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Judeu holandês de origem portuguesa, o afável e enigmático Baruch Spinoza (1632-1637) goza de um dos destinos póstumos mais estranhos na história da filosofia. Ainda em vida, foi considerado um herege perigoso pelo judaísmo e pelo cristianismo e taxado como “o mais ímpio ateu que já pisou sobre a terra” – ironia colossal, pois a essência de sua obra é uma metódica obsessão por Deus. Representante máximo do “monismo lógico” – a idéia de que toda a realidade forma um único ser – Spinoza engendrou, com uma espécie de fanatismo geométrico, uma divindade fantasticamente real e racionalmente mirabolante, base de um sistema ético que muitos admiram e poucos conseguem seguir. Cem anos após a morte de Spinoza, o inglês David Hume descreveu seu pensamento como um “monstro abominável”; reabilitado a partir do século XIX, o suposto criador de monstros foi considerado “o mais amável dos grandes pensadores” por Bertrand Russell. Se houvesse previsto tamanha controvérsia, é provável que Spinoza houvesse reagido com enfado ou decepção: impermeável à vaidade e aos rancores, ele detestava polêmicas, e consta que jamais tenha erguido a voz contra um adversário. Em sua época, até os críticos mais inflamados admitiam a contragosto: aquele era um herege estranhamente bondoso, um criador de escândalos que se comportava com moral impecável e gentileza imbatível. 
Mais que tudo isso, Spinoza foi uma espécie de náufrago tranqüilo flutuando entre culturas e sistemas de pensamento: suspenso entre a religião e a geometria, entre o judaísmo e o mundo gentio, ele foi um racionalista impregnado de fulgores teológicos, um santo que negou o poder da fé, um homem desditado que considerava a felicidade como um dever e quase como uma fatalidade. Sua obra é, linha por linha, uma das mais desafiadoras da filosofia – mas por trás da casca magnificamente árdua de suas idéias, pulsa um apaixonante sistema metafísico. Não por acaso, Spinoza exerceu um fascínio avassalador sobre mentes rigorosas e imaginativas como a do argentino Jorge Luis Borges – que, numa comovente homenagem em versos, comparou a mandala filosófica do judeu herege a um “claro labirinto”. 
A história do “mais amável dos filósofos” é um capítulo exemplar na odisséia do povo judeu no Ocidente. Durante séculos, os ancestrais do grande pensador viveram em Portugal sob o império do Islã, que na época era bem mais tolerante que seus vizinhos cristãos. Após a expulsão definitiva dos mouros, em 1492, os judeus espanhóis e portugueses passaram a sofrer perseguições. Os que não foram queimados fugiram para terras menos ardorosas – como a Holanda, para onde os Spinoza emigraram no início do século 17. Nascido em Amsterdã, Baruch falava a língua da terra (o holandês) e a língua da tribo ( o hebraico), mas seu primeiro idioma foi o de Camões. Entre os familiares, era chamado de “Bento”, versão lusófona de Baruch (que significa “homem abençoado”). 
Em uma escola rabínica, estudou o Talmude, a Torá e teólogos judaicos medievais como Moisés Maimônides. Aluno favorito da sinagoga, parecia destinado a ser um luminar da fé. Mas logo se desviou dos dogmas: hipnotizado pelas descobertas científicas de sua época, o jovem Bento virou leitor assíduo de Renée Descartes, filósofo francês que pregava a investigação da natureza por meio de um método estritamente racional. Aos vinte e três anos, o “homem abençoado” se transformara em uma figura com opiniões perigosamente heterodoxas: entre os amigos, costumava dizer que os milagres da Bíblia eram metáforas ou alucinações. Em 1656, foi convocado pelos anciãos da comunidade e sofreu o herem – espécie de excomunhão judaica. O texto do anátema sobrevive até hoje, em macabras minúcias: “Com o julgamento dos Anjos e dos Santos, nós excluímos, expulsamos, amaldiçoamos e esconjuramos Baruch Spinoza... Que ele seja maldito durante o dia, e maldito à noite; que seja maldito deitado, e maldito ao se levantar; maldito ao sair, e maldito ao entrar... Ninguém deverá conversar com ele, nem lhe prestar favores, nem se aproximar dele mais de quatro côvados; e que ninguém leia qualquer documento escrito por sua mão”.
