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BERNARDES, Jose Augusto Cardoso. Revisoes de Gil Vicente

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REVISOES 
DE GIL VICENTE 
JOSE AUGUSTO CARDOSO BERNARDES 
SBD-FFLCH-USP 
11II111111111111111111111111111111111111 
283768 
.; .. 
DEDALUS • Acervo • FFLCH 
IIIII~ III~ 11111 II/~ II~ II~ 11111111111/111 ~I~ 11111 ~~ 1111 
20900022371 
© Jose Augusto Cardoso Bernardes e Angelus Novus (2003) 
Capa (maquetagem e grafismo): Francisco Romao 
Impressao: G.C Graflca de Coimbra, Lda. 
producao@graficadecoimbra.pt 
ISBN: 972-8827-21-0 
Dep6sito Legal: 204528/03 
Editora: Angelus Novus. ida. 
Rua do Peneireiro, 10 
Quinta da Madalena 
3040-716 Coimbra 
e-mail: angelusnovus@maiLtelepac.pt 
Reservados todos os direitos de acordo com a legislarao em vigor 
" 
I 
1 
MATRIZES E IDENTIDADE 
DO TEATRO DE GIL VICENTE 
Em tempo de comemora0es, sente-se mais a falta de elementos uni-
fkantes para perceber a obra de Gil Vicente. Faz-nos falra um rerrato, 
desde logo. Um retrato fisko como 0 que possuimos de Cam6es, por 
exemplo, mesmo contando com todas as incertezas que a esse respeito 
possa haver. Se tivessemos urn tosto, talvez Fosse possivel intuir nde a ener':' 
gia reguladora de uma obra tao vasta e tao diversa. 
Nao ha urn rerrato fisico, mesmo aproximado e os problemas de 
identidade come<;:am aL Claro que possuimos outro tipo de aproxima<;:6es 
identitarias, de base cultural; mas, ate hoje, nenhuma ddas conseguiu 
suprir a ausencia de uma imagem que funcionasse como base de perscru-
tac;ao. Nao digo que atraves da fisionomia Fosse possivel derimir questoes 
biograficas essenciais: poderiamos alguma vez conduir atraves de um 
retrato, mesmo fiel, onde nasceu 0 dramaturgo? poderiamos determinar, a 
partir dessa base fragil e fortuita, qual a natureza e a origem da sua cultura? 
poderiamos apurar, olhando-lhe apenas para a expressao, se de foi ou nao 
realmente 0 ourives de D. Leonor de Lencastre, como quiseram alguns e 
nao quiseram outros? Esta claro que nao podiamos. Ainda assim, talvez 
algo em nos se pacificasse. As comemora<;:oes do 5. 0 centenario do lvlono-
logo do Vaqueiro teriam, pelo menos, um referente mais seguro e menos 
abstracto. 
A falta de um retrato fisico, soma-se ainda a ausencia de elementos 
contextuais seguros. Pode evidentemente dizer-se que existe a obra, que e 
o mais importante e que a propria materialidade dos textos se devia bastar 
a si propria. Mas 0 argumento nao colhe inteiramente. Em termos de pro-
jecto dvico, comemorar uma obra naoe 0 mesmo do que celebrar uma 
figura tangivel. Para mais, a obra de Gil Vicente nao e "redonda"; nao e, 
tao-pouco, directamente confessional, como 0 sao as de Camoes, Bernar-
14 JOSE AUGUSTO CARDOSO BERNARDES 
dim Ribeiro ou Sa de Miranda, qualquer delas parecendo conduzir ao Eu 
da escrita. A circunstancia de se tratar de uma obra dramatica, acolhendo 
no seu plurivocalismo urn sem numero de tens6es, limita-nos imenso no 
acesso a subjectividade de quem a construiu; limita-nos mesmo na pet-
cep~ao das grandes linhas de coerencia que sustentam os textos no plano 
estetico e ideologico. A propria condi~ao de "artista de corte", tantas vezes 
evocada em sentido redutor, nao se revela suficiente para subordinar a 
compreensao unilinear dos cerca de 50 autos reunidos na Copilaram. Visto 
na sua epoca e a luz das suas circunstancias,' 0 teatro vicentino traduz a 
confluencia de energias sociais e artfsticas que estao para alem de qualquer 
etiqueta sociomental, ocultando, na pratica, uma individualidade relativa-
mente misteriosa. 
E claro que podemos continuar a invocar a separa~ao comoda entre 
o autor e a obra. Mas esse argumento (ate ha poucos anos tido por con-
cludente) perdeu tam bern hoje capacidade tranquilizadora. Em suma: urn 
retrato seria util para efeitos de consumo cultural e escolar; e talvez nao 
Fosse mesmo despiciendo para efeitos de percep~o crftica, uma vez que 
tambem at se tern feito sentir negativamente a sfndroma da pluralidade 
contraditoria, que ha tanto tempo vern afectando os esrudos vicentinos. 
Na falta dessa referencia, as questoes tern que ser formuladas a outro 
nfvel. E sabido que 0 conhecimento acumulado em rda~ao a qualquer 
autor do passado resulta, em grande parte, de perguntas e respostas data-
das. 0 caso de Gil Vicente, porem, deixa-nos a impressao de que a data de 
umas e outras esta por acrualizar ha muito tempo. E nao ha actualiza~ao 
possfvel sem se retomar a raiz do problema, reexaminando as pistas que, 
desde 0 inkio, vern configurando a aura daquele que e, porventura, 0 
escritor mais singular de todo 0 nosso canone: singular, porque aparente-
mente l\iesligado de uma serie historico-literaria com predecessores e suces-
sores directos, no contexto portugues; singular ainda na extensao e diver-
sidade dos modos, generos e registos estiHsticos que lhe andam associados. 
Nessa revisita~o memorial, trata-se ainda de decifrar sinais: aqueles 
que 0 proprio Gil Vicente construiu no seu tempo (foram relativamente 
poucos os que chegaram ate nos); e, sobrerudo, os que outros tempos 
construiram e reconstruiram depois, num processo de apropria~ao de ver-
dadeira caixa chinesa, ainda sem fun do solido e definitivo. 
A forma mais segura de responder a esse desafio e - tern a 
pesquisa de fontes. Essa busca corresponde a urn programa de epoca nos 
esrudos literirios, em geral; mas em Gil Vicente e bern mais do que isso: 
do que se tratou sempre e do que se trata ainda e de suprir uma carencia 
REVISOES DE GIL v1CENTE 15 
de base, que se prende com a identificayao de uma figura sem coordena-
das biogcificas e culturais minimamente precisas. Sem essa reconfigurayw 
de fundo e difkil inseri-Io na narrativa historico-liteciria; podera. ser 
mesmo custoso guardar-lhe urn Lugar no panteao das Letras, como se ve 
pela significativa reduyao do seu peso nos programas de Ponugues, recen-
temente verificada. 
Mais do que cumprir urn simples preceito de investigayao epocal-
mente situado, saber de onde vern a ane de Gil Vicente converteu-se pois 
no sucedaneo de uma reconstituiyao identitaria. Alias, os estudos vicenti-
nos tern estado, desde 0 principio, sob 0 efeito norteador dessa demanda; 
e continuam a esta-Io, justamente porque ainda se nao encontrou forma 
melhor de delimitar uma personalidade tao dens a que nao cabe num 
periodo literario ou numa estetica uniforme. Para prosseguir nessa inda-
gayao e para se alcanyarem resultados Ilteis, e po is necessario saber exacta-
mente onde estamos e como chegamos ate aqui. Como nasceu a imagem 
de Gil Vicente? Como evoluiu a percepyao da sua identidade estetica? Que 
preconceitos epocais e subjectivos se detectam nesse percurso de reconhe-
cimento? Eis algumas das perguntas a que agora me proponho responder, 
com a consciencia de que qualquer tipo de pesquisa envolve 0 pesquisador 
em nfveis de maior ou menor suspeiyao. Em ultima analise, e ela que nos 
leva a renovar 0 ethose 0 objecto da propria investigayao. De tal forma que 
se pode dizer que, por dewis do biombo da pertinencia cientifica, qual-
quer estudioso se busca a si mesmo, atraves da verdade que the e consen-
tida pelo nevoeiro do seu proprio tempo. 
2. Tem-se estranhado que Gil Vicente nao tivesse sido objecto de 
mais menyoes directas por parte dos seus contemporaneos. Que nao 
tivesse figurado destacadamente no Cancioneiro Ceral, por exemplo. Mas 
esta estranheza atenua-se urn pouco se nos lembrarmos de que 0 tearro 
ocupava, no computo geral das artes, uma posiyao relativamente 
modesta (bern inferior a pintura e mesmo a outras formas de escrita, 
tidas por mais perenizantes). Ainda assim, a sua arte foi notada, desde 
logo, pel os dois principais quadrantes da cultura aulica: a tradiciona4 de 
extracyao iberica e a renovadora de feiyao humanista. Tenham-se em 
conta, para comeyar, os muito conhecidos testemunhos quinhentistas de 
Garcia e Andre de Resende, ambos contemporilneos de Gil Vicente. Urn 
e outro assinalama novidade das invenyoes vicentinas em Portugal; mas, 
ao mesmo tempo, tentam descortinar-Ihe afinidades. Na famosa estrofe 
186 da Miscelanea, nao deixou Garcia de Resende de salientar a inventi-
16 JOSE AUGUSTO CARDOSO BERNARDES 
vidade vicentina: "Ele f01 0 que inventou isto ca.", mas parece claro que 
o adverbio de lugar deve ser lido numa perspectiva de restric;:ao, que 
admite (ou consagra) a existencia dessas mesmas "invenc;:6es" nouttos 
lugares 1• De facto, segue-se imediatamente a formulac;:ao concessiva 
"posto que Juan del Encina 0 pastoril comec;:ou", evocando raizes bern 
concretas e funcionando como prevenc;:ao para urn registo estetico que 
poderia passar por original aos olhos de alguns espectadores lusitanos. 
o eborense, por sua vez, descreve as festas celebradas em Bruxelas 
pdo embaixador portugues D. Pedro de Mascatenhas, em que se repre-
senta urn auto vicentino, para delas destacar, em primeiro lugar, a dupla 
qualidade de Gil enquanto autor et actor'(em clave plautiana, portanto); 
mas logo urn pouco mais a frente, lamenta, embora com notavel toleran-
cia, que 0 dramaturgo nao tenha escrito em Larim: "se nao escrevesse tudo 
em romanc;:o vulgar, servindo-se antes do idioma latino, teria ganho 
renome nao menor que 0 de Menandro na Grecia, ultrapassando inda a 
grac;:a maliciosa, 0 sal atico de Plauto, 0 romano, e a lepidez dos escritos de 
Terencio ... "2 Sou dos que tendem para pensar que esta apreciac;:ao, consa-
grada no Genethliacon, nao resulta do auto representado naquela circuns-
tancia particular (fosse ou nao Fosse a Lusitania); antes encerra uma 
impressao global da obra vicentina que deveria corresponder, no limite, ao 
sentimento mais tolerante que 0 teatro de Gil Vicente poderia despertar 
no conceito dos humanistas. 
