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Transexualidade e Travestilidade na Saúde Brasília – DF 2015 MINISTÉRIO DA SAÚDE MINISTÉRIO DA SAÚDE Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa Departamento de Apoio à Gestão Participativa Transexualidade e Travestilidade na Saúde Brasília – DF 2015 2015 Ministério da Saúde. Esta obra é disponibilizada nos termos da Licença Creative Commons – Atribuição – Não Comercial – Compartilhamento pela mesma licença 4.0 Internacional. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte. A coleção institucional do Ministério da Saúde pode ser acessada, na íntegra, na Biblioteca Virtual em Saúde do Ministério da Saúde: <www.saude.gov.br/bvs>. Tiragem: 1ª edição – 2015 – 10.000 exemplares Elaboração, distribuição e informações: MINISTÉRIO DA SAÚDE Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa Departamento de Apoio à Gestão Participativa Coordenação-Geral de Apoio à Gestão Participativa e ao Controle Social SAF Sul, Quadra 2, lotes 5/6, Ed. Premium, Torre I, 3º andar, sala 303 CEP: 70070-600 – Brasília/DF Tel.: (61) 3315.8840 Site: www.saude.gov.br/saudelgbt E-mail: sgep.dagep@saude.gov.br Organização: Ana Gabriela Nascimento Sena Kátia Maria Barreto Souto Revisão: Aedê Cadaxa Ana Gabriela Nascimento Sena Jéssica Bernardo Rodrigues Kátia Maria Barreto Souto Marina Melo Arruda Marinho Apresentação ..................................................................................................... Parte I – Movimento Social: relatos de vivências e lutas contra o preconceito e pelo direito à saúde .............................................................. Transexualidade e travestilidade na Saúde – Keila Simpson .............................. Saúde?! Completo bem-estar psicossocial de um indivíduo: tudo que uma pessoa trans não possui – Chopelly Glaudystton Pereira dos Santos ........... Trans-homens: a distopia nos tecno-homens – João Walter Nery e Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho ..................................................... Parte II – Academia: um olhar sobre a determinação social da saúde de travestis e transexuais ................................................................................. Todas as mulheres do mundo: a construção do corpo travesti no Brasil das décadas de 1960 e 1970 – Anibal Guimarães ................................................ Direitos humanos e a saúde: a efetivação de políticas públicas voltadas à saúde integral da população trans – Grazielle Tagliamento ........................... Parte III – Serviço de saúde: relatos de experiências da implantação de um atendimento integral a travestis e transexuais ................................... Transexualidade e travestilidade na Saúde – Adriana Melo Teixeira, Francisco José da Silva Nóbrega Morais e Marileide Pereira Martins Teixeira .............. Atendimento a transexuais e a travestis: crianças, adolescentes e adultos – Alexandre Saadeh, Desirèe Monteiro Cordeiro e Liliane de Oliveira Caetano .... Os homens trans e a corporeidade: o complexo fenômeno da busca do sujeito social masculino – Eduardo Sergio Soares Sousa, Alba Jean Batista Viana e Johnatan Marques do Vale .......................................................................... A experiência da abordagem da transexualidade na Faculdade de Medicina/ Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás – Mariluza Terra Silveira e Kássia Rita Lourenceti de Menezes ............................................... Ambulatório de saúde integral para travestis e transexuais: cinco anos de desafios e realizações – Maria Clara Gianna ................................................ Projeto gráfico e diagramação: Antonio Ferreira Normalização: Luciana Cerqueira Brito – Editora MS/CGDI Revisão: Khamila Silva e Tamires Alcântara – Editora MS/CGDI Impresso no Brasil / Printed in Brazil Ficha Catalográfica Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Transexualidade e travestilidade na saúde / Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa. – Brasília : Ministério da Saúde, 2015. 194 p. : il. ISBN 978-85-334-2319-0 1. Atenção à Saúde. 2. Transexualismo. 3. Travestismo. I. Título. CDU 616.36 Catalogação na fonte – Coordenação-Geral de Documentação e Informação – Editora MS – OS 2015/0082 Título para indexação: Transgender and Transvestite Health SUMÁRIO 5 7 9 17 25 37 39 65 81 83 99 111 129 141 5 Transexualidade e Travestilidade na Saúde Apresentação O Departamento de Apoio à Gestão Participativa, da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde, apresenta com grande satisfação a coletânea de artigos que compõem o livro Transexualidade e Travestilidade na Saúde. Esta publicação é fruto da ampliação que a perspectiva da integralidade da atenção à saúde da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais proporcionou ao reconhecer que a orientação sexual e a identidade de gênero são fatores de vulnerabilidade para a saúde. A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT), assim como as demais políticas de Equidade do Sistema Único de Saúde (SUS), é um marco histórico nas políticas públicas de saúde, ao promover a integralidade da atenção de população LGBT, contribuindo para a eliminação da discriminação e do preconceito institucional e buscando estruturar uma linha de cuidado, desde a atenção básica à especializada, incluindo-se o acolhimento e a humanização do atendimento livre de discriminação, por meio da sensibilização dos trabalhadores(as) e demais usuários(as) da Unidade de Saúde para o respeito às diferenças, em todos os níveis de atenção. Nesse contexto, além da garantia do direito ao uso do nome do social, o Ministério da Saúde passou a viabilizar demandas específicas das populações de travestis e transexuais por meio de atos normativos internos, como o que instituiu e regulamentou o Processo Transexualizador, no âmbito do SUS. O desafio da promoção da equidade em saúde para a população de travestis e transexuais é abordado nesta publicação a partir do olhar dos movimentos sociais, da academia, do serviço e da gestão que, em conjunto, contribuíram para a construção de uma política pública que garanta o direito à saúde sem preconceito de gênero, raça/etnia, orientação sexual e práticas sexuais e afetivas. Esperamos que esta publicação possa contribuir para a reflexão sobre a importância da vontade política de gestores, do protagonismo dos movimentos sociais e do compromisso dos Parte IV – Gestão: desafios da construção de uma política pública para promoção da equidade em saúde para a população de travestis e transexuais .................................................................................................... Transfobia: como vencer uma herança do Brasil colonial e uma marca da ditadura? – Symmy Larrat .............................................................................. Políticas públicas para travestis e transexuais: o espaço LGBT da Paraíba – Gilberta Santos Soares e Gleidson Marques da Silva .................................... Marcos legais do processo transexualizador no SUS para a publicação da Portaria nº 2.803/13 – Ana Gabriela Nascimento Sena, Kátia Maria Barreto Souto e José Eduardo Fogolin Passos ........................................................... Sobre os autores e organizadores .................................................................. 157 159 165 177 187 6 Ministério da Saúde profissionais de saúde e pesquisadores, que fazem a diferença na vida e na saúde das pessoas trans. Saúde sem preconceito e discriminação! Departamento de Apoio à Gestão Participativa Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa Ministério da Saúde Movimento SocialRelatos de vivências e lutas contra o preconceito e pelo direito à saúde Parte I 9 Transexualidade e Travestilidade na Saúde Transexualidade e travestilidade na Saúde Keila Simpson Travestis e transexuais são populações que carregam uma imensa carga de preconceitos desde a sua aparição. Não se sabe ao certo como se iniciou o aparecimento dessa população no Brasil: acredita-se que tenha sido originado nos espetáculos teatrais nos anos 60 e 70, mas só temos conhecimentos mais gerais a partir da década de 70, em sua migração para Paris, e depois, em 1980, quando se noticiava os trabalhos desenvolvidos pelas trans brasileiras nas noites parisienses, especialmente no “Bouis de Bologne” (espaço onde ainda hoje existe uma grande concentração de travestis brasileiras que trabalham com prostituição em Paris). Segundo Camille Cabral, uma mulher trans brasileira que reside em Paris, elas migraram para lá em busca de fama e fortuna, o que muitas conseguiram. Foi em Paris nos anos 80 que as travestis brasileiras tiveram conhecimento de duas substâncias que se tornariam, anos depois, muito problemáticas para sua saúde. São elas: o silicone líquido industrial e a utilização indiscriminada de hormônios. No Brasil, as travestis e transexuais iniciaram a utilização dessas substâncias para se parecerem com as trans das décadas de 70/80 de Paris. Foi aqui no Brasil que elas iniciaram a utilização de silicone industrial, um produto desaconselhável para humanos. As travestis encontraram nesta substância uma forma de construir formas femininas mais rápido que os hormônios. Travestis e transexuais sempre estiveram na ponta de lança dos preconceitos e das discriminações existentes no Brasil com a população LGBT. Isso ocorre porque essa população ostenta uma identidade de gênero diversa da imposta pelos padrões heteronormativos, em que homem é homem e mulher é mulher, e qualquer coisa que fuja dessa norma é encarada com estranhamento. No caso de trans, esse estranhamento se traduz em assassinato dessa população. 