Deserdado pela família e coberto de imprecações bíblicas, Spinoza passou a viver estoicamente em uma água-furtada, ganhando seus parcos recursos com o polimento de lentes para microscópios e telescópios – ofício que praticava com a mesma paciência artesanal dedicada à filosofia. Produziu uma série de tratados na solidão de seu quarto, deixando a maioria dos manuscritos trancados na mesa de cabeceira, com instruções para que fossem publicados após sua morte – que veio cedo. Com a saúde destruída pela inalação do pó de vidro de suas lentes, ele morreu de insuficiência respiratória aos 45 anos. Nos séculos seguintes, o secreto tesouro guardado nas gavetas de sua mesa mudaria a história do pensamento. Ao contrário do que se poderia imaginar, a amargura e o desespero inexistem na obra desse homem frágil, solitário e modesto: seu pensamento não é um grito de revolta contra o destino, mas uma geométrica ode de amor à realidade. 
A obra-prima de Spinoza é a Ética demonstrada pelo método geométrico – ou, entre os íntimos, simplesmente Ética. Construído como um tratado matemático, o livro é semelhante a um complexo jogo de xadrez, em que cada parágrafo é uma peça num minucioso tabuleiro de idéias. Conforme explica o título, o objetivo da obra é delinear a doutrina de vida mais adequada ao homem sábio – mas antes de computar a natureza humana, Spinoza trata de decifrar o próprio universo. Logo nas primeiras páginas, somos arrastados em um ordenado turbilhão metafísico, em que o autor oferece sua solução a uma antiga perplexidade filosófica: o dilema entre a multiplicidade e a unidade do cosmos. Percebemos o mundo ao nosso redor como uma infinidade de seres individuais, mas ao mesmo tempo intuímos que tudo o que existe está, de certa forma, interligado em um todo orgânico. Alguns filósofos, como Heráclito, afirmaram que a unidade é ilusão: apenas o fragmento é real. Já Spinoza representa o pólo oposto. Para ele, o universo é formado por uma única e indivisível substância – do latim substantia, literalmente, o que está por baixo. Ele chega a essa conclusão por uma impecável acrobacia lógica: sabemos que o homem é formado por diversas partes e, ainda assim, nós o consideramos um único ser; por que, então, não aplicamos o mesmo raciocínio ao Universo? Logo, toda a realidade é de fato um único indivíduo. Um ser infinito e eterno, simétrico e assombroso, que abarca todas as coisas, e do qual somos efêmeras manifestações: Deus, que Spinoza também chama de Natureza. “Tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus, nada pode existir nem ser concebido”, ele afirma com escandalosa serenidade. 
No pensamento religioso tradicional, Deus e o mundo existem separadamente: às vezes colérico, às vezes afetuoso, o Jeová bíblico criou tudo o que existe, e pode a tudo destruir a seu bel prazer. Já o ateísmo afirma que Deus é um delírio humano, e que apenas o mundo existe, em materialista solidão. O pensamento de Spinoza opõe-se diametralmente a ambas as idéias. Para ele, apenas Deus realmente existe: ele não criou o mundo, nem pode destruí-lo, pois é o próprio mundo. Esse ser absoluto é dotado de infinitas qualidades ou atributos, dos quais conhecemos apenas dois: o pensamento e a extensão (ou seja, o espaço, no qual se inclui a matéria). Deus é tudo o que existe no espaço, tudo o que se forma na mente, e mais uma infinidade de coisas e dimensões que ignoramos. Sendo infinito, ele se manifesta em formas incessantes e inacabáveis: as estrelas, os planetas, os sóis, as árvores, as pedras, eu, você, nossos antepassados, nossos possíveis descendentes, nossos medos, nossas emoções, nossa vida e nossa morte, tudo são partículas sempre mutáveis de uma realidade absoluta que, em si mesma, não muda nunca e jamais perece.