Menos directa, mas nao menos importante e 0 eco da visao do auto 
perfilhada por outro italianizante; por Sa de Miranda, precisamente, no 
Prologo de Os Estrangeiros, comedia representada na Corte, em 1531, 
justamente quando a estrela de Vicente comec;:ava a empalidecer. E a 
propria comedia quem se apresenta, na tentativa de ser reconduzida a 
familiaridade do publico portugues. Evoca, para tanto, a sua ascenden-
cia nobre e lembra os infortunios que the advieram da queda do Impe-
rio romano: 
1 De resto, as novas "inven¢es" de Gil Vicente surgem alinhadas, des de a estrofe 
anterior, com as grandes novidades europeias que entraram na Corte de D. Manuel. Sobre 
o assunto, veja-se Jorge Alves Osorio (1979-1980). 
2 Sigo a criativa tradw;:ao proposta por C. M. de Vasconcellos, (Notas Vicentinas, 
p. 10). 
REVISOES DE GIL VICENTE 17 
"E assi como a sua queda foi grande, assi leva tudo consigo, ali me 
perdi eu com muitas das boas artes, e af jouvemos longo tempo como enter-
radas"3 
Mas logo surge a necessidade de uma demarca<;:ao vital: 
"Ja sois no cabo e dizeis ora: nao mais, isto e auto! e desfazeis as car-
rancas"4 
A versatilidade de assuntos e a coincidencia na lingua vulgar (" eu 
dos vossos versos tam bern vos fa<;:o gra<;:a") nao e suficiente para que se 
estabele<;:am confus6es: a comedia pretende situar-se do lado das "boas 
artes", agora tornadas a vida e os autos (os de Gil Vicente, subentende-se) 
constituiriam realizac;:6es "vulgares", nao compaginaveis com 0 requinte 
aulico, sem ascendencia nem desfgnios de nobreza. 
* 
Parece existir, depois, na recepc;:io de Gil Vicente urn longo e estra-
nho hiato. Nem os proprios autores da chamada "escola vicentina" incen-
sam directamente 0 Mestre (muito provavelmente porque nao 0 reconhe-
cern como tal). Mesmo em Espanha, os nexos de irriga<;:ao que se estendem 
pelo Barroco dentro nao chegam a encontrar expressao em termos de dou-
trina. Nascidos da Corte, os autos de Gil Vicente caem agora no dominio 
popular e parece bern sintomatica a escolha daqueles que chegam aos pre-
los, de forma avulsa, ao longo dos seculos XVII e XVIII 5. 
Nao surpreende que, depois, no seculo XVIII, se renove a tentativa 
de colagem de Gil Vicente aos modelos classicos: na conclusao da come-
dia de Correia Gar<;:io intitulada Theatro Novo, (que constitui, aflnal, urn 
desenvolvido debate acerca dos diferentes caminhos que na altura -em 
1766- se colocavam ao teatro portugues), diz Aprigio Fafes, a voz que, 
na pec;:a, mais defende a renova<;:ao a partir dos modelos nacionais: 
3 Cf. Obras Completas de Francisco de Sa de Miranda, Texto nxado, notas e prefacio 
de Rodrigues Lapa, 1977,3" ed., p.vol. II, p.123-24 
4 ib. 
5 Braamcamp Freire apresenta uma listagem de edi;;:oes, nas suas pr6prias palavras 
"seguramente nao com pI eta, mas certamente muito ampla": nela se con tam 68 casos, com 
largo predominio das farsas (Cf. p. 379 e ss.) 
18 JOSE AUGUSTO CARDOSO BERNARDES 
lnda 0 fado nao quer, inda nao chega 
A epoca feliz e suspirada 
De lanr,:ar do teatro alheias Musas 
De restaurar a cena portuguesa. 
Vos, Manes de Ferreira e de Miranda, 
E tu, 6 Gil Vicente, a quem as Musas 
Embalaram 0 berr,:o e te gravarao 
Na honrada campa 0 nome de Terencio 
Esperae, esperae, qu'inda vingados 
E soltos vos vereis do esquedmento" 6; 
E tambem nao anda longe desta visao resgatante a nota que Diogo 
Barbosa de Machado exarou na Bibiiotheca Lusitana, uma vez que ela 
comec;a justamente corn a inserc;ao do autor nos quadros do c1assidsmo 
greco-latino: 
"Gil Vicente illustre por nacimento, e muito mais illustre pdo espi-
rito poetieo com que imitou, e ainda excedeo aos mayores Poetas, que vene-
rou a Antiguidade"7, 
para, um pouco mais a frente, encontrarmos 0 famoso eco do aplauso 
humanista de Erasmo de Roterdao 
"Tao largamente se extendeo a fama do seu talento poetico, que 
sahindo do continente de Espanha estimulou a Erasmo Roteradamo, cele-
bre Pilologo, a aprender a Lingua Porrugueza para penetrar as agudezas, que 
estava6 ocultas em as obras de Gil Vicente, e depois, que as leo, confessou 
ingenuamente, que nenhum Poeta mais exactamente como eHe imitara 0 
estilo de Plauto e Terencio." 
Curiosamente, esta visao classicizante de Gil Vicente nao morreu de 
todo. Subsiste ainda ern J. Gomes Monteiro, por exemplo, autor do 
"Ensaio sobre a vida e os escriptos de Gil Vicente", que Figura na edic;ao 
de 18348. E, por muito estranho que possa parecer, subsiste mesmo nos 
6 Cf, Obras Completas de Correia Gan;ao, Texto fixado, prefacio e noras de Antonio 
Jose Saraiva, Lisboa, Livraria Sa da Costa, 1958, vol. II (Prosas e Teatro), p.38-39. 
7 Cf: Bibliotheca Lusitana, Coimbra, Atlamida, MCMLXVI, tomo II, p.383. 
8 Embora amplo e invulgarmente ponderado na men<;ao de rontes, Gomes Mon-
teiro nao resiste a conduir 0 seu estudo desta forma: "Assim lan<;ado 0 fundamento do 
REVIS6ES DE GIL VICE:'-ITE 19 
nossos dias em determinadas simplifica<y6es da historia literaria que tei-
mam na ideia redurora do "autor de transi<yao", simultaneamente medie-
val e renascentista, com a evoca<yao (muito for<yada) de marcas suposta-
mente certificadoras de urn e de outro perfodo 9: 
'* 
So com 0 Romantismo se inflecte 0 senti do da pesquisa, em ordem 
a emergencia de uma nova identidade, agora menos peada por modelos e 
por regras. Lembra C. Michaelis de Vasconcelos que Gil Vicente nao foi 
totalmente desconhecido da erudi<yao internacional, mesmo ao longo do 
seculo XVIII, mas tudo 0 que pode registar-se sao alus6es muito furtivas 
(e nem sempre denunciadoras de conhecimento real) 10. So a edi<yao de 
Hamburgo 0 reconstitui na sua globalidade e 0 ja citado estudo prefacial 
de Gomes Monteiro revel a bern esta preocupa<yao de reconhecimento, 
nosso theatro por urn engenho tao superior, estava aberta a estrada para que seus sucesso-
res, corrigindo progressivamente os inevitaveis defeitos do seculo e da novidade, e aprovei-
tando 0 muito que ahi havia approveitar, levantassem 0 edificio de urn Theatro nacional. 
E com effeito alguns appareceraoque seguirao as pizadas de Gil Vicente [ .. ,jTambem a 
eschola c1assica appareceo entao em Portugal representada por dous grandes poetas, Sa de 
Miranda e 0 Doutor Antonio Ferreira: mas estes com urn Iimitadissimo numero de pro-
duc<;5es, e alem disso demasiado preocupados da douta antiguidade, nao puderao exercer 
consideravd influencia sebre este ramo da litteratura. Oxala Gil Vicente tivesse apparecido 
depois de todos dies; seria dIe 0 reformador do nosso theatro, e verdadeiramente 0 nosso 
Plauto, (op. cit" p, XXXIV). 
9 A Fonte da informa"ao retomada por Machado parece ser ja seiscenrista e pode ras-
trear-se em Manuel Faria e Sousa (EpItome de las historias portuguesas .. Part. 2, cap. 18). 
Manuel Severim de Faria, por sua vez, invoca tambem Gil Vicente, ao referir-se, no Did-
logo da Lingua Portuguesa, it "brevidade, gra~ e decoro" do nosso idioma: "Nem e pera 
esquecer 0 louvor que se deve nas nossas farsas a Gil Vicente, 0 qual imitando as fabulas 
Atelanas, que incluiam em si as representa¢es que chamam Planipedias e Tabernarias, por 
serem dos lnfimos da Republica (de que tambem jaAristotdes, na sua Poetica, faz men.;.ao) 
compos algumas farsas com tao graciosa eloquencia que do nosso Joao de Barros e por isso 
mui louvado rna Gramdtica da Lingua PortuguesaJ", in Discursos Varios Politicos. Introdu-
"ao, actualiza~o e notas de Maria Leonor Soares Albergaria Vieira, Lisboa, INCM, 1999, 
p.93-94. 
10 D. Carolina dedica exactamente a abertura das suas Notas Vicentinas, a lembrar 
que"Ja antes de Barreto Feio e Gomes Monteiro haverem tornado acessiveis as Obras 
Vicentinas ( ... ) varios investigadores forasteiros haviam chamado aten,,1io do mundo culto 
para 0 sugestivo e rico repertorio do mais fecundo e mais individual poeta comico primi-
tivo da Peninsula" (c. op. cit., p. 1) 
20 AUGUSTO CARDOSO BERNARDES 
mencionando abrangentemente, como fontes, a grande tradi<;:ao do teatro 
medieval europeu (frances e italiano, sobretudo). 
Por outras vias, Garrett empreende uma busca semelhante, agora 
mais centrada na defini<;:ao de parametros biogrwcos e circunstanciais. 
Mais do que ninguem, ate entao, ele deve ter sentido a falta de urn retrato 
fisico de Gil Vicente, que Se pudesse depois afei<;:oar a urn cad.cter e a urn 
perfil artistico. Assim tinha sido com Camoes, por exemplo, rapidamente 
transformado, de proprio, em personagem, beneficiando de efeitos de 
canoniza<;:iio bern mais eficazes e abrangentes. Ao acalentar 0 projecto de 
refunda<;:iio do teatro nacional, apenas interessava a Garrett urn patrono 
estritamente portugues, nas suas matrizes e nas suas repercussoes. E certo 
que n' Urn Auto de Gil Vz"cente, nos aparece 0 dramaturgo em pessoa; mas, 
quando se esperava uma figura com biografia e com dilemas, a boa 
maneira romantica, surge-nos urn artista modesto e pouco consciente do 
seu valor, vivendo bern prosaicamente as ansiedades proprias do director 
de cena, em vesperas da representa<;:iio das Cortes de Jupiter. Trata-se, para 
mais, de uma personagem que vive da caracterizayiio alheia, empreendida 
pela filha Paula (aqui convertida em amante ignorada por outro poeta e 
em obscura auxiliar do pai na representayao e na propria composiyao das 
trovas) e, sobretudo, por Monsior Chatel, 0 saboiano que louva a arte de 
Gil Vicente mas sem esquecer as preconceituosas restri<;:oes proprias do 
quadrante em que se inseria: 
" ... Verdadeiramente nao se imagina em Itilia, nem em Fran<;:a, como 
os Portugueses estao adiantados nas Artes. 0 vosso Gil Vicente e um pro-
dlgio: prodfgio natural e tambem pouco cultivado. Se de conhecesse os 
clissicos; se, como 0 n05SO Ariosto, soubesse imitar Terencio e AristManes; 
se aprendesse as regras de artd ... 
