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143 Encontro Revista de Psicologia Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 Juliana Aguiar de Melo Faculdade Anhanguera de Anápolis julianamelo.psi@hotmail.com "ESTOU VENDENDO UM REALEJO, QUEM VAI LEVAR?" O AMOR ROMÂNTICO E O AMOR PATOLÓGICO EM QUESTÃO "Je vends un organe, qui va acheter?" l'amour romantique et l'état d'amour pathologique RESUMO Este estudo dedica-se ao tema do amor refletido em duas facetas, tendo como ponto de partida o discurso do amor romântico como via de promessa para felicidade; e posteriormente o estatuto do amor para a psicanálise freudiana ressaltando a incompletude, a configuração patológica e, sobretudo, a compulsão à repetição. Neste caminho aborda-se a sexualidade como a via pela qual o amor se delineia; percurso a que o individuo é submetido e que determina a escolha do objeto de amor trazendo em seu cerne os protótipos das relações infantis. Enfatiza-se a compulsão à repetição a fim de avalizar o movimento inquietante do sujeito em busca de completude ao se direcionar a outro para uma parceria amorosa. Examina-se a impossibilidade de articulação entre amor e felicidade, fato que confere ao amor uma função de encobrir a vivência do indivíduo, e à felicidade apenas um episódio. Conclui-se que a patologia do amor não reside na relação que o sujeito vive como presente, e sim nas primeiras relações. Palavras-Chave: amor romântico; amor patológico; compulsão à repetição; psicanálise; felicidade. ABSTRACT Cette étude est consacrée au thème de l'amour pensé par deux aspects, en prenant comme point de départ le discours de l'amour romantique comme un moyen de promesses de bonheur, et le statut de l'amour dans la psychanalyse freudienne en ressautant le caractère incomplet, la configuration pathologique et, surtout, la compulsion de répétition. De cette manière, il aborde la sexualité comme le moyen par lequel l'amour est délimitée; le parcour que l'individu est soumettre, et qui détermine le choix d'objet d'amour qui porte sur les prototypes de sa relation infantile de base. Il met l'accent sur la compulsion de répétition afin d'avalizer le déménagement déranger le sujet dans la recherche de l'exhaustivité est de diriger une autre à une relation d'amour. Il examine l'impossibilité d'articulation entre l'amour et bonheur; d'amour le fait que confère une fonction de dissimulation de l'existence de l'individu, et le bonheur qu'un seul épisode. Il est conclu que la pathologie de l'amour ne se situe pas par rapport à la vie tel sujet, mais les premières relations. Keywords: amour romantique; amour pathologique; psychanalyse; compulsion de répétition; bonheur. Anhanguera Educacional Ltda. Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 2000 Valinhos, São Paulo CEP 13.278-181 rc.ipade@aesapar.com Coordenação Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE Artigo Original Recebido em: 26/12/2010 Avaliado em: 27/6/2011 Publicação: 10 de agosto de 2011 144 "Estou vendendo um realejo, quem vai levar?" o amor romântico e o amor patológico em questão Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 143-162 1. INTRODUÇÃO O erro é partir da idéia de que existem a linha e a agulha, a moça e o rapaz, e entre um e outro uma harmonia preestabelecida, primitiva, de tal maneira que se alguma dificuldade se manifesta, só pode ser por alguma desordem secundária, algum processo de defesa, algum acontecimento puramente acidental e contingente. Jaques Lacan1 Em todos os tempos, em todos os lugares e entre todos os povos, o amor se faz presente e comporta-se como a mais importante mola propulsora da vida. Suas manifestações estão presentes nas mais diversas narrativas históricas (mitos, filmes, cantigas, arte, literatura, poesia, pintura, teatro, religião etc.). Falar de amor também é o objetivo deste estudo e a Psicanálise é convocada na tentativa de explicar os mecanismos psíquicos presentes no indivíduo ao se direcionar a outro em busca de uma parceria amorosa, e mais; o que mantém esse movimento inquietante? Essa é a questão à qual este trabalho pretende, se não responder, produzir um espaço de reflexão. Está lançado o convite ao leitor para refletir sobre as facetas do amor tempestivamente discutidas. “Estou vendendo um realejo, quem vai levar?” 2 no contexto deste trabalho é um título, que, no sentido conotativo, faz alusão à disposição por renunciar às mensagens de sorte com promessas de felicidade; e coloca em questão o amor romântico e o amor patológico, sendo o primeiro só uma faceta imaginária da verdadeira função do amor, e o último a denúncia da atuação da pulsão e da vivência das primeiras relações do romance familiar. A opção por apresentar, nos primeiros capítulos, duas visadas do amor – a romântica e a pulsional – deu-se pela constatação de que os indivíduos procuraram, cada vez mais, auxílio na clínica psicológica para resolverem seus sofrimentos amorosos. O discurso que cada sujeito, sempre queixoso, traz é marcado pela insatisfação com o outro amado (a) na dinâmica amorosa. Neste discurso inicial, o que se destaca é que o sonho de viverem felizes para sempre está se dissolvendo. Algum distanciamento da ideologia romântica acontece quando um sujeito se encontra (ou desencontra?) com o outro. E, mais uma vez, o indivíduo se lança em outro amor na tentativa de se curar, porém, repetidas vezes, tudo acontece com as mesmas peculiaridades, o novo relacionamento se configura como uma série, uma réplica dos anteriores. Diante dessas questões, a proposta é refletir sobre quais ideais permeiam a experiência amorosa. 1 LACAN, Jaques, O Seminário, Livro 4 – A Relação de Objeto (1956-1956). Rio de Janeiro: JZE, 1995. 