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A AUTONOMIA DO DIREITO COMERCIAL NO NOVO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO FREDERICO VIANA RODRIGUES Mestre em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Professor de Direito Comercial do Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH) e do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC) Advogado Sumário: I – Introdução. II – Do surgimento do direito comercial à teoria da empresa. II.1 – A origem do comércio. II.2 – O surgimento do direito comercial como ramo autônomo do direito privado. II.3 – A expansão do direito comercial e sua codificação como ramo autônomo do direito privado. II.4 – A comercialização do direito civil. II.5 – O movimento unificador do direito privado. II.6 – O novo código civil brasileiro. III – A autonomia histórica. IV – A teoria da empresa, o novo código civil e a autonomia do direito comercial. V – Autonomia formal e jurídica. VI – Crítica à codificação. VII – Conclusão. VIII – Bibliografia. I - INTRODUÇÃO O advento do novo Código Civil (Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002), revogando expressamente a Parte Primeira do Código Comercial (Lei n° 556, de 25 de junho de 1850), vem gerando em alguns juristas o entendimento precipitado – e, diga-se de pronto, equivocado – de que o direito comercial fora desprestigiado ou, até mesmo, teria deixado de existir, em face da ventilada unificação do direito privado brasileiro. A bem da verdade, nada original é a discussão acerca da autonomia do direito comercial. A questão, já há mais de um século, vem suscitando no mundo jurídico notáveis argumentos ora a favor da independência do direito comercial, ora em prol da unificação do direito privado. O novel codex civil, ao tratar do direito de empresa, abrangendo tanto a atividade do empresário civil como a do comerciante, reacendeu o ânimo dos opositores da autonomia do direito comercial, que – na esteira do entendimento de MAZEAUD e FERRARA JÚNIOR1 – sustentam a unificação do direito privado, considerando que o direito de empresas seria simples ramo do direito civil, tal como o é o direito de família, das coisas e das sucessões. Restabelecido o antigo debate, agora em termos presentes, necessária se faz a compreensão da evolução do direito comercial, desde sua origem até os dias atuais, para que a questão se coloque de modo oportuno. Afinal, “a relação entre conhecimento do passado, análise do presente e propostas para o futuro é mais profunda na tradição jus- comercialista do que nos outros ramos do conhecimento jurídico”2. E, no que tange especialmente ao tema ora proposto, ASCARELLI3 ressalta o indispensável exame histórico do direito comercial, por se tratar de “um direito especial no sentido histórico e é sob este aspecto, e atendida a função historicamente preenchida pelo direito comercial em contraposição ao direito comum, que melhor se entende sua autonomia e o seu papel, os próprios problemas que hoje se apresentam quanto à sua reforma e quanto à unificação do direito das obrigações”. Passemos, pois, à evolução histórica do direito comercial. II - DO SURGIMENTO DO DIREITO COMERCIAL À TEORIA DA EMPRESA 1 Expoentes da teoria unificadora citados por BORGES, João Eunápio. Curso de direito comercial terrestre. Rio de Janeiro: Forense, 1964. p. 65. 2 GALGANO, Francesco. História do direito comercial. Lisboa: Coimbra Editora, 1995, p 19. 3 ASCARELLI, Tullio. Panorama do direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1947, p. 16. II.1 - A origem do comércio O homem primitivo vivia do extrativismo, da pesca e da caça, retirando da natureza o necessário à sua sobrevivência. Num segundo momento evolutivo, passou a produzir para seu sustento, criando animais e cultivando a terra. Essas novas atividades fizeram com que grupos sociais fixassem-se em espaços geográficos determinados, organizando-se de forma civilizada, visando a produzir o suficiente à sobrevivência de seus respectivos membros. Com o passar do tempo, o homem percebeu que alguns bens, supérfluos ao seu grupo social, mostravam-se úteis a outros grupos. E que estes, em contrapartida, possuíam produtos que não lhes interessavam, mas que eram proveitosos ao primeiro. Assim, a permuta dos excedentes da produção, da caça e da pesca por produtos úteis, melhorou sobremaneira a vida dos grupos sociais. A troca de bens para satisfazer as necessidades de um grupo por mercadorias existentes em abundância em outro constituiu a primeira manifestação de comércio. No entanto, nem sempre essas permutas se realizavam, pois, apesar de haver recíproco interesse nas sobras da produção alheia, a troca se inviabilizava por não ser esta a ocupação precípua desses agrupamentos sociais, voltada antes à produção do que ao escambo. Percebendo a deficiência com que as permutas se realizavam, surge a figura do intermediário, que, interpondo-se entre os grupos produtores, cria uma nova atividade econômica, organizada para facilitação da troca dos excedentes da produção. Convencionou-se, então, denominar essa atividade de comércio e de comerciante o sujeito que a realiza. II.2 – O surgimento do direito comercial como ramo autônomo do direito privado O comércio desenvolveu-se em larga escala dentre as civilizações primitivas4, mas, a despeito disso, não se pode afirmar, pela escassez de elementos históricos, haver na remota um direito autônomo, com princípios, normas e institutos sistematizados, voltado à regulamentação da atividade mercantil5. Na civilização romana, a política e o ofício bélico eram as funções prestigiadas pelos senadores e patrícios, enquanto a atividade mercantil, considerada degradante, era relegada aos escravos e estrangeiros. Como estes não se sujeitavam ao jus civile, o comércio era regido pelo jus gentium, sendo as questões mercantis submetidas às decisões do pretor peregrinus. Não havia, pois, também no direito romano, regras especiais tratando de relações comerciais6. Com a queda do Império Romano, a Europa Ocidental foi tomada por um novo modelo administrativo caracterizado pela fragmentação política e econômica do Estado. Como este não detinha condições de manter a paz e realizar o direito, a insegurança predominou na Idade Média, atingindo, por lógico, a atividade comercial. 4 Assírios, hebreus, egípcios, fenícios e gregos, segundo relata FERREIRA, Waldemar. Tratado de direito mercantil brasileiro. São Paulo: S. Paulo Editora, 1934. p. 117/118. 