrações, as mulheres, os povos originais do continente depois chamado americano, negros, judeus. Com a escusa da classificação genérica, é de marcar que grupos (antes, durante ou depois) oprimidos também se mostraram opressores: a inquisição patrocinada pela Igreja Católica, a escravidão também existente entre os negros. 8 PLUTARCO. On the eating of flesh; PORFIRIO. On Abstinence from animal food; SÊNECA. Abstinence and the philosophical life. In: WALTERS, Kerry S.; PORTMESS, Lisa. Ethical vegetarianism: from Pythagoras to Peter Singer. State University of New York Press, 1999. 9 Nesse sentido célebre é a passagem em que o autor compara a capacidade de sofrer do homem em relação aos demais animais: “Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos que jamais poderiam ter-lhe sido negados, a não ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é motivo para que um ser humano seja irremediavelmente abandonado aos caprichos de um torturador. É possível que algum dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do osso sacro são razões igualmente insuficientes para se abandonar um ser senciente ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha intransponível? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade da linguagem? Mas um cavalo ou um cão adultos são incomparavelmente mais racionais e comunicativos do que um bebê de um dia, uma semana, ou até mesmo um mês. Supondo, porém, que as coisas não fossem assim, que importância teria tal fato? A questão não é ‘Eles são capazes de raciocinar?’, nem ‘São capazes de falar?’, mas, sim: ‘Eles são capazes de sofrer? (BENHTAM apud SINGER, Peter. Libertação Animal. Salvador: Evolução, 2008, p. 9). animais, da qual é exemplo a Sociedade Real Britânica de Proteção dos Animais (1824). Henry Salt, amigo pessoal de Ghandi, retomando de certa forma os ensinamentos de Primatt, em 1892 dá prosseguimento à temática com o primoroso livro Animal Rights: considered in relation to social progress10, seguido de perto pelo filósofo moral Leonard Nelson (Alemanha, 1924) e pelo jurista Cesare Goretti (Itália, 1928)11. Durante os anos 50, enquanto as fazendas industriais começavam a se alastrar no cenário rural, os defensores dos animais ainda estavam, de modo geral, atrelados à discussão de temas relacionados ao bem-estar dos animais ditos de estimação, à contestação da vivissecção, e ao problema da caça esportiva. Foi somente a partir dos trabalhos pioneiros de Rachel Carson, intitulado Silent springs (1962), e de Ruth Harrison, denominado Animal machines (1964), que houve uma retomada vigorosa de obras relacionadas à defesa dos direitos dos animais em sentido mais profundo e abrangente. Brigid Brophy, em 1965, publica The rights of animals no periódico Sunday Times, fazendo clara e provocativa alusão à obra clássica de Thomas Paine, The rights of man. No mesmo período, Richard Ryder, então psicólogo sênior do Warneford Hospital (Oxford), impressionado com a utilização abusiva de animais na pesquisa médica, envia diversas cartas ao jornal London Daily Telegraph, relatando a crueldade dos experimentos. Tomando conhecimento de seu engajamento, Brophy recomenda então que ele entrasse em contato com um grupo de pesquisa recém-formado por pós- graduandos de Filosofia que discutiam seriamente o tema da Ética Animal na Universidade de Oxford. Ryeder aceita a recomendação de Brophy e se une ao casal canadense Stanley e Roslin Godlovitch e a John Harris e publica,em 1970, o artigo Experiments on animals, onde cunha o termo especismo12 para designar, como antes anotado, uma forma de injustiça que significa tratamento diferenciado para aqueles que não integram a mesma espécie. O psicólogo procurava, então, traçar um paralelo de nossas atitudes perante as demais espécies e as atitudes racistas e sexistas. Segundo o autor, todas essas formas de discriminação são fundamentalmente baseadas em características arbitrárias sendo, por tal motivo, insustentáveis sob o ponto de vista moral. Ainda na década de 70, juntaram-se ao grupo de Oxford os filósofos Stephen Clark, Peter Singer e o teólogo Andrew Lindzey. Em 1971, os Godlovitch organizam e publicam a obra Animals men and morals, de cujo pósfácio pode se ler a seguinte elucidativa passagem: “Demandamos que os princípios da liberdade, igualdade e 10 Mas, pode ser replicado, simpatia vaga por animais inferiores é uma coisa, e o reconhecimento definitivo de seus ‘direitos' é outra; onde está a razão para supor que devemos avançar da primeira fase para a última? A razão está exatamente no fato de que todo grande movimento de libertação seguiu essa linha. Opressão e crueldade fundam-se invariavelmente na privação de imaginação simpática; o tirano ou atormentador não pode ter um sentido genuíno de semelhança com a vítima de sua injustiça. Quando o sentido de afinidade finalmente acorda, o ultimato à tirania está dado e a concessão final de ‘direitos' é apenas uma questão de tempo." SALT apud FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos Direitos dos Animais, Pensata Animal, v. 11, maio de 2008. Disponível em: http://www.pensataanimal.net. 11 NELSON, Leonard. System der wissenschaftlichen Ethik und Pädagogik (Sistema de uma ética e pedagogia científicas) e GORETTI, Cesare. L'animale quale soggetto di diritto. 