A vertiginosa divindade natural de Spinoza nada tem a ver com o autocrata demasiado humano das religiões monoteístas. Assim como não amamos individualmente as moléculasde nosso corpo, o Deus de Spinoza não ama nem odeia ninguém: apenas contempla a si mesmo, infinitamente. Os homens, portanto, devem amar a Deus – ou seja, a própria realidade – sem esperar que o sentimento seja correspondido ou recompensado. Para os teólogos tradicionais, esse ser supremo, impessoal e cosmicamente egoísta era uma aberração. Daí o paradoxal rótulo de ateísmo lançado contra o autor da Ética – que, séculos mais tarde, seria descrito como “o homem bêbado de Deus” pelo poeta alemão Novalis. Mas o intoxicante panteísmo de Spinoza nada tem de supersticioso: o homem sábio não deve temer a divindade com fé cega, mas compreendê-la por meio da razão. E é nesse “amor intelectual a Deus” que o adorável apóstata identifica a chave para a paz de espírito. 
Para Spinoza, as agruras congênitas da raça humana são resultado de uma ilusão de ótica: dominados por emoções irracionais, enxergamos as coisas separadamente e nos deixamos atordoar pelo espetáculo da destruição e do aparente absurdo da vida. O homem sábio é aquele que enxerga as coisas sub specie aeternitatis – ou seja, sob a perspectiva da eternidade. Se Deus é a causa de todas as coisas, então tudo ocorre por necessidade lógica: nada poderia ser diferente do que é. Não existe livre arbítrio na vida humana, assim como não há acaso no mundo físico. Imaginemos que o autor desta crônica saia à rua e seja atingido por um raio: caso sobreviva, e caso decida seguir à risca a doutrina de Spinoza, ele deve consolar-se com a idéia de que o relâmpago foi causado pela posição das nuvens, que foram impelidas pelo vento, que foi gerado por uma agitação dos oceanos – e assim sucessivamente, numa cadeia de causas infinitas e necessárias. Da mesma forma, seria impossível que eu houvesse saído de casa em um momento diferente: para que isso ocorresse, toda a história do universo teria de ser outra. Em outras palavras: as ações e escolhas humanas – tudo o que você, eu e o resto da humanidade fazemos ou deixamos de fazer – são resultados de equações tão necessárias e imutáveis quanto as leis da física. 
A princípio, essa doutrina pode ter algo de sufocante e opressivo. Mas em última instância, ela oferece uma promessa de libertação íntima: compreendendo seus próprios limites, o sábio quebra os grilhões irracionais da angústia. A dor, a imperfeição e o sofrimento existem apenas quando olhamos as partes incompletas do todo: a visão da realidade total anula as ranhuras mínimas de nossas vidas e nos liberta da ilusão do tempo. Pois – afirma Spinoza – o passado, o presente e o futuro são meras imaginações humanas. Para a mente divina, tudo ocorre simultaneamente e de forma pré-determinada. Se conseguirmos compartilhar dessa visão atemporal do mundo, perceberemos que o medo, a angústia, o remorso e a culpa são emoções absurdas. Afinal de contas, se o futuro é tão imutável quanto o passado, resta-nos apenas relaxar e fruir as alegrias possíveis nessa jornada inescrutável cujos rumos jamais poderemos controlar. 
Como notaram muitos comentaristas, esse determinismo implacável é um exercício arriscado e que, mal dosado, pode levar à inação irresponsável. Por outro lado, há nas idéias de Spinoza um bálsamo sempre útil àqueles que se deparam com a face violenta e incontrolável da existência: somos ínfimos e passageiros, mas é exatamente em nossa pequenez que encontramos a plenitude. Pois, se a substância da realidade não nos ama, pelo menos ela nos justifica. Teoria difícil de colocar em prática – mas o leitor que chegar à última página da Ética terá descoberto que os tesouros mais valiosos são às vezes os mais árduos. Assim escreve o embriagado geômetra de Deus no desfecho de sua obra: “O caminho que conduz à beatitude é áspero e íngreme, mas pode ser encontrado. E deve certamente ser árduo aquilo que tão raramente se encontra. Pois se a salvação estivesse à disposição e pudesse ser encontrada sem maior esforço, como explicar que ela seja negligenciada por quase todos? Tudo o que é precioso é tão difícil quanto raro”. 
José Francisco Botelho
Artigo publicado na revista Vida Simples

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