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Curso de Bioquímica da Cárie Dental I - Bioquímica da Saliva CARLOS EDUARDO PINHEIRO(*) 4 INTRODUÇÃO A saliva é um líquido secretado pelas glândulas salivares diretamen- te na cavidade bucal. Seu maior componente é a água, que chega a ocupar aproximadamente 99% de seu peso, sendo o restante forma- do por componentes orgânicos e minerais que constituem a parte sólida da saliva. Várias são as glândulas que con- tribuem para a formação da saliva, sendo que no homem e na maior parte dos animais existem três pa- res de glândulas maiores, ou seja, parótidas, submandibulares, sub- linguais e por inúmeras glândulas menores, localizadas principalmen- te na mucosa bucal. Ao conjunto das diversas secreções glandulares que se juntam dentro da cavidade bucal deu-se o nome genérico de saliva mista. Na verdade, a saliva mista contém, além das secreções glandulares, componentes estra- nhos como fluído gengival, células descamativas, bactérias e produtos bacterianos, além de outros com- ponentes variáveis. As salivas se- cretadas por cada par de glândulas maiores só são obtidas por meio da canulação de seus ductos excre- tares. As salivas individuais, isto é, as secretadas por cada par de glândulas, diferem entre si tanto na proporção de volume secretado quanto em sua composição quími- ca, dependendo da existência ou não de estímulos como também da natureza e intensidade dos mesmos. A saliva é muito importante para o meio bucal como também para o próprio organismo. Cos- tuma-se atribuir geralmente à sa- liva um papel digestivo e excretor. A saliva contém a enzima amilase, capaz de hidrolizar o amido conti- do nos alimentos, transformando-o em dextrina, maltose e glicose. Contudo, como o tempo de per- manência do alimento na cavidade bucal é diminuto, o papel diges- tivo desta enzima é relativamente insignificante. Não obstante, a atividade amilolítica da saliva atua continuamente sobre os amiláceos (*) Professor Titular do Departamento de Bioquímica — Faculdade de Odon- tologia de Bauru da Universidade de São Paulo. Revista Paulista de Odontologia40 que permanecem aderidos à super- fície dos dentes, nos espaços exis- tentes entre os mesmos, favorecen- do a remoção de restos alimenta- res retentivos, pela transformação destes em produtos mais solúveis. Além da atividade enzimática, a saliva contribui para o processo digestivo, lubrificando o bolo ali- mentar e, desta forma, facilitando sua mastigação e deglutição. Inú- meras substâncias nocivas ao orga- nismo e alguns medicamentos são excretados pela saliva, que assim funciona como um veículo de de- sintoxicação. A saliva desempenha função de proteção do meio bucal, mediante a ação de substâncias antibacterianas, como também par- ticipa na manutenção do equilíbrio hídrico, regulando a excreção de líquido do organismo. A — Composição química da saliva Os componentes químicos da sa- liva, não obstante a mesma ser constituída por aproximadamente 99% de água, são essenciais para o desempenho do papel fisiológico deste importante líquido. Através desses componentes menores, a saliva provê uma cobertura orgâ- nica às mucosas e dentes; promove a lubrificação dos alimentos; fa- vorece a remineralização das su- perfícies dos dentes comprometi- dos pela cárie e, também, ativa a acuidade gustativa. E principal- mente devido ao conteúdo de bi- carbonato que a saliva exerce seu poder tampão, isto é, a capacidade de manter o pH constante, frente as contínuas variações químicas do meio bucal. Finalmente, é através de seus componentes químicos que a saliva protege os tecidos bucais de agen- tes microbianos, normalmente exis- tentes na cavidade bucal. A.1 — Componentes orgânicos Sem dúvida alguma, os compo- nentes mais abundantes e impor- tantes da saliva são as proteínas. As proteínas são classificadas preponderantemente de acordo com suas caracteristicas químicas e ati- vidades biológicas. PROTEINAS SALIVARES RICAS EM PROLINA As características químicas im- primidas às proteínas por este aminoácido (iminoácido!) são de rigidez estrutural, isto é, determi- nadas estruturas adquiridas pelas moléculas protéicas que lhe con- ferem maior