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Ética e convivência social e política
[...]
Na sociedade do espetáculo, o importante é não ser visto
A única instância que talvez possa constituir um freio aos apetites humanos é o cuidado para não ser visto ao infringir as normas. É evidente a inconsistência de uma moralidade que se apóie apenas no medo de ser apanhado em flagrante, de ser descoberto, de ser filmado ao cometer uma falcatrua. Se é verdade que vivemos na “sociedade do espetáculo”, compreende-se que o que importa é representar bem o papel de mocinho, mesmo que a natureza mais íntima seja a de bandido. Não faltam exemplos disso em nossa história recente. Todo o cuidado é para que a imagem, construída com habilidosas operações de marketing, não seja destruída, deixando ver a realidade por trás da aparência.
É inevitável que se desencadeie uma espécie de aventura, em que a esperteza para não ser descoberto disputa um jogo com a possibilidade de ser apanhado. Trata-se de um jogo arriscado, é verdade, mas, por isso, fascinante, nos tempos em que estão em moda esportes radicais para produzir adrenalina. Há formas de produzir, além de adrenalina, muito dinheiro fácil. E, em época mais recente, parece não ser mais tão importante “não ser visto”, mas não ser punido. Nesse terreno, aumentam os recursos para conseguir a impunidade ou uma pena relativamente leve, quando comparada com os benefícios acumulados e devidamente guardados. O caso da funcionária do INSS que desviou milhões de reais é exemplar a esse respeito. As sanções legais (ser preso), a desaprovação dos amigos, a reação escandalizada da mídia não são suficientes para desestimular um comportamento antiético.
O compromisso ético assumido com decisão voluntariosa também sofre de uma incurável fragilidade e não resiste à prova dos fatos, como os noticiários da imprensa estão amplamente documentando. Aliás, não são poucas as circunstâncias na quais a pessoa que não aproveita a situação para o próprio benefício, para tirar sua vantagem, não somente se considera otária mas assim também é considerada pelos colegas, a ponto de sentir vergonha por ter impedimentos morais que funcionam como freios inibidores, tabus que sinalizam barreiras intransponíveis. Uma pessoa assim parece anormal.
As páginas que seguem pretendem apresentar algumas etapas históricas e culturais através das quais se passou de uma percepção da ética na convivência social e política como compromisso da Aliança com o Mistério tremendo e fascinante à situação atual, que idealiza a figura do experto predador.
De Maquiavel à emancipação da influência religiosa
A modernidade firmou-se, no Iluminismo, como saída do homem de sua menoridade, como autonomia ante as Igrejas e ante aquelas tradições culturais que constituíram, durante mais de um milênio e meio, o ponto de referência para os homens e as mulheres da Europa e para os povos que viveram sob sua influência religiosa, política e cultural. A emancipação era o ideal formulado por Kant no breve escrito “Aufklärung” (o que é o Iluminismo), de 1783. Subtrair-se à autoridade do Papa e da Bíblia seria a condição para o homem tornar-se finalmente autônomo, do ponto de vista gnosiológico, ético e estético.
Cerca de trezentos anos antes, Nicolau Maquiavel tinha teorizado a autonomia da política em relação a qualquer ponto de referência ético, afirmando que, em política, os fins justificam os meios. “Nos atos de todos os homens, em especial dos príncipes, em que não há tribunal a que recorrer, somente importa o êxito, bom ou mau. Procure, pois, um príncipe vencer e preservar o Estado. Os meios empregados sempre serão considerados honrosos e louvados por todos”. E, logo antes, ele afirmara: “Não é preciso que o príncipe tenha todas as qualidades mencionadas [ele se refere à piedade, à fidelidade, à humanidade, à integridade e à religiosidade]; basta que aparente possuí-las”.
O pensamento de Maquiavel teve uma acolhida cada vez maior, à medida em que se formava o Estado moderno. Bobbio, na grande obra Teoria Geral da Política, retomando o pensamento de Maquiavel e reafirmando a duplicidade de critérios e de horizontes valorativos, quando se trata de julgar a práxis humana do ponto de vista político e do ponto de vista moral, escreve: “Aquilo que chamamos de autonomia da política nada mais é que o reconhecimento de que o critério com base no qual se considera boa ou má uma ação política é distinto do critério com base no qual se considera boa ou má uma ação moral. Enquanto o critério com base no qual se julga uma ação moralmente boa ou má é o respeito a uma norma cujo comando é considerado categórico, independentemente da ação (‘faça o que deve ser feito e aconteça o que tiver de acontecer’), o critério com base no qual se julga uma ação politicamente boa ou má é pura e simplesmente o resultado (‘faça o que deve ser feito para que aconteça aquilo que você quer que aconteça’)”.
A compreensão da ação moral aqui descrita e compartilhada por grande parte do mundo intelectual, com suas raízes em Maquiavel, está mais afinada com a perspectiva kantiana da moralidade, isto é, com um imperativo categórico ditado pela razão, do que com o horizonte propriamente cristão, delineado pela resposta dada a Alguém, em contexto de afetividade. Quando, então, essa maneira de entender a ação moral é comparada com a ação política, nota-se uma certa confusão, um modo de apresentar o problema que não favorece a clareza.