1110 Transexualidade e Travestilidade na SaúdeMinistério da Saúde Ainda hoje, existe a ideia de que elas abdicaram do sexo atribuído no nascimento para se identificarem com o sexo oposto. Em uma sociedade machista como a brasileira, a população de trans é alvo fácil de ser discriminada e violentada, sem ao menos ter a chance de poder explicar o porquê dessas objeções. Diferentemente do que é difundido pelas mulheres trans, travestis não querem ser identificadas como mulheres travestis. Elas reivindicam, sim, o respeito a suas vivências e individualidades, bem como o viver no gênero feminino, assim como o direito de serem respeitadas suas identidades de gêneros dentro desse universo feminino. Nesse universo, existem ainda os homens trans, que não me sinto no direito de nominá-los nem de defini-los, pois existe um movimento organizado, que pode e deve cada vez mais aparecer nesses artigos, com informação prestada por este segmento da população trans. Poderia exemplificá-los, já que os conheço, mas prefiro deixar que falem por si próprios. Isto serve para a população de mulheres trans, já que me identifico como travesti. Neste artigo, não me aprofundarei muito nas questões das identidades, esperando que possamos, em breve, escrever sobre esses temas e que cada população possa então se apresentar e se definir. Aqui no Brasil e em boa parte do mundo, acostumou-se a lidar somente com o homem e a mulher. Sendo assim, qualquer coisa que fuja desse binarismo é olhado com preconceito e com discriminação. Como as travestis rompem com o muro entre o masculino e feminino, são colocadas sempre à margem da sociedade. As travestis são transgressoras do padrão que determina o conviver apenas nesses dois gêneros, sendo alvo de muitas violências e discriminações por essa transgressão. Também são, na sua maioria, rejeitadas como membros da sociedade, tendo muita dificuldade na reinserção social. Mesmo os termos travestis e transexuais eram tidos como pejorativos e marginais. E, por isso, era preciso quebrar esse tabu, era preciso mudar, mas mudar de modo que se adequasse à forma “asseada” determinada pela sociedade. Assim, o movimento organizado compreendeu que era preciso tirar o estigma desses termos e afirmar o seu lado positivo. Por isso, resolveu adotar o termo travesti como uma afirmação dessa identidade e, a partir dela, encontrar exemplos positivos para que a sociedade pudesse perceber que essa população é igual às demais. Travestis e transexuais são vistas pela medicina como seres portadores de patologia e de uma Classificação Internacional de Doenças (CID) que lhes identifica. Por isso, são sempre tratadas por códigos de doenças. Nesse sentido, seria correto utilizar o “travestismo” e o “transexualismo”. Falar de travestilidade e transexualidade na perspectiva do Sistema Único de Saúde (SUS) é trazer à tona questões que há bem pouco tempo eram bastante desconhecidas por grande parte de acadêmicos e da população em geral. Os termos travestilidade e transexualidade foram criados e introjetados pelo movimento social organizado para dizer que a questão dessa população é uma questão de identidade e de modo de viver. A entrada dessa população no SUS também requer uma análise mais profunda de como se deu essa entrada e de como se dará a permanência. Mas também será abordado o descaso com o qual foram tratadas as questões referentes à saúde de travestis e transexuais. Alguém escreveu uma vez que a aids trouxe um benefício para a população trans e eu concordo, pois foi a partir dela que se iniciou a entrada de grande parte dessa população no SUS. Antes dessa epidemia, era dificílimo incentivar uma travesti a cuidar da sua saúde nos serviços. Elas sempre recorriam à automedicação, procurando o médico ou os serviços de Saúde apenas quando já não havia mais como se automedicar ou quando as enfermidades não tinham cura com a automedicação. O processo de automedicação acontecia porque elas já sabiam que seriam discriminadas nos serviços. Por esse motivo, nem procuravam os serviços de Saúde para constatar a veracidade da informação. 1312 Transexualidade e Travestilidade na SaúdeMinistério da Saúde Muitas faziam uso abusivo e indiscriminado de diversos hormônios, muitas vezes orientadas por outras trans mais velhas que já haviam utilizado esse ou aquele hormônio e sabiam que um era bem melhor que o outro etc. Porém, um dos problemas mais graves para a saúde das trans nesse período era a utilização do silicone líquido industrial e a aplicação desse produto, posto que era feito por pessoas leigas e sem os cuidados de assepsia necessários nessas intervenções. Além disso, o procedimento era ilegal, tendo em vista que, como uma intervenção cirúrgica, a aplicação, em alguns casos, gerava efeitos nocivos à saúde. Quando isso ocorria, os médicos não queriam cuidar, explicando que não poderiam tratar as enfermidades decorrentes da aplicação pelo desconhecimento da causa e/ou do efeito. Até hoje, eu particularmente acredito que se tratava de descaso com essa população. É difícil para um cidadão comum compreender o porquê de travestis e transexuais recorrerem a essas intervenções para modelação dos corpos. A resposta é que essa substância tem um efeito mais imediato do que os hormônios. Por esse motivo, elas recorrem a essas intervenções para que possam ter os corpos sonhados de forma rápida e barata. O SUS nunca compreendeu esse fenômeno como caso de saúde pública, até o movimento organizado pautar essas lutas em parceria com outros movimentos e com alguns atores governamentais. Foi só a partir desses debates que o SUS iniciou muito timidamente algumas ações com médicos endocrinologistas sobre a questão de hormônios e com clínicos gerais e cirurgiões plásticos para lidar com os agravos da aplicação de silicone líquido industrial. Muitas trans recorrem aos serviços particulares, pois ainda é muito difícil encontrarna rede pública profissionais de saúde que atendam às demandas do silicone industrial. O movimento organizado tem implementado diversas ações com vistas a aconselhar a população trans a não utilizar essa substância, por meio de uma política de redução de danos. Infelizmente, essa política ainda é falha, pois apenas informa e disponibiliza meios de assepsia e/ou de materiais descartáveis para utilização, e é insuficiente para encontrar maneiras de desmotivar essa população a fazer uso dessas intervenções. Como relatado anteriormente, a aids trouxe como benefício para a população trans a procura mais assídua pelos serviços de saúde. Identificada no início da epidemia como “grupo de risco”, essa população estava mais propensa a se infectar com essa doença. Passados 30 anos da epidemia, a população trans tem hoje um trânsito tranquilo no SUS e é compreendida como uma população que tem outras enfermidades para além do HIV/aids. Entretanto, mesmo com o trânsito mais assíduo no SUS, a realidade dessa população ainda é cercada de muito estranhamento, seja para ela que precisa dos serviços, seja para os profissionais que, alheios a essas mudanças sociais, não compreendem as especificidades de alguns grupos populacionais. O lado positivo é que, em muitos lugares, existem gestores de saúde sensibilizados, que fazem o diferencial nos serviços de saúde com inclusão, inovação e respeito. O movimento organizado LGBT debate e encaminha as suas demandas nas conferências nacionais de políticas públicas para LGBT. Foram realizadas duas no Brasil. Nessas conferências, são encaminhadas as propostas que queremos que sejam efetivadas. Desde a primeira conferência, em 2008, o Ministério da Saúde (MS) foi o que mais efetivou as propostas de políticas para a população LGBT. Foi também no MS, na Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP), por meio do Departamento de Apoio à Gestão Participativa (DAGEP), que a efetivação das políticas públicas para populações mais vulneráveis, em especial a LGBT, teve a sua maior efetividade. Entre as outras políticas públicas, ficou mais evidente para nós a Política Nacional de Saúde Integral LGBT; em especial, o Processo Transexualizador do SUS, que é uma reivindicação antiga da população trans brasileira. Ainda estamos longe de ter uma saúde ou um atendimento com qualidade integral, universal e equânime, mas vale destacar a importância de políticas específicas, pois foi a partir delas que se trabalhou com a chamada inclusão. É preciso lembrar que travestis e transexuais são ainda as populações mais distanciadas dos serviços de saúde, e isso ocorre especialmente por falta de mecanismos específicos que venham a facilitar o acesso dessa população aos serviços. 