12 A consolidação da terminologia veio com a sua obra Victims of Science (1975) e com o referendo do vocábulo pelo English Oxford Dictionary, em 1986. fraternidade sejam estendidos aos animais. Que a escravidão dos animais se junte à escravidão humana no cemitério do passado”. Infelizmente, a obra tem pouca repercussão e o grupo vida curta. Ao tentar reavivar o tema, Peter Singer encaminha, em 1973, uma resenha do aludido livro para a New York Review of Books e surpreende-se com a calorosa acolhida. Em setembro do mesmo ano se junta ao Departamento de Filosofia da Universidade de Nova York e publica em 1975 a obra Libertação animal, editado no Brasil originalmente pela Lugano (Porto Alegre), em 2004, e posteriormente pela editora Evolução (Salvador), em 2008. Singer, alicerçado em bases utilitaristas, desenvolve argumentação envolvente no sentido de a inserção na comunidade moral deveria levar em consideração não a inteligência ou a linguagem, mas sim o denominador comum consistente na capacidade de ser sensível ao sofrimento (senciência). A igualdade seria um conceito moral e não factual, por meio da qual deveríamos proteger interesses semelhantes de forma análoga. Desta coerente conclusão, decorre o princípio da igual consideração de interesses por meio do qual, segundo elucida Sônia T. Felipe, “devemos igual respeito a todos os sujeitos capazes de ter preferências, não privando-os daquilo que eles próprios escolhem para garantir seu bem, independentemente de estarmos diante de um sujeito com preferências racionais ou sencientes”13. Não é por outra razão que se qualifica tal proposição como utilitarista preferencial, pois a preferência seria um interesse qualificado pelo atributo de senciência titularizado pelo seu detentor. Os animais possuidores destas preferências devem poder tê-las levadas em consideração no balanceamento moral direto de nossas condutas. Como utilitarista, Singer evita conectar a sua retórica à abordagem de direitos propriamente ditos, pois entende que a concepção de direitos subjetivos pode se apresentar como verdadeira “barreira” edificadas em torno dos interesses, que, em princípio, poderia prejudicar o cálculo agregado utilitário de custo/benefício14. Apesar disto, todo este poderoso arsenal acadêmico, de bases éticas, científicas e filosóficas, começou a ser apropriado e utilizado pelo Direito para alicerçar os pilares dos denominados legal rights for animal”, conhecidos por Animal Rights (Direito dos Animais). Em 1976, Tom Regan, professor de Filosofia da Universidade da Carolina do Norte, publica Animal Rights and human obligations em parceria com Singer e All that dwell therein (1982) e, finalmente, The case for Animal Rights (1983).15 A abordagem de Regan trabalha com o conceito de sujeito-de-uma-vida e propõe direitos subjetivos fundamentais como alicerces de uma ética deôntica em favor dos animais. Avança em comparação ao utilitarismo preferencial de Singer no sentido de que a abordagem dos direitos garante a inviolabilidade de determinados interesses mesmo quando da sua violação eventualmente derivassem benefícios para terceiros (ética centrada no indivíduo). Ser um sujeito-de-uma-vida é, na visão de Regan, condição suficiente para se ter valor inerente, quaisquer que sejam os atributos de ordem pessoal ou de utilidade 13 FELIPE, Sônia T. Cit. 14 Não é por outra razão que Singer hoje tem uma aproximação mais forte com o movimento ligado ao bem-estar animal (que se preocupa basicamente com o modo pelo qual tratamos os animais, impondo salvaguardas na tentativa de evitar o paradoxal “sofrimento desnecessários” nas mais diversas instâncias que utilizam os animais como instrumentos) do que com o movimento do direito dos animais propriamente dito, que possui uma abordagem de abolição das instâncias de exploração dos animais (animais possuiriam valoração inerente e, por conta disso, direitos subjetivos fundamentais). 15 Dentre outros trabalhos de Tom Regan, vale destacar a obra Jaulas vazias, que conta com edição brasileira pela Lugano (2006). dos agentes ou pacientes morais, sejam eles humanos ou não. A circularidade lógica de seu raciocínio consiste no fato de que se os direitos humanos podem efetivamente ser fundamentados sob o postulado do valor inerente dos indivíduos, não há como se justificar a exclusão dos animais não-humanos, a não ser por uma flagrante e especista violação do princípio do respeito (quebra da coerência). De outro lado, somente se forem aceitos os critérios de inclusão animal (boa parte dos animais são criaturas, assim como os seres humanos, conscientemente capazes de experimentar bem-estar e de empreender ações a fim de desfrutar dele), podem ser legitimados os direitos humanos sob a mesma fundamentação (evitando-se o problema dos casos marginais). O imperativo ético decorrente é de que devemos abolir todas as instâncias de exploração dos animais (alimentação, vestuário, diversão, experimentação, etc.) e não meramente regulamentá-las. Na mesma direção de Regan podemos citar ainda a importante contribuição dos juristas Steven M. Wise, autor de Rattling the cage e Drawing the line; bem como de Gary L. Francione, que publicou Animals, property and the law, Rain without thunder, Introduction to Animal Rights: your child or the dog? e, mais recentemente, Animals as persons, entre outros tantos. IV. ALTERNATIVAS TEÓRICAS PARA O ENQUADRAMENTODOS ANIMAIS COMO AUTÊNTICOS SUJEITOS DE DIREITO A concepção que não enxerga qualquer valoração inerente no animal não- humano teve grande acolhida na dogmática civilista tradicional. A maior parte dos doutrinadores abraça a visão de que os animais possuem natureza jurídica de bens móveis (semoventes), de coisas, de objetos de direitos. Repetindo as lições kantianas, afirmam que os animais devem ser protegidos não por possuírem valoração intrínseca, mas sim porque a crueldade e o abuso contra animais podem tornar o homem mais insensível frente aos seus semelhantes (tese do transbordamento moral), ou seja, não haveria deveres diretos para com os animais não-humanos, eles não teriam acesso à relação jurídica e tampouco seriam titulares de direitos subjetivos. A posição predominante, encampada pela doutrina e pelo legislador, portanto, abarca uma visão dita de bem-estar ou meramente protecionista. Essa posição assume como legítimo o tratamento instrumental dos animais (como meios para fins humanos), desde que certas salvaguardas sejam impostas. Nessa linha, são editadas normas como, por