2 Trecho da música “Realejo” de Chico Buarque. Realejo: É uma espécie de instrumento musical portátil cujo fole é adicionado por um cilindro movido à manivela, geralmente tem um periquito que pega as cartas com uma mensagem de sorte para a pessoa que pediu a musica. Juliana Aguiar de Melo 145 Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 143-162 O primeiro capítulo lança foco ao tema do amor sob a faceta mais idealizada e esférica, no sentido de união perfeita de duas metades. Foi sublinhado o estatuto do amor romântico, traçando algumas considerações sobre a história deste conceito e suas ideologias, suas atribuições e expectativas herdadas culturalmente. Para este estudo, foram consideradas as contribuições de Zimmerman (2010) que articula os diferentes contextos e atribuições do amor; e Zalcberg (2007) no que concerne a manifestação do amor romântico herdado da civilização; foi considerada a idéia de Rougemont (1988) sobre a vivência do fenômeno amoroso no Ocidente e Oriente; e finalmente Jones (1989), Gay (1989) que contribuíram com a parte histórica do movimento psicanalítico, apontando que, desde o seu nascimento, esta teoria já dialogava diretamente com as questões do amor. A idéia central do capítulo é oferecer ao leitor uma reflexão sobre como o discurso romântico é afirmado universalmente como via de promessa para a felicidade sob um ideal esférico e almejado através do encontro absoluto com o outro, como nos de contos de fadas – “Era uma vez (....) e viveram felizes para sempre! FIM” A opção por apresentar esta visada do amor romântico se deu pelo fato de que é, justamente, sob estas premissas que o discurso do paciente está calcado, pois é na busca (e na insatisfação) deste ideal que ele se apresenta à análise. No segundo capítulo, a proposta é a reflexão das postulações da obra freudiana acerca do fenômenoamoroso abordando alguns pontos principais. Nesse caminho, a primeira discussão foi sobre a sexualidade humana como processo pelo qual se estabelece a escolha objetal ulterior. Esta reflexão foi norteada pelo texto de Freud (1905) intitulado “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade”. A segunda reflexão abordada foi sobre a relação amorosa vista como a tradução mais autêntica e real da crueza da pulsão. Essa discussão se acostou basicamente nos “Três Ensaios...” (1905), “Os Instintos e Suas Vicissitudes” Freud (1915). O terceiro ponto discutido no capítulo é sobre qual objeto está verdadeiramente implicado na escolha amorosa, e o embasamento teórico para esta reflexão foram os textos “Sobre o Narcisismo: Uma Introdução” Freud (1914), e “Contribuições à Psicologia do Amor” Freud (1910-1918). O que se objetivou recolher deste percurso é o que Freud tem a ensinar sobre as motivações para escolha amorosa, sobre a inquietante busca do sujeito por sua metade. Sobre a idéia central do segundo capítulo, vale observar que visou somente sublinhar uma outra faceta do amor depreendida por Freud, sem a intenção de desvendar e/ou sobrepor esta faceta àquela romântica descrita no primeiro capítulo. Estando circunscritas as articulações do amor romântico e como se dá a escolha amorosa para o sujeito freudiano, o terceiro capítulo teve por finalidade ressaltar a manutenção do amor em sua constituição subjetiva, abordando alguns aspectos da 146 "Estou vendendo um realejo, quem vai levar?" o amor romântico e o amor patológico em questão Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 143-162 compulsão à repetição na escolha do objeto de amor. Como ponto de partida, foram destacados os textos “Recordar, Repetir e Elaborar” FREUD (1914) e “Além do Princípio de Prazer” FREUD (1920). Para finalizar este estudo, o quarto capítulo destaca as considerações freudianas sobre a impossibilidade de articulação entre amor e felicidade. Estas reflexões foram norteadas pelo texto “O Mal-estar na Civilização” de Freud (1930). O capítulo traz como recurso ilustrativo do trabalho a discussão do filme: “Comer, Rezar, Amar” (2010). 2. OS VERSOS DO AMOR ROMÂNTICO: O ENCONTRO Tivesse eu os tecidos bordados do paraíso, Adornados com luz dourada e prateada, Os azuis, sombrios e escuros tecidos Da noite e da luz e da meia-luz, Eu os estenderia sob seus pés: Porém, sendo pobre, tenho apenas meus sonhos; Eu estendi meus sonhos sob seus pés; Pise suavemente porque você está pisando em meus sonhos. Willian Butler Yeats3 Desde a antiguidade, o amor é objeto de discussão. Este capítulo traz à baila uma proposta de reflexão sobre o discurso do amor romântico, que é afirmado universalmente como via de promessa para a felicidade sob um ideal esférico e almejado através do encontro absoluto com o outro, como acontecem nos de contos de fadas. Os conceitos e os breves contextos do amor aqui apresentados não têm como objetivo um estudo profundo e completo sobre a história do termo e do movimento do fenômeno amoroso. A opção por apresentar esta visada do amor romântico se deu pelo fato de que é justamente sob estas premissas que o discurso do paciente está calcado, pois é na busca (e na insatisfação) deste ideal que ele se apresenta. Na mitologia este ideal de amor se apresenta com o cortejo dos deuses e homens, enfocando-se, com bastante propriedade, as vicissitudes do amor, principalmente conjugal, em suas várias formas de acontecer e com um misto de sentimentos: ciúmes, inveja, ódio, culpa, disputa, ameaças, perversão, assim como se passa nas experiências amorosas no mundo todo (ZIMMERMAN, 2010). Na interpretação filosófica, o amor é entendido como o bem causado ao ser humano, é o entusiasmo que leva a alma à imortalidade. Para Platão, o amor autêntico é um élan, a aspiração ao belo e ao bom, liberta do sofrimento e do desejo e conduz a alma ao banquete divino (ZIMMERMAN, 2010). 3 Trecho da Poesia: “He Wishes For The Cloths Of Heaven”, de Willian Butler Yeats. Tradução de Ricardo Cabús. Título Traduzido: Ele deseja os tecidos do paraíso. Juliana Aguiar de Melo 147 Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 143-162 A visão cristã em relação ao amor reconhece que o amor “puro” e a luxúria estão muito próximos. O que se prega é a dissociação entre o amor espiritual e amor carnal, sendo que este último é associado ao pecado. Em toda a história da religião, a igreja tomou cautelas rígidas, a fim de evitar que o homem se entregue à luxúria e à sensualidade, e tenta disseminar a “purificação” afirmando que o sexo – ou amor carnal - tem finalidade estrita de reprodução. (ZIMMERMAN, 2010). Com uma influência atuante, as religiões tentam exercer esta função reguladora da sociedade, dos modos rústicos e agressivos do homem, fazendo apologia ao amor virtuoso, altruísta, e solidário. (ZALCKBERG 2007). Ainda hoje, no Oriente, o amor não é caracterizado como um pensamento autônomo e é sempre relacionado a uma tradição religiosa, derivado de uma ou outra doutrina. Ao contrário disso, na civilização do Ocidente, o amor rompe com as práticas religiosas e se associa ao erotismo, tomando as vias mais filosóficas. Aqui nasce o amor romântico tal como é concebido hoje (ROUGEMONT, 1988). O filósofo Rougemont (1988) expõe que o conceito de amor romântico foi inventado e herdado culturalmente; e partindo desta concepção defende que, ao passo em que o indivíduo acredita neste fenômeno amoroso como um conto de fadas, ele sofre pela disparidade entre este ideal e o real. E o insucesso do casamento e da união contemporânea homem-mulher é proveniente desta busca idealizada por um amor romântico como destino para felicidade. Freud (1910) coloca à parte as criações intelectuais, emocionais e estéticas sobre o tema do amor por acreditar que essa “licença poética” não reproduz a essência