1514 Transexualidade e Travestilidade na SaúdeMinistério da Saúde Mas a implementação da Política Nacional de Saúde Integral LGBT trouxe, cada dia mais, ações para que essas populações pudessem transitar mais tranquilamente nas dependências do SUS, para que tratem da sua saúde em espaços que outrora era impensável encontrar esses dois grupos populacionais: travestis e transexuais. Claro que os espaços específicos são importantes, mas é fundamental trabalhar para que todo o SUS possa adequar-se a essas demandas atuais, que requerem dos serviços atenção às especificidades. As organizações da sociedade civil tem desempenhado um papel fundamental nessas parcerias, pois é a partir delas que se dão as contribuições para a construção dessas políticas públicas. É sobre o trabalho de base dessas organizações que estão sendo pensadas as políticas públicas para responder às demandas de populações específicas. Fazer esse trabalho sem a parceria do movimento organizado seria impensável e ineficiente. Por fim, recomenda-se que travestis e transexuais possam ter cada vez mais a ampliação da sua permanência nos serviços de saúde, e que possam continuar contribuindo com diretrizes específicas para a criação de novas políticas. Além disso, é preciso que se intensifique, em todo o SUS, a sensibilidade de gestores e dos demais servidores da Saúde, para que reconheçam, na população trans, atores que precisam desses serviços e que devem ser respeitados em suas demandas e identidades. Sendo assim, que o SUS possa ter em seus quadros cada vez mais gestores empenhados na implementação de políticas de saúde públicas e, consequentemente, mais gestores sensibilizados e comprometidos com os princípios do SUS. A permanência dessa população no SUS só será efetiva quando as políticas implementadas tornarem-se sólidas e os gestores forem cada vez mais sensibilizados e capacitados para lidar com as diferentes formas de pensar e agir, quando todas as pessoas compreenderem que a individualidade de cada um deve ser respeitada, quando não houver mais rótulos e nem rotulados, e quando as pessoas reconhecerem em cada indivíduo o ser humano que cada um é, que deve ser compreendido dentro desse universo. Vale ressaltar, ao final, que a população trans reconhece no MS, especialmente nos gestores do DAGEP/SGEP/MS, um ganho para a política de saúde pública e espera que, cada vez mais, essa construção de mão dupla possa continuar rendendo mais frutos, que essa parceria possa cada dia mais se fortalecer, e que outras pastas desse governo possam se mirar no exemplo do Ministério da Saúde para iniciar também os diálogos e as construções dessas políticas em seu âmbito de atuação, para que, em breve, essa população possa desfrutar de igualdade de direitos em todos os Ministérios. 17 Transexualidade e Travestilidade na Saúde Saúde?! Completo bem-estar psicossocial de um indivíduo: tudo que uma pessoa trans não possui Chopelly Glaudystton Pereira dos Santos Desde a infância, homens e mulheres transexuais passam por um processo de desconstrução psicossocial que fragiliza diretamente sua saúde integral. É comum observamos as diferenças de comportamentos de uma criança transexual, que se contrapõe ao gênero inato ou ao que se espera dos padrões sociais. Exemplo clássico disso é quando há meninos que brincam de bonecas, de casinha, com uma sensibilidade aflorada, ou meninas que gostam de futebol, com posturas consideradas masculinas. Tais atitudes passam a ser vistas pelos seus genitores como comportamentos incomuns ao seu gênero. Temendo o que muitos pais identificam ou “diagnosticam” como uma suposta homossexualidade, seus filhos são colocados para fazer psicoterapia em infindáveis consultas com psicólogos ou psiquiatras em busca de conserto ou de adequação de comportamento. Quando se veem frustrados com a resposta clínica dos profissionais de saúde, os genitores então reprimem o comportamento, até então inocente, dos menores trans, com censuras e regras, e esperam que o tempo cure tal anormalidade. O que muitos pais acabam não percebendo é que crianças transexuais querem curtir sua infância: brincar, sonhar e ser livre. Este é um comportamento comum em todas as crianças, no qual não é possível identificar diferenças “convencionais” ao seu gênero. A partir dessa infância roubada e reprimida, sem entender o que incomoda seus genitores, crianças transexuais acabam com marcas que ressurgem na fase adulta. 1918 Transexualidade e Travestilidade na SaúdeMinistério da Saúde Adolescência: fase de transformação do corpo onde surgem desejos e sentimentos Adolescentes transexuais, ao perceberem que seus corpos, assim como seus desejos, se diferenciam daquilo que a sociedade e seus genitores esperam socialmente, começam a ter os seguintes questionamentos: • Meninas transexuais, ao se sentirem femininas, começam a desejar um corpo adequado à forma de pensar: seios graciosos, curvas esculturais, pernas livres de pelos, quadris bem definidos, um rosto delicado, roupas que favoreçam sua feminilidade e, por fim, a tão “preciosa” vagina. Surge também o desejo pelos(as) parceiros(as) que as desejem e as compreendam como mulheres. • Meninos transexuais, ao sesentirem masculinos, começam a desejar um corpo adequado à forma de pensar: um peitoral aberto e másculo, barba em evidência no rosto, perna peluda, voz grossa e um pênis. Surge também o desejo pelo(as) parceiro(as) que os compreendam como homens. O que muitos não percebem é que, ao reproduzirem seus desejos para seu “EU”, muitos adolescentes trans começam a entrar em um processo psicológico que pode ser destrutivo, provocado pelo conflito e pela falta de compreensão. Então, surgem as perguntas: “Por que ter um desejo tão forte de ser feminina ou masculino, se meu corpo tem um gênero oposto do que eu penso”? “Como adequar meu corpo ao forte desejo que tenho de ser feminina ou masculino?” “Como convencer meus pais de que sou uma mulher ou um homem, se meu corpo diz que sou o oposto?” Sem poder contar com seus genitores e amigos, muitos acabam numa busca solitária de respostas, nas redes sociais, sobre a liberdade tão sonhada e deparam-se com personagens que passaram por épocas ainda mais difíceis, que muitas vezes não são os melhores exemplos a serem seguidos. Cansados e revoltados, adolescentes transexuais, diante de forte conflito que os consomem todos os dias, acabam agindo por conta própria. Assim, ocorre a brusca construção pela sua identidade de gênero. Antes de tudo, a busca pelo tão sonhado corpo leva os adolescentes ao uso de hormonioterapia inadequada. Influenciado por personagens encontrados muitas vezes nas redes sociais, eles conhecem o silicone industrial, que pode resultar em deformações. A busca pela perfeição estética escraviza adolescentes trans que não pensam em outra coisa a não ser em reproduzir, no exterior, seu desejo e sua forma de pensar. Diante das transformações que cada vez são mais visíveis no seu convívio social, amigos começam a se afastar por julgar errado todo aquele processo. Pressionados pelo que a sociedade cobra e impõe aos genitores, estes começam a reprimir fortemente essa liberdade. Sufocados pelo falta de apoio, muitos dos adolescentes fogem do que era para ser um ambiente familiar rumo à casa de parentes mais próximos ou de amigos que já passaram pelo mesmo processo. Por consequência, entram na fase adulta precocemente e, mais uma vez, pulam uma importante fase da vida. Jovens: busca pelo profissionalismo na fase de organização da vida Desolados pelas turbulências na adolescência, os transexuais chegam à juventude buscando uma sobrevivência e munidos de uma alta defesa decorrente dos obstáculos que muitos irão encontrar por expor sua transexualidade à sociedade. É observado que rapazes e moças trans seguem caminhos opostos. Em média, 90% das adolescentes trans migram para a prostituição nas ruas devido aos abusos psicológicos e, muitas vezes, físicos sofridos nas escolas, que as afastam também do ambiente escolar. Em virtude da falta de apoio familiar e da ausência daqueles que se diziam amigos, muitas acabam nas mãos das cafetinas para se proteger da violência nas ruas. Um detalhe que chama atenção é que, embora muitas transexuais tenham repulsa por sua genitália, esta é, constantemente, desejada pelos clientes na prostituição. Elas têm como meta ir à Europa para alcançar um maior poder aquisitivo com o objetivo de voltar ao Brasil e ir à Tailândia em busca da tão sonhada e perfeita cirurgia. O que não 2120 Transexualidade e Travestilidade na SaúdeMinistério da Saúde se sabe é que, ao migrarem para a Europa, muitas têm de contar com a sorte de não serem pegas e deportadas de volta ao Brasil ou de não caírem nas mãos de cafetinas que as obriguem a usar drogas e a ser exploradas sexualmente. Há um quantitativo cada vez maior de rapazes que se identificam como transexuais. Diferentemente das moças, eles estão buscando apoio nas faculdades que, cada vez mais, procuram estudar as “IDENTIDADES DE GENÊRO”, ou nas ONGs. Observamos que muitos deles estão empregados porque as transformações corporais ocorreram dentro do ambiente de trabalho. Porém, não estão livres do bullying que sofrem nesse ambiente. Um grande dilema dos rapazes é a cirurgia de mastectomia que muitos médicos, mesmo nos hospitais privados, não querem fazer, o que leva muitos deles à frustração. As ONGs atuam de forma a transformar essa realidade, por meio do diálogo com órgãos do governo (federal, estadual e municipal), na tentativa de mudar a realidade desses jovens, o que tem conseguido poucas melhorias diante dos grandes problemas relacionados ao mercado de trabalho, à segurança e à educação. Outro grande inimigo que se destaca na comunidade dos jovens trans é o uso das drogas (deprimidos, frustrados e cansados pelas inúmeras perseguições sociais), que caracteriza uma eterna luta contra a transfobia. Jovens trans têm buscado cada vez mais refúgio nas drogas, um problema que vem crescendo no meio de nossa comunidade. Ao chegarem à fase adulta, homens e mulheres transexuais têm