resistência ou estabi- lidade às mudanças conformacio- nais. Exemplo típico desta classe de proteínas é o colágeno, que serve de suporte estrutural ao tecido conjuntivo. Na saliva, as espécies molecula- res encontradas são representadas pelas fosfoproteínas, glicoproteí- nas ácidas e básicas e mucinas. Os principais papéis fisiológicos des- sas proteínas são os de formarem coberturas orgânicas sobre super fícies das mucosas e dos dentes, além de envolverem os alimentos, lubrificando-os e favorecendo sua mastigação e deglutição. Estas proteínas apresentam re- giões moleculares com alta densi- dade de cargas elétricas negativas (geralmente resíduos de ácidos as- pártico e glutâmico), o que lhes facilita a aderência às superfícies dos tecidos orais. As fosfoproteínas, proteínas de baixo peso molecular (6.000- 12.000 daltons), além dos cons- tituintes ácidos da classe, possuem radicais de ácido fosfórico ligados às hidroxilas da serina e treonina das cadeias polipeptídicas. Decor- rente da concentração relativa- mente alta de radicais ácidos, estas proteínas apresentam grande afini- dade pela hidroxiapatita, sendo um dos principais contribuintes da pe- lícula adquirida, filme orgânico que se forma rapidamente sobre as superfícies dos dentes. As fosfoproteínas também estão implicadas nos processos de remi- neralização do esmalte e na esta- bilização da concentração super- saturada dos íons de cálcio e fos- fato da saliva. Em virtude de seus radicais áci- dos, estas proteínas quando adsor- vidas à superfície dos dentes, po- dem agregar os íons de cálcio da saliva em uma determinada região do esmalte, favorecendo termodi- namicamente a precipitação desses íons sobre superfícies destruídas pela cárie ou agentes ácidos. Neste particular merece menção especial a estaterina, um tipo de fosfopro- teína relativamente rica em tirosina e que possui grande afinidade pelos íons cálcio. O nome estaterina de- riva do grego "Statheropio", que significa estabilizar. Este peptídeo é rico em tirosina, prolina e ácido glutânico, tendo um peso molecu- lar de 5.380 daltons e um ponto isoelétrico de 4,2. Os resíduos áci- dos estão localizados na extremi- dade amino-terminal da cadeia po- lipeptídica. O mecanismo envolvi- do na estabilização dos íons cálcio e fosfato da saliva é semelhante ao já mencionado para a reminerali- zação, contudo, neste caso, as fos- foproteínas estão em solução, ade- ridas aos agregados iniciais de fos- fato de cálcio, impedindo assim o seu crescimento. PROTEINAS SALIVARES RICAS EM AMINOACIDOS AROMÁTICOS Proteínas pertencentes a este grupo geralmente possuem função especializada. A estaterina foi fo- Revista Paulista de Odontologia 41 calizada juntamente com as fosfo- proteínas, mais concernentes com sua atividade biológica. De qualquer forma, esta proteí- na está envolvida com a estabili- zação e o transporte do cálcio sa- livar. Outra proteína típica da classe é a gustina, cuja atividade está ligada ao transpo rte (e arma- 6zenamento) do íon zinco, junto às papilas gustativas. A gustina é a proteína que contém a maior quan- tidade de zinco da saliva da paró- tida humana, seu peso molecular é de 57.000 daltons, sendo que a histidina ocupa 8% dos resíduos de aminoácidos. Cada molécula de gustina tem a capacidade de ligar 1 átomo de zinco. O mecanismo pelo qual a gustina promove o cres- cimento e a acuidade das papilas gustativas é ainda desconhecido. Esta proteína apresenta uma ativi- dade biológica semelhante ao fator de crescimento nervoso, isolado das glândulas submandibulares do camundongo macho. Lactoferrina é outra proteína rica emresíduos aromáticos, sendo ligeiramente bá- sica. Diferindo das outras proteí- nas mencionadas, possui alto pe- so molecular (aproximadamente 80.000 daltons). Acredita-se que a lactoferrina, que possui um núcleo porfirínico em sua estrutura, esteja ligada ao transpo rte de íons ferro da saliva. Cada molécula de pro- teína liga-se a dois átomos de fer- ro. A lactoferrina apresenta ati- vidade antimicrobiana, inclusive contra os estrentococos mutans, que necessitam de íons ferro para o seu crescimento. AGLUTININAS SALIVARES Quando se adiciona saliva a uma suspensão de bactérias, ocorre