5 Cf. BORGES, João Eunápio. Op. cit., p. 17. 6 Cf. GALGANO, Francesco: “só se pode falar-se, em sentido próprio, de ‘direito comercial’ relativamente às sociedades onde tenha vigorado um corpo específico de normas cuja função exclusiva tenha sido a de regular a atividade comercial. Se está de acordo sobre este ponto, como parece óbvio, deve-se admitir-se que a civilização romana, apesar de ter conhecido um tráfego comercial florescente, não teve um direito comercial” (Op. cit., p 26). Some-se a isso o fato de que o direito vigente à época, com fortes influências canônicas e romanas, era rígido nas suas formas e solenidades, carecendo da versatilidade e do sentido prático necessários à regulamentação do tráfico mercantil. Demais disso, o direito medieval considerava imoral o lucro mercantil por se tratar de ganho sem trabalho, de proveito sem produção. Em suma, seja no campo politico-administrativo, seja na seara do direito, o cenário medieval mostrava-se absolutamente desfavorável ao comércio. Mas, a despeito dessasdificuldades, os comerciantes não se quedaram inertes. No intuito de enfrentarem os obstáculos que se lhe apresentavam, os mercadores instintivamente se associavam para a prática do comércio. Viajando em conjunto, evitavam as pilhagens7. Agrupados em lugares públicos, designados pelas autoridades citadinas, faziam negócios sob a fiscalização dos representantes do poder, que legitimavam as transações8. Foram assim criados os mercados, locais urbanos onde se centralizavam as operações comerciais, possibilitando o crescente desenvolvimento da mercancia. Com o incremento do comércio, fortaleceram-se os grupos profissionais dos mercadores, chamados de corporações de ofício. Bem organizadas, as corporações passaram a tutelar os interesses de seus membros face à impotência do Estado. Segundo JOÃO EUNÁPIO BORGES9, 7 Cf. CLIVE DAY: “supõe-se que os perigos e as dificuldades para comerciar eram tão grandes que os mercadores, a princípio, se reuniam para viajarem em grupos, à guisa das caravanas, ainda subsistentes nos dias atuais, nos países menos governados do Oriente. Provavelmente, a organização era efêmera; era feita para cada viagem. Mais tarde as expedições se tornaram frequentes e se verificou a vantagem de dar um caráter permanente à organização corporativa” (Historia del comércio. México, 1941, n. 52, p. 46/47). 8 Cf. COSTA, Philomeno da. Autonomia do direito comercial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1956, p. 21. 9 Op. cit., p. 25. “contrastando com a inexistência ou a fraqueza do governo da cidade, as corporações ricas e poderosas, é que de fato o exerciam, assumindo as funções do Estado”. Com efeito, encontrando-se o ordenamento jurídico medieval estruturado num misto de direito romano e canônico, contrário à prática comercial e exercido por um poder jurisdicional frágil, os comerciantes evitavam submeter seus litígios à jurisdição estatal. Buscavam, antes, a solução de suas desavenças nas corporações de ofício, formadas por profissionais experientes, que elegiam um cônsul para dirimir as contendas de seus associados. As decisões consulares não se baseavam no direito legislado medieval, que, como dito, além de não cuidar da prática mercantil, era avesso ao lucro. Fundavam-se, então, nas práticas comerciais sedimentadas pelos usos e costumes. Essas decisões constituíam jurisprudências que formavam os estatutos das corporações. E, tal era o poderio político e militar das ligas e corporações comerciais, que seus estatutos confundiam-se com os estatutos das cidades mercantis, cristalizando o direito consular, de maneira uniforme e com abrangência internacional, nos locais onde eram realizadas as feiras. Foi assim que surgiu e consolidou-se o direito comercial: em decorrência da inaptidão do direito civil para regulamentar a atividade mercantil, os próprios comerciantes tiveram que se organizar em favor da tutela de seus interesses. Emergiu, pois, como reação ao direito medieval, um direito novo, costumeiro, corporativo, profissional, universal e autônomo. Dúvidas não há, portanto, de que o direito comercial tem sua origem independente do direito comum. Este, oriundo das autoridades medievais, era solene e formal, hostil ao comércio e favorável aos devedores. Já o direito comercial, próprio da jurisdição consular, surge simples e informal, baseado na equidade e nas práticas comerciais. II.3 – A expansão do direito comercial e sua codificação como ramo autônomo do direito privado Estabelecido na liberdade de iniciativa e no mercado livre, o direito comercial rompeu os vínculos da sociedade feudal, libertando-se dos rígidos preceitos em que se fundava o direito romano-canônico. Reunindo princípios, regras e institutos ora criados, ora aperfeiçoados, pelas corporações de ofício medievais, o direito comercial surgiu para regulamentar a atividade de uma classe até então desprezada pelo direito comum. Evidenciou-se, de tal modo, como um direito especial, elaborado pelos comerciantes para os próprios comerciantes. Relata RUBES REQUIÃO10 que “tal foi o sucesso dos juízes consulares, que julgavam pelos usos e costumes sob a inspiração da equidade, e o poder político e social da corporação de mercadores, que de tribunais ‘fechados’, classistas, com competência exclusiva para julgar e dirimir as disputas entre comerciantes, foram atraindo para seu âmbito as demandas existentes, muito naturais, de comerciantes para não comerciantes”. Inicia-se, assim, o processo de expansão do direito comercial, ampliando seu campo de abrangência às pessoas que, embora não mercadoras, figuram como partícipes de negócios mercantis. O direito comercial, que tinha seu objeto na pessoa do comerciante (era um direito subjetivo), volta- se para o ato de comércio (adotando um modelo objetivo), tal como retrata VIVANTE11: “passou-se do sistema subjetivo ao objetivo, valendo-se da ficção 10 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 11. 