do amor tal como ele é, apesar de ser um tema enaltecido pelos poetas e que encanta a humanidade há milênios. Então, a Psicanálise é convocada para tentar explicar cientificamente os mecanismos psíquicos em jogo na vivência do amor. O surgimento da psicanálise está diretamente relacionado com a questão amorosa e todo o desenvolvimento da teoria freudiana tem em seu cerne o estatuto do amor em sua face mais pulsante. Freud durante uma sessão de quarta-feira em 30 de janeiro de 1907 diz: “Nossos tratamentos, são tratamentos por amor”, e, durante todo o desenvolvimento da teoria, ele conferiu ao amor um caráter central na experiência analítica, desde os primórdios, quando em 1880 – 1882, Josef Breuer – um médico aliado e amigo de Freud – trata uma paciente histérica, Anna O. (Bertha Pappenheim). Breuer acreditava que o caso de Anna era uma neurose de histeria, e ela, ao encenar seus sintomas histéricos através de seu amor transferencial por Breuer (explicado mais adiante) “engravida” psicologicamente e o 148 "Estou vendendo um realejo, quem vai levar?" o amor romântico e o amor patológico em questão Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 143-162 intimida à assumir a paternidade de sua criança. Assustado com as atitudes de Anna, cujo sentido sexual ele não reconhecia e ignorou, Breuer abandona sua paciente e refugia-se na Itália para uma segunda lua de mel com sua esposa, quem de fato engravida. Chega-se a este ponto histórico, que desvia os rumos de Breuer e interrompe a experiência de tratamento, que Anna O. nomeou de talking cure - a cura pela palavra - que ainda não é a idéia de inconsciente e associação livre, mas apontava que a via já estava aberta. (GAY, 1989) Éa partir deste encontro de um homem e uma mulher – Josef Breuer e Anna O. – que Freud enveredará e, a primeira forma de amor identificado por ele é o amor da histérica pelo pai, pois é a seu pai que Anna rende suas mais fiéis homenagens, inclusive adoecendo da mesma doença mortal dele, por amor (ZALCBERG, 2007). Até aqui, o amor se fez presente e a Psicanálise nasce, evidentemente, a partir de uma situação amorosa. O conceito de amor a partir da teoria psicanalítica instaura um abismo entre os investimentos (pulsionais) amorosos ligados aos objetos e o conceito de amor romântico difundido culturalmente. Que lugar ocupará então o movimento romântico e sua articulação do fenômeno amoroso para Freud? 3. O REVERSO DO AMOR ROMÂNTICO: O DESENCONTRO João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história. Carlos Drummond de Andrade4 A sexualidade humana que foi proposta por Freud (1905) pouco tem a ver com reprodução. Ela é, na verdade, o viés por onde o amor se delineia. O que a psicanálise chamou de sexualidade nunca esteve ligado à idéia de uma união dos dois sexos no intuito de produção prazer dos órgãos genitais. Para haver este encontro é necessário que os indivíduos sejam levados a isso por uma “vontade”, uma “necessidade”; e requer uma maturação. E é justamente esta maturação, ou adequação do indivíduo, que faz com que a sexualidade humana não se reduza às finalidades de reprodução, ao contrário, ela é permeada por paixões, sensações, fantasias, malícias, angústias e culpas (MENEZES, 2010). Quando o conceito de sexualidade era pensado na sociedade como forma de garantir a sobrevivência do grupo, dentro de limites estreitos e com finalidade reprodutiva, Freud publica em Viena “Os Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade” em 1905, e fala da sexualidade como a própria essência da atividade humana, estendendo este 4 Poema de Carlos Drummond de Andrade, intitulado “Quadrilha”, de 1930. Juliana Aguiar de Melo 149 Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 143-162 conceito a uma noção psíquica universal e suspende o fundamento anatômico e genital (ROUDINESCO, 1998). O parágrafo que abre o texto de Freud (1905) sobre a sexualidade já é revelador, pois trata do estatuto do objeto ligado à pulsão 5 “chamaremos a pessoa de quem precede a atração sexual de objeto sexual e o ato que a pulsão conduz, de objetivo sexual”. (FREUD, 1905 p. 136) Na obra freudiana, o campo instintivo é caracterizado definitivamente como distinto do pulsional. O que movimenta o animal é a pauta, é o instinto, não há subjetividade. O ser humano não funciona de forma natural, instintiva, ele é desnaturalizado, pois há subjetividade, há fala (palavra), o que move é a pulsão (RUSKAYA MAIA, 2010) 6. A pulsão (Trieb), na concepção freudiana, evoca o sentido de impulsão, enfatizando-se mais a pressão irrefreável do que a meta final em si; é uma carga de excitação que o organismo necessita descarregar. Portanto, “um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, [...] representante psíquico dos estímulos que se originam de dentro do organismo e alcançam à mente” (FREUD, 1915a, p.142). A partir da introdução destes termos, que são inéditos, Freud (1905) discorre catalogando as Aberrações Sexuais - fato que causa impacto em seus leitores e principalmente aos médicos, que na época, consideravam em geral a homossexualidade (inversão), a pedofilia (imaturos sexuais) e a zoofilia (animais) como expressões de degenerescência (FREUD, 1905, p. 162). Ao descrever os possíveis desvios em relação ao objeto sexual, Freud (1905) tem a intenção de fornecer a idéia de que a sexualidade é indeterminada e adquirida, ao contrário do que se pensava, e exige que cada indivíduo encontre sua solução levando em conta a necessidade de se adequar às normas e aos valores da sociedade. Os insucessos desta adequação existem, e formam os sofrimentos neuróticos e seus sintomas, inibições, compulsões, inversões, angústias (FREUD, 1905). Para a organização subjetiva da sexualidade é necessário que a criança realize um caminho que passa pela satisfação auto-erótica à primazia dos órgãos genitais que é pertinente à fase da puberdade. Esta é a idéia central da segunda parte dos “Três Ensaios...” onde Freud (1905) sustenta que a sexualidade humana existe desde a infância, e não apenas a partir da puberdade. As lembranças precoces da infância não ficam retidas na memória, e estão dispostas de forma ininteligível, são fragmentadas e esquecidas por volta do sexto ou 5 O conceito de pulsão foi empregado por Freud desde 1905, e é definido como a carga energética que se encontra na origem da atividade motora do organismo e do funcionamento psíquico inconsciente do homem (ROUDINESCO, 1998). 