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Karl R. Popper A Natureza dos Problemas Filosóficos e suas Raízes Científicas Seções I e III In: Popper, K. R. — Conjecturas e refutações, pp. 95-97 e 100-103. Trad. por Sérgio Bath. Brasília: Editora da UnB, 1982. Publicado originalmente em: British Journal for the Philosophy of Science, v. 3, n. 10, pp. 124-156, 1952. I Foi com alguma hesitação que decidi tomar como ponto de partida para esta conferência a situação atual da filosofia inglesa, pois acredito que a função do cientista e do filósofo é solucionar problemas científicos ou filosóficos e não falar sobre o que ele e outros filósofos estão fazendo ou deveriam fazer. Qualquer tentativa honesta e dedicada de resolver um problema científico ou filosófico, mesmo que não tenha bons resultados, parece-me mais importante do que um debate sobre problema como a natureza da ciência ou da filosofia. Mesmo se nos dirigirmos a esta última questão de forma mais precisa (indagando, por exemplo, qual o caráter dos problemas filosóficos), minha inclinação seria não dar muita importância a esse exercício: acho que ele tem pouco peso, ainda quando comparado com um problema menor da filosofia — como o de saber se toda discussão e toda crítica devem partir sempre de "premissas" ou "suposições" que permanecem em si mesmas fora do debate. Quando disse que a indagação sobre o caráter dos problemas filosóficos é mais apropriada do que a pergunta "Que é a filosofia?", quis insinuar uma das razões da futilidade da atual controvérsia a respeito da natureza da filosofia: a crença ingênua de que existe de fato uma entidade que podemos chamar de "filosofia” ou de "atividade filosófica", com uma "natureza-, essência ou caráter determinado. A idéia de que a física, a biologia e a arqueologia existem por si mesmas, como campos de estudo ou "disciplinas" distinguíveis entre si pela matéria que investigam, parece-me resíduo da época em que se acreditava que qualquer teoria precisava partir de uma definição do seu próprio conteúdo. Na verdade não é possível distinguir disciplinas em função da matéria de que tratam; elas se distinguem umas das outras em parte por razões históricas e de conveniência administrativa (como a organização do ensino e do corpo docente), em parte as teorias que formulamos para solucionar nossos problemas têm a tendência de se desenvolver sob a forma de sistemas unificados. Mas essa classificação e essas distinções são superficiais e têm relativamente pouca importância. Estudamos problemas, não matérias: problemas que podem ultrapassar as fronteiras de qualquer matéria ou disciplina. Embora esse fato possa parecer óbvio para algumas pessoas, ele é tão importante para a presente discussão que vale a pena ilustrá-lo com um exemplo. Não é preciso dizer que os problemas estudados pelos geólogos — como a avaliação da possibilidade de encontrar petróleo ou urânio numa determinada região — precisam ser resolvidos com a assistência de certas teorias e técnicas classificadas ordinariamente como matemáticas, físicas e químicas. É menos evidente, porém, que mesmo uma ciência "fundamental", como a física atômica, pode ter a necessidade de empregar uma investigação geológica — técnicas e teorias geológicas — para resolver problema relacionado com suas teorias mais abstratas: por exemplo, o problema representado pelo teste de predições da estabilidade ou instabilidade relativa dos átomos com número atômico par ou ímpar. Estou pronto a admitir que muitos problemas "pertencem" de alguma forma a uma das disciplinas tradicionais, embora sua solução envolva as disciplinas mais diversas. Os dois problemas que mencionei, por exemplo, "pertencem" à geologia e à física, respectivamente. Universidade Federal do ABC — Temas e Problemas em Filosofia K. R. Popper — “A Natureza dos Problemas Filosóficos e suas Raízes Científicas”, Seções I e III 2 Cada um deles tem origem numa discussão que é característica da tradição da disciplina em causa — da discussão de alguma teoria, ou de testes empíricos relacionados com essa teoria; e as teorias, ao contrário dos assuntos; podem constituir uma disciplina (que poderíamos