11 Apud REQUIÃO, Rubens. Op. cit., p. 12. segundo a qual deve reputar-se comerciante qualquer pessoa que atue em juízo por motivo comercial. Essa ficção favoreceu a extensão do direito especial dos comerciantes a todos os atos de comércio, fosse que fosse seu autor”. Essa tendência expansionista do direito comercial ganha corpo com o fortalecimento dos estados monárquicos centralizados, que reivindicaram para si o monopólio da função legislativa. O direito comercial passou, então, a integrar o direito estatal, na forma das ordenações do rei, dentre as quais se destacaram as de Luiz XIV, com inspiração política do ministro Colbert12. Em memorável aula proferida na Faculdade de Direito de Porto Alegre, ASCARELLI13 esclarece que, com as ordenações, o direito comercial transformou-se, paulatinamente, de um direito subjetivo (direito do comerciante) para um direito objetivo (direito do comércio), transição esta solidificada pelo código napoleônico. Com efeito, inspirado pelo ideal de igualdade advindo da Revolução Francesa e empenhado em fortalecer o Estado ante os organismos corporativos, Napoleão constituiu uma comissão formada por juízes, 12 Aponta Carvalho de Mendonça que Colbert procurou ouvir os entendidos em matéria comercial quando resolveu redigir o ato das ordenanças, dentre os quais Savary. Tamanha teria sido a participação de Savary na elaboração das ordenanças de 1673, que estas receberam o nome de Code de Savay (CARVALHO DE MENDONÇA, José Xavier. Tratado de direito comercial brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1933, volume I, p. 64). 13 Cf. Ascarelli: “o direito comercial foi então passando pouco a pouco (embora de início de modo indireto e quase hipócrita, como através da presunção da qualidade de comerciante quoad actum dos que efetuassem um ato de comércio isolado, o que, por seu turno, se prendeu ao desejo da noblesse de praticar atos de comércio sem ser comerciante) do anterior sistema subjetivo a um sistema objetivo, qual triunfou definitivamente no código napoleônico, ou seja, a aplicação das regras comerciais a qualquer ato mercantil, independentemente da pessoa do agente e portanto também aos atos realizados por quem não fosse comerciante” (Op. cit., p. 29). jurisconsultos e negociantes para, sob sua presidência, elaborar um código comercial que tratasse da atividade comercial, indistintamente de quem a praticasse, membro ou não de corporações de ofício, não cabendo qualquer favorecimento à classe profissional dos comerciantes.Surge, dessa feita, um direito comercial novo, legislado, cujas inovações são sintetizadas com maestria por FRANCESCO GALGANO14: “a classe mercantil deixa de ser artífice do seu próprio direito. O direito comercial experimenta uma dupla transformação: o que foi direito de classe transforma-se em direito do Estado; o que foi direito universal converte-se em direito nacional. As suas fontes são as leis do Estado vigentes nos limites nacionais, diferentes, portanto, de Estado para Estado”. A jurisdição comercial passou “das antigas magistraturas mercantis, no seio das corporações, para os tribunais do Estado, concebidos, não obstante, como tribunais especiais, formados por juízes eleitos por uma assembléia de mercadores, mas nomeados pelo Rei e investidos de poder soberano”. Nem se diga, contudo, que as transições supra apontadas tiveram o condão de retirar o caráter especial do direito comercial. A dilação de seu campo de abrangência – de direito profissional dos comerciante para direito dos atos de comércio – limitou-se ao alargamento do âmbito de seu objeto, acentuando a distinção entre matéria civil e matéria comercial15. De fato, integrando o ordenamento jurídico positivo, o direito comercial solidificou-se como ramo autônomo do direito privado, cabendo-lhe tratar das várias atividades econômicas que, por sua natureza, exigiam simplicidade, informalidade e celeridade na sua regulamentação. 14 Op. cit., p 56. 15 Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 14. Segundo lição de WALDEMAR FERREIRA16, o Code de Commerce, promulgado em setembro de 1807 e vigente desde o primeiro dia de 1808, “apareceu no momento oportuno. Graças às descobertas científicas e à rapidez dos meios de comunicação, transformou-se o comércio, ao desabrochar do século XIX. Restaurando, sob novas formas, e com acréscimos, a antiga legislação, o código assegurou a sua preponderância. Solidificou as relações jurídicas, então incertas. Consolidou todas as normas em vigor. Abriu novos rumos ao direito comercial, sem servir de embaraço ao seu desenvolvimento”. Foi dessa feita que as codificações francesas – reunindo normas civis num código civil17 e comerciais num código comercial – dividiu o direito privado em razão da matéria, o que evidenciou, de modo inequívoco, a autonomia do direito comercial18. E, levando-se em conta haver sido o modelo francês a principal influência do direito positivo dos países de tradição romanística, seus princípios foram transmitidos aos códigos comerciais oitocentistas de diversos países de língua latina, como o belga, o espanhol, o português, o italiano e o brasileiro. Seguindo o modelo francês, nosso direito privado dicotomizou-se em dois diplomas legislativos: Código Civil (1916) e Código 16 Cf. FERREIRA, Waldemar. Op. cit., p.150. 17 O Código Civil napoleônico foi promulgado em 1804, três anos antes do Code de Commerce. 18 Cf. Vera Helena de Mello Franco, citando Galgano e Roppo: “esta duplicação de Códigos, na lição da doutrina, refletia a divisão interna da burquesia, reservando o Código Civil para aqueles que exploravam a terra, sobretudo a propriedade rural, a saber, a antiga e a nova nobreza da terra, a quem, particularmente, não agradava ser confundida com a nova classe formada pela ascendente burguesia capitalista que explorava a indústria, o comércio e os serviços” (MELLO FRANCO, Vera Helena. Manual de direito comercial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 25). Comercial (1850), a despeito de opinião contrária de TEIXEIRA DE FREITAS19, arauto primeiro do movimento em prol da unificação do direito privado. II.4 – A Comercialização do Direito Civil Como visto, o sistema objetivo realçou a independência do direito comercial em face do civil. Os atos jurídicos foram divididos em comerciais e não comerciais. Enquanto a regulamentação destes dava-se pelo direito comum, competiu ao direito mercantil, como direito especial, cuidar dos atos comerciais. Coube, assim, à lei comercial distinguir a matéria civil da comercial para delimitar seu campo de abrangência. Acontece que essa distinção não se mostrou tão simples, pois o conceito econômico de comércio nem sempre se coadunava com seu conceito jurídico20. Inúmeros institutos, embora não compreendidos no conceito econômico de comércio21, eram tidos como tal pelo direito comercial, porquanto intimamente vinculados à mercancia, merecendo regulamentação especial (e.g. a industria manufatureira, os títulos de crédito e as operações bancárias e securitárias)22. 