exemplo, as que regulam o abate de animais para consumo, exigindo a utilização de métodos de insensibilização prévia à sangria e retalhamento. Tais leis são usualmente denominadas, de forma bastante paradoxal, de normas de abate humanitário. Em momento algum do respectivo processo legislativo se discutiu ou se expressou qualquer preocupação com o fato de que a utilização em si dos animais para alimentação pudesse ser moralmente contestável. A visão dos direitos, por sua vez, rejeita a premissa de que animais possuam natureza jurídica de coisa, de objeto ou de uma mera modalidade de propriedade, e, por entender que ao menos alguns deles possuam interesses a serem protegidos por direitos, proclama que não podem ser submetidos a qualquer forma de exploração ou instrumentalização, ainda que cercada de todas as pretensas salvaguardas para se evitar o também paradoxal sofrimento desnecessário. Sinteticamente, portanto, no que diz com a exploração e utilização dos animais, é possível dizer que os bem-estaristas defendem a sua regulamentação, enquanto os que postulam pelo abolicionismo, assim pelos direitos dos animais, buscam a sua supressão. Decorrência lógica da afirmação de que animais titularizam direitos subjetivos é o fato de possuiriam natureza jurídica de sujeitos de direito. Neste contexto, restaria indagar sobre as alternativas existentes que viabilizam proceder a este deslocamento de objeto para sujeito. Sinteticamente, haveria dois caminhos básicos a trilhar consistentes na: (1) personificação dos animais (animais integrariam a categoria jurídica de “pessoa”, equiparados aos absolutamente incapazes); e (2) utilização da teoria dos entes despersonalizados (animais fariam parte da categoria jurídica de sujeitos de direito, tal como os entes despersonificados ou despersonalizados). Poder-se-ia cogitar também na alternativa da inserção dos animais não-humanos em uma categoria intermediária situada entre as coisas e as pessoas, como um tertium genus. Esta parece ter sido a solução legislativa encontrada por alguns países europeus, com a retirada expressa dos animais da categoria de coisa, tal como se verifica na legislação civil alemã. Todavia, ao que tudo indica, a construção de um estatuto jurídico para o animal como um meio termo entre as classificações de sujeito de direito e objeto, tal qual também propõe François Ost, parece recuar no sentido de um bem-estarismo alargado, o qual se basearia meramente na atribuição de deveres ao homem para com os animais, porém não na concessão de direitos fundamentais a estes últimos. Outra alternativa aos caminhos anteriormente sugeridos consistiria na inserção da questão dos direitos dos animais na doutrina dos chamados direitos sem sujeito, tal qual admitem Brinz e Köppen, e, entre nós, Carvalho de Mendonça. Entretanto, será demonstrado na explanação da teoria dos entes despersonalizados, ao procedermos à necessária distinção conceitual entre sujeito de direito e pessoa, que a abordagem dos chamados direitos sem sujeito perde seu sentido primordial, além de restar induvidoso que seres sencientes devem ser tratados como possuindo valoração inerente. A primeira alternativa, consistente em personificar os animais equiparando-os aos absolutamente incapazes, encontra barreiras severas no que se refere à sua implementação prática, tanto em termos de modificação legislativa como também com relação a preconceitos culturais e psicológicos arraigados. Por essa razão, a utilização da teoria dos entes despersonalizados pode sinalizar um caminho mais suave e efetivo no que diz com a alteração do estatuto jurídico dos animais não-humanos. Esta opção consiste, portanto, na utilização da teoria dos entes despersonalizados para fundamentar a concessão de direitos subjetivos fundamentais para os animais. Como se viu, ao longo do tempo foi edificada uma indevida e atécnica identificação entre os conceitos de sujeito de direito, pessoa e ser humano. Paralelamente, a bipartição conceitual entre pessoas e coisas proporcionou a consolidação, no século XX, da teoria da personalidade jurídica, por meio da qual “a noção de sujeito de direito passou a ser uma prerrogativa de todos os seres pretensamente racionais”16. Como decorrência, forma-se, portanto, uma equivocada vinculação e equiparação dos conceitos de pessoa e de sujeito de direito. Grande parte dos autores de Direito Civil, afeitos a uma posição conservadora, reproduz irrefletidamente essa concepção, alçando-a à condição de verdadeiro dogma. 16 RABENHORST, Eduardo Ramalho. Dignidade humana e moralidade democrática. Brasília: Brasília Jurídica, 2001, p. 58. Nessa linha, podem ser colhidos exemplos em Orlando Gomes17, Washington de Barros18, Maria Helena Diniz19, Carlos Roberto Gonçalves20, Sílvio Venosa21, entre tantos outros. No entanto, como se passará a demonstrar, os conceitos merecem importante distinção. De acordo com as precisas lições de Fábio Ulhoa Coelho, tem-se que o conceito de sujeito de direito identifica-se como sendo “o centro de imputação de direitos e obrigações pelas normas jurídicas”, o que leva à imperiosa conclusão de que “nem todo sujeito de direito é pessoa e nem todas as pessoas, para o direito são seres humanos”22. O mencionado autor utiliza dois critérios de classificação para os sujeitos de direito: o primeiro divide-os em personificados e despersonificados, pois os sujeitos podem ser pessoas ou não. O segundo distingue entre os sujeitos humanos e os não- humanos23. Assim sendo, a categoria “sujeito de direito” seria um gênero que abarcaria, de um lado, sujeitos personalizados (que seriam as pessoas propriamente ditas: naturais – seres humanos – e jurídicas) e, de outro, sujeitos não-personificados. Quanto a esses últimos, destaca o jurista os seguintes aspectos: [...] mesmo os sujeitos de direito despersonalizados são titulares de direitos e deveres. O atributo da personalização não é condição para possuir direitos ou ser obrigado a qualquer prestação. Recupere-se o conceito de sujeito de direito – centro de imputação de direitos e obrigações referidos pelas normas jurídicas. Todos os sujeitos nele se enquadram, de modo que também os despersonificados são aptos a titularizar direitos e deveres 24. Adverte, ainda, com clareza:17 “Sujeito de direito é a pessoa a quem a lei atribui a faculdade ou a obrigação de agir, exercendo poderes ou cumprindo deveres.” GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 142. Grifos nossos. 