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1 GINÁSTICA, EDUCAÇÃO E A ABORDAGEM OU PARADIGMA DA APTIDÃO FÍSICA Neil Franco No que se refere à educação – em seu sentido mais amplo – assim como das bases da educação física enquanto prática pedagógica, o processo de democratização implementado a partir da Revolução Francesa (1789), demarcado pela derrubada da monarquia e a implantação da república na França, destaca-se como marco precursor desse processo. A partir daí, o sistema educacional europeu tomou novos rumos, influenciando de forma significativa vários países, levando a educação às diversas camadas sociais, não somente a nobreza. Predominou-se, com isso, a sistematização dos conteúdos das áreas de conhecimento. Nessa perspectiva, a Educação Física desenvolveu seus conteúdos ancorados nos princípios do Movimento Ginástico Europeu (MGE), consolidando a estreita relação entre a ginástica e a Educação Física ao longo da história a ponto de serem consideradas sinônimos. No entanto, cabe destacar que dois cenários definem a constituição da ginástica, um que antecede o MGE e outro que se instalou a partir de sua estruturação no ano de 1800 e que sofreu poucas alterações até os dias atuais (BREGOLATO, 2002; AYOUB, 2003). O termo ginástica antecede o século XIX, descende de duas palavras gregas: gynnastiké que significa a “arte ou ato de exercitar o corpo para fortificá-lo e dar-lhe agilidade” e gimnós correspondente a “nu, despido”. Portanto, ginástica traz consigo uma idéia de associação entre o exercício físico e a nudez ou “exercitar o corpo nu”, “no sentido do despido, do simples, do limpo, do desprovido ou destituído de maldade, do imparcial, do neutro, do puro.” (AYOUB, 2003, p. 31). Aliada à idéia de força, energia, resistência, velocidade, destreza e vigor a cultura grega enfatizava também, utilizando-se da ginástica, a formação do caráter (têmpera, moral e a virtude), que deveria contribuir para o desenvolvimento da coragem, ousadia, perseverança e, às vezes, sabedoria e amor ao bem. Tal formação exigia um refinamento do espírito, alcançado, assim, pela dança, pelo canto e pela poesia, a união de todos esses elementos caracteriza as bases da ginástica como uma “arte de exercitar o corpo.” (BREGOLATO, 2002). 2 Apesar da Idade Média (séculos XI a XIV) ter consistido de uma fase obscura para as práticas esportivas e corporais, resultando num quase esquecimento da Educação Física e da ginástica, entre os séculos XV e XVII, com a Renascença, emergiram manifestações intelectuais e culturais que evidenciaram uma nova civilização, sendo as praticas corporais retomadas como constituinte da cultura humana (GUILHERMETTI, 1990). Com a era Moderna, tendo como marco o século XVIII, a ciência assume sua independência e, aliada à burguesia, opõe-se definitivamente a igreja. A ciência era de grande importância para a burguesia, pois esta “[...] necessitava para o desenvolvimento de sua produção industrial de uma ciência que investigasse as propriedades dos corpos físicos e o funcionamento das forças naturais.” Neste processo, o ressurgimento da educação física vinha de encontro com a nova ordem social, em que determinada pela valorização do indivíduo e da ciência, o corpo ganhava destaque. Evidenciou-se, com isso, as teorias da educação corporal desenvolvidas por Bacon, Locke, Da Vinci, Rousseau, Pestalozzi, etc., e também, a criação dos primeiros tratados de educação física valorizados como elemento de educação. Nesses documentos, a ginástica constituía-se de conteúdo predominante (GUILHERMETTI, 1990). Neste trajeto, o século XIX veio efetivar a estruturação da ginástica científica, inaugurando, como aponta Ayoub (2003), o processo de “aprisionamento das linguagens das formas corporais” pelos círculos científicos europeus, proclamando o rompimento com a “arte de exercitar o corpo” para aderir-se à “ciência de exercitar o corpo” ou, melhor dizendo, “ciência de adestrar, domesticar, doutrinar o corpo.” (AYOUB, 2003, p. 33). Como conteúdo da educação física escolar, a ginástica esteve presente desde a origem das instituições escolares criadas com o MGE representado, principalmente, pela Alemanha, Suécia, Dinamarca e França, sofrendo também a influência da implementação do esporte moderno pela Inglaterra. Histórica e culturalmente dois métodos foram os norteadores da ginástica enquanto pratica corporal e, conseguintemente, responsáveis por sua configuração como conteúdo da educação física escolar. Predominantemente, a Tendência Militarista ou Método Militar, estruturada sob fins nacionalista de luta pela pátria em função das guerras e revoluções pela conquista de terras - tinha como objetivo formar indivíduos saudáveis, fortes e de caráter para defender a nação. No entanto, por vincular-se diretamente aos anseios do Sistema Capitalista em ascensão, a ginástica estruturou-se também no aspecto utilitarista, pois o 3 preparo físico e moral propiciariam o rendimento no trabalho, beneficiando, assim, a nação. Colocada em segundo plano, mas elaborada anteriormente à Tendência Militarista, a Tendência Naturalista ou Método Natural teve sua inserção reduzida, sobretudo