19 Cf. BORGES, João Eunápio: “Encarregado pelo governo imperial de organizar projeto do código civil brasileiro, em longa e sábia exposição, TEIXEIRA DE FREITAS, em 20 de setembro de 1867, fez ao governo interessante e original proposta para unificação do direito privado”. 20 Cf. REQUIÃO, Rubens: “para melhor compreender por que o direito comercial não é apenas nem o direito do comércio nem o direito dos comerciantes, é necessário descer à análise do conceito econômico de comércio. Veremos, então, que esse conceito não se ajusta exatamente ao seu conceito jurídico” (Op. cit. p. 3). 21 O conceito econômico de comércio, segundo João Eunápio Borges, traduz-se no “emprego da atividade humana destinada a promover e facilitar a troca” (BORGES, João Eunápio. Curso de direito comercial terrestre. Rio de Janeiro: Forense, 1964. p. 12). 22 Cf. ASCARELLI. Op. cit., p. 31/36. Havia, por outro lado, matérias que, a despeito de sua evidente natureza civil, eram consideradas comerciais por expressa disposição legal. Destacam-se, no direito brasileiro, a construção civil23 e as sociedades anônimas24. Demais disso, algumas atividades encontravam-se numa zona gris, cuja imprecisão dificultava perquirir com nitidez sua natureza jurídica. Diante de tal imprecisão, ficava a cargo dos Tribunais categoriza-las como mercantis ou não, gerando no operador de direito, e no próprio negociante, enorme insegurança quanto ao tratamento jurídico que se lhe deveria aplicar, conforme alertou VIVANTE25 em sua insigne Prolusione: “A faculdade atribuída a juízes e tribunais de conceituar como de comércio, por analogia, atos não enumerados no código, deixa ao variável critério e arbítrio dos magistrados não somente a escolha da lei aplicável como, o que é mais grave e perigoso, a caracterização civil ou comercial da profissão de quem pratica habitualmente aqueles atos de incerta e duvidosa comercialidade. Com as consequências de incorrer em falência e na prática de crimes falimentares quem, não se sabendo comerciante, não se julgava sujeito a tais riscos e às obrigações profissionais de tal classe”. De fato, foram inúmeras as decisões que, tal como ilustram os acórdãos ora colacionados, consideravam mercantis atividades de duvidosa comercialidade (e.g. barbearia26, pintura27 e publicidade28). 23 Art. 1º da Lei 4.068/62 - “São comerciais as empresas de construção”. 24 Art. 2º, § 1º, da Lei 6.404/76 - “Qualquer que seja o objeto, a companhia é mercantil e se rege pelas leis e usos do comércio” . 25 Apud BORGES, João Eunápio. Op. cit., p. 51. 26 Cf. RT 450/73: “Barbeiro com salão onde trabalham outros oficiais, correndo risco e com intuito de lucro, pratica ato de mercancia, estando, assim, sob a égide da Lei de Luvas”. Em sentido Como se vê, a matéria comercial, ou seja, o campo de abrangência do direito comercial, foise estendendo desmesuradamente, de forma que, com o correr dos tempos, infiltraram-se em todas as classes sociais, manifestando-se nos atos mais comuns da vida cotidiana29. Decorrência disso foi a transformação dos negócios econômicos de natureza civil, passando a exigir celeridade nas transações, facilidade na concessão de crédito, simplicidade das manifestações de vontade e reforço dos vínculos obrigacionais. Essas atividades, organizadas de modo análogo às das empresas mercantis, desenvolveram-se com as mesmas exigências das atividades comerciais, mas, contudo, continuavam regulamentadas pelo direito comum, que, conforme salientado, não se harmonizava com o exercício da atividade profissional de massa. Essa influência que o direito mercantil passou a exercer sobre o direito civil – chamada por WALDEMAR FERREIRA30 de comercialização dos atos civis e por WALDÍRIO BULGARELLI31 de generalização do direito comercial – aproximou os dois grandes ramos do direito privado, incutindo em alguns autores a idéia de que a autonomia do direito mercantil houvera se exaurido. contrário, RJTAMG 40/118: “Não possui legitimidade ativa para propor a ação renovatória o salão de barbearia, uma vez que realiza mera prestação de serviço, não incluída entre os atos típicos de mercancia ( voto vencido do Juiz José Brandão). 27 Cf. RT 440/72: “Embora só como registro no Cartório de Títulos e Documentos, é mercantil a sociedade que, para a pintura de prédios, não se limita à exploração de mão-de-obra, mas adquire a tinta necessária para esse fim e por se considerar de natureza mercantil, pretendeu impetrar concordata preventiva” 28 Cf. RT 489/76: “Empresa de publicidade tem natureza comercial e está sujeita à falência”. 29 Cf. COSTA, Philomeno da. Op. cit., p. 70. 30 FERREIRA, Waldemar. Op. cit, p. 70. 31 BULGARELLI, Waldírio. Tratado de direito empresarial. São Paulo: Atlas, 1997, p. 13. II.5 – O Movimento Unificador do Direito Privado Com efeito, relata PHILOMENO DA COSTA32 que “a extensão constante e cada vez mais acentuada da esfera de ação do direito comercial formou um movimento favorável à sua supressão”. Para seus partidários, “teriam desaparecido as peculiaridades intrínsecas e extrínsecas do primitivo ‘direito’ dos mercadores; não existiria mais a especialidade do seu caráter e da natureza das relações por ele reguladas; ter-se-ia operado a confusão”. Esse raciocínio impulsionou inúmeras tentativas de unificação do direito privado que, tendo como precursor33 nosso TEIXEIRA DE FREITAS34, buscam desde o século atrasado a supressão da autonomia do direito comercial. Mas a celeuma só veio a se difundir amplamente nos meios jurídicos com a aula inaugural proferida por VIVANTE35 em 1892 na Faculdade de Bolonha, na qual o mestre italiano manifestou seu repúdio à dicotomia do direito privado. 32 COSTA, Philomeno da. Op. cit., p. 73. 33 Cf. ASCARELLI: “o primeiro fundador do movimento de unificação foi o grandíssimo civilista brasileiro Teixeira de Freitas, que precedeu de muitos anos a Vivante” (Revista de Direito Comercial, vol. 11, p. 33, nota 41). 34Apud CARVALHO DE MENDONÇA: “todos os atos da vida jurídica, excetuados os benéficos, podem ser comerciais ou não-comerciais, isto é, tanto podem ter por fim o lucro pecuniário, como outra satisfação da existência” (Op. cit., 23). 