18 “Na acepção jurídica, pessoa é o ente físico ou moral, suscetível de direitos e obrigações. Nesse sentido, pessoa é sinônimo de sujeito de direito ou sujeito da relação jurídica.” BARROS, Washington Monteiro de. Curso de Direito Civil, vol. 1, São Paulo: Saraiva, p. 62. Grifos nossos. 19 “[...] para a doutrina tradicional pessoa é o ente físico ou coletivo suscetível de direitos e obrigações, sendo sinônimo de sujeito de direito.” DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 461. Grifos nossos. 20 “No direito moderno, pessoa é sinônimo de sujeito de direito ou sujeito da relação jurídica.” GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, vol. 1, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 74. Grifos nossos. 21 “A sociedade é composta de pessoas. São essas pessoas que a constituem. Os animais e as coisas podem ser objeto de Direito, mas nunca serão sujeitos de Direito, atributo exclusivo da pessoa.” VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. v. 1. São Paulo: Atlas, 2005, p. 139. 22 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 138. 23 COELHO afirma: “A rigor, o segundo critério de classificação dos sujeitos de direito não tem relevância jurídica. [...] A distinção, contudo, é útil à compreensão do instituto e sua funcionalidade. Homens e mulheres, portanto, são sujeitos de direitos humanos personificados; nascituros são sujeitos humanos despersonificados; fundações, sujeitos de direito não-humanos personificados; massa falida, um não-humano despersonificado e assim por diante.” COELHO, Fábio Ulhoa. Cit., p. 141. Por fidelidade à construção do autor, vale ressaltar que não chega a trabalhar expressamente com a idéia de animais como sujeitos de direito não-humanos despersonificados. 24 Idem, p. 139. Muitos autores conceituam personalidade jurídica como a aptidão para titularizar direitos e obrigações. Assim fazendo, tomam por equivalentes as categorias de pessoa e sujeito de direito; não consideram, ademais, os entes despersonificados como espécie de sujeitos de direito. A conseqüência é a desestruturação lógica do modelo de exame dos institutos jurídicos aqui considerados 25. A distinção entre pessoa e sujeito de direito parece também ter sido abraçada por outros doutrinadores contemporâneos26 entre os quais Gustavo Tepedino27, Cristiano Chaves de Farias28 e Rafael Garcia Rodrigues29. Os professores paranaenses José Lamartine Corrêa de Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz, em artigo intitulado “O Estado de Direito e os Direitos da Personalidade”, publicado pela Revista dos Tribunais, chamam a atenção para a referida confusão conceitual: Em uma visão positivista, normativista, formalista, da pessoa e da própria ordem jurídica, ao contrário, termina-se por reduzir a noção de pessoa a um centro de imputação de direitos e deveres e a se atribuir sentido idêntico às noções de pessoa e de sujeito de direitos 30. Claudio Henrique Ribeiro da Silva, corroborando a necessidade de distinção conceitual, em brilhante parecer adverte, acertadamente: A equiparação dos conceitos de pessoa e sujeito de direitos tem gerado, em doutrina, algumas perplexidades, que, ainda que na maior parte das vezes não resultem em imbróglio ou insegurança na solução de casos concretos, têm colaborado para eternizar questões e debates já totalmente superados. 25 Idem, p. 141. 26 SERPA LOPES chegou a afirmar que “o sujeito de direito é o que possui aptidão, possibilidade jurídica para adquirir direitos e contrair obrigações, trate-se ou não de um homem.” LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1962, p. 257. 27 As pessoas jurídicas são sujeitos de direito – como também podem sê-lo os entes despersonalizados (basta pensar no condomínio ou na massa falida) –, dotadas de capacidade de direito e de capacidade postulatória, no plano processual, segundo as conveniências de política legislativa. Tal constatação permitiu que, ao longo do tempo, fosse estendida, pela doutrina e jurisprudência brasileiras, a proteção recém-consagrada aos direitos da personalidade às pessoas jurídicas.” TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A Parte Geral do novo Código Civil: estudos na perspectiva Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. XXVII). 28 “De maneira simples, é possível lembrar que existem determinados entes despersonalizados (como a sociedade de fato, o condomínio, a herança jacente e vacante...) que podem ser sujeitos de direito, sem que tenham personalidade jurídica. Evidencia-se, pois, que a personalidade jurídica não pode estar aprisionada no conceito simplório de sujeito de direito. Há de ser mais do que isso.” (FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Civil: teoria geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 98. 29 “O novo Código Civil apresenta em seus primeiros dispositivos a consagração da fórmula que contempla todos os homens como pessoas. Pessoas que, em nosso cotidiano, de forma vulgar, é vocábulo utilizado como sinônimo de ser humano; mas que ao Direito adquire significação própria e peculiar, de modo que ser pessoa constitui a possibilidade de ser sujeito de direito, ou seja, titular de um direito [...]. A pessoa portanto vale, não podendo ser confundida com o sujeito de direito, pois que partem de premissas e têm funções diversas.” RODRIGUES, Rafael Garcia. In: TEPEDINO, Gustavo, Ob. cit., p. 1 e 32, passim. 