O homem moderno reconhece que tem falhas, imperfeições, erros, no entanto cultiva a certeza de poder corrigir, pelo progresso da ciência, pelo desenvolvimento do conhecimento, essas imperfeições. A razão estaria à altura da redenção do homem, do aperfeiçoamento da sociedade; ela seria capaz de sanar seus males. Por isso, o homem moderno não pode admitir o pecado, isto é, uma raiz de mal, uma ferida que somente um poder divino poderia curar. Reconhecer o pecado significa abrir espaço para um Salvador, para alguém de fora do horizonte humano, para a presença de alguém misericordioso, que perdoa e restaura a vida. É exatamente isso que o homem moderno combateu e combate.
A ética na convivência social e na política começa a perder importância não somente pela conhecida fragilidade e pela incoerência, próprias da condição humana, mas por se acreditar que no mundo moderno a sua presença criaria interferências danosas à convivência social e à arte de bem governar.
Os fundamentos éticos sobre os quais a sociedade ocidental se construiu são fundamentalmente os valores cristãos, que, a partir do Iluminismo, foram submetidos a um sistemático processo de secularização, isto é, foram acolhidos e valorizados enquanto eram depurados dos aspectos especificamente religiosos. Esses valores, retirados do terreno no qual haviam crescido, separados da raiz religiosa que os alimentava, como observou com agudez Romano Guardini, parecem esgotados e começam a ser substituídos por outros que têm origem totalmente diferente. Nesse horizonte, o limite para dispor da vida humana, porque reconhecida como sagrada e portanto não negociável, que durante quase 20 séculos manteve, ainda que com muitas contradições, a distinção entre civilização e barbárie, hoje não é mais reconhecido. Aliás, a manipulação da vida humana ou até a sua supressão são apresentadas como sinais de um progresso mais efetivo.
Os fautores do moderno sistema produtivo acham que não há mais necessidade do aporte da tradição cristã para administrar a convivência social e política moderna de maneira progressiva e benéfica aos interesses do mercado. Por ser demasiadamente crítica com relação a tudo o que ameaça a liberdade e a dignidade da pessoa, a moral cristã começou a apresentar mais problemas do que soluções para uma sociedade que parece necessitar de outros valores e de outros direitos, quase sempre divergentes dos consolidados na tradição cristã. O cristianismo deixou, em grande parte, de ser funcional ao moderno sistema produtivo.
[...]
Ética na políticaQuando se reflete sobre as deficiências éticas em nossa sociedade, não podemos esquecer esse contexto que torna a ética supérflua e contrária ao domínio do mercado.
De repente, quando explode um escândalo de grandes proporções na cena política, os mesmos construtores dessa mentalidade que não deixa espaço à ética rasgam as vestes e apanham pedras, na melhor tradição farisaica, e invocam a ética na política, sem muita coerência com o conjunto de suas ações.
Não se pode pretender que o comportamento ético domine algumas circunstâncias da realidade social, enquanto é condenado e posto em ridículo em tantos outros aspectos da vida. Invocar valores éticos não tem o poder de criá-los e menos ainda de introduzi-los na convivência social. Nesse sentido, certos discursos que evocam ética na política resultam pouco eficazes e até um tanto ridículos.
Na realidade, é necessário um grande movimento educativo, que acompanhe as pessoas e as ajude a terem uma postura diante dos mais diversos aspectos da existência, introduzindo-as à compreensão da realidade total.
A ética na política pode estar presente de duas formas:
O ordenamento jurídico constitui um conjunto de leis supostamente justas, pela forma democrática segundo a qual foram formuladas e pela legitimidade do órgão que as promulga. Leis justas protegem a dignidade de cada pessoa e o bem comum, favorecendo a justiça e a solidariedade nas relações sociais. No Estado moderno, democrático, de direito, todos estão submetidos ao ordenamento jurídico, desde o último cidadão até o Presidente da República, do mais pobre ao mais rico. Uma ética civil, racionalmente fundamentada e democraticamente aceita, preside a convivência social e política. Alguns órgãos do governo estão encarregados de zelar pela aplicação dessas leis, reservando ao poder judiciário a solução das contendas e a aplicação das sanções, nos casos de infração. Cabe ao Governo garantir, por meio de seus órgãos, a existência efetiva do estado de direito, e não permitir que as partes em conflito resolvam suas diferenças com base na violência. Também vai longe o tempo no qual o favor e a simpatia do príncipe podiam proporcionar vantagens a uma das partes em conflito. Isso acontecia na Idade Media. O Estado moderno nasce exatamente para superar esses limites.