sobrevivido e estão conseguindo demarcar seu espaço social. Sim, é verdade que existe ainda um grande número de transexuais que está à margem da sociedade; mas, com muito sacrifício e determinação, tem driblado os obstáculos que a vida impôs para transexuais ao assumir publicamente sua identidade de gênero. Uma coisa é fato: pessoas trans sempre estarão na fronteira com a depressão e isso se deve a todos os traumas sofridos na infância, na adolescência, na juventude, e que se tornam mais fortes na fase adulta. A isso tudo, soma-se a chegada da “boa idade”, que leva a uma angústia devido à falta de perspectiva de vida e aos sonhos não realizados (cirurgia de redesignação sexual, conquista do registro de nome civil e reconhecimento social de comum acordo com a identidade de gênero construída). Outro fator que também marca muito essa fase é que muitas(os) negam a busca pelo(a) parceiro(a). Esses parceiros(as) devem ter uma compreensão de toda luta e transformação vividas pelas pessoas trans e é necessário que aceitem lutar contra a transfobia. A luta acaba envolvendo pessoas trans e parceiros(as), levando muitos deles também a uma vida solitária, a repensar e a regredir na escolha feita. Podemos observar que muitas pessoas trans, em diversos momentos, pensam em desistir nesta fase da vida; uma em cada dez pensa em suicídio. O que tem impedido a concretização dessa estatística é o uso das redes sociais, que ligam as pessoas trans umas às outras em uma forte corrente de trocas de experiências, levando muitas a ultrapassarem esse tão obscuro sentimento. O que se tem feito para garantir o completo bem-estar psicossocial das pessoas trans? Um dos grandes avanços se deu ao fato da publicação da Portaria nº 2.803 do Ministério da Saúde, em 2013, que reformula e regulamenta o Processo Transexualizador. O destaque nessa Portaria é que ela trabalha as e os transexuais (mastectomia e histerectomia para homens trans), assim como as travestis, no que diz respeito ao tratamento psicológico e endocrinológico. Mas o tempo que os hospitais e os ambulatórios levam para serem habilitados, e também para os já habilitados se estruturarem e executarem o processo, faz com que muitas pessoas trans, que há muito esperam pela tão sonhada e desejada cirurgia, desenvolvam uma ansiedade e uma angústia que se reflete na fase adulta. É possível que, no fim de todo esse processo de reestruturação dos hospitais e dos ambulatórios, muitas transexuais desistam da cirurgia (mesmo ainda existindo o desejo) por causa de um longo processo depressivo e exaustivo ocasionado pela espera. Porém, esse fato pode não acontecer com os homens trans que, em qualquer fase de sua vida, querem a histerectomia e a mastectomia. Não se pode dizer que o tempo que o Ministério da Saúde leva para reestruturar o Processo Transexualizador seja desnecessário, pois 2322 Transexualidade e Travestilidade na SaúdeMinistério da Saúde entende-se a necessidade do cuidado no que se refere a esse processo. Mas podemos parabenizá-lo por ser também o pioneiro emoutra Portaria que garante o nome social das pessoas trans, tanto no cartão SUS como nos prontuários de atendimento (Portaria nº 1.820, de 13 de agosto de 2009). O grande problema que leva a uma insegurança geral na população trans é que portarias podem ser revogadas por qualquer governo. Sendo assim, seria necessária uma lei que garantisse todo esse processo. Outro grande avanço que pode vir a transformar a vida das pessoas trans é a Lei João Nery que regulamenta a igualdade de gênero para todas as pessoas travestis e transexuais, garantido assim a mudança de nomes. Essa Lei, hoje, tramita no Congresso Nacional, mas ainda está muito longe de ser aprovada. Não se pode esquecer também das diversas capacitações e sensibilizações que os governos federal, estaduais e municipais têm feito para sensibilizar a sociedade a atender e a respeitar as pessoas trans. Muito desse trabalho acaba sendo inválido porque não se pode mudar a transfobia. O que se tem de fazer é vencê-la e, para isso, é necessário uma lei forte que faça as pessoas pensarem duas vezes antes de cometer esse tipo de discriminação ou de agressão. No Brasil, outro grande fator que vem crescendo contra as pessoas trans é o alto índice de violência que as têm exterminado, o que só reforça a necessidade de aprovação da lei acima citada. É notório que os avanços têm acontecido, mesmo que de uma forma lenta. Acredita-se que os resultados virão na geração futura, na qual as pessoas trans serão vistas como pessoas “normais.” Só resta às gerações passadas tentar superar os danos psicossociais e patológicos das marcas carregadas por toda a vida. O tempo fará grandes diferenças. O processo de travestilidade, suas angústias e ansiedades, é muito parecido com o da transexualidade. A linha que separa estes dois segmentos é a busca pela cirurgia de redesignação sexual. Há quem diga que as travestis são muito mais bem resolvidas do que as(os) transexuais. Isso se deve ao fato de elas não buscarem a readequação sexual. Em determinados lugares, elas chegam a ser “compreendidas ou aceitas” por não quererem a cirurgia. Tudo isso caracteriza a última das violações sofridas por mulheres e homens transexuais. O que fazer para garantir o conceito de saúde? É preciso que profissionais sejam qualificados e fiscalizados para trabalharem com essa população, que genitores amem seus filhos(as) como são para se tornarem pais de verdade, que sejam criadas leis que obriguem as pessoas a respeitarem a liberdade de expressão das identidades de gênero, que seja elaborada uma política forte de combate às drogas, que seja implementado o Processo Transexualizador de forma eficaz para transformar esperanças em realidades. Por fim, é necessário que a sociedade enxergue que pessoas trans não são anomalias que precisam ser excluídas e sim PESSOAS que precisam ser respeitadas. Todas essas medidas podem garantir que os danos sociais às novas gerações sejam reduzidos e que meninos e meninas trans possam se tornar homens e mulheres com uma saúde plena, ou seja: Que o completo bem estar psicossocial de nossas Transexuais, seja garantido! Sabemos que será um desafio para o Brasil, que terá muitas dificuldades na conclusão de todas essas medidas, pois a população brasileira possui uma forte cultura enraizada em um falso conservadorismo. Muitos dos que se dizem livres da discriminação, na verdade, camuflam o seu verdadeiro sentimento e, infelizmente, transfóbicos multiplicam-se cada vez mais no nosso país. Uma grande mulher disse que país rico é um país sem pobreza e pode ser! Mas, com certeza, tem que ser um país justo para todos! 2524 Transexualidade e Travestilidade na SaúdeMinistério da Saúde Trans-homens: a distopia nos tecno-homens Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho João Walter Nery Este recorte é uma ampliação da análise feita anteriormente (NERY; MARANHÃO FILHO, 2013)1 sobre os trans-homens que compartilham suas trans experiências no ciberespaço (experiências micro e biopolíticas). A cartografia sobre tais vivências foi realizada a partir de trabalho de inspiração etnográfica digital – observação marcada pela participação em fóruns, grupos da rede social Facebook (FB) e mensagens eletrônicas. O artigo procura traduzir algumas das demandas de pessoas que realizam adequações de gênero do feminino para o masculino, utilizando-se de várias tecnologias modernas nessa sociedade distópica ocidental. Entenda-se aqui como “tecnologias que produzem vida (e que incluem as de modificação ou aumento corporal) são tecnologias materiais e discursivas, culturais e políticas e não simplesmente técnicas no sentido literal do termo” (BOURCIER, 2008, p. 65). Os trans-homens vivenciam uma “masculinidade inquietante”. Terão de estar sempre de prontidão, porque não há, na cultura brasileira, espaço para respeitá-los ou entendê-los como homens sem pênis, com seios e com vagina. De início, a maioria se reconhece como lésbica masculinizada (por falta de informações, de apoio ou para não assustar demais os pais). Muitos começaram a se hormonizar há pouco tempo. Estão preocupados com questões pessoais: como contar para os pais, como adquirir a receita obrigatória para se comprar o hormônio ou que dosagem tomar. Procuram em sites por “dicas” ou produtos que aumentem seus músculos, conversam sobre os diversos efeitos colaterais do uso da testosterona, procuram por órteses do tipo binder, packer/play, pump e STP2 e discutem suas dúvidas acerca de como se apresentar no trabalho, na escola, na academia ou nas suas relações afetivas. Referências BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n.º 1.820, de 13 de agosto de 2009. Dispõe sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde. 2009. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/ prt1820_13_08_2009.html>. Acesso em: 10 abr. 2015. ______. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013. Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). 2013. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov. br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2803_19_11_2013.html>. Acesso em: 10 abr. 2015. 1 Nery denomina-se trans-homem, enquanto Maranhão Filho (in) define-se (provisoriamente) como entre gêneros, não binário. 