30 OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de; MUNIZ, Francisco José Ferreira apud TEPEDINO, Ob. cit., p. 31-32. Desta espécie são, a título de exemplo, certas discussões acerca da personalidade dos nascituros, da legitimidade processual de alguns entes despersonalizados ou mesmo o debate sobre o “direito dos animais” 31. A situação do nascituro32 é realmente bastante emblemática para ilustrar a que ponto chegam as conseqüências da aludida confusão conceitual entre as categorias de pessoa e sujeito de direito. O artigo 2º do Código Civil é bastante claro ao dispor que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Ora, o sistema parece absolutamente claro ao estatuir que o nascituro possui direitos, embora ainda não seja pessoa. Ribeiro da Silva, a esse respeito, observa: Seria cômico, se não fosse quase trágico, o debate em que se perderam e ainda se perdem os autores, sobre a existência ou não da personalidade no nascituro. O nó górdio desta questão, que parte sempre da premissa de que só as pessoas são sujeitos de direito (equiparação), reside na impossibilidade de aceitar o inegável fato de que o sistema atribui direitos aos nascituros (art. 2º, segunda parte, CC/2002; e art. 4º, segunda parte, CC/1916) no mesmo artigo do Código Civil em que lhes nega a personalidade. Como conciliar tais dispositivos sem atribuir direitos a quem não tem personalidade? Não sabemos. Não reconhecemos, em todo o ordenamento, dispositivo mais claro no sentido de estender a qualidade de sujeito de direitos a um ente despersonalizado. Diz, literalmente não só que quem não nasceu não é pessoa, mas também reafirma que, ainda assim, (não sendo pessoa) tem seus direitos reconhecidos. Mas, como o dogma da equiparação (pessoa = sujeito de direito) já houvesse se estabelecido entre os doutrinadores,dividiram-se estes entre os que conferiram personalidade jurídica ao nascituro (já que tem direitos), e os que tentaram, através de categorias jurídicas gerais (condição), explicar que o nascituro não tinha direitos, mas apenas expectativas ou direitos sob condição suspensiva 33. A aplicação da teoria dos entes despersonalizados soluciona com maestria e lucidez a questão do nascituro. De acordo com as límpidas lições de Fábio Ulhoa Coelho, “os sujeitos despersonificados podem ser humanos ou não-humanos”34, de modo que “antes do nascimento com vida, o homem e a mulher não têm personalidade, mas, como já titularizam os direitos postos a salvo pela lei, são sujeitos de direito”35. 31 SILVA, Claudio Henrique Ribeiro da. Apontamentos para uma teoria dos entes despersonalizados. Jus Navigandi, Teresina, a.9, n. 809, 20 set. 2005. Disponível em: <http://www.jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7312>. Acesso em 27 mar. 2006, p. 3. Vale observar que o professor Claudio da Silva, ao que tudo indica, parece ter sido o primeiro doutrinador a admitir abertamente a aplicabilidade da teoria dos entes despersonalizados aos animais. 32 Nascituro vem do latim nasciturus, significando aquele que está por nascer. Daí a definição de Limongi França, para quem o termo trata “da pessoa que está por nascer, já concebida no ventre materno.” FRANÇA apud ALMEIDA, Silmara Juny de Abreu Chinelato. Tutela civil do nascituro. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 7. 33 RIBEIRO DA SILVA, op.cit., p. 4. 34 COELHO, Fábio Ulhoa. Ob. cit., p. 145. 35 Ibid., p. 145. Assim, de acordo com o melhor entendimento, o nascituro é um sujeito de direito despersonificado humano. Em artigo intitulado “Direito do Nascituro à Vida” 36, o eminente José Carlos Barbosa Moreira expõe, com a clareza de sempre, a mesma opinião, ao afirmar que a “personalidade” (conceito umbilicalmente atrelado ao de “pessoa”) e a “possibilidade de ser titular de direitos” (noção vinculada à de “sujeito de direito”) consubstanciam realidades necessariamente distintas. Outros sujeitos despersonificados não-humanos foram reconhecidos pelo Direito. O artigo 7º do Código de Processo Civil prevê que “toda pessoa que se acha no exercício dos seus direitos tem capacidade para estar em juízo”. Ressalte-se, no entanto, que o seu artigo 12 faz referência expressa a alguns entes despersonalizados em relação aos quais se reconhece capacidade processual: a massa falida, a herança jacente ou vacante, o espólio, as sociedades sem personalidade jurídica (sociedade em comum e em conta de participação) e o condomínio 37. A jurisprudência também permite que os consórcios e diversos fundos existentes no mercado de capitais possam ser representados em juízo por seus administradores38. Nessa linha, Ribeiro da Silva afirma 36 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Direito do nascituro à vida. Revista da Academia Brasileira de Ciências Jurídicas, Rio de Janeiro: Renovar, n. 25, 2006, p. 209. 37 Os processualistas que permanecem atados ao dogma da identidade entre pessoa e sujeito de direito necessitam se recorrer de soluções artificiais para justificarem a condição de parte de entes despersonalizados, criando, desnecessariamente, categorias como capacidade judiciária ou personalidade judiciária. Situação interessante é a do condomínio edilício. O art. 63, § 3º da L. 4.591/64 estabelece claramente que ser ele titular de um direito subjetivo, qual seja o de possuir direito de preferência na hipótese de eventual alienação de unidades inadimplentes. Em razão dessa previsão, alguns doutrinadores entendem necessário recorrer à sua personificação para justificar a atribuição desse direito, ou seja, sustentam que o condomínio possuiria personalidade jurídica (Maria Helena Diniz, Lamartine Corrêa de Oliveira). Se atentarmos para a distinção conceitual proposta entre sujeito de direito e pessoa, não se precisará chegar a tanto. Em verdade, o mencionado art. 63, § 3º nada mais é do que prova cabal dessa distinção. O condomínio não é pessoa e, apesar disso, como ente despersonalizado, titulariza direitos subjetivos próprios. Caio Mário da Silva Pereira, autor do Anteprojeto da Lei n.