Pero Sifio, 0 cantor portugues que com de dialoga, ainda contrapoe, 
adivinhando-se, no seu juizo, a convic<;:ao do proprio Garrett: 
"Havia de ser um sensaborao insulso e insipido segundo a artel..." 11 
Deste modo, 0 dramaturgo de Oitocentos nao se atreveu a fazer de 
Gil Vicente uma verdadeira personagem romantica: se quis colorir 0 
enredo dramatico, teve que se socorrer de uma outra personagem liteciria, 
11 CE. UmAuto de Gil Vicente, Mem Martins, Europa/America, 1995 (2.a ed.), p. 55 
REVISOES DE GIL VICE)JTE 21 
sobre a qual corriam ja as mais fantasiosas hipoteses biograficas: 0 enig-
matico Bernardim Ribeiro, aqui dado como desgracradamente apaixonado 
pela infanta D. Beatriz, a jovem infanta desposada, que parte para ltalia, a 
contragosto. 
No momento ern que escreveu 0 auto, Garrett nao dispunha ainda de 
elementos para humanizar Gil Vicente. E foi no encal~o desses dados que se 
lan~ou toda urna gera~o posterior de estudiosos, completando os preceitos 
da canoniza~o que se encontravam ern falta. De facto, a erudi~o positivista 
fez do dramaturgo urn objecto central de pesquisa. A inten~ao e agora da-
ramente patrimonialista, mas 0 ethos romantico continua bern vivo. Com-
preende-se assim que nenhum dos nomes verdadeiramente importantes da 
nossa Filo10gia tivesse ignorado este fi1ao cimeiro, so comparavel, em presti-
gio e em repercussao publica, ao que derivava do caso de Cam6es. Nenhum 
deles se distinguiu propriamente na prepara~ao de textos (embora D. Caro-
lina tivesse acalentado 0 projecto de uma edi~ao crftica); os volumes de 
Hamburgo foram, de resto, reproduzidos em Paris, pouco depois (1843) e 
logo em Lisboa (1852); so na gera~ao seguinte, Joaquim Mendes dos Reme-
dios haveria de aplicar-se a este nivel, consurnando uma edi~ao bastante cui-
dada, para a epoca, contendo notas, glossario e uma criteriosa antologia de 
excerto5 liricos (Coimbra, 1907-1914). A linha continuou a ser a da busca 
de uma identidade ptofunda atraves de uma dupla focagem: a da reconsti-
tui~ao biogra.flca e contextual e a da detec~o de fontes. 
A ansia de encontrar respostas para alguns enigmas (ern que se enre-
daram cruzadamenre nomes como Camilo Castelo Branco, Sanches de 
Baena e 0 Visconde de Ouguela, entre muitos ourros), chegou a conduzir 
literalmente a questao do retrato. No "Anteloquio" do seu Gil Vicente, 
Sanches de Baena, revela a eflgie do autor, encontrada na Biblioteca Nacio-
nal, colada "a folha d'um antigo livro de poesias, demonstrando ter sido 
cortado d' alguma obra publicada em hollandez, porque se divisam, por 
transparencia, phrases impressas no verso do mesmo retrato, pertencentes 
aquelle idioma" .12 Como foi 0 retrato de Gil Vicente parar a Holanda? 
A.fian~a 0 mesmo genealogista que "0 retrato [ ... J deveria ter sido levado 
por urn dos netos do poeta, visto que e ponto averiguado que Francisco de 
Aguiar Barreto e seu irmao Damiao de Aguiar Barreto [dois descendentes 
do poetaJ, antes de partirem para a India, estiveram por algum tempo na 
Flandres" .13 
12 C£ Gil Vicente, Marinha Grande, Empreza Tipographica, 1894, p. 4 
13 C£ ib. 
22 Josf ACGUSTO CARDOSO BERNARDES 
Ainda dentro do sal romantico, Camilo (logo seguido por Teofilo) 
haveria de desenterrar a hipotese de urn conflito estetico e pessoal entre 
Gil Vicente e urn dos seus filhos, Gil Vicente Fernandes, supostamente 
fon;:ado ao exilio, por fazer sombra ao pai, na arte dramatica ... 14 
Por mais audaciosas ou aliciantes que estas conjecturas tenham sido 
(e algumas delas foram-no, de facto), nenhuma conseguiu urn impacto 
semelhante 11 tese desenvolvida por Anselmo Braamcamp Freire acerca da 
identidade entre 0 dramaturgo e um ourives do mesmo nome. Mesmo 
sem entrar na subsdncia do assunto, 0 minimo que se pode dizer e que as 
posi<;:6es de Braamcamp supriram uma grande lacuna no conhecimento 
do autor.l 5 0 conflito foi, ainda assim, bastante extenso, envolvendo 
como principais adversarios da tese Brito Rebelo, Antonio Maria de Frei-
tas, Sanches de Baena, Camilo e Teofilo (embora este com constantes alte-
ra<;:6es de posi<;:ao 16); depois deles, porem, apenas Antonio Jose Saraiva 
viriaa manter reservas fundas.17 0 caso e que ainda hoje se da como certo 
que D. Leonor teve ao seu servi<;:o urn e 56 um Gil Vicente, ao mesmo 
tempo "Trovador e Mestre da Balan<;:a". E, no entanto, se nos dermos ao 
1"1 0 (muito debiI) fundamento da hip6tese resume-se a uma men"ao, nos Comen-
tarios de Afonso de Albuquerque, de um Gil Vicente Fernandes "filho de Gil Vicente", na 
embaixada ao Hidalcao, encontrando eco em Manuel de Faria e Sousa (comentario ao 30 
livro dos Sonetos de Cam6es, son. 31). Tambem Barbosa de Machado, que dedica uma 
memoria autonoma ao suposro filho de Gil Vicente, morto na fndia, a quem atribui a 
auroria da pe"a Dom Luiz de los Tttrcos afirma a dado passo: "Nao somente imitou mas 
excedeo a seu Pay na Poesia comica, de tal sone, que para nao Ihe diminuir a gloria que 
alcan"ara, fay causa de 0 mandar para a India onde mostrou em huma a"ao militar em que 
gloriosamente acabou a vida, que nao era menos insigne na espada, que na pena" (op. eit., 
p.384) 
15 As posi<;:6es de Braamcamp, hoje reunidas na 2a edi.,ao (revista) do seu livro Gil 
Vicente, trovador mestre da balan(a, (Lisboa, 1944), comec;aram por ser expandidas no ]or-
nal do Commercio, de Lisboa, em Fevereiro de 1907, sob 0 pseudonimo de Silex, tomando 
depois a forma de comunica<;:ao a Academia das Ciencias, em Dezembre de 1912. Foram 
ainda depois objecto de publica<;ao na Revista de Hist6ria, nOs 21-26 (1917-18) e, mais 
tarde, na primeira versao do ja citado livre (Porto, 1919). 
16 Para um historial detalhado cia polemica, veja-se a resenha de Queiros Veloso, de 
proprio urn adepto da tese da identidade, "Gil Vicente, poeta e ourives", in Gil Vicente. 
Vida e Obra, Serle de Conferencias realizadas na Academia das Ciencias de Lisboa, de 8 de 
Abril a 21 de ]unho de 1937, em comemora~o do N Cemenario da morte do fundador 
do teatro portugues, Lisboa, 1939, p. 341-369. 
17 0 ultimo rexto que Saraiva dedicou ao assunto (intitulado "Quem era Gil 
Vicente?" foi publicado pda primeira vez em 1951, reaparecendo no volume Para a Histo-
ria da Cultura em Portugal (Mem Martins, EuropaiAmerica, 1971, 3a ed., pp. 293-308). 
REVlSOES DE GIL VICEKTE 23 
trabalho de reconstituir os dados do problema, nao pode negar-se credito 
as reservas ja evocadas, com 16gica serena, sobretudo por Brito Rebelo e 
por Saraiva. 
Mas nao e assim que normalmente se procede. A tese do "poeta 
lavrante" constitui, desde 0 infcio, uma res posta muito tentadora para 
uma longa busca identitaria. Se a obra de Gil Vicente era excepcional na 
sua diversidade e ate na sua excepcional teria de ser tambem a 
personalidade criadora que the corresponde. Estavamos, alias, em epoca 
do fetiche documental e a descoberta da nota manuscrita em letra do 
seculo XVI correspondia tambem a esse horizonte de apres;o.18 Com base 
numa prova desse calibre seda muito dificil infirmar a tese. Mas, sobre-
tudo, fica-se com a impressao de que nao havia vontade de a beliscar, na 
sua oportunidade e adequaS;ao as necessidades de consumo institucional. 
A tese da identidade acentuava 0 genio vicentino, que passou a ser siste-
maticamente designado por "Mestre Gil", em potencial confusao com 0 
hom6nimo que, no Cancioneiro Geral, participa nas ajudas do "Processo 
de Vasco Abul"19. E havia ainda outra vantagem importante: dando como 
certa a auto ria do ourives em relas;ao a cust6dia de Belem, 0 "trovador" 
surgia intimamente associado ao ciclo das Descobertas (a dita custodia 
fora lavrada no ouro das primeiras pareas de Quiloa, trazido por Vasco da 
Gama, na sua segunda viagem a India), conferindo-lhe assim 0 dire ito de 
brilhar na constelaS;ao mitica do nosso Quinhentismo. E nao hi duvida de 
que iS80 vida a constituir factor decisivo de canonizaS;ao dvica. Garrett 
escreveu pois Um Auto de Gil Vicente antes de todas estas conjecturas 
terem sido firmadas e, nessa medida, 0 seu esbos;o de rerrato nada po de 
aproveitar delas. 
A par com a questao biogrifica (que, contudo, se nao resolveu total-
mente com a tese do ourives), desenvolveu-se 0 problema das Fontes ou 
da chamada Cultura vicentina. A este respeito, D. Carolina (que ja se 
18 No emaranhado de teses e contfa-teses em torno da questao abundam sintomati-
camente as transcris:oes documentais ou mesmo a reprodus:ao diplomatica de assinaturas, 
notas e outro documentos. A notula manuscrita tida por probat6ria ("Gil Vicente trova-
dor mestre da balans:;{') figura no alto do verso da folha 20 do livro 420, por cima do 
registo da carta regia de 4 de Fevereiro de 1513, nomeando Gil Vicente, 0 ourives da Rai-
nha D. Leonor, Mestre da balan.,:a de Lis boa. 
19 Sobre a identidade distinta de Mestre Gil, cirurgiao-mor do Duque D. Diogo e, 
mais tarde, de D. Manuel e de sua irma D. Leonor, veja-se a entrada que a tal respeiro 
figura no Dicionitio do Cancioneiro Geral recentemente publicado por Aida Fernanda 
Dias (p. 330). 