2 Aparelhos ou dispositivos ortopédicos, de uso provisório ou não, destinados a alinhar, prevenir ou corrigir deformidades ou a melhorar a função das partes móveis do corpo. O binder (colete) e a faixa torácica servem para esconder as mamas; packer/play é a órtese em forma de pênis (flácido e/ou rijo); pump é a bomba para aumentar o clitóris; e STP é o dispositivo para urinar em pé. 2726 Transexualidade e Travestilidade na SaúdeMinistério da Saúde Uma das principais demandas da maioria dos trans-homens é a hormonioterapia. Na fase pré-T3, há muitos relatos de ansiedade, depressões, síndrome do pânico, diagnósticos errados de transtorno afetivo bipolar, paralisias motoras, tentativas de suicídio, síndromes fóbicas e outras afecções; quase todas como resultantes da transfobia e que cessam quando começam a transição. A hormonização tem demonstrado acalmar a maioria dos trans-homens. Testoterapia A partir da Segunda Guerra Mundial, a biotecnologia, as cirurgias e as drogas sintéticas como os hormônios têm progressivamente proporcionado modificações somatoplásticas, antes inimagináveis, no estatuto dos corpos. Entretanto, há agenciamentos de poder na manipulação destes. A intervenção hormonioterápica possibilita reinvenções muitas vezes não previstas no binarismo hegemônico de gênero. Traçando uma comparação entre o homem idoso que toma testosterona, não como um remédio, já que não está doente (seria como assumir uma ferida na sua identidade de gênero), mas para tomar as rédeas da própria vida (e do próprio corpo), parar o avanço do tempo e retomar a juventude perdida (TRAMONTANO, 2012, p. 119), alguns trans-homens o fazem para resgatar o seu corpo idealizado, sua identidade transgênera, sua autoestima,seu auto e alter reconhecimento, a fim de, posteriormente, adequar seus documentos com maior facilidade. A administração de testosterona serve, sobretudo, para que as pessoas possam decodificar o gênero no qual os trans-homens se identificam. A hormonioterapia é a primeira grande modificação corporal para muitos trans-homens. A maioria a considera mais importante do que as cirurgias. O processo pode ser lento, com resultados diferentes de pessoa para pessoa. Muitos não o fazem por questões pessoais, seja por problemas de saúde, pelo receio de assumir a transformação perante a família, por conta do local de trabalho, por questões políticas ou porque não o desejam. Existem várias formas diferentes de se usar testosterona, como: injeções, gel, pílulas, adesivos bucais, patch na pele, inalador de aerossol e implantes de microdifusão. A testosterona – ou, simplesmente, testo ou T – em forma de gel é comercializada no Brasil somente em farmácias de manipulação. É mais confortável de ser aplicada no interior das coxas (pela manhã, quando o nível da T é mais elevado), provendo um nível mais estável do hormônio (não mimetiza o ritmo circadiano da testosterona no organismo), possivelmente reduzindo os riscos de efeitos colaterais (FTM BRASIL, 2013b). No Brasil, além do gel e do creme, são comercializadas as formas injetáveis do hormônio. Em 31 de julho de 2013, foi publicada, no Diário Oficial da União (DOU), a Portaria n° 859, ampliando as diretrizes do Processo Transexualizador pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o que atenderia jovens a partir dos 16 anos com tratamento hormonal e proveria a cirurgia a partir dos 18 anos, quando antes era aos 21 anos (idade esta sem sentido, já que a maioridade no Brasil é de 18 anos). No mesmo dia, foi desrespeitosamente revogada. Por intermédio da Defensoria de São Paulo/ SP, o SUS desse estado é o único autorizado a fazer uso de bloqueadores a partir dos 12 anos, hormonização aos 16 e operação aos 18, medida esta que, incoerentemente, não foi estendida para todo País (RABAHIE, 2013). Os bloqueadores são importantes para os trans-homens que não fizeram a histerectomia: evitam entrar em choque com a testosterona e bloqueiam os posteriores caracteres sexuais secundários, irreversíveis e dispendiosos para ambas as partes. Efeitos possíveis da testosterona Há variações para cada indivíduo, mas, no geral, nota-se uma maior quantidade ou um aumento de apetite, acne, suor, retenção de líquido, massas muscular e óssea, enzimas hepáticas, da disposição geral, da libido, do colesterol, dos pelos no corpo e da barba, há policitemia (aumento dos glóbulos vermelhos) e hipertrofia do clitóris. As alterações resultam em modificações na voz, com a proeminência laríngea (pomo de adão), no odor do corpo, na pele, que se torna mais áspera e oleosa, e ocorre redistribuição de gordura corporal. Há interrupção da menstruação e perda de cabelo, levando à calvície. 3 Antes do uso da testosterona. 2928 Transexualidade e Travestilidade na SaúdeMinistério da Saúde Observam-se riscos de dano hepático, hipertensão, cefaleia, doenças cardiovasculares e tromboembólicas. Há diminuição da sensibilidade à insulina, atrofia das mamas e da vagina e propensão à insônia. A agressividade e a variação de humor parecem ser um fator psicossocial, já que nem todos as manifestam. Os trans-homens, para adquirirem os hormônios necessários para sua adequação, nem sempre conseguem os medicamentos. A falta é frequente nas farmácias de muitos estados. Sabe-se que alguns trans-homens, por falta de endocrinologista e/ou de receita médica, recorrem à automedicação e compram hormônios de forma ilegal. Estima-se que a maior parte da testosterona circulante se faz por meio do mercado paralelo esportivo, sobretudo nas academias, e pode ser encontrada em sites de fisiculturismo. Essa prática não é indicada pelos profissionais da Saúde, mas costuma ser um recurso para aqueles que se veem sem saída diante da falta de dinheiro, do apoio de profissionais especializados ou da morosidade do SUS. Pesquisando na internet, os trans-homens descobriram um produto à base de testosterona que ajudava mulheres a terem sobrancelhas sem falhas4 e começaram a usá-lo indiscriminadamente pelo corpo. É utilizado como um dos meios para se conseguir adequações corporais masculinas. O despreparo de muitos profissionais também se dá pela falta da cadeira “Gênero e Sexualidade” na maioria dos cursos de Medicina e de Psicologia, o que acarreta um desconhecimento e atitudes preconceituosas no trato com os(as) transgêneros. Cirurgias e laudo psiquiátrico As expressões tão comuns manifestadas pelos trans, como: “a cirurgia não vai me fazer homem, porque sempre o fui” ou “nasci preso num corpo errado”, refletem metáforas patologizantes da inversão de gênero e da metafísica do corpo, como prisão da alma, reguladas pelos saberes médicos, religiosos e jurídicos. Essa velha questão é abordada por Bourcier (2008, p. 67) quando se refere à necessidade da despatologização, sendo a nova tendência para a rearticulação do discurso sobre a transição e a transgressão. Ela cita as exibições de Buck Angel (Loren Cameron)5 para mostrar que “o ‘tornar-se homem que já se é’ não coincide mais com uma simples reinteriorização, mas articula novas externalizações”, legitimando um sexo diferente, transformador e visível por meio da mídia. A “construção do gênero ou os processos de identificação são muito mais complexos do que a cirurgia” (ÁRAN, 2010, p. 276-277). A cirurgia deixa de ser condição de “determinação” do que é ser trans-homem (ou transmulher). Quanto à obrigatoriedade do laudo psiquiátrico, este deslegitima a autonomia do trans de se dizer quem é. Promove que ele “represente” para atender às expectativas do terapeuta e obter, assim, o tão esperado laudo para se operar. Permanece refém, por dois anos, de uma equipe multidisciplinar que não tem parâmetros científicos de avaliação, numa fila de anos de espera, sem conhecer os critérios. Há apenas cinco unidades do SUS para atender todo o Brasil, sendo que a Região Norte ainda não possui unidades, e as do Rio de Janeiro/RJ, de São Paulo/SP e de Goiânia/GO estão com as inscrições fechadas há anos. O primeiro procedimento cirúrgico para os trans-homens – às vezes, o único – é a retirada das mamas, daí a importância de se aumentar o número de mastologistas no SUS. O termo “mastectomia bilateral”, quando empregado para os trans-homens, é inapropriado, porque a mama não é totalmente removida e mantém-se o mamilo. “Mamoplastia masculinizadora” seria o termo correto, porque se trata de uma readequação de tórax. A cirurgia plástica é reconstrutiva e transforma, proporcionalmente, os tecidos e a forma de uma mama feminina em uma masculina (MEDICINA..., 2012). As diversas técnicas cirúrgicas variam conforme o tamanho da mama. Os trans-homens dão à cicatriz o nome de “T invertido” ou “sorriso”, quando a incisão é abaixo das mamas. Usa-se também a dos dois traços. Quando o volume é pequeno, utilizam-se a técnica periareolar (PA) e a técnica transareolomamilar, do duplo círculo (DC), corrigindo também o tamanho da aréola. (CARDOSO et al., 2007) 4 Ver “Minha pele oleosa”. Disponível em: <www.minhapeleoleosa.com.br>. 5 Ver Buck Angel. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Buck_Angel>. 