35 VIVANTE, Cesare. Trattato di diritto commerciale. Milano: Casa Editrice Dottor Grancesco Valllardi, 1922, p. 1. A reação dos autonomistas foi imediata, tomando relevo, na própria Itália, a obra de ALFREDO ROCCO36, que não poupou críticas à teoria unificadora. Acontece que o mesmo jurista que deflagrou o movimento unificador do direito privado acabou por reconsiderar seu ponto de vista, retratando-se: “por minha freqüente participação nas reformas legislativas e especialmente na do Código do Comércio, durante os numerosos anos transcorridos desde a iniciativa a que me venho referindo, me convenceram que a fusão dos dois Códigos em um acarretaria grande prejuízo para o direito mercantil” (VIVANTE, 1919)37. Apesar da retratação do grande mestre peninsular, que presidiu a comissão responsável pelo projeto de reformulação do direito comercial, o legislador italiano, de forma paradoxal, pareceu sucumbir ao movimento unificador, promulgando em 1942 um Código Civil onde se encontram justapostas matéria civil e comercial38. A entrada em vigor do Codice Civile italiano inaugurou, destarte, a última etapa evolutiva do direito comercial nos países de tradição romanística, consagrando a teoria da empresa, pela qual o direito comercial mais uma vez sofre alargamento do seu campo de abrangência, deslocando seu objeto do ato de comércio para a empresa39. 36 ROCCO, Alfredo. Corso di diritto commerciale. Padova: La Litotipo Editrice Universitaria, 1921, p. 58 37 Apud MARTINS, Fran. Curso de direito comercial, Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 26. 38 Como em 1881 a Suiça já houvera unificado seu direito das obrigações, não se pode dizer que a Itália tenha sido a pioneira na unificação do direito privado (na verdade, conforme veremos a seguir, não se pode dizer sequer ter havido na Itália ou na Suiça unificação do direito privado). 39 Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit., p. 17. De fato, o direito comercial italiano transmudou-se de mero regulador dos atos de comércio, vindo a atender toda atividade empresarial, seja de natureza civil, seja comercial. Seu foco voltou-se para a série coordenada de atos destinados a fins econômicos, de natureza civil ou comercial, organizados sob a forma de empresa. II.6 – O Novo Código Civil Brasileiro Ao contrário da Suiça e da Itália, restaram frustradas no Brasil todas tentativas de reformulação do direito privado elaboradas no século passado, não obstante haver sido constatada, desde TEIXEIRA DE FREITAS, a deficiência do sistema adotado pelo código comercial de 1850. Como não surtiram efeito os projetos de INGLÊS DE SOUZA (1911), de PHILADELFO AZEVEDO, OROZIMBO NONATO e HAHNEMANN GUIMARÃES (1941), de FLORÊNCIO DE ABREU (1949) e de FRANCISCO CAMPOS (1952)40, o direito comercial brasileiro manteve-se encadeado, por mais de um século e meio, na vetusta teoria dos atos de comércio. 40 Cf. BULGARELLI, Waldirio: “no Brasil, assinalam-se, ainda, várias tentativas: a de Herculano Marcos Inglês de Souza, que, em 1911, incumbido de apresentar um projeto de código comercial, foi autorizado (Decreto n.º 2.379, de 4 de janeiro de 1911) a transformá-lo em projeto de código privado, o qual, porém, não teve seguimento, embora tivesse chegado a ser aprovado pelo Senado. Em 1941, foi apresentado anteprojeto de Código das Obrigações, de autoria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, Philadelfo Azevedo, Orozimbo Nonato e Hahnemann Guimarães, que não chegou a ser encaminhado ao legislativo; em 1949, foi apresentado esboço de projeto, de autoria do Desembargador Florêncio de Abreu, que, encaminhado em 1950 pelo então presidente Dutra ao Congresso, não chegou a ser aprovado. Assinale-se também que, em 1952, o professor Francisco Campos foi convidado pelo Governo para redigir um novo código de comércio.” (Direito comercial. São Paulo: Atlas, 1999, p. 60). Assim, a transição do direito brasileiro – do sistema francês ao italiano – só veio a se efetivar em 2002, com a promulgação do novo CódigoCivil. Essa lenta transformação vinha há muito sendo esperada, pois desde 1975 tramitava no Congresso Nacional o projeto legislativo de lavra do eminente MIGUEL REALE. Inspirado, pois, no modelo italiano, o legislador brasileiro abandonou o sistema dos atos de comércio para adotar a empresa como célula nuclear da regulamentação dos negócios jurídicos de natureza econômica. Despontaram, em razão disso, argumentos diversos pelo fim da autonomia do direito comercial: (i) alguns ainda arraigados em altercações históricas; (ii) outros fundados no deslocamento das normas empresariais do código comercial para o novo código civil; (iii) e outros tantos sustentando que a teoria da empresa teria jungido o direito comercial ao direito comum, fazendo com que a especialidade daquele desaparecesse. Resumidos os argumentos anti-autonomistas nesses três grandes grupos, passamos à análise pormenorizada de cada um deles em separado. III – A AUTONOMIA HISTÓRICA Podemos retirar da obra de PHILOMENO DA COSTA41 a síntese dos argumentos históricos contrários à autonomia do direito mercantil: “Embora um direito comercial tenha nascido espontaneamente como ramo distinto das relações jurídico-privadas, por um processo ocorrido na Idade Média, desaparecem, todavia, os motivos históricos; 41 Op. cit., p. 339. a cisão do direito privado já foi superada; um direito comercial não é uma necessidade jurídica imanente, por isso que Roma não o teve; desde que o ato de comércio se tornou objetivo, iniciou-se o retorno à unidade. Se a formação dum direito comercial representa o resultado de um processo histórico, também o representa o seu desaparecimento” Logo, uma premissa é indiscutível: tanto para os autonomistas, como para os unificadores, o direito comercial teve sua origem independente do direito comum. Como na Idade Média o direito civil não cuidava de regulamentar as relações comerciais e, considerando que o Estado era fraco, não provendo os comerciantes da segurança física e jurídica necessárias ao exercício do comércio, os mercadores organizaram-se e criaram um direito próprio: consuetudinário e classista. Em sua primeira fase (subjetiva) o direito comercial é indubitavelmente autônomo, seja quanto à fonte legislativa de seus preceitos, seja no que tange ao seu objeto. Teria, entretanto, o direito mercantil perdido sua autonomia ao passar da fase subjetiva para a objetiva? Em outros termos, teria o direito mercantil perdido