24 JOSE AUGUSTO CARDOSO BERNARDES 
havia revelado grande entusiasta da origem e natureza folclorista das can-
tigas de amigo) sustentou a importancia determinante do substrata popu-
lar, tambem nos autos vicentinos e poucos se atreveram a contraria-Ia. Na 
decada de 40, Joaquim de Carvalho ainda se deixou impressionar por dois 
serm5es, imaginando urn Gil Vicente mais escolarizado do que convinha 
a tese anterior (talvez mesmo frequentador das Universidades de Sala-
manca ou de Paris) 20; mas logo 1. S. Revah se encarregou de repor a tese 
do criador genial, desligado de modelos cultos.21 Apesar do prestigio do 
Professor de Coimbra, cujas posi<;:5es costumavam fazer fe em outros 
dominios da historia da cultura ponuguesa, a imagem romantica de Gil 
Vicente nao foi, desta vez, significativamente beliscada e pode assim sobre-
viver a varios tipos de aproxima<;:ao 22: 
De forma bern mais pontual, tem-se discutido as bases doutrinais de 
parte do seu teatro dito "religioso", no pressuposto de que 0 dramaturgo 
transp5e directamente para os autos algumas das tensoes morais e teo16gi-
cas da Idade Media (os fundamentos da Salva<;:ao, a for<;:a da Gra<;:a, 0 
governo da Igreja, a conduta dos clerigos, etc.). Por detris destas aproxi-
ma<;:5es subsistem duas atitudes essenciais: a que privilegia a imagem de 
urn Gil Vicente alinhado com uma qualquer vertente doutrinal (eras-
mismo, lullismo, franciscanismo, etc) e a que reitera a ideia de urn artista 
experimental, integrador de materiais diversos, acolhendo so muito diferi-
damente as posi<;:5es de teologos e doutrinadores politico-sociais. Nessa 
senda se acredita que a sua arte corresponderia a urn milagre de integra<;:ao 
composita, ainda em moldes formais elementares, mesmo toscos.23 
20 Cf. "Os serm6es de Gil Vicente e a arte de pregar". 
21 Cf. Les sermons de Gil Vicente: en marge d'un opuscule du Proftsseur Joaquim de 
Carvalho. 
22 Luciana Stegagno-Picchio e Paul por exemplo, insistiram no caracter 
poligonal e dialogico das peyas do autor (em termos de lingua, de estilo e de generos); L 
Keates, na senda de Braamcamp, refonrou a ideia da sua vincula.;:ao a uma cultura de corte 
(tonica recentemente revista por Ugo Serani) a Corte de Avis, no perfodo aureo de afir-
ma.;:ao de Portugal como potencia maritima. 
Para uma resenha das principais dominantes da bibliografia vicentina, veja-se, neste 
mesmo volume, as estudos vicentinos: balanfo e perspectivas. 
23 E esta, nomeadamente, a posi<;:io de urn vicentista especial mente influente como 
Eugenio Asensio: "Gil Vicente, con materiales viejos, ha sabido crear un teatro nuevo. 
Reminiscencias Iiterarias, simbolos religiosos, mitos poeticos, moldeados por su instimo 
escenico y su imaginacion plastica, han dado orfgen a formas inesperadas de Arte", in "Las 
Fuentes de las Barca! de Gil Vicente". 
REVISOES DE GIL VICENTE 25 
Na sequencia deste ultimo pressuposto, chegaram a evocar-se sinais 
de primitivismo tecnico-estrutural, como seriam a sintaxedo desfile (con-
traposta a supostamente mais avan91da intriga de base centrfpeta ou 
radial) ou a sistematica tipificayao das personagens, ainda no desconheci-
mento, portanto, das gran des figuras densas e dilematicas, a maneira de 
Shakespeare. 24 
Descoberto e canonizado peIo Romantismo, 0 dramaturgo portu-
gues teria assim de ser - e tern-no sido, sem contestayao de maior, urn 
artista romantico, avesso a regras, imune a influencias culturais sistemati-
cas; como se isso nao bastasse, todavia, pediu-se-Ihe que Fosse ainda uma 
personagem romantica. Em meu juizo, e aqui que encaixa a tese central de 
Braamcamp, afectando 0 dramaturgo a mais uma profissao artistica de 
grande rigor e exigencia, submetendo-o a admirac;:ao de todos os que 
admiram 0 milagre do talento infuso e abrangente. E nao hi duvida de 
que foi esta a figura que 0 Estado Novo comemorou em 1937 (400 anos 
da sua morte) e em 1965 (500 anos do seu nascimento). 
3. Passaram 500 anos sobre 0 Monologo do Vaqueiro e quase duzen-
tos sobre a ediS;ao de Hamburgo. Nao adianta tentar afastar de Gil Vicente 
todos os cliches que se the foram colando. Urn autor da sua dimensao nao 
podera nunca vjver sem lugares-comuns, quaisquer que e!es sejam. Mas e 
legitimo perguntar, peIo menos: tal como foi fixado no dealbar do seculo 
XX, 0 retrato de Gil Vicente e ainda satisfatorio ou carece de alguns reto-
ques? Mesmo sabendo que nao sera POSSlveI capta-Io, alguma vez, na fria 
objectividade de uma camara fotografica, acredito que seja possive! corri-
gir alguma coisa, no senti do de clarificar e de rejuvenescer uma imagem 
que hoje ten de para a mineralizas;ao, a fors;a de ser sempre vista pelos mes-
mos angulos. Nao havendo dados documentais novos que permitam uma 
reaprecias;ao da vida de Gil Vicente, 0 caminho tera que passar peIa inves-
tigas:ao de outras coordenadas contextuais mais latas.25 E e nesse quadro 
24 Nos juiws de Saraiva, nomeadamente no capitulo que escreveu para a Historia da 
Cultura em Portugal (1959) e na "Introdu~o" 11 sua antologia do Teatro de Gil Vicente, por 
exemplo, colhem-se abundantes compara;;:6es desmerecedoras para Gil Vicente. Para uma 
visao menos preconceituosa, comparando os dois dramaturgos, com a ressalva das respectivas 
epocas, veja-se 0 excelente estudo de Helio Alves, "Vicente, Shakespeare e a arte do tempo 
no Auro da india", em numero recente da Revista Adagios. 
25 A este respeito, destaco 0 muito desenvolvido trabalho de Ivo Carneiro de Sousa, 
recentemente publicado: D. Leonor (1485-1525). Poder; Misericordia. religiosidade e espiri-
tualidade no Portugal do Renascimento, Lisboa, Fundao;:ao Calouste Gulbenkian, 2002. 
26 JOSE AUGCSTO CARDOSO BERNARDES 
que se justifica revisitar a questao das matrizes. Nao tanto, desta vez, para 
acrescentar qualquer pista ao vasto rol ja inventariado. De resto, a este 
nivel, sera sempre possivel defender, atraves de urn levantamento indicial, 
que Gil Vicente conheceu "isto" ou "aquilo", no plano teologico, politico, 
dvico-convivial, pictorico, musical, etc. A minha proposta e agora urn 
pouco diferente e assenta em duas fases consecutivas: considero Util, em 
primeiro lugar, discutir a no<;:ao de Teatro na epoca de Gil Vicente, ten-
tando delimitar as concep<;:oes perfilhadas por ele ao longo dos trinta e 
cinco an os da sua actividade. Estaremos depois em melhores condi<;:oes 
para efectuar urn trabalho de pondera<;:ao. Repito que nao se trata de dis-
cutir a existencia deste ou daquele elemento inspirador (e tantos foram ja 
objecto de men<;:ao). Do que se trata, agora, e apenas de avaliar 0 peso 
espedfico dos varios tip os de substrato, averiguando ate que ponto uma 
determinda Fonte e acidental ou essencial, directa ou remota, estruturante 
ou exornativa. Na impossibilidade de efectuar desde ja essa opera<;:ao, em 
toda a sua amplitude, limitar-me-ei a destacar alguns exemplos, de natu-
reza diversa, na tentativa de ver em que medida e que eles podem contri-
buir para a afirma<;:ao de uma identidade diferente. 
Olhemos pois para pe<;:as tao diferentes como Auto da Fe, Didlogo da 
Ressurrei~iio, Fadas, Pranto de Maria Parda, Rubena, Clerigo da Beira ou 
Templo de Apolo, consideradas no amplo diagrama cronologico em que se 
inscreve a cria<;:ao vicentina. Parece que nem todas se reportam a mesma 
ideia de teatro. Se Gil Vicente tivesse apenas escrito textos como 0 Auto da 
Fe, por exemplo, seria considerado urn emulo de Encina (timidamente ino-
vador, em todo 0 caso); se tivesse apenas escrito pe<;:as no registo do Didlogo 
da Ressurrei~iio, 0 mais provavel era que the louvassemos 0 dominio do rua-
logo disputado, de base doutrinal e, em consequencia russo, a sua cota<;:ao 
nao estaria muito acima de alguns poetas cancioneiris ou de alguns "grands 
rhetoriqueurs". Atraves do Templo de Apolo reconheceriamos urn autor 
familiarizado com as tecnicas dos momos, talvez ja com ecos da "comedia 
a noticia", de Naharro" que depois, viria a seguir na Rubena, em estilo fan-
tasiado. Imaginemos, por fim, que 0 dramaturgo tinha escrito apenas pe<;:as 
como Alma, Breve Sumdrio, india ou Ines Pereira: teriam ainda mais razao 
os que preferem urn autor essencialmente reconhedvel atraves das suas 
influencias francesas, nomeadamente dos grandes generos do teatro medie-
val que sao a farsa, a moralidade e 0 misterio. 
o problema e que Gil Vicente nao se situa num unico quadrante. 
E e exactamente essa circunsrancia que suscita as questoes mais agudas de 
identidade. Aqueles que ate hoje as tentaram resolver nao conseguiram 
REVIS0ES DE GIL \1CENTE 27 
fugir aos estereotipos: 0 doutrinador moral, 0 proselito de causas sociais e 
politicas, 0 bufonesco engenhoso, 0 criador de idealidades, 0 lirico de tim-
bre popular, 0 comico, 0 retratista da sociedade. Eis apenas algumas das 
imagens de marca que mais vezes se tern substituido ao rosto desconhecido 
de Gil Vicente. Nenhuma destas identidades e falsa; mas nenhuma reco-
bre a globalidade da Copilar;am. Sao expedientes 6ptimos para figurar em 
manualS escolares que, aliis, nao consentem todos ao mesmo tempo. Mas, 
na pratica, e so esse 0 seu prestimo. 
Como dizfamos acima, 0 problema requer a indexac;:ao a urn ourro 
aspecto essencial: 0 conceito de teatro. Neste dominio, impoe-se rever a 
coincidencia apressada entre a ideia iluminista e romantica, que e a de 
Garrett (e foi ainda a nossa, ate ha poucas decadas) e a concepc;:ao de tea-
tro medieval que e a de Gil Vicente. E nao pode esquecer-se que esta 
ultima esta longe de ser homogenea, contemplando varias dimensoes 
entrelac;:adas: a disputa retorica, a cdebrac;:ao dvico-politica, a conviviali-
dade aulica (na qual entram muitas outras artes), a exemplaridade moral, 
etc. etc. Nao hi duvida de que uma heterogeneidade deste tipo contribui 
para dificultar ainda mais 0 estabelecimento de uma identidade unilinear. 