porque não se justificava nos anseios da nação, mas na pessoa em si mesma, conferindo a ginástica o sentido de lazer e, em seu cerne, a liberdade e o prazer. As idéias do filósofo Rousseau estruturaram os alicerces deste método (BREGOLATO, 2003). Inspirada no pensamento médico pedagógico europeu do século XVIII se estruturou a educação física escolar do Brasil que, no século XIX, assume uma configuração anatomo-fisiológica vinculada à saúde biológica, responsável pela instituição de um modelo de sujeito individual, a-histórico e desvinculado dos contextos sociais no qual estava inserido; protagonista de um projeto higienizador da sociedade. Em 1828, editou-se a primeira obra voltada para esta área, “Tratado de educação física – moral dos meninos”, de Joaquim Jerônimo Serpa, no qual, aula de educação física na escola consistia de aula de ginástica. Em 1882, com a criação do projeto de ‘Reforma do Ensino Primário”, Rui Barbosa confere grande destaque a ginástica, atribuída por ele como conteúdo de estudo obrigatório, para homens e mulheres, na formação de docentes e discentes em todos os níveis (MARINHO, 1980 apud AYOUB, 2003). Em função de seu caráter pedagógico, Rui Barbosa e Fernando de Azevedo indicavam a utilização do método sueco de ginástica que aderia em sua proposta princípios tanto do Método Natural como do Militar. O método sueco foi originado das idéias de Per Henrik Ling que, ancorado nas idéias de Muths e Natchegal (da Dinamarca) acreditava que uma “[...] educação física que harmonizasse as faculdades dinâmicas do corpo com as forças espirituais tinha que fazer parte da educação da população.” (BREGOLATO, 2002, p. 86). Em 1929, foi adotado o Método Francês como oficial no Brasil, assim, a tendência militarista constituiu-se da referência básica para a educação física escolar. Este método tem como referência o militar espanhol Don Francisco Amorros, precursor na utilização de arcos, escada de cordas, máquinas para testar a força e do trapézio no treinamento militar. Vinculado à saúde, utilizou na constituição de seu método áreas médicas como a anatomia e fisiologia, oferecendo dados para a criação de uma ciência da mecânica do movimento (BREGOLATO, 2002). 4 Este quadro se altera em 1940 com a chegada no Brasil da educação física desportiva generalizada, vindo da França. Segundo Bracht (1992 apud AYOUB, 2003) outras modalidades de atividade física como a dança, jogos e brincadeiras também compuseram a educação físicaescolar, no entanto, hegemonicamente, predominou-se, primeiro a ginástica e, em seguida, o esporte. De acordo com Ayoub (2003, p. 37), o século XX representa para a história dos sistemas ginásticos a intensificação das relações entre a ginástica e o esporte. Neste sentido, “a ginástica cientifica caracteriza-se como uma das ‘filhas’ mais ilustres da ciência ocidental ao lado do esporte moderno.” Estruturando uma ciência da “educação/endireitamento do corpo”, ancorada nas práticas corporais dos séculos XVIII e XIX. Tal ciência faz emergir dois aspetos agravantes que vieram interferir incisivamente nos meios acadêmicos e na constituição da educação física escolar, que são eles: o predomínio da concepção positivista de ciência e a visão capitalista de sociedade e de cultura, “[...] na qual imperam a lógica utilitarista da produtividade e do lucro e o hiperconsumo, aliados à indústria do lazer.” Esse trajeto histórico permite-nos identificar a abordagem ou paradigma da aptidão física (BRACHT, 1999a) vinculada à educação física que, no que se refere ao ensino-aprendizagem da ginástica, orienta-se como objetivo na formação de indivíduos saudáveis, fortes e de caráter para defender a nação, o que implica nos princípios da vertente militarista em que a obediência, a disciplina, o caráter técnico predominam em seu processo (BREGOLATO, 2002). Neste contexto, identificamos no primeiro momento a relação “professor-instrutor e aluno-recruta”, tornando-se, após a proximidade ente ginástica e esporte, uma relação “professor-treinador e aluno-atleta”. Segundo o Coletivo de Autores (1992), essa relação estendeu-se por toda a década de 1970, fundamentados, também, pelos princípios da pedagogia tecnicista em vigor naquele período, mas que ainda prevalece nas práticas pedagógicas da educação física escolar brasileira, nos contextos formais e não formais, mesmo com as iniciativas no campo teórico para reverter essa situação. Referências: AYUBE, Eliana. Ginástica geral e educação física escolar. São Paulo: Unicamp, 2003. 5 BRACHT, Valter. A constituição das teorias pedagógicas da educação física. Cadernos Cedes, Campinas, ano XIX, n. 48, p. 69-88, ago. 1999a. BREGOLATO, Roseli Aparecida. Cultura corporal da Ginástica. 2. ed. São Paulo: ícone, 2002. V. 2. 181p. (coleção Educação Física escolar: no princípio da totalidade e na concepção histórico-crítica-social). COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do ensino de educação física. São Paulo: Cortez, 1992. GUILHERMETTI, Paulo. Do corpo medieval ao corpo moderno. Motrivivência, São Cristovão, ano II, n.03, p. 16-18, Jan 1990.
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