3130 Transexualidade e Travestilidade na SaúdeMinistério da Saúde Em alguns casos, pode-se usar prótese peitoral, visando a uma estética melhor. Esta é a primeira cirurgia a que os trans-homens submetem-se para poderem se livrar dos incômodos binders, faixas, esparadrapos e adesivos e terem maior aceitação pessoal e social. Ela independe da pan-histerectomia6 e/ou da cirurgia genital, que é definida como de caráter sexual secundário. A maioria para nesse estágio. A terceira é a neofaloplastia, também denominada com o termo inapropriado de ortofaloplastia, já que esta se refere a um procedimento para desentortar opênis. A neofaloplastia é a constituição de um “novo pênis”. Trata-se de cirurgia considerada ainda “experimental” (só no Brasil e apenas no caso de trans-homens) e, por isso, somente é feita em hospitais universitários, o que evidencia o preconceito no campo da Medicina. Como alternativa, há a metoidioplastia: nesta, o clitóris crescido devido ao uso da testosterona e de bombas de sucção é “solto” de sua posição original e movido à frente para uma posição que lembra a de um pênis. Em alguns casos, a uretra é alongada para que termine na ponta do órgão. Há, também, a possível realização da vaginectomia, que é a remoção da vagina ou o seu fechamento (colpectomia) e a criação do escroto e dos testículos (escrotoplastia). Como a neofaloplastia ainda encontra-se em caráter experimental, o reconhecimento jurídico não demanda a cirurgia de redesignação sexual (ao contrário do que costuma ocorrer com as transmulheres). Ao mesmo tempo, não possuir um pênis pode representar para muitos trans-homens o perigo iminente de ser descoberto como “mulher”. A partir disso, as órteses revestem-se de importância. Nem todos querem realizar essas cirurgias ou sentem que precisam delas para se tornarem homens. Para a mudança de prenome e de gênero no registro civil, essas costumam ser as cirurgias pré-requisitadas, uma vez que a criação do falo apresenta mais riscos e nem sempre se obtêm resultados estéticos e funcionais satisfatórios. O alívio das órteses (binder, faixa torácica, packer/play, pump e STP) Tanto o binder, que é o colete compressor, quanto a faixa torácica ou as fitas adesivas e esparadrapos têm a função de esconder as mamas. Packer é a órtese em forma de pênis, tanto no modelo flácido (que serve para dar volume) quanto no rijo (no modelo play com fins sexuais). Pump é a bomba de sucção para aumentar o clitóris e STP (stand to pee), o dispositivo para urinar em pé. A maioria dos trans-homens usa algum tipo de órtese na cueca para se sentir com uma autoimagem mais prazerosa e mais seguro socialmente. Já existem sungas e cuecas australianas que vem com lugar para o packer7. Praias e piscinas também figuram como lugares propensos ao embaraço e sentimentos de vergonha, quando não podem tirar a camiseta. Há packers de várias tonalidades, tamanhos, tanto flácidos quanto rijos, ou até com as três funções (com STP). A maioria procura por órteses as mais realistas possíveis, incluindo também as conhecidas por vertebradas, por conterem “vértebras” no seu interior e serem dobráveis. Os binders (coletes) são vendidos apenas no exterior. Há faixas ou cintas nacionais, esparadrapos porosos largos e/ou fitas adesivas, que são mais baratos, fáceis de conseguir; porém, são mais inseguros e incomodativos do que os binders. Um dos problemas nas academias surge quando se matriculam com o nome social e ficam tensos ao serem descobertos. Alguns confidenciam ao personal trainer, quando adquirem mais intimidade, mas há aqueles que narram usar o colete para corrigir a postura. Quando há compreensão dos pais (raramente), o uso do binder começa cedo, assim que os “invasores” aparecem (termo êmico usado pelos trans-homens, denotando a repulsa que as mamas costumam causar). De modo semelhante, a menstruação é muitas vezes chamada de “monstruação”, como uma aberração. 6 Retirada de todos os órgãos reprodutores internos. 7 Exemplos de cuecas e sungas com lugar para embutir o packer podem ser vistos no link: <http://oconfessionario.wordpress.com/2010/12/08/wonderjock-by-aussiebum/>. 3332 Transexualidade e Travestilidade na SaúdeMinistério da Saúde Outros incômodos causados pelo uso contínuo dos binders, faixas, fitas adesivas e esparadrapos são a falta de ar (às vezes, apresentando problemas pulmonares), o calor, as assaduras. Alguns chegam a ficar com as mamas escariadas ou quase necrosadas. Há também dúvidas sobre como prender as mamas. Segundo alguns cirurgiões que operam trans, a maneira mais apropriada para a compressão mamária é no sentido perpendicular à base da mama, mantendo o mamilo centrado em relação a ela. Fazer uma compressão de cima para baixo provoca um estiramento da pele acima do mamilo, criando “mamas em forma de saco de café”, resultando em cicatrizes grandes. Quando a compressão é correta, o grau de atrofia gerado pela testosterona é benéfico (MEDICINA..., 2012). Algumas considerações Neste pequeno recorte acerca dos trans-homens e das suas readequações corporais, há uma ligação direta com a discriminação/ intolerância/transfobia sofridas por conta dos conflitos das normas de gênero. As hormonizações e/ou cirurgias tornam-se quase que obrigatórias para esses corpos não alinhados às normas binárias de gênero. Os trans-homens provam que é o gênero que determinará a anatomia. É necessário ser mutante nesta sociedade, se quiser ter uma inteligibilidade identitária e humana. Pretende-se, neste texto, abrir novos diálogos e tornar visíveis as transvivências masculinas – cientes de que tal trabalho não esgotará o assunto: há, ainda, muito a se colocar em discussão. 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Dissertação (Mestrado 3534 Transexualidade e Travestilidade na SaúdeMinistério da Saúde em Saúde Coletiva) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. Bibliografia ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE HOMENS TRANS (ABHT). (grupo aberto). Disponível em: <http://www.facebook.com/groups/ grupoabht/?fref=ts>. Acesso em: 20 mar. 2013. BENTO, Berenice; Félix-Silva, Antônio Vladimir (Org.). Desfazendo gênero: subjetividade, cidadania, transfeminismo. Natal: Ed. da UFRN. No prelo. CYBERSKIN. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Cyberskin>. Acesso em: 29 abr. 2013. FTM BRASIL. (grupo secreto FTM´s Bi e Gays. grupo fechado). Disponível em: <http://www.facebook.com/ groups/180619182049731/?fref=ts>. Acesso em: 20 mar. 2013. MARANHÃO FILHO, Eduardo Meinberg de Albuquerque. Anotações sobre a “inclusão” de travestis e transexuais a partir do nome social e mudança de prenome. In: MARANHÃO FILHO, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Orgs.). Dossiê. In: Visibilidade Trans 1. 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Academia Um olhar sobre a determinação social da saúde de travestis e transexuais Parte II 39 Transexualidade e Travestilidade na Saúde Todas as mulheres do mundo1: a construção do corpo travesti no Brasil das décadas de 1960 e 1970 Anibal Guimarães Introdução Cada vez mais, por diferentes razões, homens e mulheres parecem necessitar e desejar a realização de mudanças corporais. Independentemente da orientação sexual, da identidade e da expressão de gênero, o ser humano, de maneira geral, busca a harmonia entre a autoimagem e a materialidade do próprio corpo. Não constitui, portanto, qualquer novidade que, para travestis e transexuais, agarrar-se a uma promessa de concretização desse desejo pareça fundamental. Os esforços envidados nesse processo são inúmeros e, ao menos no cenário privado, compreendem a contratação de profissionais de saúde treinados, os quais, por meio de práticas regulamentadas e fiscalizadas pelas autoridades sanitárias, lançam mão de biotecnologias já consagradas. Ciência e Medicina buscam, assim, desenvolver novas técnicas, aprimorar procedimentos médico-cirúrgicos consagrados e intensificam suas pesquisas por novos produtos. Em um ambiente que sugere a prevalência de uma “medicina dos desejos” sobre uma medicina terapêutica, verifica-se a existência simultânea de práticas regulares e irregulares. Profissionais treinados e autorizados pelo poder instituído a exercerem determinados procedimentos médico-cirúrgicos em corpos são confrontados por outros atores, não oficiais, os quais não apenas representam alternativas de transformações em corpos como também, dadas as quase sempre precárias condições em que atuam, expõem seus “clientes” a riscos, muitas vezes, ainda maiores. Essa prática não oficial se vale da existência de produtos químicos, os quais apresentam facilidade de acesso e oferecem menor custo e maiores possibilidades de lucro. Esses produtos, muitas vezes, são subvertidos em sua finalidade exclusivamente industrial e acabam 1 O título “Todas as mulheres do mundo” faz alusão ao filme homônimo, dirigido e roteirizado por Domingos de Oliveira e lançado em 1967. Disponível em: <http://www.filmesbrasileiros. net/todas-as-mulheres-do-mundo/>. Acesso em: 5 ago. 2013. 