ge- ralmente uma agregação específica dos microorganismos que se depo- sitam em poucos minutos no fundo do tubo de ensaio. A aglutinação de bactérias pelas proteínas saliva- res é decorrência da neutralização das cargas elétricas negativas da superfície celular. As proteínas ácidas salivares, fosfoproteínas, gli- coproteínas e mucinas são capazes de interagirem com as cargas nega- tivas bacterianas através de uma ponte de cálcio. Contudo, as pro- teínas salivares pertencentes à clas- se das aglutininas são considera- das glicoproteínas de alto peso mo- lecular (acima de 1 milhão de dal- tons!). A especificidade das aglutininas para determinado tipo de micro- organismo está na dependência da variedade de radicais de carboidra- tos ligados à cadeia polipeptídica. As aglutininas exercem um papel antimicrobiano, considerando que os agregados macromoleculares em solução podem ser eliminados pe- la deglutição. Por outro lado, quan- do em condições favoráveis, esses agregados podem aderir às super- fícies dos dentes, durante a for- mação da placa dental. Como ge- ralmente essas proteínas possuem uma extremidade hidrofóbica (não polar) na cadeia polipeptídica e, portanto, sem carga elétrica, a in- teração entre elas é mais facilmente conseguida, provocando assim a agregação bacteriana. Além da in- teração entre cargas elétricas, ou- tros tipos de ligações, como re- ceptores específicos da membrana, podem ligar as aglutininas saliva- res aos microorganismos, sendo neste caso uma agregação mais específica. É interessante mencio- nar que a remoção dos íons cálcio por quelantes retarda ou mesmo impede a formação *de agregados bacterianos. ENZIMAS SALIVARES A secreção salivar, assim como outras secreções digestivas, contém várias enzimas hidrolíticas destina- das a promoverem, mediante sua atividade catalítica, a degração dos componentes alimentares, tornan- do-os adequados à absorção intes- tinal . A enzima mais abund ante da se- creção salivar é a alfa-amilase. Es- ta enzima hidroliza a ligação alfa 1-4 de resíduos glicosídicos do amido e glicogênio. Esta atividade enzimática não é essencial ao pro- cesso digestivo, uma vez que na sua ausência a digestão se processa normalmente às expensas da en- zima pancreática. Contudo, a ami- lase salivar exerce importante pa- pel na digestão de restos de ali- mentos aderidos aos espaços inter- dentais, colaborando assim em sua solubilização e limpeza. A lisozima é uma enzima alta- mente positiva que cataliza a de- gradação de peptidoglicanos, ma- cromoléculas que se apresentam negativamente carregadas, encon- tradas nas paredes das células bac- terianas. Os peptidoglicanos bacte- rianos são polímeros moleculares, insolúveis, constituídos por unida- des de dissacarideos do ácido ace- til-murâmico e acetil-glicosamina. A ligação hidrolizada pela enzima é do tipo alfa 1-4, sendo os frag- mentos resultantes da hidrólise, solúveis no meio bucal. Portanto, esta enzima exerce, mediante sua atividade catalítica, ação antibacte- riana. Por outro lado, a lisozima modificada, isto é, sem atividade muramidásica, também impede o crescimento bacteriano, possivel- mente atuando de forma ainda desconhecida sobre a permeabili- dade da membrana plasmática bac- teriana. A lisozima é encontrada em alta concentração na saliva, sendo capaz, também, de produzir a agregação de estreptococos da cavidade bucal. Ao contrário da alfa-amilase, a lisozima é secretada principal- mente pelas glândulas mucosas e Revista Paulista de Odontologia42 S Ci A CH2 CH3 - S —S NH: CH2 S— CH3 S $ S S S S Ci, V t. I-- NH; por fagócitos existentes na cavida- de bucal. A lactoperosidade salivar é uma enzima de alto peso molecular (80.000 daltons) que contém anel de porfirina e ferro como núcleo prostético. Catalisa a decomposi- cão de peróxidos, liberando radi- cais capazes de oxidarem outras substâncias. Na saliva, a peroxi- dase utiliza particularmente o íon tiocianato como substrato em pre- sença do peróxido de hidrogênio, e os produtos liberados desta rea- ção, particularmente o 'íon hipotio- cianito (OSCN-), são capazes de oxidar compostos impo rtantes, co- mo por exemplo os grupamentos tióis de proteínas existentes nas