º 4.591/64, parece referendar esse posicionamento ao asseverar que “[...] o condomínio não é pessoa jurídica. Acontece que, sem lhe conceder a personificação, o legislador em certas circunstâncias trata-o como se fosse dotado de personalidade. [...] Ao aludir, então, à adjudicação em nome do condomínio, a lei abdica de sua personificação. Ora, ao intérprete cabe entender e aplicar a lei, tal como é e vem redigida. O hermeneuta não se deixará dominar por idéias preconcebidas para interpretar somente à luz de conceitos vetustos. O grande trabalho do aplicador é construir pelo entendimento e pela boa compreensão da lei. E se esta se desgarra de conceitos tradicionais, para exprimir noções vigentes no tempo atual e para dar solução a problemas que a vida contemporânea suscita, não pode ser explicada senão à luz dos novos conceitos. [...] E nem se diga que o Legislador de 1964 inovou em nosso direito. Ao revés, já encontrou abertos caminhos exemplares. O espólio, posto que não tenha personalidade jurídica, é representado pelo inventariante, comparece em escritura de alienação e adquire direitos. A massa falida, igualmente, é representada, e lhe é reconhecida a faculdade de cumprir contratos bilaterais de que resulta eventualmente a aquisição de direitos. E tudo se passa sem que jamais se exigisse, num ou noutro caso, o reconhecimento de personalidade jurídica à herança ou à massa falida” SILVA, Caio Mário Pereira da. Condomínio e incorporações. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 343-345. A mesma situação pode ser vislumbrada na hipótese de contrato de gestão a ser celebrado entre autarquias qualificadas como agências executivas e o respectivo Ministério supervisor, prevista expressamente pela L. 9.649, de 27/5/98. O Ministério não possui personalidade jurídica (é mero órgão integrante da União Federal), mas teria aptidão para figurar como contratante. 38 “Consórcio. Interposição de ação por consorciado, em que é postulada a restituição do montante das prestações pagas, monetariamente atualizado, contra a administradora. Competência da empresa que administra o consórcio na arrecadação e aplicação dos recursos dos participantes, bem assim na aquisição e entrega dos respectivos veículos. Aplicação do art. 12, VII, do CPC” (STJ, RT 784/205). que “[...] a doutrina processual vem reconhecendo, muito mais do que a material, que certos entes despersonalizados são sujeitos de direitos, e, nesta qualidade, aptos a figurar em um dos pólos da relação jurídica processual” 39. Mais recentemente, a própria entidade familiar e as futuras gerações são também enquadradas nessa importante categoria, asssim com diversos entes no âmbito do Direito Público, como as Câmaras Municipais, as Assembléias Legislativas Estaduais e órgãos da Administração Direta nos contratos de gestão firmados com o Poder Público.Como se não bastasse, a Lei n. 8.249/92, que dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito, em seu art. 10, inciso III, admite, a contrario sensu, a possibilidade de doação a entes despersonalizados. Outros exemplos de sujeitosde direito não-personificados seriam os consórcios de consumidores, as coligações partidárias, e as serventias dos cartórios extrajudiciais, entre tantos outros. A teoria dos entes despersonalizados, baseando-se na distinção conceitual entre pessoa e sujeito de direito, conforme se verificou, permite, portanto, que se prescinda da qualificação do ente como pessoa para que ele venha a titularizar direitos subjetivos. No que diz respeito aos animais ela poderá ser aplicada para caracterizá-los como autênticos sujeitos de direitos despersonificados não-humanos, tal qual propõe a criteriosa classificação de Ulhoa Coelho. Como se procurou demonstrar, somente uma visão extremamente dissociada da realidade seria incapaz de realizar que a maior parte das normas de proteção aos animais, incluindo-se, em especial, as que vedam os maus- tratos, abusos e crueldades, trata de regras em que o objeto jurídico tutelado é a incolumidade física e psíquica do prório animal, ou seja, são regras em que o destinatário da norma e aquele que é beneficiado diretamente pela sua observância é o ser que sofre as consequências da conduta lesiva. Tecnicamente, o que se pretende é que animais, consoante alertava o jurista italiano Cesare Goretti, já em 1928 (L´animale quale soggetto di diritto), embora despersonalizados, sejam “sujeitos de direito”40, ou seja, ainda que se entenda que não sejam pessoas, nem por essa razão deixariam de poder usufruir de um patrimônio jurídico que lhes garantisse o mínimo existencial. A vantagem da teoria dos entes despersonalizados se situa justamente na prescindibilidade da “adequação típica” do animal na categoria de pessoa para que ele venha a titularizar determinados direitos subjetivos fundamentais. Com Ihering (1818-1892) há a construção da idéia de sujeito- interesse, por meio da qual se afirma ser a utilidade, e não a vontade, a força motriz do Direito. Os direitos subjetivos, nesse sentido, servem para garantir os interesses fundamentais decorrentes da vida sensitiva, pois “todo o Direito positivado é a expressão de um interesse reconhecido pelo legislador como merecedor e demandante de proteção” 41. Os interesses, por sua vez, podem ser derivados de condutas volitivas complexas ou mesmo de impulsos sensíveis bastante básicos que, em última análise, poderiam se resumir às sensações. Demogue, partidário da teoria do interesse de Ihering, consolida, em artigo intitulado La notion de sujet de droit – caracteres et conséquences”, publicado em 1909 39 Ob. cit., p. 9. 