sua especialidade ao deixar de ser o direito do comerciante para se tornar o direito dos atos de comércio? Tais indagações são respondidas por FÁBIO ULHOA42 com a clareza que lhe é peculiar: “Claro que a mudança não desnatura o direito comercial como conjunto de normas protencionistas dos comerciantes. O sentido da passagem para [essa nova] etapa evolutiva do direito comercial, ou seja, da adoção da teoria dos atos de comércio como critério de identificação do âmbito de incidência deste ramo da disciplina jurídica, restringe-se à abolição do corporativismo. Em outros termos, a partir [desse novo] período histórico do direito comercial, qualquer cidadão pode exercer atividade mercantil e não 42 Op. cit., p. 14. apenas os aceitos em determinada associação profissional (a corporação de ofício dos comerciantes). Contudo, uma vez explorando o comércio, passa a gozar de alguns privilégios concedidos por uma disciplina jurídica específica”. Nem se diga, entretanto, que a migração da jurisdição comercial, abandonando as antigas magistraturas mercantis, próprias das corporações, teria retirado sua especialidade. Realmente, o direito comercial da fase objetiva perdeu sua fonte especial, mas não deixou de possuir objeto distinto do direito comum. Pelo contrário, a positivação do direito comercial realçou a distinção entre matéria civil e comercial, firmando a independência do direito mercantil. E quando o direito comercial generalizou-se, abrangendo atividades outras não propriamente mercantis? Esse fenômeno, conhecido por comercialização dos atos civis, teria aproximado o direito comercial do direito comum a ponto daquele perder sua especialidade? Responde-nos, com propriedade, WALDEMAR FERREIRA43: “Não sofre o [direito] comercial, entretanto, nenhum diminutivo. Não renuncia a qualquer de suas regras características. Toma-o, ao contrário, o civil por modelo, em certos pontos. Imita-o. Pode-se dizer, com um pouco de exagero, estar ele em vias de comercializar-se. Como exemplos dessa sua comercialização, são de notar a aplicação aos créditos civis, de formas negociáveis, das regras de circulação dos efeitos mercantis, a extensão da personalidade jurídica às sociedades civis, etc.” Tem-se, portanto, que o direito comercial surgiu como ramo independente do direito privado e, como tal, solidificou-se ao ser positivado, levando, inclusive, à elaboração de dois diplomas legais distintos: um código 43 Op. cit., p. 70. civil, tratando de matéria civil, e um código comercial, cuidando da atividade mercantil. E, mesmo com sua generalização, continuou autônomo em relação ao direito civil, assim permanecendo, no Brasil, até a promulgação do novo Código Civil. IV – A TEORIA DA EMPRESA, O NOVO CÓDIGO CIVIL E A AUTONOMIA DO DIREITO COMERCIAL Como visto, diante das dificuldades em se definir o âmbito do direito comercial, e, em face da comercialização do direito civil, os operadores do direito puseram-se a buscar um critério mais amplo para regulamentação das atividades econômicas, de modo a adequar a tutela que os negócios jurídicos oriundos de tais atividades estavam a demandar44. Porquanto o comércio deixou de ser o principal propulsor da economia, surgindo inúmeras outras atividades envolvendo capital e trabalho organizados para a circulação de riquezas, o conceito que melhor se adaptou a esse novo cenário não foi encontrado no direito, mas na ciência econômica. Essa moderna concepção centrou-se, pois, na empresa – instituição econômica criada pela Revolução Industrial e que se desenvolveu de forma a dominar o panorama da economia atual45. 44 Cf. BULGARELLI, Waldírio: “A evolução da economia moderna iniciada na Revolução Industrial, produziu, como não podia deixar de ser, traumas marcantes na estrutura íntima do Direito Comercial, sobretudo em relação à forma como viera se configurando desde seu nascimento, apresentando uma evolução histórica peculiar. E, se é certo que perdeu muito com a passagem de vários de seus institutos para o uso comum – no processo conhecido como generalização do Direito Comercial – ganhou, em contrapartida, outra vitalidade e amplitude com os novos institutos surgidos na prática econômica” (Op. cit., p. 13). 45 Cf. BULGARELLI, Waldírio. Tratado..., p. 14. A empresa, enquanto atividade organizada, voltada à produção ou circulação de bens e serviços, passou, então, a atrair o foco do direito comercial, fazendo emergir dentre os meios jurídicos a teoria da empresa em substituição à ultrapassada teoria dos atos de comércio. Registra LUIZ ANTONIO HENTZ46 que “foi somente no século XX que se desenvolveu uma outra noção, apta a definir a matéria comercial. Se as buscas não tivessem sido incessantes (disso dá conta os inúmeros tratados de direito mercantil), não seria necessário, nem teria efeito prático algum, hoje, estar-se deslindando as idas e vindas nesse espinhoso caminho. O passo foi gigantesco,todavia: a teoria da empresa pretende a transposição para o mundo jurídico de um fenômeno que é sócio-econômico: a empresa como centro fomentador do comércio, como sempre foi, mas com um colorido com o qual nunca foi vista”. Essa transmutação, consagrada na Itália pelo Código Civil de 1942, levou alguns autores, dentre os quais FERRARA JÚNIOR47 e MAZEAUD48, a considerarem extinta a autonomia do direito comercial. 46 HENTZ, Luiz Antônio Soares. A teoria da empresa no novo direito de empresa. http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3085, na internet em 22/10/2002. 47 Cf. BORGES, João Eunápio: “em suma, para Ferrara Júnior, a autonomia de um direito, em sentido técnico, só existe quando se verificam as três condições seguintes: (a) que haja um corpo de normas regulando todas as relações de determinado setor da atividade econômica; (b) que tais relações não sejam estruturalmente diferentes das que são disciplinadas em outros setores; (c) que, finalmente, aquele corpo de normas seja dominado por princípios diretivos próprios e diversos dos que valem para outros setores. Assentada assim a sua noção de autonomia, conclui Ferrara Júnior pela sua inexistência no direito comercial italiano atual” (Op. cit., p. 57). 