150 "Estou vendendo um realejo, quem vai levar?" o amor romântico e o amor patológico em questão Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 143-162 oitavo ano de idade. O período anterior a esta amnésia infantil – que ocorre entre o sexto ou oitavo ano de vida – é justamente o momento em que a criança está mais suscetível diante de impressões, estas que são esquecidas, mas deixam traços profundos e tem efeitos determinantes no desenvolvimento subseqüente, pois o adulto manifesta estas impressões de maneira vívida. Durante a infância, a sexualidade (não restrita a sexualidade genital) é exuberante, principalmente, na relação com os pais e com o próprio corpo. Esta primeira etapa do desenvolvimento sexual acontece de modo perverso-polimorfo (não se trata de estrutura perversa), ou seja, a busca da satisfação pulsional infantil é contingente e seus alvos são variados, uma vez que os obstáculos à estas pulsões ainda não foram construídos. As pulsões emanam de zonas erógenas por estágios que primeiramente são pré-genital – oral e anal – as duas fases ressaltadas por Freud (1905) no texto dos “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade”. Cada fase da sexualidade infantil implica um modo particular de relação com o objeto, sendo que na fase oral tudo gira em torno da boca. No estágio posterior, na fase anal, o ânus é erogeneizado (FREUD, 1905). Algum tempo depois Freud (1923) percebe as limitações desta primeira tópica para explicar principalmente a relação edipiana que se constitui no romance familiar. Ele ressalta uma outra fase componente ao desenvolvimento da sexualidade onde a criança começa a perceber as diferenças genitais, ele denomina fase fálica – aqui a primazia é do falo. O que ocorre nesse estágio é uma antítese entre possuir um órgão genital masculino e ser castrado. Somente após o desenvolvimento sexual ter atingido esta etapa, caracteriza-se masculino e feminino, já na fase da puberdade. No percurso da sexualidade infantil, há uma interrupção por um período de latência, não se sabe ao certo a periodicidade deste processo que é sustentado por peculiaridades. É durante este período de latência que a direção tomada pela pulsão sexual é barrada, pois se constituem a vergonha, a repugnância, a moralidade e as leis culturais do tabu ao incesto. Estas forças psíquicas exigem que a criança renuncie tanto à sexualidade auto-erótica quanto à atração edipiana pelos pais 7 (FREUD, 1905, p. 181). A primeira fase [da evolução de sexualidade] geralmente termina quando a criança está comcinco anos de idade, ela descobriu o primeiro objeto para seu o seu amor em um ou outro dos pais, e todos os seus instintos [pulsões] sexuais, com exigência da satisfação, unificaram-se nesse objeto. A repressão que então se estabelece, compele-a a renunciar à 6 Estas contribuições foram extraídas do Café Filosófico, Tema: Sexualidade: O que Freud dizia sobre isso?, proferido pela professora Msc. Ruskaya Rodrigues Maia e Leandro Borges. Anápolis, 27 de novembro de 2010. 7 A primeira vez que Freud faz uma indicação explícita do complexo de Édipo é na carta à Fliess, nº 71 de 15 de outubro de 1897 (FREUD, 1897, p. 283). A expressão “Complexo de Édipo” só aparece como conceito psicanalítico em 1910, (FREUD, 1910). As contribuições cronológicas, sobre o breve histórico deste conceito, tem como fonte “Édipo” Psicanálise Passo-a- Passo 89 da autora Teresinha Costa, ano 2010. Editora Zahar. Juliana Aguiar de Melo 151 Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 143-162 maior parte desses objetivos sexuais infantis e deixar atrás de si uma profunda modificação em sua relação com os pais. (...) os instintos [pulsões] são descritos como inibidos em seu objetivo. (FREUD, 1921, p. 141) É importante aqui abrir um parágrafo para articular brevemente às teorias freudianas a questão do amor evidenciando a marca de defasagem que já é estrutural de cada sujeito na relação edipiana. A construção do amor é subjetiva, desde sua vivência no romance familiar é marcada por diferenças. A menina, uma vez introduzida no Édipo, já é submetida à desidentificação fálica, e terá que se haver para sempre com o “não ter”, com a falta, a subtração. Ela não se identifica virilmente com o pai e tampouco conta com o suporte imaginário do corpo que o menino possui. A condição do menino na resolução do Édipo é bem diferente, pois ele acredita que tem algo a oferecer (ZACLBERG, 2007). A insatisfação de cada indivíduo é estrutural, não há objeto que sacia, e é na condição de desamparo que se instaura a dependência, desde a mais tenra idade de cada sujeito8. Retomando o percurso da sexualidade infantil, ao chegar à fase da puberdade se estabelecem os processos para encontrar o novo objeto sexual, para o qual foram feitas preparações desde a primeira infância. A escolha do objeto, que traz na bagagem as pulsões em busca da satisfação, é uma tentativa de restaurar o que foi perdido pra sempre, uma tentativa de recuperação do que lhe foi subtraído. A busca do reencontro com este objeto perdido é incessante e inquietante, e é o que impulsiona as relações amorosas, e estas funcionam como encobridoras da vivência de cada indivíduo de forma singular; em outras palavras, o amor segue o destino da sexualidade e é o que há de mais autêntico e real da crueza da pulsão. A partir das observações sobre a existência de uma metade que fora perdida para sempre, Freud acata as evidências sobre um descompasso, uma defasagem irrecuperável entre o sujeito e o seu objeto que possa vir a lhe corresponder nos desfiladeiros da pulsão, porém na incompletude. Estas elaborações da psicanálise suspendem a ilusão de que o sujeito pode satisfazer-se com seus objetos de forma retilínea e direta, e completa. A fim de recuperar este estado anterior, ou seja, a integridade do “eu” o sujeito se movimenta. Em (1914a) Freud publica “Sobre o Narcisismo: Uma Introdução”, afirmando que o eu é objeto da pulsão sexual, e o amor é pensado como um meio pelo qual o sujeito busca se reencontrar com seu narcisismo, seu eu ideal. Fundamentam-se as escolhas amorosas de tipo narcísica, e anaclítica. Porém, o que de fato se evidencia é que, mesmo na forma anaclítica de amar, o que mais se manifesta é o desejo do sujeito de recuperar o amor que teve de seus cuidadores que o elevava a majestade. 8 Estas contribuições foram extraídas do Café Filosófico, Amor para a Psicanálise, proferido pela professora Msc. Ruskaya Rodrigues Maia (Anápolis, Setembro 2010). 