40 Goretti parece também ser adepto da teoria da equiparação ao afirmar que: “Quanto l’animale mediante l’addomesticamento non si ribella all’ordinamento umano, esso accetta come necessario questo ordine e nel suo riconoscimento vi ha l’affermazione della sua personalità giuridica” GORETTI apud DEL VECCHIO, Giorgio. A Justiça, São Paulo: Saraiva, 1960, p. 361. 41 IHERING, Rudolf Von. L´espirit du droit romain dans les diverses phases de son dévelloppement. t. IV. Tradução de O. Melénaere. Paris: A. Marequ. p. 329. Tradução nossa. pela Revue de Droit Civil, as bases teóricas da doutrina acerca dos “sujeitos de direitos”42. Em tal trabalho, afirma que a essência da noção de sujeito de direito reside, de fato, no elemento interesse, com o que a noção do conceito torna-se inarredavelmente ampla, devendo abraçar toda uma esfera de seres que detenham interesses tuteláveis: Dado que o objetivo do Direito é alcançar a satisfação [dos interesses], o prazer, todo ser vivo que detenha as faculdades emocionais, e somente eles, são aptos a serem sujeitos de direitos, ainda que a razão lhes falte de forma definitiva ou temporária. A criança, o louco, curável ou incurável, podem ser sujeitos de direitos, pois podem sofrer. O próprio animal pode o ser [...] tendo, como nós, reações físicas e psíquicas dolorosas ou agradáveis [...] 43. Mais modernamente, David S. Favre, Professor de Direito da Michigan State University, louvando-se na abordagem dos interesses, em passagem bastante elucidativa, esclareceu que “a chave para o acesso à arena jurídica deve se pautar pela capacidade que determinados seres possuem de titularizarem interesses.”44 Caminhando por essa trilha, explica Favre que os parâmetros para acomodar as necessidades dos animais no âmbito do sistema jurídico devem se pautar não em capacidades naturais como a consciência, a senciência, ou a aptidão em articular linguagem, mas, sim, na possibilidade de titularizarem interesses validamente sustentáveis. Características humanas, ainda que compartilhadas pelos animais, não são medidores eficientes para se julgar a capacidade de ser sujeito de direito. Para Rosco Pound, os interesses estão latentes, esperando por reconhecimento. De uma forma ou de outra, no contexto de uma nova concepção de cidadania, a cidadania ambiental, propõe-se a extensão do conceito de sujeito de direitos a determinados entes, os quais Silva-Sanchez denomina de “novos sujeitos de direito”, entre os quais se encontram os animais45. Olmiro Fereira da Silva constata com propriedade que há um impasse estrutural no Direito Ambiental, “uma vez que a paridade natural contrasta com a disparidade jurídica nas relações ambientais básicas”46 existente entre os entes ambientais humanos e não-humanos. A partir da noção ulpiana de justiça (Honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere; Digesta 1.1.10.1; Inst. 1.1.3), o autor constrói a idéia segundo a qual não haveria justiça ambiental centrada em um paradigma que exclua da realização do Direito determinados entes do repertório ambiental não-humano, pois a esses sujeitos não é atribuído o suum devido. A solução para o dilema encontrar-se-ia na ampliação da titularidade ambiental para que tais entes não-humanos “ganhem foros de sujeitos jurídicos, o quanto pode 42 O jurista belga Edmond Picard, citado por Del Vecchio, antes mesmo de Demogue, em 1908, considera como possível “une organisation juridique où l’animal serait directement traité en sujet de certains droits” PICARD, Edmond. Le droit pur. Paris: Flammarion, 1908, p. 70. 43 DEMOGUE, René. La notion de sujet de droit: caracteres et conséquences. Revue de Droit Civil, 1909, p. 620. Tradução nossa. 44 FAVRE, David S. Judicial recognition of the interests of animals, a new tort. Michigan Law State Review, 2005, p. 335. Tradução nossa. 45 SILVA-SÁNCHEZ, Solange S. Cidadania ambiental: novos direitos no Brasil. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2000. 46 SILVA, Olmiro Ferreira da. Direito Ambiental e Ecologia: aspectos filosóficos contemporâneos. Barueri-SP: Manole, 2003. p. 36. permitir a relacionalidade jurídica, ainda que dentro de determinados limites também estruturais, mas que suplantem o antropocentrismo dogmático e enviesado.”47. No que se refere a essa superação, baseando-se na conceituação de William Duarte Costa, para quem “sujeitos da relação jurídica são aquelas pessoas ou agregados patrimoniais que figuram nos extremos da relação jurídica, assumindo a posição ativa e passiva”, alerta ainda aquele autor para o fato de que não seria algo tão estranho ou impensável atribuir subjetividade a entes não-humanos, “ainda que de modo ‘despersonalizado” 48. Destaca, por fim, que a evolução dasubjetividade jurídica está evidente na dogmática jurídica, pois, além da pessoa física, há a personalidade jurídica das sociedades, do Estado e até de um patrimônio. Aduz que, sendo a subjetividade uma ficção e, como tal, passível de mudanças, ao sabor dos tempos e das necessidades, e, especialmente, por não haver impedimentos jurídicos ou lógicos para que se proponha sua alteração, com inflexão na intersubjetividade jurídica, propugna-se por tal abertura e ampliação desse referencial 49. IV. CATEGORIAS DOGMÁTICAS50 Afirmar que os animais não-humanos são titulares de direitos, como o direito à vida, à integridade física, à liberdade, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, tem um resultado natural: a possibilidade de aplicação de categorias tradicionalmente utilizadas no terreno dos direitos humanos para o campo dos direitos dos animais não- humanos. É o que se passa a tratar. As categorias selecionadas, exemplificadamente, são: 1) o princípio da presunção de constitucionalidade e os casos suspeitos, 2) o mínimo existencial, 3) o princípio da vedação de retrocesso, 4) a ponderação de bens e 5) a vinculação, a discricionariedade e as políticas públicas. Milita em favor dos atos do Poder Público uma presunção de conformidade com a Constituição.51 Esta presunção é relativa, iuris tantum, pode ser derrubada por pronunciamento contrário. Em termos diretos: os atos estatais são reputados constitucionais até que se prove o contrário. Suposição através da qual se imagina que os agentes públicos exerçam as suas funções em respeito aos comandos formais e materiais da Lei Fundamental. Como ministra Perelman, “as presunções são admitidas de imediato, como ponto de partida das argumentações”.52 Deveras, a presunção de constitucionalidade é um lugar de saída, um elemento que se apresenta ao início da atividade hermenêutica e que, uma vez posta, irá influenciá-la, repercutir na 47 Ibid., p. 37. 