Por isso (e 56 por isso) Gil Vicente constituiu uma referencia cultural e 
simb6lica para Garrett, num momento que se pretendia restaurador; mas, 
na medida em que nao the e reconhecida uma identidade firme, ja nao 
pode se-Io no plano artistico. Os modelos reais do autor de Frei Luis de 
Sousa tinham de ser outros; nao the poderiam servir os do seu antecessor 
quinhentista, justamente porque as concepc;:oes e as praticas do teatro se 
tinham entre tanto transformado, pela emergencia de urn espac;:o publico e 
de urn forte processo de convencionalizac;:ao do acto teatral. Assim, a arte 
vicentina como que constitui 0 ponto de chegada de muitos rios; mas, na 
sua natureza outonal, nao pode originar desenvolvimentos directos, pdo 
menos a uma distancia de 300 anos.26 
16 Exisrem, no emanro, varias tentativas de demonstrat 0 contrario. Bouterwek, um 
dos redescobridores romanticos de Gil Vicente, compata superlativameme 0 dramaturgo por-
tuguils a Moliere (apud. Gomes Monteiro, p. XIII); ja no seculo XX, Armando Mattins 
Janeiradetectou curiosas afinidades entre a arte vicemina e 0 teatro disico japonc:s, nomea-
damente com 0 rearro No. Fernando Mello lI,1oser, por sua VeL, insisre bastame na moderni-
dade de Gil Vicente. mesmo em compata~o com 0 teatro elizabetiano (C£ os varios estudos 
de incidilnda vicentina que figuram na colectanea intitulada Discurso inacabado). 
28 JOSE AUGUSTO CARDOSO BERl'JARDES 
4. Examinemos agora, urn pouco ao acaso, 0 papel caracterizador 
que costuma atribuir-se a alguns elementos, come<;:ando pel os que sao de 
natureza tematica: 0 nivelamento ontologico dos mottos, visivel nas Dan-
<;:as da Morte, cuja sugestao comparece nas Barcas, especificando, tambem 
no plano figurativo, uma matriz de natureza doutrinal; ou 0 motlvo da 
Sibila, que numa das pe<;:as marianas do autor serve para satirizar a pre-
sun<;:ao e exaltar, por contraste, a humildade da Virgem; 0 tema dos velhos 
ensandecidos por amores, presente em autos como 0 Velho da Horta, 
Triunfo do Inverno, Floresta de Enganos ou Auto da Festa, em registo far-
sesco (1.0 e 4.0 caso) ou comediografico (2.0 e 3. 0 ). 
Observemos ainda, em paralelo, 0 que ocorre com outro tipo de mar-
cas tematicas: a dualidade axiologica Bern/Mal ou a mecanica do Engano, 
s6 para citar dois dos casos mais impressivos. No primeiro conjunto de 
exemplos, registam-se coincidencias e interpenetra¢es importantes, mas 
nenhum deles detem potencialidades identificadoras. No segundo tipo de 
temas 0 caso e diferente: tanto a oposiyao bern/mal como 0 Engano cons-
tituem 0 centro caracterizador de dois generos dtamaticos persistentemente 
cultivados POt Gil Vicente: a moralidade e a farsa. Dos temas poderfamos 
agora passar a personagens tematizantes como 0 Escudeiro, a Alcoviteira, 0 
Pastor e 0 Lavradot: em alguns casos, adstritos a detetminados generos; 
noutros (talvez na maio ria deles) ocupando uma posi<;:ao genologicamente 
transversal e nao verdadeiramente definit6ria. 
Significa isto, em primeiro lugar, que os temas nao contribuem todos 
da mesma forma para a identidade dos autos em que se integtam; ou, por 
outras palavras, nem todos detem uma fun<;:ao verdadeiramente matricial 
e singularizante. Alguns tern mesmo urn caracter intersemi6tico, nao 
sendo sequer tipicos do fen6meno teatral ou literatio (0 amor, 0 descon-
certo do mundo, a bondade da Natureza, a volubilidade feminina 0 a astll-
cia do vilao, para citar 56 alguns exemplos). Nessa medida, revela-se pouco 
pertinente ou ilus6rio invocar ocorrencias deste tipo - mesmo que siste-
maticas - para alcan<;:ar conclusoes identirarias. Pode urn leitor ocasional 
reter a imptessao de que 0 dramaturgo construiu todo 0 seu teatro sobre 
uma constela<;:ao fixa de temas. Inserido que esta na dinamica da escrita 
artfstica ocidental, porem, 0 teatro vicentino da guarida a urn lastro de 
assuntos de indole atfpica e praticamente acr6nica. A esse nlvel, por exem-
plo, nao deve sutpreender-nos sequet a presen<;:a (esparsa, em todo 0 caso) 
de motivos mitologicos da cultura greco-latina (vislveis nas Cortes de Jupi-
ter e no Templo de Apolo, entre outros autos), uma vez que a sua natureza 
erratica e pontual nada tern de estruturante. 
REVISOES DE GIL VICENTE 29 
* 
Mais do que os temas, sao especialmente diferenciadoras as formas: 
nao me refiro ja as tecnicas simples do monologo e do diaIogo, embora, 
mesmo a esse nivel, existam afinidades e dissemelhan~as que ganhariam 
com algum discernimento.27 Falo, sobretudo, das formas complexas codi-
ficadas em generos: a egloga dialogada, que e bern mais do que urn dia-
logo expandido; a farsa centrada no engano e no envolvimento realista, a 
moralidade apoiada no didactismo ale go rico, quase desprovido de ac~ao, 
o misterio que exp6e episodios biblicos, a comedia de recorte cavalei-
resco, portadora de urn enredo que evolui de acordo com uma etica cons-
tante - sendo este, porventura, 0 genero em que a novidade vicentina 
mais se destaca.28 
Salvo melhor opiniao, e no ambito genologico que as matrizes vicen-
tinas melhor se detectam. E, por via delas, resultam tam bern mais claros 
os trayos de identidade estetica. Nem todas detem a mesma importancia 
e, por isso, e necessario levar por diante urn trabalho de ponderac,:ao que 
determine a importancia particular de cada uma dessas matrizes, de cada 
urn desses codigos. 
o substrato pastoril de proveniencia iberica, por exemplo, necessita 
ainda de ser esdarecido a alguns niveis. Depois dos trabalhos de Young, 
Andrews e Surtz, M. L Resina Rodrigues mostrou bern a extensao e a 
profundidade da influencia dos pastores no teateo vicentino: sobretudo 
daqueles que se acercam do Presepio, levando a Virgem e ao Deus Menino 
o alor da sua simplicidade.29 Mas, para alem da dilucidayao historico-lite-
27 Eu proprio tentei uma primeira aproxima~o ao ass unto no meu Sdtira e Lirismo. 
Modelos de sfntese no teatro de Cit Vicente pp. 169 e 55. 
De entre os estudiosos que mais tern valorizado a especiflcidade e a projec~o da 
comedia vicentina, destaca-se Stephen Reckert, que ao assunto dedicou inclusivamente urn 
estudo marcante intitulado: "Gil Vicente e genese da comedia espanhola". 
29 C£ Richard A. Young, "Gil Vicente's castilian debut", Ronald E. Surrz, The Birth 
of a Theater. Dramatic convention in the Spanish Theater from juan del Encina to Lope de 
Vega, Madrid, Princeton University of Castalia, 1979 e M. Idalina Resina Rodrigues, 
"Dos salmanrin05 a Gil Vicente. as celebra,,6es do Natal", in Aetas do Congresso da Asso-
ciaf'ao Hisplinica de Literatura Medieval, Lisboa, Edi,,6es Cosmos, 1991, VoL I, p. 107-
-135 (republicado em De Gil Vicente a Lope de Vega. Vozes cruzadas no teatro iberica, 1999, 
pp. 11-50). 
30 AUGCSTO CA.RDOSO BERNARDES 
raria, existem hoje elementos que podem conduzir a algumas reconversoes 
de perspectiva.30 
Nao pode ainda ser esquecida a frequencia com que os pastores iberi-
cos aparecem incrustrados em outro tipo de formas, que nao aquelas de 
onde sao naturais: lembremo-nos de moralidades como Barca do Purgat6-
rio, Feira, Mofina Mendes ou Sibila Cassandra. Mas este e ja outro domfnio: 
o das refen?ncias europeias que, embora notadas desde ha muito, conti-
nuam subvalorizadas na apreciaS;ao que e feita destas materias, urn pouco 
como se se tern esse ainda que a sua evidencias;ao pudesse afectar a visao 
genialista e basicamente romantica que alguns persistem em manter.31 
Nesse sentido se poderia dizer que a verdadeira identidade artistica do autor 
resulta essencialmente da conjugayao entre estas duas matrizes fundacionais 
(a iberica e a transpirenaica), frutificando depois em vadas direcs;oes, de 
forma mais ou menos peculiar, mas sem desvios de real significado. 
Reconduzida a estas duas grandes linhas de ascendencia, a obra 
vicentina constitui a assodas;ao fecunda entre varios pIanos de represen-
tas;ao: a retorica do lirismo e da narrativa, tomada como base literaria de 
urn novo trabalho dramattirgico, por urn lado; a performance da cena, por 
outro, que 0 leva a extrair do verbo outras possibilidades de acs;ao e movi-
mento.Trata-se de urn autor irredutivd a qualquer uma das suas bases de 
inspiras;ao: nem 0 lirismo cancioneiril e a sua deriva enciniana, nem a 
materia de cavalaria, nem a civilidade aulica transcrita nos momos, nem 
sequer a grande tradis;ao do teatro medieval eutopeu, considerado em 
toda a sua amplitude genologica sao suficientes para 0 identificar. A obra 
de Gil Vicente constitui 0 resultado de uma nova confluencia e, nessa 
medida, nao pode comparar-se a nenhuma produs;ao dramattirgica coeva 
ou anterior. 
Estamos, de resto, no tempo em que 0 Teatro se define por alarga-
mento e incorporaS;ao de materiais esteticos diversos. Situamo-nos 
mesmo, porventura, num momenta tinico da historia literaria iberica em 
30 Depois do trabalho pioneiro de Mia Gerhardt, cirnentou-se a ideia de urna sepa-
rac;:1io estanqueentre os pastores do presepio e os que procedem da tradic;:ao greco-latina. 
Sendo certo que em Gil Vicente predorninam os do prirneiro tipo, haveria talvez que des-
lindar os diferentes figurinos que 0 integram e ainda os nexos existentes entre des. 
Urn contributo de enquadramento para este desiderato foi mais recentemenre desen-
volvido por Alfredo Hermenegildo em fuegos dramtiticos de fa !()Cura ftstiva. Pastores, sim-
ples, bobos y graciosos del teatro cltisico espafio!, Barcelona, Oro Viejo, 1995. 
31 Ocupei-me ja desenvolvidamenre da imporclncia da tradic;:ao do teatro medieval 
frances na Primeita Parte do meu Stitira e Lirismo no Teatro de Gil Vicente (pp. 126 e 55.). 
REVISOES DE GIL VICENTE 31 
que se tocam inclusivamente as noc;:6es de Cancioneiro, enquanto produ-
<;:ao unipessoal e a ideia de teatro sincrc:.'tico, definido em termos de poli-
genese, cerzido por urn conjunto de tonicas esteticas e ideologicas. 