48 “De tal reforma [adoção da teoria da empresa] resultaria a completa unificação do direito privado, como o da família, das coisas e das sucessões” (Apud BORGES, João Eunápio. Op. cit., p. 65) FÁBIO ULHOA COELHO49 noticia esse pensamento – que teoria da empresa teria aclamado a tese unificadora do direito privado – mas critica tal interpretação: “essa teoria [da empresa], contudo, bem examinada, apenas desloca a fronteira entre os regimes civil e comercial”. Com toda razão encontra-se o festejado autor bandeirante: não se pode dizer que a teoria da empresa teve, teria ou terá o condão de unificar o direito privado. Diferentemente do que alegam os sectários da tese unificadora, a empresa não aproxima o direito comercial do direito comum. Pelo contrário, cria um novo núcleo de disciplina privada da atividade econômica, em substituição do vetusto sistema dos atos de comércio. Nesse sentido esclarece RUY DE SOUZA50, em célebre trabalho monográfico apresentado na defesa da Cátedra de Direito Comercial da Casa de Afonso Pena: “o Direito deixaria de ser, como a tradição o formou, um direito do comerciante e dos atos de comércio, para alcançar limites muito mais largos, acomodando-se à plasticidade da economia política”. HENTZ51 ressalta, ainda, que “nem Souza, nem outro qualquer estudioso, defendeu jamais o desaparecimento do direito comercial; pelo contrário, sempre se lhe reservou papel fundamental na estrutura do direito privado, ora por ser especial em relação ao direito civil, ora por se respeitar sua origem a latere do direito comum. (...) De fato, o próprio Ruy de Souza assegura que o direito comercial é, na realidade, o direito dos negócios, ou seja, o direito das atividades econômicas, pondo em evidência o exclusivismo do princípio da unidade, que permite justificar o agrupamento, em um única disciplina, destas diversas regras”. 49 Citando Ascarelli e Ferrara (Op. cit., p. 17). 50 Atualização do direito comercial. Belo Horizonte: Bernanrdo Álvares Editora, 1959, p. 26. 51 HENTZ, Luiz Antônio Soares. A teoria da empresa no novo direito de empresa. http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3085, texto extraído da internet em 22/10/2002. Como a teoria da empresa não modifica substancialmente os princípios, institutos e normas de direito comercial, senão deslocando seu objeto, do ato de comércio à empresa, não se há falar em unificação do direito privado. Tal como o direito comercial, o direito de empresa é um direito de massa, cosmopolita, caracterizado pela simplicidade, celeridade, elasticidade, onerosidade e intenacionalidade. Em verdade, o direito de empresa nada mais é do que o direito comercial em nova roupagem. E, como tal, é autônomo em relação ao direito civil. V – AUTONOMIA FORMAL E JURÍDICA A despeito da irretorquível autonomia do direito de empresa, sustentam os arautos da unificação, sem razão, que a promulgação do novel codex civil teria jungido o direito privado brasileiro ao justapor matéria civil e comercial num mesmo corpo legislativo. Fundam seu raciocínio num conceito de autonomia que pouco influencia o direito52. De fato, a autonomia formal (que muitos autores chamam de autonomia legislativa) é a que resulta da existência, num mesmo ordenamento jurídico, de dois diplomas legais distintos: um código comercial tratando de matéria comercial e um código civil cuidando de matéria civil53. 52 Cf. VALÉRIO, Marco Aurélio Gumieri: “o Código Civil de 1975 traz uma união meramente formal, consistindo numa superposição de projetos, o que, para a ciência jurídica, é de relevância nula, portanto, é preciso que se atente aos parâmetros de conveniência, oportunidade e necessidade, sobretudo científica e didática” (Ainda sobre a unificação do direito privado no Brasil. http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2802 texto extraído da internet em 31/10/2002) 53 Cf. BORGES, João Eunápio. Op. cit., p. 49. Assim, considerando que o direito de empresa encontra-se regulamentado no novo Código Civil, não há dúvidas de que, no aspecto formal, o direito privado foi unificado. Mas, diferentemente da autonomia formal, a autonomia jurídica caracteriza-se por princípios, normas e institutos próprios, sistematizados em torno de um objeto especial, não tratado pelo direito comum. Nesse particular, temos que o direito de empresa possui princípios que lhe são peculiares, como simplicidade, internacionalidade, celeridade, elasticidade e onerosidade; institutos próprios, como a falência, a concordata e as sociedades anônimas; e normas especiais, tais como as que cuidam do registro e da escrituração mercantil. Levando-se em conta que a autonomia jurídica “consiste na possibilidade de se determinar cientificamente a matéria de um ramo do direito, isolando-se o seu conteúdo, que deve ser original e próprio em relação aos outros, independentemente de estar ou não integrado num único código ou em corpos de leis únicos”54, colige-se que o direito comercial, mesmo após a promulgação do novo Código Civil, continua sendo ramo autônomo do direito privado. Nessa mesma linha já havia se posicionado RUBENS REQUIÃO55 desde o início da tramitação do projeto: 54 Cf. ARNOLDI, Paulo Roberto Colombo. Teoria geral do direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 16. 55 REQUIÃO, Rubens. Aspectos modernos de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 207. “Consiste a unificação, isto sim, na simples justaposição formal da matéria civil ao lado da matéria comercial, regulada num mesmo diploma. Constitui, repetimos, simples e inexpressiva unificação formal. Isso, na verdade, nada diz de científico e de lógico, pois, na verdade, como se disse em Exposição de Motivos preliminar, o Direito Comercial, como disciplina autônoma, não desaparecerá com a codificação, pois nela apenas se integra formalmente”. Na Exposição de Motivos do novo Código Civil, o próprio MIGUEL REALE56 já havia posto uma pá de cal sobre o assunto: “Não há, pois, que falar em unificação do Direito Privado a não ser em suas matrizes, isto é, com referência aos institutos básicos, pois nada impede que do tronco comum se alonguem e se desdobrem, sem sedesprenderem, ramos normativos específicos, que, com aquelas matrizes, continuam a compor o sistema científico do Direito Civil ou Comercial. Como foi dito com relação ao Código Civil italiano de 1942, a unificação do Direito Civil e do Direito Comercial, no campo das obrigações, é de alcance legislativo, e não doutrinário, sem afetar a autonomia daquelas disciplinas. No caso do Anteprojeto ora apresentado, tal autonomia ainda mais se preserva, pela adoção da “técnica da legislação aditiva”, onde e quando julgada conveniente” Com