descrever como uma constelação de teorias, um tanto "soltas", que sofrem constantes desafios, alterações e crescimento). Mas isso não afeta meu argumento no sentido de que a classificação das disciplinas tem relativamente pouca importância; que estudamos problemas, não disciplinas. Mas, haverá problemas filosóficos? A posição atual da filosofia inglesa — meu ponto de partida — se origina, creio, na doutrina de Ludwig Wittgenstein, que responde negativamente a essa pergunta — todos os problemas genuínos seriam científicos; os alegados problemas filosóficos não passariam de pseudoproblemas e as alegadas teorias ou proposições filosóficas seriam pseudoteorias e pseudoproposições: não falsas (se o fossem, suas negações constituiriam verdadeiras proposições ou teorias) mas simples combinações de palavras sem sentido, não mais significativas do que o balbucio inconseqüente de uma criança que não aprendeu ainda a falar. Em conseqüência, a filosofia não poderia conter nenhuma teoria. De acordo com Wittgenstein, sua verdadeira natureza não seria a de uma teoria, mas sim a de uma atividade. A função da filosofia genuína seria desmascarar os absurdos filosóficos e ensinar as pessoas a falar de modo que faça sentido. Meu plano consiste em tomar essa doutrina de Wittgenstein como ponto de partida. Procurarei explicá-la (na seção II); defendê-la, até certo ponto; e criticá-la (na seção III). Nas seções IV a XI apresentarei exemplos extraídos da história das idéias científicas. Antes de desenvolver meu plano desejo reafirmar a convicção de que os filósofos devem filosofar — devem tentar resolver problemas filosóficos, em vez de falar sobre a filosofia. Se a doutrina de Wittgenstein fosse verdadeira, ninguém poderia filosofar, nesse sentido. Se pensasse assim, abandonaria a filosofia. Acontece, porém, que não só estou profundamente interessado em certos problemas filosóficos (não me importa muito se é "correto" chamá-los assim), mas alimento a esperança de poder contribuir — um pouco, e mediante muito trabalho — para a sua solução. A única desculpa que posso dar por estar aqui falando a respeito da filosofia, em vez de filosofar, é a esperança de que, ao cumprir o programa que me propus para o preparo desta conferência, poderei encontrar uma oportunidade para filosofar. III Prometi dizer alguma coisa em defesa do ponto de vista de Wittgenstein. O que pretendo dizer é, primeiro, que há muitos escritos filosóficos (especialmente da escola hegeliana) que podem ser criticados com justiça por constituírem mero palavrório sem sentido; em segundo lugar, que esse tipo de publicação irresponsável foi reprimido — pelo menos durante algum tempo — pela influência de Wittgenstein e dos analistas da linguagem (embora provavelmente a influência mais saudável nesse sentido tenha sido a de Russell que, com a clareza e o encanto incomparáveis do seu estilo, demonstrou o fato de que a sutileza do conteúdo é compatível com a lucidez e a singeleza do estilo). Estou preparado para conceder mais ainda. Para defender parcialmente as idéias de Wittgenstein, aceito as duas teses seguintes: A primeira é a de que toda filosofia — especialmente toda "escola filosófica" — pode degenerar de tal forma que seus problemas se tornem praticamente indiferenciáveis de "pseudoproblemas", e seu jargão praticamente indistinguível de um linguajar destituído de qualquer sentido. Conforme procurarei demonstrar, esta é uma conseqüência da cumulatividade e da falta de abertura do pensamento filosófico; a degeneração das escolas filosóficas, de seu lado, é uma conseqüência da crença errônea de que é possível filosofar sem Universidade Federal do ABC — Temas e Problemasem Filosofia K. R. Popper — “A Natureza dos Problemas Filosóficos e suas Raízes Científicas”, Seções I e III 3 ser a isso obrigado por problemas surgidos fora do campo da filosofia — na matemática, por exemplo, na cosmologia, política, religião ou na vida social. Em outras palavras, minha primeira tese é de que os problemas filosóficos genuínos têm sempre raízes em problemas urgentes fora do campo da filosofia, e morrem se perdem essas raízes. Nos esforços que fazem para resolvê-los, os