152 "Estou vendendo um realejo, quem vai levar?" o amor romântico e o amor patológico em questão Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 143-162 As crianças amam em primeiro lugar a si próprias, e apenas mais tarde é que aprendem a amar os outros e a sacrificar algo de seu eu aos outros. As próprias pessoas a quem uma criança parece amar desde o início, no começo são amadas pela criança porque esta necessita delas e não pode dispensá-las – por motivos egoístas, mais uma vez. (FREUD, 1914a, p. 229) Nas duas formas de escolha objetal o amor é apresentado muito próximo do eu ideal, é o amor do eu que conta, o que acontece de fato é o reencontro com o ideal egóico. Isto é “as pessoas se esforçam por atingir como sendo sua felicidade” (FREUD, 1914a, p.118). Estar amando é, portanto, uma posição voltada para o “eu”, pois ela implica na demanda de ser amado. Em 1921, Freud reitera que no ato da escolha amorosa de fato o objeto é sucedâneo para algum inatingido ideal do ego. Ama-se na tentativa de conseguir perfeição para o próprio ego, como meio de satisfazer o narcisismo. Em “Os Instintos e Suas Vicissitudes” Freud (1915a) postula o objeto da pulsão como indiferente ou intercambiável para a satisfação: O objeto (...) é o que há de mais variável numa pulsão e, originalmente, não está ligado à ele, só lhe sendo destinado por ser peculiarmente adequado a tornar possível a satisfação. O objeto não é necessariamente algo estranho: poderá igualmente ser uma parte do corpo do indivíduo. E pode ser modificado quantas vezes for necessário... (FREUD, 1915a, p. 143) Em todas as postulações descritas neste capítulo a partir das observações de Freud sobre as escolhas objetais, nota-se que a movimentação do indivíduo é sempre uma tentativa de reencontrar um objeto perdido. Sobre este movimento do sujeito guiado por este objetivo de reencontro, é pertinente examinar as considerações freudianas em “Contribuições à Psicologia do Amor” (1910-1918) que expressam, sobretudo, a divisão subjetiva e estrutural do sujeito que é oriunda da castração, vivência que tende a ser encoberta, obliterada pelas representações amorosas. O que fica evidenciado no primeiro artigo das Contribuições à Psicologia do Amor, intitulado como “Um tipo Especial de Escolha de Objeto Feita pelos Homens” (1910) é o amor articulado ao reencontro sempre falho, e repetido, é a tentativa de retorno ao mais primitivo objeto já perdido: a mãe. “... [as escolhas] derivam da fixação infantil de seus sentimentos de ternura pela mãe e representam uma das conseqüências desta fixação (FREUD, 1910, p.152). Neste texto Freud (1910) diz que há tipos definidos de escolha de objeto, que são estabelecidos por duas pré-condições, que a mulher escolhida pelo homem seja comprometida e que seja de má reputação. A primeira destas pré-condições, estabelece Juliana Aguiar de Melo 153 Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 143-162 que necessariamente deva existir “uma terceira pessoa, prejudicada”9. A mulher escolhida nunca é livre e desimpedida, é sempre aquela sobre a qual “outro homem possa reivindicar direitos de posse, como marido, noivo, ou amigo”. A segunda pré-condição, Freud salienta que talvez seja menos freqüente, mas digna de nota; o que se estabelece é um interesse por mulheres que sejam, de alguma forma, “sexualmente de má reputação, cuja fidelidade e integridade estejam expostas a alguma dúvida” (p. 150). Freud designa este tipo de escolha como amor à prostituta. Sobre a má reputação da mulher escolhida, evoca a infidelidade da mãe, que concedeua relação sexual ao pai, e não ao filho. O segundo artigo das Contribuições à Psicologia do Amor intitulado “Sobre a Tendência Universal à Depreciação na Esfera do Amor” Freud (1912a) demonstra uma disparidade existente entre amor e erotismo: Toda a esfera do amor, nessas pessoas, permanece dividida em duas direções personificadas na arte do amar, tanto sagrada quanto profana. Quando amam, não desejam, e quando desejam, não podem amar. Procuram objetos que não precisem amar, de modo a manter sua sensualidade afastada dos objetos que amam. (FREUD, 1912a, p.166) Freud (1912a) nomeia “impotência psíquica” a falha ao tentar combinar afetividade (corrente mais antiga) e sensualidade. Esta falha é determinada por uma inibição da libido antes de seu completo desenvolvimento. Este é também um dos motivos que leva o sujeito à análise (FREUD, 1910, p. 164-166). A impossibilidade de articulação destas duas correntes, já designa a ruptura irrecuperável, pois não há possibilidade de um encontro perfeito na dinâmica amorosa. Diante do exposto, consuma-se a condição de depreciação do objeto, para que o sujeito possa se relacionar sexualmente com o que idealiza. O depreciado é sensualizado, enquanto o idealizado é amado. Tornam-se claros os motivos dos meninos que degradam a mãe ao nível de prostituta, na tentativa de “transpor a distância entre as duas correntes amorosas, pelo menos em fantasia e, pela depreciação da mãe, adquiri-la como objeto de sensualidade” (FREUD, 1912a, p.167). “Para intensificar a libido é necessário obstáculos” (FREUD, 1918, p.171). No texto “O Tabu da Virgindade”, terceiro artigo das Contribuições à Psicologia do Amor, Freud (1918) sacramentou a idéia da importância da proibição. A tensão que existe entre o proibido e a relação sexual é fonte geradora de desejo. (FREUD, 1912a, p. 171) Ao amor é instituído algum valor quando há um empecilho. Em épocas primitivas, Freud (1912) compara, onde não existiam dificuldades para a consolidação da relação sexual, o homem não gozava o amor, “o homem sempre ergueu outros, [obstáculos] convencionais, a fim 9 Para explicar a primeira precondição para o amor, Freud apela para o Complexo de Édipo (primeira vez que o termo é utilizado como conceito) uma vez que o terceiro injuriado refere-se ao pai. 154 "Estou vendendo um realejo, quem vai levar?" o amor romântico e o amor patológico em questão Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 143-162 de poder gozar o amor” (FREUD, 1912a, p. 170). O desejo ao objeto se articula, e se intensifica com a proibição, a restrição, a frustração. O caráter da incompletude é conferido à satisfação da pulsão, pois o objeto final da pulsão nunca mais será o original; ele se representa por objetos substitutos, fato que explica a inconstância das escolhas. Há um sombrio prognóstico ao relacionar amor e felicidade. “é absolutamente impossível harmonizar os clamores de nossas pulsões sexuais com as exigências da civilização” (FREUD, 1912ª, p. 172). No amor está constituída a essência do desamparo, da falta, assim o sujeito emprenha-se em pedir sempre mais do outro. E o que se apresenta, de uma forma acentuada nos sujeitos queixosos que chegam à clínica, é o sofrimento advindo do desencontro amoroso, da insatisfação das demandas. 