células bacterianas, tornando-as inativas. Desta forma, a lactopero- xidase exerce também uma ação antibacteriana. IMUNOGLOBULINAS As imunoglobulinas são impor- tantes proteínas existentes no plas- ma sangüíneo e desempenham a função de defesa contra a invasão de agentes estranhos (antígenos), nocivos ao organismo. Existem vários tipos de imuno- globulinas, sendo que na saliva e outras secreções a classe predomi- nante são sa imunoglobulinas se- cretórias (IGA). Devido à importância que se tem dado atualmente às imunoglo- bulinas salivares, pa rticularmente com relação à cárie dental, consi- deraremos esta classe de proteínas um pouco mais aprofundada. As imunoglobulinas pertencem a uma classe quimicamente heterogênea, diferindo em peso molecular, con- teúdo em carboidratos, mobilida- de eletroforética e antigenicidade. Contudo, todas elas apresentam a propriedade em comum de se com- binarem especificamente aos antí- genos. Existem cinco classes main- res de imunoglobulinas e várias subclasses. As principais imuno- globulinas são designadas por si- glas: IgG, IgM, IgA, IgD e IgE. As imunoglobulinas são compostas de unidades básicas de monôme- ros de peso molecular entre 150- 160.000 daltons (coeficiente de se- dimentação 7S). A unidade básica compõe-se de quatro cadeias po- lipeptídicas: um par de cadeias pe- sadas, de peso molecular entre 60-80.000 daltons, e um par de cadeias leves, de 22.000 daltons. As cadeias leves, que existem em vários tipos, são comuns a todas as imunoglobulinas. Contudo, ca- da imunoglobulina apresenta uma composição específica para as ca- deias pesadas (Figura 1). Muitas imunoglobulinas existem no plasma como polímeros da unidade básica, como IgM e IgA, que se encon- tram na forma de pentâmero (P.M. 900.000 daltons) e dímero ou trí- mero, respectivamente. Cada classe FURA 1 - Estrutura da IgG, mostrando o padrão de pontes dissulteto e as regiões de sequen- cia homóloga. C0o - C00- Legenda: CH t - CH3 = regiôes constantes da cadeia pesada. ^ região constante da cadeia leve. reglio variável da cadeia pesada. a regido variivel da cadeia leve. CL VH VL ^ Revista Paulista de Odontologia 43 de imunoglobulinas é responsável por um tipo de reação biológica, assim a IgE está ligada à reações do tipo alérgico; a IgM e IgG são capazes de fixar complemento e, portanto, participarem das reações mediadas pela fixação de comple- mento; a IgA são as imunoglobu- Iinas encontradas normalmente nas secreções; a IgD, juntamente com uma forma de IgM, são as princi- pais imunoglobulinas da superfície dos linfócitos. As imunoglobulinas secretórias (IgA) diferem das de sua classe plasmática por apresen- tarem, além das quatro cadeias po- lipeptídicas comum a todas elas, um componente secretório (glico- proteína de P.M. 60.000-70.000 daltons) e uma cadeia de ligação (aproximadamente 15.000 daltons). A molécula completa de IgA tem um peso molecular de 360.000dal- tons, sendo encontrada normalmen- te nas secreções salivares, gastro- intestinais e brônquicas, como tam- bém na lágrima e leite. As imunoglobulinas secretórias representam uma primeira linha de defesa do organismo contra a inva- são virótica e bacteriana, normal- mente presentes no tubo gastro- intestinal. Pela maior afinidade que as imunoglobulinas secretórias têm pelos antígenos dos microorganis- mos, elas formam com os mesmos, agregados macromoleculares, impe- dindo assim sua aderência às su- perfícies das mucosas e facilitando sua remoção pela deglutição. COMPONENTES PROTEICOS MENORES Além dos componentes protéicos maiores, a saliva contém também alguns peptídeos que apresentam atividade biológica particularmente ativa sobre o metabolismo de mi- croorganismos encontrados na sali- va e placa dental. A sialina é um peptídeo rico em arginina, capaz de aumentar o pH da placa, após a imbebição da mes- ma com solução diluída de glicose ou sacarose. A estrutura da sialina é bem simples, formada apenas por quatro resíduos de aminoáci- dos (H2N-glicina-glicina-Iisina-argi- nina-COOH). E interessante notar que a sialina produz um maior efeito sobre o aumento de pH da placa ou sedimento salivar do que a mesma quantidade de arginina. Isto significa que as