4140 Transexualidade e Travestilidade na SaúdeMinistério da Saúde injetados no corpo humano. É o caso do silicone líquido, cujos danos no organismo de homens e mulheres têm sido objeto de extensa literatura científica. Ainda que sejam amplamente conhecidos os seus severos danos em humanos, e enorme a dificuldade médica para o seu enfrentamento, chama a atenção seu continuado uso entre travestis e transexuais no Brasil. De maneira geral, as narrativas e as análises aqui reunidas sugerem que as técnicas e os recursos biotecnológicos desenvolvidos e disponibilizados pela Medicina, ao longo dos últimos 50 anos, para a construção de corpos, significam avanços ainda bastante limitados em termos de seu inequívoco bem-estar. Mais que tudo, travestis e transexuais parecem clamar pela minuciosa reflexão quanto a determinados procedimentos autorizados, uma vez que seu maciço investimento físico e psíquico em algumas transformações radicais não corresponde aos resultados muitas vezes alcançados. É imperioso investigar se, de fato, se promoverá a sua beneficência e, mais que tudo, a sua não maleficência. As histórias de vida das travestis idosas aqui apresentadas sugerem que a longevidade e a alegada qualidade de vida alcançadas por elas resultam também da razoável satisfação quanto à autoimagem que construíram ao longo de suas vidas. De alguma forma, tal satisfação é o resultado direto das técnicas e cirurgias então disponíveis e, também, do próprio reconhecimento da existência de determinados limites no processo de “construção” de seus corpos. Ao que parece, seu investimento em um feminino que sempre se valeu mais de sua performance de gênero do que exclusivamente de um corpo (a ser) “construído” foi crucial para lhes assegurar razoável bem-estar psíquico, não apenas durante sua juventude e maturidade mas, agora em especial, em seu processo de envelhecimento. Este trabalho se insere em um projeto maior, de natureza etnográfica, o qual busca resgatar e registrar as memórias de travestis brasileiras idosas, com vistas à melhor compreensão do fenômeno da travestilidade. Por meio de uma retrospectiva histórica, pretende suscitar o debate acadêmico quanto aos diferentes discursos geracionais/temporais que, a meu ver, ainda sustentam, em nosso país, o processo de construção do “corpo travesti”. Aqui, agora Em 2013, na cidade de Salvador, um profissional de enfermagem foi chamado às pressas a uma casa de cômodos onde residem e se prostituem mais de 30 travestis. Sua missão: tentar socorrer duas delas, as quais apresentavam graves problemas de saúde em decorrência das injeções de silicone líquido que foram aplicadas, por uma “bombadeira”, em seus corpos e rostos. Encaminhadas e atendidas em um hospital público, as travestis foram medicadas e liberadas. Contudo, passados alguns dias, o quadro agravou-se e uma delas teve suas nádegas cirurgicamente removidas; sem resistir à septicemia generalizada, ela acabou falecendo. A outra travesti tampouco resistiu às complicações decorrentes da injeção do silicone e, passados dois meses, também faleceu. Segundo relato daquele profissional, são ainda insuficientes os recursos desenvolvidos pela Medicina para o enfrentamento dos sérios problemas decorrentes da utilização do silicone líquido injetável no organismo humano: “muitas vezes”, diz ele, “as únicas medidas possíveis são de natureza paliativa”. Para todas as demais travestis que já haviam recorrido aos serviços da mesma “bombadeira”, “tudo não passou de azar” das vítimas2. É interessante que se compreenda que, nesse contexto, macular e desqualificar o trabalho de “bombadeiras” pode significar, também, colocar em risco o acesso a um procedimento que a todas “beneficia”. Em algumas comunidades da cidade do Rio de Janeiro, as chamadas “bombadeiras” que ali residem e trabalham têm expandido sua clientela para além das habituais travestis e transexuais. Mulheres biológicas, de classe média, desta e de outras cidades vizinhas, têm recorrido à sua alegada expertise para retoques com injeções de silicone líquido em seus corpos e em suas faces. Não obstantea falta de regulamentação para a atividade da “bombadeira”, essas mesmas mulheres justificam sua escolha pela “rapidez dos resultados” e pelo “preço acessível”3. Guardadas as proporções, os danos muitas vezes observados em seus corpos são os mesmos sofridos por travestis e 2 Relato pessoal do profissional de enfermagem chamado a prestar os primeiros socorros naquela casa. 3 Relato pessoal de uma jovem travesti informante, a qual trabalha como “auxiliar” de uma “bombadeira”. 4342 Transexualidade e Travestilidade na SaúdeMinistério da Saúde transexuais que, há cerca de 40 anos, têm se submetido ao “regime” da aplicação do silicone líquido injetável. Se é razoável afirmar não ser de desconhecimento de nenhuma travesti ou transexual que vive nas grandes cidades brasileiras os riscos a que estão sujeitas quando decidem recorrer a métodos não regulamentados para as mudanças corporais desejadas, sabe-se que esta não é uma escolha aparentemente fácil ou mesmo “irresponsável”. Se, por um lado, a realização de tais procedimentos no âmbito privado e o oferecimento de consentimento não afastam a “ilegalidade” que caracteriza seu exercício, por outro, a urgência em “ficar pronta” para ter assegurada a sua subsistência, somada às atuais dificuldades de acesso ao Processo Transexualizador4 no Sistema Único de Saúde (SUS) – em face à facilidade de acesso à “bombadeira” –, parece significativa no processo decisório de travestis e transexuais. Ante a severa rejeição social de que são alvo, uma vez percebida sua contrariedade às normas de gênero, travestis e transexuais são levadas a confiar em diferentes promessas biotecnológicas que, na verdade, podem agravar seu sofrimento. Na maioria das vezes, rumo à materialização de um corpo que, acreditam, possa resultar no reconhecimento legal e social de sua expressão e identidade de gênero feminina, essas pessoas acabam submetidas a procedimentos invasivos quase sempre árduos, longos e dolorosos. Com o passar do tempo, verifica-se o quão imprevisíveis podem ser suas repercussões nos planos físico e psíquico. Dito de outra forma, é a busca pela restituição da “humanidade” que lhes foi retirada o que move travestis e transexuais em meio à parafernália biotecnológica disponível. Não obstante todo esse sofrimento, o tão ansiado reconhecimento legal e social tampouco lhes é assegurado. Coccinelle, “mulher de verdade”5 Em março de 1963, Manchete, então a mais importante revista semanal do País, estampava a foto a cores da vedete e transexual francesa Coccinelle6. Em turnê pela América do Sul, Coccinelle lotou estádios de futebol, teatros e boates em que se apresentou. Mais que seus inegáveis dotes artísticos, o que, na verdade, todos queriam ver era aquela linda mulher que nascera “homem” e, em 1958, submetera-se à cirurgia de “troca de sexo” na cidade de Casablanca. Sob diferentes perspectivas, a vinda de Coccinelle ao Brasil serviu para revelar os limites e as condições em que viviam os muitos rapazes que, percebidos como “afeminados”, eram discriminados e sofriam pela suposta incongruência entre sua identidade de gênero e sua genitália. Saber da existência de Coccinelle e, mais que isso, sabê-la tão próxima, ao alcance dos olhos, tomando banho de sol à beira da piscina do Copacabana Palace, de biquíni, “corpo e beleza estonteantes”, podem ter contribuído decisivamente para desestabilizar o estado de quase perpétua resignação e sofrimento então experimentado pela grande maioria dos “afeminados” brasileiros. À época, investir na produção de vestimentas e acessórios a serem exibidos durante o carnaval representava um importante alívio psíquico a que lhes era possível recorrer. Mais que isso, os dias de folia momesca representavam uma espécie de laboratório para eventuais e futuras incursões daqueles rapazes “afeminados” no universo feminino. Não sem razão, um dos inevitáveis desdobramentos da esfuziante presença de Coccinelle entre nós foi a progressiva conquista do espaço público por essa população segregada. Romper, para “além do carnaval”7, com as imposições resultantes da ditadura de gênero foi o passo seguinte. Mais do que reconhecer a cirurgia de Coccinelle como uma proeza técnica, sua trajetória e seu sucesso pessoal serviram para fazer crer aos “afeminados” que “milagres”, de fato, acontecem. Mas não só isso. Ver materializado, diante dos olhos, alguém que “trocou de sexo” – e, 4 No Brasil, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), dá-se o nome de Processo Transexualizador ao conjunto de procedimentos médico-cirúrgicos a que – de maneira consciente, esclarecida e voluntária – se submete uma pessoa diagnosticada como portadora do chamado “transtorno de identidade sexual” e que deseja ajustar sua genitália à sua identidade de gênero. Ver a Portaria MS nº 1.707, de 18 de agosto de 2008, e, também, a Portaria MS nº 2.803, de 19 de novembro de 2013, que redefinem e ampliam o Processo Transexualizador no SUS. (BRASIL, 2008; 2013) 5 A expressão “mulher de verdade” refere-se à canção “Ai, que saudades da Amélia”, de autoria de Mário Lago e Ataulfo Alves. (DICIONÁRIO..., 2013a). 6 “Eu quero essa mulher assim mesmo!”. (MANCHETE, 1963). 