E ja essa a leitura que pode fazer-se do Cancionero de Juan del Encina 
(nao tanto com as obras de Fernandez, menos articuladas entre si) e parece 
sintomatico que ainda hoje se discuta se devemos encarar 0 clerigo de Sala-
manca como inovador (e, por exemplo, a tese central de Lopez Morales ou 
de Andrews 32) ou se 0 devemos antes apreciar como alguem que se limi-
tou a amalgamar restos de uma tradic;:ao polimorfa, apenas com a diferenc;:a 
de os integrar nos rituais que celeb ram 0 Poder. Com Gil Vicente, nao ha 
duvida de que 0 processo f01 bern mais longe. E foi-o, sobretudo, porque 
nele intervieram formas ja definidas sob 0 ponto de vista teatral. Nesa 
medida, mais do que uma possibilidade entre outras, a leitura global e 
integrativa da Copilaram parece assumir-se como a atitude hermeneutica 
mais razoavel, dela devendo depois derivar diferentes aproximac;:6es a cada 
auto ou a cada conjunto de autos. 
Em resumo: a identidade estetica do dramaturgo portugues revela-se 
excepcionalmente densa: porque nao se compagina com nenhuma das 
matrizes em que se apoia; mas tambem porque nao teve sequencia directa, 
tornando-se assim muito rnais dificil qualquer tentativa de reconheci~ 
mento essencial. Os ecos da sua arte sao esparzidos, sectoriais, dela reto-
mando apenas aspectos de pormenor. Nenhum outro autor iberico repro~ 
duzira uma identidade tao complexa; nenhum outro deixara de ver nele 
uma referenda consumada, impossivel de reconstituir ou desenvolver. 
E por essa rmo, em ultima analise que no universo da nossa cultura lite-
riria, Gil Vicente se assemelha a uma especie de meteoro algo ins6lito, sem 
antecipac;:ao nem rasto directo. 
Conclusiio 
Esgotada a identidade romantica de Gil Vicente (que logrou sobre-
viver dutante largas decadas, ancorando-se no lastro nacionalista comum 
ao republicanismo e ao Estado Novo) e exauridos tambem os usos ana-
cronicos que a escola democratica veio a fazer da figura e da obra de Gil 
32 Cf, J. Richard Andrews, Juan del Encina: Prometeu.r in Search of Prestige, Berkeley, 
University of California Press, 1959 e Humberro Uipez Morales, Tradicion y creacion en los 
origenes del teatro castelkmo, Madrid, Ediciones Alcala, 1968. 
32 JOSE AUGUSTO CARDOSO BERNARDES 
Vicente (taxativamente reduzido a urn critico da expansao e do colonia-
lismo e a urn interprete tardio da carnavalidade popular), e tempo de eri-
gir outras marcas identitarias que possam adequar-se melhor ao nosso 
tempo e ao encontro hermeneutico que a partir dele nos e consentido. 
E, na falta de outros elementos, e ainda pela via das matrizes que tal objec-
tivo melhor se pode consoli dar. 
Desde 0 seculo XX, algum caminho se percorreu na prospec<rio de 
fontes; foram nomeadamente retomados e desenvolvidos alguns esfon;:os 
no sentido de discriminar entre 0 que e realmente fundante e 0 que e late-
ral nestes dominios. E se alguma conclusao pode fazer-se ressaltar deste 
percurso e justamente a de que Gil Vicente, tendo embora raizes bern vin-
cadas na Peninsula (como se vern reconhecendo desde Garcia de Resende) 
e urn auror de exrrae<;:ao europeia, inscrevendo-se numa tradi~ao ja perfei-
tamente consrituida e amadurecida. Enquanto suplemento de identidade, 
porem, 0 europeismo nao representa apenas mais uma vertente que possa 
aditar-se a outras, num plano de simples extensao. Pelo contrario: a con-
sidera~ao deste tipo de matrizes (agora essencialmente morfologicas) 
implica que se considere uma nova correla¢o cultural e retorico-literaria. 
Nessa medida, bern pode dizer-se que esta ideia constitui urn ponto de 
partida e nao tanto urn ponto de chegada. 
Admitir a importancia das grandes formas do teatro medieval euro-
peu na configura~ao das pe~as vicentinas significa ainda abrir 0 caminho 
para averiguar 0 processo de adequa~ao das proprias pe~as aos publicos a 
quem se dirigiam, entrando em linha de conta, designadamente com uma 
ideia dinamica e tensional de Corte e superando, de vez, 0 pteconceito 
determinista segundo 0 qual Gil Vicente foi essencialmente urn instru-
mento docil dos designios regios. Nessa linha, hayed. que estudar os pro-
cessos atraves dos quais 0 tearro vicentino comb ina as duas grandes matri-
zes: uma de cunho mais cortesao (a iberica) e outra de cunho mais urbano 
ou comunal (a francesa), de modo a ser acolhido e reconhecido nos pala-
cios de D. Manuel e D. Joao III. Esrabelecidas e ponderadas as matrizes, 
e enfim necessario rerirar delas uma nova identidade, porventura mais 
densa e complexa e decerto mais alinhada com as grandes tendencias da 
arte europeia do tempo. Mas, chegados a este piano, torna-se imprescin-
dive! superar 0 quadro estritamente portugues em que 0 problema rem 
sido considerado, implementando aproxima~oes comparatistas a varios 
niveis: em termos retorico-lited.rios mas tam bern em termos de semiose 
tearral, conferindo centralidade aquele que e hoje, porventura, 0 caminho 
menos percorrido dos estudos vicentinos. 
REVISGES DE GIL V1CEKTE 33 
Por muito atraente e honesto que possa parecer, porem, este pro-
grama de trabalho nao pode iludir uma questao de fundo: servir-nos-a urn 
Gil Vicente assim renovado? Havera real vantagem em que este retrato 
venha a substituir aquelourro que 0 Romantismo forjou e que tern servido 
ate agora, para figurar em manuais ou mesmo para redigir artigos de enci-
dopedias generalistas? Podera Gil Vicente resistir a este aparente processo 
de dessacralizat;ao de uma imagem que comet;ou a impor-se logo no seu 
seculo, se acentuou fortemente com 0 Romantismo e com a erudit;ao posi-
tivista, logrando resistir a todas as tentativas de relativizat;ao e alarga-
mento? Poderemos nos viver sem 0 miro inaugural do Vaqueiro que 
naquela noite de 7 de Junho de 1502, fort;ou as ponas da camara regia 
para protagonizar 0 milagre de uma "ane nova"? Poderemos prescindir da 
ideia do Gil (sem "ceitil") que fazia os "aytos a EI-Rey" a partir de mate-
riais muito dispersos que congregava depois milagrosamente em formas 
incipientes, a revelia de modelos e de regras (para pena de uns e para jubilo 
de ourros)? 
Perguntemos ainda, por outro lado: a que novas identidades nos 
podera conduzir a visao de urn Gil Vicente mais entaizado e mais culto do 
que se supunha? Sera alguma vez possivel e vantajoso, por exemplo, ins-
creve-lo na vasta e complexa serie do teatro medieval, sobretudo no que 
medeia entre os seculos XIII e XVI, em resultado directo da afirmat;ao do 
espat;o convivial que, na Europa, vai da prat;a comunal aos sal6es palada-
nos? Eis as perguntas que nesta ocasiao se devem colocar aos investigado-
res mais inconformados, aqueles que continuam a pensar que, mesmo 
depois de uma bibliografia critica tao copiosa, 0 rosto de Gil Vicente per-
manece por revelar na sua autenticidade mais funda. Parecem quest6es 
mais do que oportunas, no preciso momenta em que comemoramos uma 
data que e artlstica mais do que biografica. E quando, tambem por viadessa circunstanda, se torna necessario encontrar novas formas de discer-
nimento e divulgat;ao para uma figura e uma obra que constituem, em si 
mesmas, pedras angulares das nossas matrizes e da nossa identidade colec-
!iva: ela propria portuguesa, iberica e europeia. 
8 
OS ESTUDOS VlCENTINOS 
BALAN<;O E PERSPECTIVAS 
Se exceptuarmos 0 invulgar estrelato que corresponde a Camoes e a 
yoga relatiyamente recente de Pessoa, poucos autores portugueses tedio 
exercido mais inHuencia e inspirado mais estudos do que Gil Vicente. 
Estao ja razoavelmente inventariados os factores (intrfnsecos e extrfnsecos) 
que explicam a fortuna - ainda assim desigual- de alguns desses "escri-
tores majores". Mas nao em Gil Vicente. Perguntemos po is: Que motivos 
terao contribuido para que venha sobressaindo desta forma 0 artista da 
Rainha D. Leonor? Habituados a esta centralidade, quase nunca nos ocor-
rem formulayoes deste tipo. E, no entanto, para alem dos pressupostos 
dvicos e ideologicos envolvidos, essa indaga<;:ao pode, desde logo, condu-
zir-nos a explica<;:oes interessantes (se nao mesmo decisiyas) a respeito do 
Huxo e das orienta<;:oes dos proprios estudos vicentinos. Ate porque rara-
mente os dois pIanos deixam de intersectar-se. Vejamos pois, sumaria-
mente, que respostas podem encontrar-se para estas questoes. 
Coloco em primeiro lugar um factor de ordem estetica: precisamente 
o que decorre da relativa extensao e variedade do corpus vicentino. Sao 
quase cinquenta pe<;:as, recobrindo os grandes generos do teatto medieval 
eutopeu, e esta circunstancia, que nunca poderia ser ignorada, constitui, 
por si so, um rarfssimo valor patrimonial, que abrange a Lingua (captada 
numa impressionante multiplicidade de niveis e registos) e as formas artis-
ticas moldadas a partir dela e a partir de uma tradi<;:ao de base peninsular 
e extra-peninsular, que induia 0 Lirismo, a Narratiya e as formas dialoga-
das em gera!, sem falar nas imimeras praticas nao discursivas tipicas da 
convivialidade palaciana; vern depois outra condicionante que, embora 
sendo de natureza dvica e politica, se revel a igualmente poderosa: refiro-
me ao estatuto de dramaturgo quinhentista, que Gil Vicente partilha com 
relativamente poucos escritores de LIngua Portuguesa e que se ve refor<;:ada 
154 JOSE AUGUSTO CARDOSO BERNARDES 
com a aura de testemunha viva desse "memorial eterno da portugalidade" 
que e 0 seculo XVI; lembre-se, por fim, a absoluta excepcionalidade da 
Copilaram no panorama da cria<;:ao teatral portuguesa, em termos de qua-
lidade (e ate de quantidade), considerando nao apenas 0 seculo de Qui-
nhentos, mas todos os que ate hoje se the seguiram. Em fun<;:ao dessa 
excepcionalidade, pode afirmar-se que, para alem dos seus meritos pr6-
prios, a escrita de Gil Vicente vale tambem pelo seu desacompanhamento. 
o mesmo e dizer que, contrastando com os silencios que a precedem e se 
lhe seguem na hist6ria do teatro portugues, a obra em causa assume urn 
valor algo paradoxal, conjugando uma relativa raridade com a incidencia 
num tempo muito particular. 
A prime ira vista, sao estas as razoes principais que fazem de Gil 
Vicente urn autor incontornivel da Literatura e da Cultura Portuguesas, 
ao mesmo tempo que the garantem urn lugar muito especial no nosso ima-
ginirio colectivo, enquanto critico dos desconcertos de uma epoca onde, 
como em nenhuma ourra, se entrela<;:am sem cessar as nossas Grandezas e 
Miserias. 
E sao tambem estas as razoes que explicam 0 grande caudal biblio-
grafico que tern inspirado. S6 nos vinte anos que medeiam entre 1975 e 
1995, puderam recensear-se 620 contriburos, contando edi<;:oes, tradu<;:oes 
e estudos gerais ou localizados.23 A este numero hi ainda que somar os tra-
balhos publicados desde 95 para ca 24: tomando por base apenas 0 ritmo 
medio das duas ultimas decadas, chegamos a apreciivel media de trinta e 
cinco trabalhos por ano. 