4. O REENCONTRO O que tu tens e queres saber (porque te dói), não tem nome. Só tem (mas vazio) o lugar que abriu em tua vida a sua própria falta. A dor te dói pelo avesso, perdida nos teus escuros. É como alguém que come não o pão, mas a fome. Sofres de não saber o que não tens e falta, num lugar que nem sabes, mas que é na tua vida, quem sabe é em teu amor. O que tu tens, não tens. Thiago de Mello A teoria da repetição para a psicanálise freudiana é marcada por dois momentos onde o termo aparece como conceito, precisamente, em “Recordar, Repetir e Elaborar” (1914b) e “Além do Princípio de Prazer” (1920) obra em que o conceito de repetição é ampliado. Porém, o termo surge em diversas ocasiões durante a obra de Freud, e paralelamente, em “Projeto para uma Psicologia Científica” (1895). Neste texto será esmiuçada a segunda formulação teórica, em que o conceito de repetição é ampliado10. Freud (1920) postula no texto “Além do Princípio do Prazer”, a existência de algo a mais que intenciona o programa do prazer, e acrescenta alguns elementos essenciais à compulsão, que é entendida neste momento, como expressão da pulsão. A experiência clínica psicanalítica aponta que nem sempre o aparelho psíquico é regido pelo princípio do prazer, ao contrário, despreza - o. Freud reformula que: [...] estritamente falando, é incorreto falar na dominância do principio de prazer sobre o curso dos processos mentais. Se tal dominância existisse, a imensa maioria de nossos processos mentais teria de ser acompanhada pelo prazer11 ou conduzir a ele, ao passo que a experiência geral contradiz completamente uma conclusão desse tipo. (FREUD, 1920, p. 20) 10 O surgimento da segunda teoria das pulsões, que baseia-se num conceito de pulsão ampliado, não implica uma rejeição ou abandono da teoria anterior. 11 Prazer se caracteriza por uma diminuição da quantidade de energia que circula pelo psiquismo. Juliana Aguiar de Melo 155 Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 143-162 O princípio de prazer é uma tendência e não uma dominância; é limitado em suas funções, e a compulsão à repetição é poderosa e sobrepuja esta tendência do princípio do prazer. O que se constata é que as experiências ligadas ao desprazer12 e sofrimento também são repetidas, e fazem com que o sujeito se reencontre com suas marcas vivenciais (FREUD, 1920). Para esclarecer sobre a repetição reformulada por Freud é necessário evidenciar a função que corresponde a esta compulsão. Sugere que esta dinâmica é de ordem pulsional. Freud parte de uma redefinição de pulsão que é não mais entendida somente como um agente impelidor de mudança e desenvolvimento. É necessário reconhecer uma expressão de natureza conservadora das pulsões. Sob este prisma, as pulsões repetem um caminho que a levam à morte, um estado inanimado inicial da vida, inorgânico, ao qual elas desejam apenas voltar: “O objetivo de toda vida é a morte”. (FREUD, 1920 p. 56) Esse caráter regressivo das pulsões foi observado por Freud e articulado diretamente com o fenômeno de compulsão à repetição que age na tentativa de atualizar, superar elaborar o que foi traumático, recalcado. O inconsciente freudiano é movido pela compulsão à repetição, em que a pulsão faz uma trajetória regressiva a formas anteriores de satisfação. Deste modo, essas formas primitivas de satisfação — nunca totalmente abandonadas — deixam traços mnêmicos que funcionariam como uma via de retorno. Para Freud, há um tempo que passa, que se dirige para o futuro, e um outro que se dirige para o passado em forma de repetição. (COSTA, 2010, p. 2) A partir da constatação da compulsão à repetição, Freud (1920) sugere a existência desta pulsão que, ao contrário daquela que visa preservar toda substância viva, busca dissolvê-las. A pulsão de morte opera no sentido da destruição, ao lado da pulsão de vida, e não se manifestam isoladas uma da outra. Sonia Vicente (2007) em seu artigo intitulado “Vida e Morte na Psicanálise”, relembra que Freud recorreu ao mito grego “O Banquete” de Platão e, chamou a pulsão de vida de Eros, que vive em tensão com o seu oposto, Tânatos, ou pulsão de morte. A dinâmica de funcionamento pulsional é dualista, ao lado de Eros há Tânatos, ou seja, o sujeito freudiano vive sob estasforças, onde a primeira tem função de unir o que foi separado, contrariando os aspectos disjuntivos da pulsão de morte. Esta última tem a função de conservar, buscar o retorno ao inanimado, a um estado anterior à própria vida. Eros é amor e vida, e Tânatos ódio e morte (VICENTE, 2007). A partir destas observações notam-se os fracassos e limites do princípio do prazer diante da compulsão à repetição aliado à pulsão de morte. A atividade do aparelho psíquico não se constitui somente em alcançar o prazer e evitar o desprazer. O amor se 12 Desprazer definido como o aumento da quantidade de excitação. 156 "Estou vendendo um realejo, quem vai levar?" o amor romântico e o amor patológico em questão Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 143-162 articula de modo específico nesta dinâmica, onde o sujeito se serve do amor mesmo sendo fonte de desconforto, desprazer e infelicidade. A pulsão de morte, silenciosa – que opera no sentido da destruição – que está contida no amor, define-se por esta teimosia (repetição) revelada nos movimentos do sujeito ao se direcionar de um a outro, e mais outro amor, pelos desfiladeiros da pulsão. E o que ele encontra, na verdade reencontra, é a repetição na tentativa de promover o encontro absoluto com o outro, porém há um impedimento decisivo, e o que se consuma de fato, sempre e novamente, é a falta constitutiva do sujeito. 5. VIVERAM FELIZES PARA SEMPRE? Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado, pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões é que se ama verdadeiramente. Clarice Lispector13 Será possível amar e ser feliz? Em “O mal-estar na civilização”, que a princípio fora intitulado como “A Infelicidade da Cultura”, Freud (1930) postula que o ser humano tem como propósito e intenção de vida obter felicidade e feliz permanecer, evitando sofrimento e desprazer, e experimentando intensos sentimentos de prazer. Contudo Freud destaca as origens do mal-estar; são elas: o corpo (que está fadado à decadência e dissolução); o mundo externo (que pode voltar-se contra o sujeito “com forças de destruição esmagadoras e impiedosas” (p. 95); e os relacionamentos com os outros homens, uma vez que ele engloba os investimentos amorosos feitos pelo sujeito). Para Freud (1930) o desprazer e o sofrimento definem as relações humanas. Heloisa Caldas (2008), em seu artigo “O Amor Nosso de Cada Dia”, comenta os ensinamentos freudianos não se surpreendendo com o fato de que as pessoas estejam mais especializadas em evitar o sofrimento (inclusive substituindo satisfações), do que esperar a felicidade; quanto a esta ultima o sujeito é amador. Pode-se interpretar que o amor não atesta a felicidade; cita Freud: Nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão desamparadamente infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor. Isto, porém, não liquida com a técnica de viver baseada no valor do amor como um meio de obter felicidade. (FREUD, 1930, p. 101) Voltando ao título deste capítulo, considerando os ensinamentos de Freud e da clínica psicanalítica, evidencia-se, sobretudo, que a parceria amorosa traz em sua bagagem a crueza das pulsões, e estas sustentam o indivíduo no desamparo. Logo, o amor não atesta a felicidade! Cabe novamente a citação de Freud: “é absolutamente impossível 13 Escrito por Clarisse Lispector. Título: Perdoando Deus. Juliana Aguiar de Melo 157 Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 143-162 harmonizar os clamores de nossas pulsões sexuais com as exigências da civilização” (FREUD, 1912a, p. 172). O que se evidencia de uma forma acentuada é o sofrimento advindo do desencontro amoroso diante das demandas particulares e singulares de cada um, pois o amor não sana a falta irrecuperável do desfecho edipiano. Importante destacar que a relação amorosa é mediada pelo sintoma de cada um, fato que rege a impossibilidade de um encontro absoluto entre os amantes. Para finalizar este capítulo, é justo que se apresente um recurso ilustrativo para as considerações deste trabalho; a opção é o filme Comer Rezar Amar 14. O próprio título do filme já é passível de discussão. Os três verbos são apresentados em voz ativa, como sugestão para que a personagem se movimente em busca da satisfação, de preencher um vazio. Elizabeth (Júlia Roberts) levanta um questionamento já nas primeiras cenas do filme. Lembra que Déborah, sua amiga psicóloga fora convidada a dar aconselhamento psicológico aos refugiados cambojanos que haviam acabado de chegar de barco à cidade. Diante desta missão ela se amedronta, pois os refugiados cambojanos viveram todo tipo de sofrimento: genocídios, fome, testemunharam a morte de seus queridos. A questão era: O que fazer de efetivo para ajudar esta gente? Deborah se surpreende com a questão que os cambojanos queriam desabafar: O Amor. Elizabeth (Liz) também está nesta jornada em busca de amar, de falar sobre o seu relacionamento. Vive em Nova York com seu esposo e percebe seu casamento caminhando rapidamente para o fim diante de uma questão: ela não se vê na relação. O casal não compartilha os mesmos projetos e desejos. Há um rompimento de um ideal de completude. Há um desencontro! Logo após o divórcio Liz assiste no teatro a uma peça de sua própria autoria merece uma ênfase e até um recorte da fala da atriz endereçada ao seu amante: - Mulher: “Desapareço na pessoa que amo. Sou o membro permeável. Se te amo você pode ter tudo, meu dinheiro, meu tempo, meu corpo, minha fala. Assumo suas dívidas, e projeto várias qualidades que você nunca imaginou ter. Te darei tudo isso e mais, até eu ficar tão esgotada que só poderei me recuperar me apaixonando por outro”. Consumida pelo desamparo que ensandece sua existência, Liz lança-se novamente noutro amor para se recuperar, suturar se; apaixona-se pelo ator que encena no teatro a sua fantasia de ideal de amor. Esta cena ilustra bem o que Freud em 1930 14 Titulo original: (Eat Pray Love), lançamento: 2010 (EUA), direção: Ryan Murphy. Atriz: Julia Roberts (Elizabeth), duração: 133 min, gênero: Drama 158 "Estou vendendo um realejo, quem vai levar?" o amor romântico e o amor patológico em questão Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 143-162 propõe com a questão da felicidade episódica, e a incapacidade da infelicidade para quitar a satisfação pulsional do sujeito. Liz reflete sobre seu novo amor fazendo uma analogia, pois sente que mergulhou rapidamente nos braços de seu amado, assim como um personagem de desenho animado pula de um trampolim e mergulha em um copo de água, submergindo totalmente. Afinal, amar é desaparecer na pessoa que se ama! O que insiste em vir à tona é a incompletude, e mais uma vez Liz não se vê na relação com seu novo objeto de amor, percebe que não pertence mais àquela nova relação. O amor também é episódico, mal Liz está no amor, e ela não está mais. O desejo é buscar sempre e novamente por algo que ela não consegue nem ao menos nomear e identificar, algo que lhe traga o sentido, posto que o amor tirou-lhe os sentidos inclusive o apetite, o prazer em comer. Liz decide seguir outra necessidade imperativa: comer. Talvez na tentativa de sanar o que não se sana com o amor, o vazio estrutural. Desiste do amor que representa um bilhete premiado para a felicidade e decide comprar outros três bilhetes para “fugir” do mal-estar do amor. O primeiro bilheteà leva para Itália, Liz quer aprender uma outra língua, e comer com prazer. O passeio em Roma traz outra analogia. Liz vai ao palácio que fora construído pelo Imperador Octávio Augusto com a finalidade de guardar suas coisas. Com a chegada dos bárbaros, o que para O Grande Augusto parecia um mundo, transformara-se em ruínas, e Roma cresceu em volta destes escombros como uma ferida preciosa, um antigo amor que não se pode esquecer. Tudo foi destruído, queimado, adaptado, mas continua sendo o palácio de Octávio Augusto. O medo que consome Liz é justamente a possibilidade de suas construções se tornarem ruínas, e ao pensar neste seu medo se tranqüiliza e entende que de fato as ruínas são um presente, o caminho para a transformação. Em O mal-estar na civilização, Freud (1930) explica que o inconsciente é atemporal e compara a vida mental com a cidade de Roma, a cidade eterna. Onde o desenvolvimento da grande metrópole se mescla com as ruínas do passado. Na vida psíquica nada é destruído com o tempo e as primeiras fases do desenvolvimento, ou seja, a sexualidade, mostram-se intactas, e “o elemento primitivo se mostra preservado ao lado da versão transformada que dele surgiu” (FREUD, 1930, p. 77). Retomando a trama, Liz pega o seu segundo bilhete e vai à Índia, em busca de sentido, e se encoraja para atravessar as suas ruínas, seguir um outra sugestão: rezar. No filme o sentido de rezar não está ligado a uma religião/religiosidade, e sim à busca pela devoção à alguém. Juliana Aguiar de Melo 159 Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 143-162 Já no início de sua estadia um morador da ashram a adverte que se a intenção é buscar paz, “para chegar ao castelo é necessário nadar pelo fosso”. Liz percebe que a passagem pela Itália lhe trouxe felicidade e prazeres, porém temporários; chega à Índia e continua a se sentir desconexa, e além de notar que não superou o fim de seu relacionamento, entende que mesmo na ausência física de seu objeto de amor, os sentimentos permanecem. Liz sente-se em luto. Lembra que a música que tocou na cerimônia de seu casamento não era a canção que eles esperavam; ela