7 Refiro-me à obra “Além do carnaval. A Homossexualidade Masculina no Brasil do Século XX”, título traduzido para o Português da tese de doutorado do historiador norte-americano e brazilianista James N. Green, “Beyond Carnival. Male Homosexuality in Twentieth-Century Brazil”, editada no Brasil sob o formato de livro. (GREEN, 2000) 4544 Transexualidade e Travestilidade na SaúdeMinistério da Saúde acreditava-se, com isso adquirira valor e respeito social, era desejada pelos homens e invejada pelas mulheres – contribuiu para ressignificar a vida de todas as pessoas que, de certa forma, nem mesmo conseguiam compreender a natureza das questões que tanto lhes perturbavam. A enorme visibilidade alcançada por Coccinelle pode ter contribuído para que uma expressiva parcela dos “rapazes” que, no Brasil, eram sistematicamente discriminados, segregados e humilhados, por conta de sua identidade e de sua expressão de gênero feminina, entendesse que a tão desejada aceitação social estaria condicionada à sua transição de um gênero ao outro. Simples assim: sua “transgressão” não seria tolerada enquanto ela não fosse disciplinada pelo bisturi cirúrgico. Embora a trajetória de Coccinelle seja inigualável, é fato que, já em 1952, o norte-americano George William Jorgensen Jr. submetera-se, na Dinamarca, à cirurgia de “troca de sexo” e passara a se chamar Christine. De volta à América, Christine Jorgensen tornou-se alvo de intensa cobertura jornalística, transformando-se instantaneamente em uma celebridade. Se, para o imaginário popular, Christine Jorgensen representava um estilo de feminilidade contida, que mais se assemelhava àquele da atriz norte-americana Lauren Bacall, de voz rouca e sexy, Coccinelle, que já atuava como strip-teaseuse de sucesso em alguns célebres cabarés parisienses, incorporava, simultaneamente, as figuras de Brigitte Bardot e Marilyn Monroe, dois dos maiores símbolos sexuais de toda a história do cinema mundial. Ao que parece, ante a exuberância e os “encantos” da francesa Coccinelle – a qual se ajustava, como uma luva, ao festejado espírito carnavalesco brasileiro –, nossos “afeminados” ficaram alheios à aparente modéstia da norte-americana Jorgensen. Não sem surpresa, no Brasil, Coccinelle acabou alçada à condição de modelo de feminilidade a ser adotado e perseguido. “Ô abre-alas, que eu quero passar...”8 Para Veneziano (2006), a década de 1950 representa o auge do teatro de revista no Rio de Janeiro, quando produções bastante luxuosas reuniam em seu elenco os grandes nomes de então e, com frequência, atores, reconhecidos por sua masculinidade, representavam papéis femininos, de forma propositadamente caricatural e grotesca. Grande Otelo e Oscarito foram alguns desses atores. Em 1953, contudo, esse cenáriomudou: Walter Pinto, principal empresário dos espetáculos de revista produzidos no Brasil entre as décadas de 1940 e 1960, contratou Ivaná, travesti francês de “rara beleza e feminilidade”9, para ser a estrela de sua Companhia. Seu sucesso foi tão grande entre nós que a mesma revista Manchete, em 1953 – dez anos antes da passagem de Coccinelle pelo Rio de Janeiro –, lhe reservou sua capa (MANCHETE, 1953). Se, para chamar a atenção de todos, Coccinelle valia-se, simultaneamente, de sua condição de “homem que operou e virou mulher” e de suas belas formas femininas, Ivaná, sem jamais ter recorrido a qualquer procedimento cirúrgico capaz de transformá-lo em “mulher”, nada mais era do que um belo rapaz que “se vestia de mulher”, cantava e falava “como mulher”. Sua inegável aparência feminina deve-se aos variados enchimentos que utilizava para entrar em cena, à apurada técnica de maquillage teatral, às belas perucas e ao luxuoso guarda-roupa. No mais, “tudo não passava de ilusão de ótica”. No Brasil, a contrariedade de homens às normas de gênero estava autorizada apenas durante o carnaval ou, então, nas artes cênicas. Tudo o que escapasse a essa ditadura de gênero deveria ser severamente repreendido por todas as “pessoas de bem”. Não sem razão, a “ousadia” de alguns rapazes “afeminados” em seguir carreira artística deve-se não apenas à menor rigidez ali verificada quanto ao controle de sua expressão de gênero, mas, é possível, à maior proximidade com um universo tido por muitos como “promíscuo”, portanto, mais “propício” às suas experiências homoeróticas. Alguns outros “afeminados” se voltaram aos ofícios de corte e costura ou de cabelereiro e maquiador. 8 A marcha “Ô abre alas”, composta por Chiquinha Gonzaga em 1899, foi a primeira música feita no Brasil especialmente para animar o carnaval (BRASIL, 2013b). 9 O sucesso das revistas musicais de Walter Pinto era tão grande que, “depois do êxito de ‘Eu Quero Sassaricá’, em 1951, o produtor se deu ao luxo de passar o ano seguinte viajando pela Europa a fim de pesquisar tendências para suas montagens seguintes” (GOMES, 2013). Parece razoável supor que a contratação de Ivaná significou a tentativa de o empresário, ao menos em parte, reproduzir em suas revistas, no Brasil, a fórmula de sucesso a que assistira nos cabarés parisienses de então (GOMES, 2013). 4746 Transexualidade e Travestilidade na SaúdeMinistério da Saúde Em geral, essas profissões aceitavam aprendizes e melhor toleravam eventuais contrariedades às normas de gênero. Em 1963, chegou a Paris Waldir da Conceição, o primeiro brasileiro que passou a viver ali, integralmente, como travesti. Bailarino profissional, dotado de refinada técnica, beleza exótica e porte elegante, Waldir já correra o mundo em diferentes turnês. Quando em 1962 esteve em Paris pela primeira vez, Waldir ficou perplexo com algumas coisas que ali viu: à noite, pelas ruas de Pigalle, homens maquiados e vestidos em elegantes trajes femininos eram cortejados por outros homens e tratados como mulheres10. A repressão policial a que, na França, estavam sujeitas aquelas pessoas por conta de sua “afronta” à legislação que proibia “a um homem se vestir como mulher fora do período de carnaval” pareceu irrelevante para Waldir. Perceber as infinitas possibilidades subjacentes à inegável atração e atenção que, em geral, aqueles “afeminados” exerciam sobre homens de “verdade” foi crucial e suscitou em Waldir o desejo inicial de investir na carreira de bailarino em Paris. Não demorou para que Waldir logo entendesse que a magia permissiva de Pigalle e o clima sedutor dos cabarés de espetáculos de travestis Madame Arthur e Le Carrousel eram irresistíveis e falavam mais alto à sua sensibilidade do que prosseguir na carreira de bailarino. Paris não apenas abriu as portas de um novo mundo para Waldir como, também, mostrou os caminhos para a sua transformação física em mulher. Foi assim que, em 1963, aos 27 anos de idade, nascia Daloá. A efervescência do disputado ambiente noturno em que Daloá passou a viver logo a despertou para a possibilidade/necessidade de recorrer aos “milagrosos” hormônios e cirurgiões plásticos que faziam “maravilhas” em corpos e rostos, e cujos nomes eram ciosamente partilhados apenas entre os poucos travestis franceses “estabelecidos”. Como bem aponta a travesti Rogéria, para algumas pessoas, determinados lugares de Paris eram capazes de evocar a incredulidade: “O Carrousel! Meu Deus, homens que são mulheres! Quando você pensa que vai ver um cara ridículo vestido de mulher, chega lá e vê gente linda, de cabelão comprido. O cara leva um choque” (ROGÉRIA, 1990). Após viver na Europa 12 anos sem ter se submetido à cirurgia de transgenitalização, mas, ainda assim, fazendo strip-tease e dançando, Daloá trocou de sexo em 1975, em Bruxelas. Não há dúvidas: o exitoso florescer pessoal e profissional de Daloá sedimentou as bases de um importante movimento de emigração de artistas travestis brasileiras rumo à Europa a partir da década seguinte. Em 1969, Valéria e Rogéria, consagradas travestis brasileiras, cruzaram o Atlântico para tentar uma carreira internacional. Suas inegáveis qualidades artísticas serviram, em definitivo, para abrir as portas dos cabarés europeus de travestis às brasileiras talentosas. É necessário que se aponte que, antes de seguirem para a Europa, Rogéria e Valéria não haviam, ainda, lançado mão de alguns recursos biotecnológicos que, mais tarde, acabariam por destacar sua já reconhecida feminilidade. A exemplo de Ivaná, ambas as artistas não apenas recorriam à maquillage e à peruca como, também, distribuíam enchimentos ao longo de seu corpo. Foi Valéria a primeira das grandes artistas travestis brasileiras a retornar de Paris. Sua chegada ao Rio de Janeiro, em 1972, provocou uma corrida de jornalistas e fotógrafos ao aeroporto. Era enorme a curiosidade de todos quanto a seu “progresso” físico: a exemplo de Coccinelle, teria Valéria também “operado”? Teria conseguido ficar ainda mais bela? Imediatamente contratada para estrelar um grande espetáculo em um dos principais teatros da cidade, Valéria logo tornou-se a “coqueluche” da noite carioca. Em pouquíssimo tempo, seu rosto estampou as capas das principais revistas e jornais. Conta a travesti Cláudia Celeste que, desde o início, acompanhando pela imprensa toda a enorme movimentação em torno da chegada de Valéria, logo comprou seu ingresso para o espetáculo. Assim que Valéria entrou em cena, Cláudia Celeste – então, um jovem “afeminado” de 20 anos de idade – não conseguia arredar os olhos do palco, tal era a “feminilidade”, a “beleza”, o “fascínio” e a “sedução” que irradiavam de sua figura. “Meu Deus, o que era aquilo?”, pergunta-se até hoje. Conta Cláudia que, ali, naquele exato momento, entendeu que seu 10 O fotógrafo sueco, Christer Strömholm, em seu livro Les Amies de Place Blanche, consegue, por meio da reunião de suas belas fotografias, captar a “novidade” e a “ousadia” que, nessa época, em Paris, significou a ocupação do espaço público por travestis franceses e estrangeiros. (STRÖMHOLM, 2011). 4948 Transexualidade e Travestilidade na SaúdeMinistério da Saúde destino estava irremediavelmente traçado: seria também “travesti”, pouco importando o custo de sua decisão. O modelo de referência, relembra, acabara de lhe ser apresentado. Para Cláudia Celeste, travestir-se significou dar um fim à recorrente humilhação que sentia, resultante dos xingamentos que cotidianamente ouvia por ser “um rapaz de aparência extremamente feminina”. Com sua decisão, Cláudia lembra que “passava ‘batida’, sem despertar a atenção de ninguém: eu era mais uma mulher caminhando pelas ruas e, como tal, deveria ser respeitada por todos”. Em setembro de 1973, foi a vez de Rogéria voltar ao Brasil. Passados alguns dias, a artista deu extensa entrevista ao importante semanário O Pasquim. Ali, Rogéria conta que foi na Europa que, pela primeira vez, ingeriu
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