No ambito de urn Congresso comemorativo de 500 anos de Lingua 
Portuguesa no Brasil, pareceu-me justificavel delinear uma visao esquemi-
tica dos estudos vicentinos tal como eles se configuram hoje, tentando 
depois cap tar algumas das tendencias que se desenham num futuro pr6-
ximo, em fun<;:ao das muitas tarefas que permanecem por cumprir. A esco-
lha de tal assunto radica evidentemente no meu pr6prio interesse; mas 
tenho esperan<;:a de que a minha op<;:ao possa ser tolerada no temario desta 
Reuniao cientifica. Nao hi duvida de que os auros de Gil Vicente con-
23 Esta contabilidade exacta Figura na Bibliografia vicentina que tern vindo a ser 
publicada por Constantine C. Stathatos e que conta ja tres volumes. 
24 Em finais de 2001, Stathatos publicou a mais recente actualiza~ao da sua Biblio-
grafia, incidindo, desta vez, sobre os 6 anos que medeiam entre 1995 e 2000. Nela se dao 
conta de 64 trabalhos de natureza crftica (Livros, monografias , teses e panfletos) e 32 arti-
gos integrados em revistas. 
REVISOES DE GIL VICENTE 155 
substanciam uma das mais completas e diversificadas realizas:oes esteticas 
da Lingua Portuguesa de sempre. E nessa perspectiva (mesmo lateral) que 
aqui gostosamente me assodo a celebra<;:io da Lingua materna de Gil 
Vicente que, por insondavel fortuna, e ainda a nossa. 
2. Como e sabido, a perceps:ao moderna da obra de Gil Vicente 
deve-se, em Portugal, ao Romantismo. Ha boas razoes para acreditar que 
tenha sido Almeida Garrett a recomendar a Barreto Feio e Gomes Mon-
teiro (dois judeus de origem portuguesa, radicados em Hamburgo) a reim-
pressao da Copilaram, 0 que estes fizeram a partir de urn exemplar da 1 a 
edis:ao que se encontrava na Biblioteca da Universidade de Gottingen. E 
foi a partir deste acontecimento (1834) que Gil Vicente se tornou conhe-
cido e estudado por uma pleidade de fil610gos dos finais do seculo passado 
e prindpios deste, de onde e justo destacar Carolina Michaelis de Vascon-
celos e Anselmo Braamcamp Freire.25 
Apesar dos esfon;os de contextualizas:ao que foram sendo feitos, a 
mitologia romantica (que, peIo menos em Portugal conviveu e se prolon-
gou, sem litfgios de maior, no positivismo filo16gico) depressa se apropriou 
da FIgura de Gil Vicente, transformando-o designadamente numa encar-
nas:ao da vox populi, especie de genio sem suporte nem explicas:ao racio-
nais (como se sabe, na teogonia romantica, os genios distinguem-se exac-
tamente por nao necessitarem de urn suporte hist6rico). 
Tao forte viria a revelar-se esse processo de lendarizas:ao (abrangendo 
outras figuras literarias do seculo XXI) que acabou por exceder, em muito, 
os limites cronol6gicos do pr6prio Romantismo. Nem os trabalhos de 
Ant6nio Jose Saraiva que, urn tanto incompreendidamente, em finais de 
30, coloca a obra vicentina na senda de uma vasta e rica tradis:ao europeia, 
conseguiram obstar ao velho preconceito romantico de que Gil Vicente 
representa uma especie de meteoro desacompanhado no firmamento idio-
matico e cultural da Peninsula. 
Grande parte do esfors:o de nomes cimeiros do vicentismo como 
Paul Teyssier, Luciana Stegagno-Picchio, Stephen Reckert, Cleonice 
Berardinelli ou Thomas E Hart (para s6 dtar quatro nomes, cujo labor 
vern desde, pelo menos, a decada de sessenta do seculo XX) pode ainda ser 
lido como uma tentativa de desromantizar 0 dramaturgo portugues. Mas 
sem grande sucesso, nesse plano. A avaliar pelo que se ve ainda hoje 
25 Para uma resenha dos estudos vicencinos, do seculo XIX aos nossos dias, veja-se 
o meu Sdtira e Lirismo, pp. 10 e s. 
156 JOSE AUGUSTO CARDOSO BERNARDES 
escrito, condui-se que nao se pode ainda prescindir totalmente desse logo-
tipo, ate porque -reconhe<;:amo-Io - ele se enquadra exemplarmente no 
nosso esquema mftico de pensar e de sentir. A semdhan<;:a do que sucede 
com Cam6es e, num plano diferente, tambem com Bernardim Ribeiro, Sa 
de Miranda e Antonio Ferreira, Gil Vicente integra urn conjunto canonicodiverso e bern organizado directamente reportado ao seculo XVI e ao que 
ele evoca de ilus6es de grandeza colectiva. 
3. Olhando para 0 fndice de nomes com que se encerra 0 ja citado 
volume da Bibliografia de Stathatos e destacando de entre des os que sao 
responsaveis pel os contriburos de maior relevo, verifica-se, em primeiro 
lugar, que 0 inventario dos vicentistas incontornaveis vai aumentando a 
born ritmo e, ao lado dos consagrados nos anos 60 e 70, tornou-se ja obri-
gat6rio referir nomes como Maria Idalina Resina Rodrigues, Joao Nuno 
Al<;:ada, Maria Luisa Tobar, Armando LOpez Castro, Manuel Calderon, 
Stanislav Zimic e 0 proprio Constantine C. Stathatos. 
Como nao poderia deixar de ser, por entre os dtulos mais recentes, 
detectam-se muitas dupIica<;:6es de perspectiva e de resultados obtidos; 
mas tambem se veem alguns movimentos de renova<;:ao numa area que, 
alias, durante muito anos, permaneceu sequestrada pela historia Iiteraria 
(em sentido estrito), quase imune, portanto, aos ventos novos que vieram 
fecundar as metodologias dos estudos literirios e teatrais. 
Continua a predominar, quantitativamente, a tendencia para 0 
estudo isolado de urn so auto, correspondendo, muitas vezes, a incurs6es 
esporidicas e de folego menor de estudiosos nao reincidentes; mas sao ji 
em numero significativo os estudos transversais que abrangem os autos ou 
pelo menos alguns conjuntos de pe<;:as, delimitados em termos cronologi-
cos, tem:hicos ou genologicos: a farsa, a comedia, a representa<;:ao da 
MuIher, do Natal, do Arnor, a projec<;:ao cenico-teatral dos textos, etc. 
Ainda nurna linha estruturante e global, a Urica vicentina, cuja impor-
tancia foi desde sempre intuida, vern merecendo uma aten<;:ao crescente, 
consubstanciada em edi<;:6es anto16gicas, que nao deixam de surpreender 
quem tern dos autos urn conhecimento mais rarefeito e em estudos de 
solida fundamenta<;:ao que religam Gil Vicente a grande tradi<;:1io da Urica 
iberica de Quatrocentos, nas formas enos temas, ao mesmo tempo que se 
busca 0 significado global da Urica enquanto correlato dialectico de outras 
formas de expressao (Y. Reckert e, na sua senda, Calderon e Lopez Cas-
tro). Mal conhecido e pouco valorizado durante decadas, 0 lirismo penin-
sular de Quatrocentos tern vindo, nos ultimos anos, a ser objecto, no seu 
REVISOES DE GIL VJCENTE 157 
todo, de interesse crescente, em termos de edicrao e exegese crftica. Uma 
das causas dessa prolongada obscuridade prende-se, alias, com a ideia, 
tambem ela preconceituosa, de que se trata de uma realidade epigonal e 
nao precursora. Ao inves de Bernardim, Miranda e Camoes, poetas que 
fecundaram sucessivas geracr6es de vindouros, nomes como Garcia de 
Resende, Alvaro de Brito ou Anrique da Mota passam por ser poetas de 
epoca, no que a designacrao envolve de limitadamente circunstancial. Mas, 
ainda assim, a escrita desses poetas nao pode ser objecto de urn so angulo 
de avaliacrao. Trata-se, desde logo, de uma escrita performativa e foi justa-
mente essa dimensao que a tornou vizinha do primeiro teatro peninsular. 
Poetas e dramaturgos foram tambem, indistintamente, Juan del Encina e 
Lucas Fernandez, por exemplo. E foi-o ainda Gil Vicente, em proporcr6es 
muito semelhantes (embora em nlveis de qualidade muito superiores). 
4. Perante sinais tao positivos, apetece pensar que os estudos vicenti-
nos se encontram a caminho do lugar que lhes compete por direito pro-
prio no ambito da historia literaria e cultural (portuguesa e peninsular, 
pelo menos). Mas convem nao embarcar em contentamentos de suficien-
cia, uma vez que as lacunas sao ainda numerosas e de grande monta. Sem 
pretensoes de exaustividade, anotemos apenas cinco: as edicr6es; a Lingua; 
as matrizes esteticas; as coordenadas contextuais e os sentidos. 
4.1. Urn dos sinais que melhor reflecte 0 grau de desenvolvimento de 
uma determinada area dos estudos literarios e, como se sabe, 0 grau de fia-
bilidade que merecem os textos diponiveis. E, para 0 caso de Gil Vicente, 
o minimo que se pode dizer e que ele esta ainda longe de ser satisfatorio. 
Continuam timidos os passos dados para se chegar a uma edicrao critica. 
Em 1965 (ano em que se comemorou 0 4.° centenario do nascimento do 
autor) chegou a ser constituida, para 0 efeito, uma ampla Comissao 
Nacional. Passadas mais de tres decadas, os dedos de uma so mao chegam 
para contar as edicr6es que podem redamar-se de crfticas (e creio que, das 
que existem, nenhuma veio a beneficiar desse impulso comemoracionista). 
Em comrapartida, cresceu bastante 0 numero de edicroes didacticas, 
embora de urn numero de autos cada vez mais restrito, acompanhando, 
por razoes de mercado, a substancial reducrao do canone vicentino nos 
programas de Portugues dos Ensinos Basico e Secundario. Sao em suporte 
escrito e tambem ja em suporte informatico, mas repetem, por sistema, os 
erros de leitura, tao fuvorecidos, como se sabe, pelas deficiencias da pro-
pria editio princeps. De resto, mais do que com a fiabilidade dos textos 
158 Jost AUGUSTO CARDOSO BERNARDES 
apresentados, OS cuidados sao postos em estrategias mais ou menos inven-
tivas, tentando apresentar de Gil Vicente imagens ficeis, divertidas e, 
sobretudo, anacronizantes. Sao as consequencias normais da presen<;:a de 
Gil Vicente na Escola de massas, onde aparece reduzido a meia-duzia de 
chavoes, que oscilam sobretudo em fun<;:ao das conjunturas dvico-politi-
cas e em resultado do capricho (muitas vezes insondivel) dos autores de 
programas e manuais. 26 
Mais inaceitivel do que a escassez de edi<;:oes criticas e, ainda, a penu-
ria de edi<;:oes globais fidedignas. No mercado portugues encontram-se 
hoje a edi<;:ao da Lello & Irmao (que se limita a reproduzir, em aparato de 
luxo, a que Mendes dos Remedios preparou em 1907 para a colec<;:ao Sub-
sidios para a Historia da Literatura Portuguesa); encontra-se ainda a edi<;:ao 
de Costa Pimpao que, apesar da sua melhor qualidade cientifica, e "artis-
tica", 0 que significa dizer que e ainda mais cara, alem de pouco pritica, 
pelas suas invulgares dimensoes. A edi<;:ao dos clissicos Si da Costa (pre-
parada por Marques Braga, hi cerca de 60 anos) cumpriu razoavelmente a 
sua missao na Escola portuguesa ao longo de trinta anos mas ji s6 se 
encontra em alfarrabistas; ate a que Maria Leonor Buescu preparou para a 
Imprensa Nacional, hi 20 anos (com normaliza<;:ao de texto), e que tern 
alimentado 0 mercado universitirio nos ultimos anos, se encontra ji fora 
da vista dos potenciais compradores. 