ficou estática enquanto seu amado aceitou a dança que lhes foi proposta. Liz revive esta cena durante as tentativas de elaborações, aceita que pensar em seu relacionamento é pensar em si. Liz entende a necessidade de elaborar o luto de seu primeiro amor dando um outro desfecho para sua história, perdoando-se. Assim, sente-se pronta para usar o seu terceiro bilhete rumo a Bali, que é considerado o centro do universo, está em busca do equilíbrio. Nesta caminhada Liz encontra um novo objeto de amor. No filme as sugestões: comer, rezar e amar não se articulam, não acontece concomitantemente. Quando o novo amado de Liz aparece é para tirá-la de sua estrada, de seu rumo. E ao ser convocada a assumir um relacionamento ela se recusa, tem medo das ruínas, do amor, e do desequilíbrio. Hipoteticamente, amar para Liz significa sair do equilíbrio que ela tanto buscou rezando. Ou Liz sacia sua fome física, ou se enche de respostas, ou ama renunciando assim o seu equilíbrio. A ilustração mais pertinente do filme para este trabalho é sobre o movimento incessante do sujeito ao amor como tentativa de reparar o vazio estrutural. É evidente que apesar de o amor causar desprazer, é também ele que vem ocupar o lugar da falha de satisfação. 6. SOBROU DESSE NOSSO DESENCONTRO UM CONTO DE AMOR SEM PONTO FINAL15 Desejo que você tenha a quem amar, e quando estiver bem cansado, ainda exista amor pra recomeçar. Frejat Retomando o percurso deste trabalho sobre os discursos do amor, não há intenção de sobrepor a ideologia do amor freudiano àquela romântica; a proposta é de reflexões. É sabido que o amor romântico permeia de alguma forma as fantasias de cada indivíduo. Esta ideologia se faz presente no discurso do paciente, e num primeiro momento é o que dá andamento à fala. E quando o sujeito se põe a falar, os furos aparecem. 15 Trecho da música “Desencontro” de Chico Buarque. 160 "Estou vendendo um realejo, quem vai levar?" o amor romântico e o amor patológico em questão Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 143-162 Ainda em se tratando dos objetivos deste estudo, é pertinente expor que uma das metas seria conceituar amor patológico como uma idéia universal, se possível, com todo um critério de avaliação, diagnóstico, e prognóstico; para tanto seria necessário primeiramente esmiuçar o conceito de amor “normal”. Contudo, não foi possível dar este desfecho a nenhuma das duas condições; não pela via da Psicanálise. Surgiu uma nova questão: onde reside a patologia que se evidencia na relação amorosa, se não é no amor? Com base nos ensinamentos de Freud que foram propostos neste estudo, sabe-se que a experiência amorosa traz os protótipos dos primeiros amores, “quando amamos, não fazemos mais do que repetir o reencontro com o objeto fundamental, objeto anterior à barreira do incesto, ora substituído por outro” (FREUD, 1910, p.18). Então o sujeito “adoece” singularmente de seu romance familiar, de suas primeiras relações e renúncias. É no romance familiar que está o drama. O que se evidenciou no percurso dos estudos sobre a sexualidade é que desde o início da vida o ser humano se encontra num estado de completa dependência de outro: a mãe, que se torna fundamental e detentora de poder (ela decreta, sentencia, fala). Desta época ficam marcas que o sujeito revive ao longo da vida, incluindo as primeiras angústias. De fato, o homem e a mulher se inscrevem de maneira diferente e indelével no amor, pois desde a vivência da situação edipiana a menina nota que falta algo para defini-la como mulher, assim ela terá que se voltar para a mãe para construir sua própria feminilidade a partir desta relação, uma vez que o pai não faz da filha uma mulher (o que não significa que o pai não participe). O menino se identifica com o pai, e sai do Édipo como portador do falo, e acredita ter algo a oferecer a mãe e às mulheres que a sucedem. Desta relação com os primeiros objetos de amor surgem as primeiras marcas. Cada sujeito se aproxima do outro para amar da forma pela qual subjetivou a sexualidade vivida nessas relações infantis. De maneira geral, pode-se concluir que em meio às divergências entre amor e desejo existem infinitas possibilidades para sujeito – homem ou mulher – direcionar-se ao outro, sendo que o sofrimento e a patologia não surgem no momento em que o sujeito se enamora, e sim quando ele se constitui. Quando o sujeito se coloca em análise, algo de otimista surge, a despeito de o amor ter funcionado encobrindo a vivência do sujeito, é também por estas vias, justamente pelas ruínas, que a transformação acontece. Quando o amor se coloca em cena no processo de análise, este aparece como a mola operadora do processo – lugar por onde circula a alternativa de cura. Surpreendente! Anuncia Freud: “nossa construção só é eficaz porque recupera um fragmento de experiência perdida” (FREUD, 1937, p. 303). Juliana Aguiar de Melo 161 Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 143-162 Além desta contribuição teórica acerca do amor enquanto sintoma analítico e via de cura, é importante retomar a questão da tentativa de conceituar amor patológico, pois é daqui que surge uma outra contribuição de ordem prática para a idealização de novas pesquisas psicanalíticas sobre o tema. Quando se pensa em sofrimento na relação amorosa (dificuldade de aplacar, partição, ruptura, ciúmes, medo e conflitos), existe uma tendência em classificaro amor patológico como um transtorno, um termo psiquiátrico. Porém, é impossível enumerar e classificar universalmente sofrimentos que são tão peculiares, mesmo porque a psicanálise é subversiva a estas rotulações - isso em nome da singularidade de cada um. Por fim, as idéias iniciais para o desenvolvimento deste trabalho se acostaram na psicologia, foram se delineando com a psicanálise freudiana e deixam como proposta futuras investigações a partir da teoria psicanalítica lacaniana. REFERÊNCIAS CAFÉ FILOSÓFICO. Sexualidade: O Que Freud Falava Sobre Isso?. Proferido por Ruskaya Rodrigues Maia e Leandro Borges. Faculdade Anhanguera, Anápolis, nov. 2010. CAFÉ FILOSÓFICO. O Amor Para a Psicanálise. Proferido pela professora Ruskaya Rodrigues Maia. Faculdade Anhanguera, Anápolis, set. 2010. COSTA, Teresinha. “Édipo” Psicanálise Passo-a-Passo 89. Rio de Janeiro: JZE, 2010. COSTA, Alyne Loren. O que não cessa de se atualizar. Almanaque On-line, Minas Gerais, ano 4, n.06, jan./jun. 2010. Disponível em: <http://www.institutopsicanalise- mg.com.br/psicanalise/almanaque/06/textos/loren.pdf>. Acesso em: 16 dez. 2010. CALDAS, Heloisa. O Amor Nosso de Cada Dia. In: Latusa: O Semblante e a Comédia dos Sexos. Rio de Janeiro: EBP nº 13, 2008. 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