células bacte- rianas apresentam uma permeabili- dade maior ao peptídeo do que ao aminoácido. Além da sialina, que aumenta o pH da placa dental e estimula também a atividade glico- lítica de estreptococos, outros pep- tídeos salivares foram descritos na literatura, particularmente o peptí- deo ativante da glicólise, de peso molecular aproximadamente 3.000 daltons, rico em histidina, lisina e arginina. Este peptídeo estimula a atividade glicolítica da placa dental e sedimento salivar sem, contudo, ter qualquer efeito sobre o aumen- to do pH. A.2 Componentes inorgânicos A osmolaridade da saliva, inde- pendente do fluxo salivar, é devido somente à concentração de quatro íons: sódio, potássio, cloreto e bi- carbonato. Contudo, as concentra- ções destes íons alteram-se drama- ticamente com a velocidade do fluxo salivar. As concentrações destes quatro íons nas secreções salivares em re- pouso e estimuladas estão expres- sos na figura 2. Uma característica importante da saliva, e que dependente da concen- tração desses íons, é a sua hipoto- nicidade com relação ao plasma e líquidos celulares. Esta proprieda- de da saliva tem um profundo sig- nificado biológico, de vez que a integridade dos tecidos da cavidade oral dependem de certa forma de trocas osmóticas entre saliva e as superfícies mucosas e dentais. A concentrações de água da saliva é maior do que a das células muco- sas e a do dente, portanto, em con- dições normais, a tendência do fluxo aquoso é de fora para dentro das células mucosas e est ruturas dentais, levando assim os compo- nentes salivares em íntimo contato com a superfície destas est ruturas. Disso depende o íntimo contato entre as proteínas salivares e a su- perfície mucosa da cavidade bucal, particularmente no que se refere às imunoglobulinas. Por outro la- do, quando a saliva se torna hiper- tônica pela dissolução de substân- cias solúveis do alimento (particu- larmente sal e açúcar), o sentido do fluxo aquoso pode ser reverti- do. Neste caso, a tendência da água dos tecidos orais, principalmente do líquido dentinário, é a de seguir a força centrífuga, isto é, no sen- tido de dentro para fora. Destas trocas dependem em parte os pro- cessos de maturação e de dissolu- cão interna do esmalte durante a formação da lesão inicial da cárie dental. B — Interação dos componentes salivares: pH e poder tampão da saliva O pH salivar, isto é, a concen- tração de íons hidrogênicos (H±) da saliva, depende basicamente da sua concentração de bicarbonato. A pressão parcial de CO2 da saliva é aproximadamente igual à do plas- ma, portanto o pH variará com a concentração de bicarbonato de acordo com a equação de Hender- son-Hasselbach: HCO3— pH=pK -I-log H 2 CO3 44 Revista Paulista de Odontologia estimuladarepouso 60 - 50 40- K+ 30 20- 10- Na+ Na++ K+ estimulada Cl- + HCO3 repouso -- 60 W 50- Eo 60-` V. 30=''} ú 20J C 10- 60 - 50- 40 -30., 20- 10- Cl" nn , HCO3 n É 120 a o E 100- 80- 60- 40 20- mOsm/g FIGURA 2 - Alterações nas concentrações de sódio, potássio, cloreto, bicarbonato e na osmolaridade da secreção da parótida humana, em função do fluxo salivar. 0,01 Q02 0,05 0,1 0,2 0,5 1,0 log. fluxo salivar ml/min. 0,01 0,02 0,05 0,1 0,2 0,5 1,0 log. fluxo salivar ml/min. O pK é aproximadamente 6,1 e a pressão parcial de CO2 depende da concentração de ácido carbô- nico expressa na equação. Portan- to, o pH salivar aumenta com o fluxo salivar, visto que a concen- tração de bicarbonato também au- menta nesta circunstância. Por ou- tro lado, quando a saliva é exposta à atmosfera, o seu CO2 difunde para o meio ambiente e, com isso, ocasiona um aumento de pH sali- var, tornando a saliva alcalina. Nestas condições, muitos íons que estavam em solução, principalmen- te os fosfatos, podem se precipitar. A concentração de outros com- ponentes menores e que em deter- minadas condições podem exercer um papel importante nas proprie- dades da saliva, como uréia, tiocia- nato e flúor estão na tabela 1. C — Saliva e cárie dentária Embora a saliva não seja impres- cindível à digestão dos alimentos, ela é, contudo, essencial à integri- dade dos tecidos orais. Inúmeras experiências em seres humanos quanto em animais de laboratório têm