filósofos podem seguir o que parece a alguns uma técnica ou método filosófico, uma chave segura para o êxito filosófico. Na verdade, porém, não existem tais métodos ou técnicas. Aliás, na filosofia os métodos têm pouca importância: desde que produza resultados susceptíveis de discussão racional, qualquer método é legítimo. O que importa não é o método ou as técnicas, mas a sensibilidade aos problemas e uma paixão ardorosa pela sua solução: como diziam os gregos, o dom de maravilhar-se com o mundo. Há pessoas que sentem a necessidade de resolver um problema — para elas um determinado problema se torna algo real, de que precisam se liberar. Essas pessoas podem dar uma contribuição à filosofia mesmo que se prendam a um método ou técnica particular. Há outros porém que não sentem tal necessidade, não têm qualquer problema sério ou urgente para resolver, mas que ainda assim formulam exercícios nos métodos que estão em moda — para eles a filosofia é uma aplicação (uma técnica ou visão especial) e não uma procura. São eles que levam a filosofia para um pântano de pseudoproblemas e charadas verbais, formulando pseudoproblemas como se fossem problemas reais (perigo reconhecido por Wittgenstein) ou persuadindo-nos a nos concentrarmos na tarefa sem fim e sem sentido de desmascarar o que tomam (com ou sem razão) por pseudoproblemas ou "charadas" (armadilha em que caiu Wittgenstein). Minha segunda tese é a de que o método prima facie usado no ensino da filosofia pode produzir uma filosofia que atenda à descrição de Wittgenstein. Por "método prima facie usado no ensino da filosofia" (aparentemente o único método), quero dizer o convite ao estudante (que admitimos não estar informado sobre a história das idéias matemáticas, cosmológicas e outras idéias científicas e políticas) para ler as obras dos grandes filósofos, como por exemplo Platão, Aristóteles, Descartes, Leibniz, Locke, Berkeley, Kant e Mill. Qual o efeito dessas leituras? Um mundo novo, de abstrações extraordinariamente vastas e sutis, se abre diante do leitor — abstrações de nível muito elevado e difícil. Sua mente é exposta a idéias e argumentos que parecem às vezes não só difíceis de compreender mas também irrelevantes — porque o estudante não consegue identificar sua relevância. No entanto, ele sabe que são grandes filósofos e que esse é o estilo da filosofia. Fará portanto um esforço para ajustar sua mente ao que pensa (erradamente, como vamos ver) serem seus pontos de vista. O estudante tentará usar aquela- estranha linguagem, seguir as espirais tortuosas da argumentação apresentada, chegando talvez a se amarrar nos seus nós. Alguns aprenderão esses truques de forma superficial; outros começarão a se deixar fascinar. Mas considero digno de respeito aquele que, depois desse esforço, chega ao que se poderia descrever como a conclusão de Wittgenstein: "Aprendi o jargão tão bem quanto qualquer outra pessoa: uma linguagem inteligente e atrativa. Na verdade, perigosamente cativante, porque a verdade simples é que se trata de uma tempestade num copo d'água — um monte de absurdos”. A meu ver há um grande equívoco nessa conclusão; contudo, é a conclusão quase inescapável do método prima facie de ensinar filosofia, que descrevi. Não nego, naturalmente, que alguns estudantes muito bem dotados podem encontrar nas obras dos grandes filósofos muito mais do que o exemplo sugere — e sem se deixar iludir. De modo geral, contudo, a possibilidade que tem o estudante de descobrir os problemas extrafilosóficos (matemáticos, científicos, morais e políticos) que inspiraram os grandes filósofos é bem reduzida. Geralmente esses problemas só podem ser identificados pelo estudo da história das idéias científicas, especialmente da matemática e das ciências, durante o período em questão; o que pressupõe, por sua vez, considerável familiaridade com a matemática e a ciência. Só ao compreender a situação das ciências em determinada época, o estudante entenderá que os Universidade Federal do ABC — Temas e Problemas em Filosofia K. R. Popper — “A Natureza dos Problemas Filosóficos e suas Raízes Científicas”, Seções I e III 4 grandes filósofos daquela época procuraram