A primeira forma de exercer a política com ética consiste, portanto, na certeza das leis e na sua vigência efetiva. Atualmente, contra essa certeza e essa eficácia insurgem três problemas:
a) O primeiro problema é a mentalidade segundo a qual o ordenamento jurídico só é observado, reverenciado e entendido como valor diante do público, passando a vigorar outros valores para orientar a conduta nos aspectos da existência subtraídos ao controle social. Em outras palavras, o problema não parece mais ser a observância das leis e, sim, não ser visto no ato de infringi-las. Por que razão alguém deveria obedecer a leis que considera lesivas aos próprios interesses, se pode infringi-las sem ser visto, conseguindo dessa maneira vantagens que respondem aos mesmos interesses? Assim, sonegar impostos, arrecadar verbas por meios criminosos, enriquecer com o tráfico de influência, encomendar a morte de adversários ou até de amigos, quando se tornam perigosos, são práticas que reduzem o espaço da ética na política e na convivência social.
b) O segundo problema é a impunidade. Mesmo quando alguém é apanhado em flagrante violação das leis, são tantos os artifícios jurídicos e as possibilidades de pressão política (especialmente no caso de quem age à sombra do poder) e tão frágeis os órgãos que deveriam garantir a justa punição dos infratores, que acaba prevalecendo a impunidade. Cria-se a mentalidade segundo a qual violar as leis traz vantagens, pois sempre se encontra alguma forma de escapar às sanções ou de reduzi-las a um mínimo tolerável, diante da utilidade conseguida.
c) Por fim, nestes últimos tempos, vê-se que quem partilha dos privilégios do poder pode fazer pressão para desviar a atenção de um problema, retardar ou até anular uma ação investigativa que vise apurar os fatos de maneira incontrovertível. Ou, então, o critério ideológico de um homem do poder é tomado como critério de justiça, por exemplo ao declarar inocentes os índios que mataram garimpeiros, por serem estes invasores da propriedade alheia, antes de qualquer investigação e julgamento realizados por órgãos competentes. No entanto, fica gritante a contradição quando, diante de circunstâncias semelhantes, o critério ideológico manda proclamar exatamente o contrário, declarando inocentes os invasores de propriedades produtivas.
Uma segunda maneira de presença da ética na política se dá por meio de uma mentalidade difusa na cultura e assimilada pelas pessoas como parte integrante da própria identidade, e que se caracteriza como religiosidade. Trata-se de uma ética fundada não no consenso democrático, mas na consciência da dependência de um Mistério onipotente e criador. A existência humana é concebida, nessa perspectiva, como relação com esse Mistério, do qual tudo depende e ao qual cada um responde com seus atos. Nesse caso, o comportamento ético não depende de uma norma que obriga mediante pressão externa, mas depende da íntima convicção de que aquele comportamento, que nasce do “Tu" dito ao Mistério, corresponde à verdade e à justiça e é o único modo de proceder que afirma a dignidade de quem assim age.
Essa mentalidade é mais ampla que a ética política, é uma postura religiosa diante da existência.
Durante muito tempo, essas duas formas de ética conviveram entrelaçadas em nossa sociedade, podendo-se atribuir a uma o comportamento que, na realidade, dependia de outra. Mas, especialmente nestas últimas décadas, intensificou-se a luta contra a religião. Alguns temas mais delicados e polêmicos foram tomados como cavalos de batalha para pôr em ridículo posturas religiosas, ignorando as razões mais profunda de certas posições. Renunciou-se à lealdade do debate racional e democrático, para criar uma imagem da religião como sendo contrária ao progresso, à inteligência, ao bem.
Uma mentalidade laicista, segundo a qual “Deus, se existe, não interessa", difunde-se reduzindo, cada vez mais, o espaço de uma ética religiosa.
As circunstâncias atuais, no entanto, parecem confirmar o fato de que uma ética laica, separada de suas origens religiosas, carece de sustentação e perde eficácia, como frutos cujas raízes tivessem sido cortadas. A alternativa a uma ética religiosa acaba sendo, de fato, uma sociedade que se assemelha à descrita por George Orwell, dominada pelo Grande Irmão, que controla cada detalhe da existência de cada (por assim dizer) cidadão. As câmeras de vídeo, a gravar tudo o que acontece, vão cobrindo espaços cada vez mais amplos das nossas cidades.
Entre a ética religiosa e o ideal panóptico de controle total que assemelha a sociedade a uma moderna prisão, a primeira parece mais correspondente à dignidade humana e à verdadeira democracia, à formação de uma cidadania efetivamente protagonista da própria história.
Não se trata de lamentar saudosamente a perda de pontos de referência éticos na sociedade atual. É necessário que cada um se envolva num movimento educativo, que recrie o tecido quotidiano da convivência social, subtraída progressivamente à lógica do mercado e a seus critérios, caracterizados pelo cálculo e pelo intercâmbio de equivalentes. Movimentos educativos, que constituem uma companhia guiada ao destino, capazes de gerar espaços de gratuidade e de vida fraterna, de reconhecimento da grande Presença - que é caminho, verdade e vida - existem e podem renovar o gosto pela convivência, a paixão pelo homem, um amor à verdade maior do que o próprio interesse particular, podendo plasmar relações humanas e sociais no horizonte de uma ética.
Fonte
PETRINI , João Carlos . Ética e convivência social e política. Disponível em: <http://www.pucsp.br/fecultura/textos/pessoa_sociedade/22_etica_convivencia.html>.Acesso em: 28 mar. 2011.
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