Hi muito pouco tempo e ainda sob efeito de uma outra celebra<;:ao 
(os 500 anos do Monologo do Vaqueiro, celebrados em 2002) apareceu uma 
nova edi<;:ao das Obras de Gil Vicente, com fixa<;:ao de texto em 2 volumes, 
mais dois contendo a reprodu<;:ao em fac-simile da Copilafiio de 1586 e dos 
folhetos quinhentistas ate hoje identificados e ainda outro com Notas, 
Glossirio, Bibliografia e virios indices. 0 empreendimento dirigido por 
Jose Camoes, resultou directamente da edi<;:ao de urn CD Rom, publicado 
apenas urn ana antes, e constitui, sem qualquer duvida, uma iniciativa 
muito louvivel, nao s6 pela li<;:ao melhorada que agora se propoe do texto 
vicentino, mas tambem porque proporciona ao lei tor curioso (e mesmo ao 
investigador) materiais de muito dificil acesso, comodamente reunidos e 
editados. Isto nao significa, porem, que tenha deixado de haver lugar para 
outro tipo de edi<;:oes parcel ares ou integrais, destinadas a urn publico 
ainda mais vasto, com introdu<;:oes criticas a cada auto ou a cada conjunto 
26 Sobre a presens:a de Gil Vicente na Escola veja-se 0 estudo que encerra 0 presente 
volume. 
REVISOES DE GIL VICENTE 159 
de autos, bibliografias selectivas e, sobretudo, as notas explicativa em pe de 
pagina, em quantidade suficiente para tomar os textos verdadeiramente 
acessiveis. De forma ainda mais clara: nota-se afalta de uma edi<;:ao que 
pudesse coresponder ao modelo dos Classicos Sa da Costa, revisto e actua-
lizado em fun<;:ao dos progressos entre tanto alcan<;:ados nos estudos vicen-
tinos e em fun<;:ao dos destinatarios reais e potenciais do nosso tempo e dos 
tempos mais pr6ximos. Em si mesma, a falta e muito significativa. Trata-
se de urn trabalho moroso e dificil de empreender, requerendo 0 empe-
nhamento de uma verdadeira equip a que, para alem de especialistas em 
critica textual e em hist6ria da lingua, deveria ainda contar com pessoas 
familiarizadas com as formas e os sentidos do teatro medieval, em geral e 
da obra de Gil Vicente, muito em particular. E logo por aqui se avalia a 
dificuldade em congregar as vontades, as competencias e os meios neces-
sirios para levar avante esse cometimento.27 
Tambem 0 panorama das tradu<;:6es esta longe de ser excelente. Para 
alem das Barcas, do Auto da Alma e da Sibila Cassandra (pe<;:as muito tra-
duzidas para quase todas as linguas europeias na primeira metade do 
seculo XX) tem-se verificado uma natural curiosidade pelos autos que 
27 Tao dificil como congregar uma equipa com este perfil, mesmo reduzida ao essen-
cial, e convencer (e manter convencidas) as entidades publicas da propria utilidade da ini-
ciativa. A esse propos ito, 0 autor destas linhas teve uma experiencia elucidativa, justamente 
enquanto coodenador de urn projecto de ediyao integral da obra vicentina. 0 objectivo da 
equipa, constituida sem qualquer apoio de ordem economica ou institucional, era estabe-
lecer uma edi<;:iio fiavel, anotada e comentada, decalcando, com a necessaria actualizayao 
de perspectiva e de metodo, 0 modelo de Marques Braga. Obtido pela editora 0 apoio 
flllanceiro para os custos de ediyao (no ambito do projecto "Clissicos da Lingua Portu-
guesa"), encetou-se 0 trabalho, necessariarnente demorado e requerendo, a cada passo, 
momentos de aferiyao concertada. Ia ja muito adiantada a preparayao do Livro IV (0 das 
farsas) quando, invocando 0 facto de entretanto ter surgido, na Imprensa Nacional, uma 
nova ediyao das Obras Completas, 0 Instituto Portugues do Livro e das Bibliotecas, 
enquanto entidade patrocinadora, comunica a editora proponente a decisao de cessar 0 
apoio antes acordado. Pouco tempo antes tinham vindo a publico algumas opini6es de des-
tacados intelectuais, atacando a politica de apoios do referido Instituto e dando como 
exemplo 0 facto de, em sua opiniao, ser superflua a existencia de duas ediy6es integrais da 
obra do nosso maior drarnaturgo. E de nada valeu argumentar com a diferenya dos pro-
jectos em questao; de nada valeu sequer invocar a grandeza de Gil Vicente, que os mem-
bros da equipa pensavarn ser suficiente para legitimar duas ediy6es integrais. 
Refira-se, por fim, que tudo isto aconteceu a beira de se celebrarem os 500 anos do 
Monologo do Vaqueiro. 
160 JOSE AUGUSTO CARDOSO BERNARDES 
reflectem as circunstancias da Expansao, inspirando urn mimero razoavel 
de versoes, nomeadamente em Lingua Inglesa. Men<;:ao muito positiva, a 
este respeito, merecem as tradu<;:oes francesas coordenadas por Paul Teys-
sier, que come<;:aram a vir a lume, sob a chancela das Editions de la Chan-
deigne, ja na decada de 70.28 Mas se a este excelente exemplo quisessemos 
contrapor urn fenomeno de sinal contrario, nao seria dificil: bastaria alu-
dir as edi<;:oes do teatro exclusivamente castelhano de Gil Vicente (feitas 
por espanhois e publicadas em Espanha) e a outras feitas em Portugal, sis-
tematicamentemente expurgadas dos autos em castelhano ou ate dos tex-
tos bilingues. 
Enquanto este estado de coisas subsistir, e bern provavel que Gil 
Vicente continue ausente das historias do teatro europeu. Em Italia, em 
Fran<;:a ou nos paaises anglo-saxonicos, 0 dramaturgo portugues constitui 
ainda uma escandalosa ausencia, sendo objecto, quando muito, de refe-
rencias fugazes e quase sempre deturpadas. E isto apesar de, em teoria, se 
ter tornado impossive! a reconstitui<;:ao dos grandes generos do teatro 
medieval, a revelia do seu legado. Nao pode aceitar-se, por exemplo, a 
identifica<;:ao acritica de Gil Vicente com Encina e Fernandez, sistematica-
mente agrupados (os tres) nas Historias do Teatro Espanhol, no rol dos 
"primitivos" ou dos "precursores". 
As insuficiencias de base verificadas nestes dois pIanos nao po de 
obviamente deixar de condicionar a produ<;:ao critica, uma vez que da{ 
resultam dificuldades naturais no acesso aos textos. Deste modo, a neces-
sidade de conjugar esfor<;:os para ultrapassar este estado de coisas, num 
sentido duplo e convergente impoe-se com naturalidade, enquanto plano 
de trabalho a implementar em regime de estreita colabora<;:ao e apoio inte-
rinstitucional. 
a) elaborar uma edi<;:ao integral de Gil Vicente, com notas de carac-
ter filologico e historico-cultural, de modo a cumprir urn designio bern 
simples: 0 de tornar acessivel, na sua globalidade, um corpus auroral abso-
luramente tinico na historia da cultura portuguesa. Para tanto, torna-se 
necessario estabe!ecer criterios de anota<;:ao, que deverao ir desde 0 escla-
28 A iniciaciva comou, no inicio, com a coordena<;iio muito activa de Paul Teyssier e 
prossegue, ao que sabemos, sob a egide de alguns dos seus discipulos na Universidade fran-
cesa, de que e JUSto destacar Anne Marie Quint e Olinda Kleiman. Para uma resenha do pro-
jecto e dos criterios em que assenta, veja-se a entrevista de Anne Marie Quint, conduzida por 
Christine Zurbach, in Adagio, 34/35 (Setembro de 2002/Janeiro de 2003), pp. 137-141. 
REVISQES DE GIL VICENTE 161 
recimento vocabular localizado e cotextual, ate ao comentario estetico e 
ideo16gico.29 
b) depois - ou paralelamente? - deve levar-se por diante a tao 
almejada edi~ao cdtica, ainda mais trabalhosa, mas, ainda assim, perfeita-
mente exequfvel (sobretudo, em face dos progress os assinalaveis que a edi-
~ao Cam6es consagrou a este nive1) e, sobretudo, amplamente justificada 
em face dos beneHcios que promete. 
4.2. Na posse destes do is elementos de trabalho seria, sem duvida, 
muito mais fkil deitar ombros a tarefas de outra indole, enfrentando pro-
blemas que desde ha muito se encontram suspensos. Era preciso voltar a 
questao da Lingua, em primeiro lugar. Sobre este assunto, Paul Teyssier 
disse praticamente a primeira e a ultima palavra. Mas disse-a em 1959. 
Na mesma perspectiva ou adoptando outros enfoques, imp6e-se retomar 
o estudo da Langue vicentina, em correla~ao com os varios registos do 
discurso literario e nao-literario da mesma epoca, nos dominios idioma-
ticos do Castelhano e do Portugues, atraves de cruzamentos que os recur-
sos informaticos vieram entre tanto facilitar enormemente. Penso sobre-
tudo na questiio do Lexico, onde, depois de Teyssier, os caminhos se 
encontram bern desbravados; e tenho muito concretamente em vista os 
trabalhos que se desenvolveram ja a prop6sito de obras em castelhano 
contemporaneas de Gil Vicente, como e 0 caso da Celestina. Mas seria 
igualmente muito bern recebido urn inventario dos t6picos enunciativos 
ou da prodigiosa gama de situa~6es de diaIogo dramatico registadas ao 
longo dos autos. 
De facto, para ahSm de outras vantagens, 0 estudo da morfologia do 
diaIogo permitiria estabelecer, de forma mais rigorosa, 0 complexo de 
matrizes a que se reporra a obra vicentina e surpreender a grande versati-
lidade estetica que a assinala. 
29 De entre os numerissimos exemplos que poderiam destacar-se no panorama edi-
torial espanho! (ficando-nos assim por urn espac;:o bern proximo), cinjo-me apenas a uma 
recente edi\;lio da CeieJtina, preparada por uma equipa que integra nomes como Francisco 
]. Lobera, Gillermo Seres, Paloma Diaz-Mas, Carlos Mota, Inigo Ruiz Arzilluz e Francisco 
Rico, com varios Estudos, Aparato Critico, Notas, Bibliografias e indices que se estendem 
por quase urn milhar de paginas. 
Sao muito variados

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