resolver problemas concretos e urgentes, que não podiam ser afastados. E só assim poderá ter um quadro diferente das grandes filosofias — quadro que lhe mostrará como os aparentes absurdos têm um sentido. Tentarei ilustrar essas duas teses com exemplos. Antes, porém, vou sumarizar minhas idéias sobre o assunto e "ajustar as contas" com Wittgenstein. Minhas duas teses correspondem à afirmativa de que como a filosofia tem raízes profundas em problemas não filosóficos, o julgamento negativo de Wittgenstein é de modo geral apropriado, na medida em que se aplica a filosofias que esqueceram suas raízes extrafilosóficas; e na medida em que essas raízes são facilmente esquecidas pelos filósofos que "estudam" filosofia, em vez de serem forçados à atividade filosófica pela pressão de problemas não filosóficos. Resumiria da seguinte forma minha opinião sobre a doutrina de Wittgenstein: talvez seja verdade, de modo geral, que não existem problemas filosóficos "puros"; na verdade, quanto mais puro um problema filosófico mais se perde sua significação original, maior o risco de que sua discussão degenere num verbalismo vazio. Por outro lado, existem não só problemas científicos genuínos mas também problemas filosóficos genuínos. Mesmo quando a análise revela que esses problemas contêm componentes factuais, não é preciso classificá- los como científicos. Por outro lado, ainda quando podem ser solucionados com meios exclusivamente lógicos, não precisam ser qualificados como puramente lógicos ou tautológicos. Há situações análogas na física, por exemplo, onde o problema de explicar as séries de linhas espectrais (com o emprego de uma hipótese sobre a estrutura atômica) pode ser solucionado mediante cálculos matemáticos. O que também não quer dizer que se trate de um problema de matemática pura, e não de física. É perfeitamente justificável denominar um problema de "físico” se ele se relaciona com teorias e outros problemas discutidos tradicionalmente pelos físicos (como o problema da constituição da matéria), mesmo que os meios empregados para solucioná-lo sejam puramente matemáticos. Como vimos, a solução de problemas pode ultrapassar as fronteiras de muitas ciências. Da mesma forma, um problema pode ser chamado de “filosófico”, apropriadamente, se verificarmos que embora tenha surgido. por exemplo, no campo da teoria atômica, se relaciona mais estreitamente com as teorias e os problemas discutidos pelos filósofos do que com as teorias que interessam atualmente os físicos. Por outro lado, não importa absolutamente que métodos empregamos para solucionar um problema. A cosmologia, por exemplo, terá sempre grande interesse filosófico, embora se tenha aliado, em parte da metodologia que emprega, com o que poderíamos chamar mais precisamente de "física". Afirmar que a cosmologia pertence à ciência é pedante e resulta claramente de um dogma epistemológico (filosófico, portanto). Da mesma forma, não há razão para que se negue a um problema solucionável por meios lógicos o atributo "filosófico": ele pode muito bem ser tipicamente filosófico, físico ou biológico. A análise lógica desempenhou uma função considerável na teoria especialda relatividade, de Einstein; em parte foi isso que tornou essa teoria filosoficamente interessante, dando origem a uma ampla gama de problemas filosóficos correlatos. A doutrina de Wittgenstein resulta da tese de que todas as afirmativas genuínas (e portanto todos os problemas genuínos) podem ser classificadas em uma de duas classes exclusivas: as afirmativas factuais (sintéticas ‘a posteriori’), pertencentes às ciências empíricas, e as afirmativas lógicas (analíticas ‘a priori’), pertencentes exclusivamente à lógica formal ou à matemática. Embora extremamente valiosa para uma descrição superficial, essa dicotomia simples é simples demais para muitos propósitos. Feita sob encomenda, por assim dizer, para excluir a existência dos problemas filosóficos, não consegue chegar a esse resultado; mesmo se a aceitarmos podemos sempre alegar que os problemas factuais, lógicos ou híbridos, em certas circunstâncias, podem ser filosóficos.
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