demonstrado amplamente o importante papel biológico da sali- va. Indivíduos que sofrem de xe- Revista Paulista de Odontologia 45 TABELA 1 CONCENTRAÇÃO DE ALGUNS CONSTITUINTES ESPECIFICOS DO SORO E SALIVA SANGUE SALIVA Soro,, plasma ou sangue total Parótida Submandibular Mista R E R E R E pH 7,35-7,45 5,8 7,7 6,5 7,4 6,7 6,8-7,5 Bicarbonato (mM) 23-32 1,0 22-30 2-4 14-16 5,0 15-20 Sódio (mM) 135-145 1,5-2,5 30-55 3-4 25 4,6 26 Potássio (mM) 3,5-5,5 24-28 13-22 14-15 13 22 20 Cálcio (mM) 2-2,5 1,0 1,0 1-1,6 1,6-2 1,6-4 1,5-3 Magnésio (mM) 1-1,5 0,1-0,2 0,02 0,05-0,1 0,035 0,2 0,1-02 Cloreto (mM) 95-105 17-22 17-33 11-12 16-26 15 30-100 Fósforo (inorg.mM) 1-1,5 10 3 4-6 2 6 4 Glicose (mg%) 70-100 0,8 0,2 0,5 - 0,6-1,0 1,0 Amônia (mg%) 0,08-0,11 0,09 0,06 0,7 0,04 12 4-8 Uréia (mg%) 14-40 30 22,27 10 5 20 13-22 Tiocianato (mg%) 0,1-1,5 - 3 - - 15 7-16 Proteína Total (mg%) 6,5-8,2 (g%) 250 270-320 110 150 225-350 280-300 Iodeto (micrograma%) 3-8 (ligado) 4-10 2-15 12 6 4-24 11-180 Fluoreto (micrograma%) 10-20 3 2 - - 8-25 2-20 Ferro (micrograma%) 50-150 5-10 5-10 - - 0,60 20 Zinco (micrograma%) 90-125 - 5 - - 20 14-80 Cobre (micrograma%) 106-114 - 9 - - 0-10 2-25 Cromo (micrograma%) 0-014 - - - - - 9 Chumbo (micrograma%) 5-20 - 2-10 - - 1-30 0,4 R = repouso E = estimulada 46 Revista Paulista de Odontologia rostomia ou que apresentam um fluxo salivar reduzido devido ao tratamento do câncer do pescoço ou da cabeça por radioterapia apresentam inflamações da mucosa oral e da gengiva com mais fre- qüência e um maior índice de cá- rie. Isto também é verdade para indivíduos que estão sob trata- mento de drogas que reduzem o fluxo salivar, como por exemplo a anfetamina. Animais de laboratório nos quais foram removidos total ou parcial- mente as suas glândulas salivares também apresentam um maior ín- dice de cárie do que seus contro- les. Nestes casos, a saliva exerce uma função de limpeza e de pro- teção como um todo, sem nenhum destaque particular de qualquer de seus componentes. Atualmente tem-se dado muita importância às imunoglobulinas salivares em de- corrência da possibilidadeda sali- va servir de meio de transporte para anticorpos resultantes de va- cinas anticárie. Se de um lado a vacinação anticárie pode represen- tar o mais alto objetivo da odon- tologia preventiva, de forma seme- lhante a outros tipos de vacinas alcançadas em medicina preventi- va, as possibilidades, neste caso, não são tão favoráveis como nos de imunização geral. As células plasmáticas que produzem anti- corpos e as próprias imunoglobuli- nas, em quantidades adequadas, estão em contato direto que os agentes específicos introduzidos no organismo. Com relação à imuni- zação anticárie, as imunoglobulinas secretoras (IgA) não são secreta- das na saliva em quantidades ditas adequadas, isto é, suficientes para a neutralização dos microorganis- mos específicos alojados na cavi- dade bucal. Por outro lado, a cárie dentária não é uma doença pro- duzida especificamente por um tipo de microorganismo. Mesmo consi- derando os estreptococos mutans como as bactérias de maior poder virulento, especialmente na capa- cidade de destruição do dente, a sua neutralização não significa que outras bactérias não sejam capazes de executar a mesma função. A di- minuição da microbiota oral pode dar origem ao crescimento de fun- gos que antes não teriam a capa- cidade de se proliferar em vir- tude da competição biológica na- tural de cavidada bucal e, final- mente, ninguém poderá prever, a longo prazo, quais os efeitos cola- terais que a introdução de antíge- nos bacterianos poderá trazer ao organismo. Além de todos estes inconve- nientes, soma-se o fato de que a prevenção da cárie pode ser alcan- çada com medidas mais simples e seguras, como dieta, nutrição e higiene bucal. Contudo, isso não significa que devemos assumir uma posição con- trária a uma possível implantação futura da imunização anticárie, apenas queremos deixar patente que no momento as evidências atuais nos colocam numa posição de espectativa. 1 — BENNICK, A. Chemical and physical cha- racteristics of a phosphoprotein from hu- man parotid saliva. Blochem. 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