efeito, o direito comercial – doravante denominado direito de empresa – possui identidade própria. A migração de suas normas para o Código Civil não tem o condão de as transformar em normas civis. Como água e azeite, os direitos comercial e civil não se misturam. Ainda que situados num mesmo receptáculo, prevalecem dissociados seus princípios e institutos. A unificação formal do direito privado não afetou, pois, a autonomia jurídica do direito comercial 56 Novo Código Civil. Senado Federal, Brasília: 2002. VI – CRÍTICA À CODIFICAÇÃO Saliente-se, por fim, que as grandes codificações, próprias da era napoleônica, não consistem, hoje, na melhor opção legislativa. A especificidade dos fatos e a diversidade de institutos jurídicos estão a exigir tratamento legislativo mais direcionado, mais consentâneo às características próprias desses temas modernos. É o que aponta, com propriedade, o jovem e talentoso comercialista mineiro, MARCELO FERES57: “Após as Grandes Guerras, proliferou-se a utilização dos chamados microssistemas legislativos. São diplomas legais que têm por tarefa a regulamentação de determinadas matérias especiais, de considerável complexidade, que se recomenda o seu trato da forma mais completa possível em documento ímpar. A apontada complexidade de certos temas é constatada na vida cotidiana moderna. São exemplos dessas legislações, dentre outras, a lei de falências, a lei das S/A, o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Há doutrinadores que defendem a criação de um Código de Direito de Família”. Em suma, o novo Código Civil veio ao atropelo da nova tendência do Direito contemporâneo, que aponta para a codificação de regras gerais de direito privado, deixando para a legislação extravagante o tratamento sistematizado dos microssistemas jurídicos, tais como Direito Societário, Direito Cambial, Direito Concursal, Propriedade Industrial, dentre outros, de modo a prestigiar a elasticidade de seus princípios. 57 FÉRES, Marcelo Andrade. Empresa e empresário: do código civil italiano ao novo código civil brasileiro. In: RODRIGUES, Frederico Viana (Org.). Direito de empresa no novo código civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003. VII – CONCLUSÃO Com a passagem do atual sistema dos atos de comércio para a teoria da empresa, o direito comercial manteve-se como direito especial dos negócios econômicos. Não sofreu, portanto, mudanças estruturais em sua sistematização. Houve, é lógico, um alargamento de seu objeto, o que levou até mesmo à alteração de sua nomenclatura, doravante denominado direito de empresa. O direito de empresa – nova veste do direito comercial – tal como este é dinâmico. São simples suas fórmulas, internacionais suas regras e institutos, célere sua aplicação, elásticos seus princípios e onerosas suas operações. Já o direito civil é estático, formal, regional, lento e restrito58. São dois corpos orgânicos distintos, cuja sistematização de normas, princípios e institutos sobrepõe-se à sua exteriorização física. Tal como na Itália, o direito comercial brasileiro perdeu sua independência formal com a promulgação do novo Código Civil. Mas também cá, assim como lá, o direito de empresa mantém inalterada sua autonomia material. Com efeito, passados, na Itália, sessenta anos da promulgação do Codice Civile, ainda hoje a jurisprudência e a comunidade científica tratam o direito comercial como ramo autônomo do direito privado. É essa a prova maior da prevalência da teoria autonomista sobre a unificadora, conforme assenta FÁBIO ULHOA, a cuja ilação aderimos para conclusão do presente trabalho: 58 Cf. MARTINS, Fran. Op. cit., p. 28. “A demonstração irrespondível, porém, de que a autonomia do direito comercial não é comprometida nem pela unificação legislativa do direito privado, nem pela teoria da empresa, encontra-se nos currículos dos cursos jurídicos das faculdades italianas. Já se passaram 60 anos da unificação legislativa e da adoção da teoria da empresa na Itália, e o direito comercial continua sendo tratado lá como disciplina autônoma, com professores e literatura especializados. Até mesmo em reformas curriculares recentes, como a empreendida na Faculdade de Direito de Bolonha a partir do ano letivo de 1996/1997, a autonomia do direito comercial foi amplamente prestigiada” 59. 59 Fábio Ulhoa, Op. cit. p. 28. VIII – BIBLIOGRAFIA ARNOLDI, Paulo Roberto Colombo. Teoria geral do direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1998. ASCARELLI, Tullio. Panorama do Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 1947. __________. Revista de direito comercial, vol. 11, p. 33. BORGES, João Eunápio. Curso de direito comercial terrestre. Rio de Janeiro: Forense, 1964. BULGARELLI, Waldirio. Direito comercial, São Paulo: Atlas, 1999. __________. Tratado de direito empresarial. São Paulo: Atlas, 1997. CARVALHO DE MENDONÇA, José Xavier. Tratado de direito comercial brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1933, volume I. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2002. COSTA, Philomeno da. Autonomia do direito comercial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1956. DAY, Clive. Historia del comércio. México, 1941, n. 52. DE SOUZA, Ruy. Atualização do direito comercial. Belo Horizonte: Bernanrdo Álvares Editora, 1959. FÉRES, Marcelo Andrade. Empresa e empresário: do código civil italiano ao novo código civil brasileiro. In: RODRIGUES, Frederico Viana. Direito de empresa no novo código civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003. FERREIRA, Waldemar. Tratado de direito mercantil brasileiro. São Paulo: S. Paulo Editora, 1934. GALGANO, Francesco. História do direito comercial. Lisboa: Coimbra Editora, 1995. HENTZ, Luiz Antônio Soares. A teoria da empresa no novo direito de empresa. http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3085, na internet em 22/10/2002. MARTINS, Fran. Curso de direito comercial, Rio de Janeiro: Forense, 2000. MELLO FRANCO, Vera Helena. Manual de direito comercial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1998. __________. Aspectos modernos de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 207. ROCCO, Alfredo. Corso di diritto commerciale. Padova: La Litotipo Editrice Universitaria, 1921, p. 58 VIVANTE, Cesare. Trattato di diritto commerciale. Milano: Casa Editrice Dottor Grancesco Valllardi, 1922.
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