48 Ibid., p. 106. 49 Ibid., p. 102. 50 Uma versão deste item foi originalmente apresentada no I Congresso Mundial de Bioética e Direito dos Animais (outubro de 2008) por Fábio Corrêa Souza de Oliveira, sob o título Categorias dos direitos humanos aplicadas aos direitos dos animais não-humanos: do caminho em curso ao caminho a percorrer. 51 Sobre o princípio em causa, OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Por uma teoria dos princípios: o princípio constitucional da razoabilidade. 2. ed. rev. atual. ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, 257- 262. 52 PERELMAN, Chaïm. Argumentação. In: Enciclopédia Einaudi. V. 11. Lisboa: Imprensa Nacional: Casa da Moeda, 1987, p. 79. O Professor da Universidade de Bruxelas cita a existência de uma “presunção de credulidade natural, que faz com que nosso primeiro movimento seja acolher como verdadeiro o que nos dizem e que é admitida enquanto e na medida em que não tivermos motivo para desconfiar”. interpretação/aplicação.53 Como é a constitucionalidade que se presume, na hipótese de dúvida, incerteza, vacilação, prevalece a suposição de conformidade com a Lei Fundamental. A doutrina diz, então, ao se referir à dúvida razoável, que o Judiciário somente está autorizado a declarar a inconstitucionalidade quando ela for flagrante. O ônus da prova recai sobre quem alega a mácula. Na dúvida, repita-se, pro constitucionalidade. Nada obstante, firmou-se, tradicionalmente, uma postura, força na produção estadunidense, na vertente de que se a medida for restritiva de direitos individuais, destacadamente se empregar, como critério de discriminação, fatores tidos, a priori (no mínimo), como proibidos, a suposição da constitucionalidade se inverte, ou seja, a presunção vem a ser a da inconstitucionalidade, com o efeito da aferição jurisdicional se credenciar mais rigorosa ou veemente.54 Estas hipóteses são intituladas casos suspeitos. É tomada por suspeita qualquer medida que restringe a vida, a liberdade, a propriedade, tal como a que utiliza, como motivo de separação, dados naturais, independentes da vontade, isto é, características não escolhidas, incontornáveis: raça, cor, nacionalidade, sexo, filiação, altura. Comando que encampa a posição, na Carta brasileira, entre outros e especificamente, é o art. 7º, XXX.55 Nestes casos, suspect classifications, o ônus probante é do Estado, é o Poder Público que está incumbido de comprovar que a medida (seja lei, ato administrativo ou decisão judicial) é compatível com a Constituição. Caso não fique clara a conformidade, o resultado deve ser a invalidade. Em um raciocínio de semelhança, ampliando a metódica descrita, postula-se: uma medida que promove distinção entre animais humanos e não-humanos com alicerce, unicamente, na espécie de cada ser, qualidade natural, invariável pelo desejo ou pela eleição, especialmente quando restritiva ou aniquiladora dos direitos individuais dos animais não-humanos, a vida, a liberdade e o seu meio ambiente equilibrado, sejam bens encontrados no próprio ecossistema (terra, água, ar, luz, alimentos) ou edificados (o ninho de um pássaro, uma toca, o estoque de mantimentos), pois que o conceito de propriedade não parece refletir adequadamente o fenômeno, traz o sinal da presunção de inconstitucionalidade. As categorias raça, cor, nacionalidade, sexo, porque carecem de coerência frente aos animais não-humanos, possuem correlato na categoria espécie, a qual, embora seja engenho do homem assim como as outras citadas, é, para todos os efeitos desta reflexão, 53 Todavia, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em comentário sobre o Executivo e o Legislativo, assinala: “A presunção de que os atos destes dois Poderes sejam legítimos e visem ao interesse geral mantém-se no plano jurídico-formal. Do ângulo da opinião pública, não. São eles compostos de ‘políticos’ e estes são objeto de escárnio, pois, todos duvidam, trabalhem para o interesse geral”. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Poder Judiciário na Constituição de 1988: judicialização da política e politização da justiça. In: Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Renovar, n. 198, p. 1-17, out./dez. 1994, p. 15. Se há dúvida de que os agentes eleitos, mas não só eles, atuam em favor da coletividade humana, imagine em prol dos animais não-humanos. De resto, a crise do Estado brasileiro afeta os três Poderes. 54 Tb. PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Tradução por Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 668. Na doutrina nacional, CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 171 e 172. 55 Art. 7º, XXX: “proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”. Conquanto a redação fale “proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão”, o entendimento pacificado é o de que as interdições não estão circunscritas a tais hipóteses, possuindo incidência geral, ou seja, aplicam-se para as situações/relações como um todo. imanente, acompanha, irrenunciavelmente, a entidade. Não é possível esposar a idéia de que qualidades naturais somente são aplicáveis aos humanos para o fim de cuidar da presunção de inconstitucionalidade
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