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Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO FundaçãoCECIERJ/Consórcio Cederj Curso de Pedagogia para as Séries Iniciais do Ensino Fundamental 2014/1º Disciplina optativa EDUCAÇÃO PARA A DIVERSIDADE Coordenação: Professora Doutora Maria Amelia de Souza Reis MÓDULO II – AULA 2 Este texto ajudará você a compreender os conceitos do texto:O reconhecimento dadiversidade étnico-racial. 1. João de Páscoa: um índio Pankararu João de Páscoa é índio Pankararu, morador da aldeia do Brejo dos Padres, localizada no sertão de Pernambuco. Mas não foi sempre assim. Ele nasceu em meados da década de 1920, em um período de grande seca, por isso, a população migrou em busca de melhores condições. Como ele conta: Fui batizado na igrejinha de Geripancó, e já tinha lá índio daqui, que os índios ia trabalhar e ficava por ali, constituía família e, então, formou outra tribo. É onde deu origem à tribo dos Geripancó. Depois, quando ele já era menino, a família de João de Páscoa migrou novamente: Nós descemos de Palmeira dos Índios e fomos ajudar a erguer a aldeia dos Xucurus, isso foi na época de 1932. Eu fiquei lá e me criei com os índios de lá, no ritual deles. A gente dançava, fumava, todo mundo tinha que levar uma lembrança lá toda semana; um comprava fumo, outro comprava rapadura, tudo assim, pra pedir pros Encantos virem a terra. A meninada toda saía pra feira da cidade pra ganhar frete daquelas mulheres que faziam feira. Iam com o balaio na cabeça e ganhavam 200 réis, 300 réis. Foi só quando o seu povo teve o território tradicional reconhecido pelo Estado brasileiro como área indígena Pankararu, na década de 1940, que a sua família retornou à terra de origem: “Eu já tava com 14 anos, aí vim para aqui e a terra já tava demarcada”. Na verdade, os Pankararu ocupam o mesmo território desde pelo menos o século XVIII, quando foram aldeados por padres Capuchinhos, mas no final do século XIX eles foram declarados extintos e as terras do seu aldeamento foram loteadas. Nessa mesma época, os últimos aldeamentos do Nordeste tinham sido considerados extintos porque os seus índios já estavam muito misturados, segundo a opinião dos governos provinciais. No caso Pankararu, houve um segundo propósito: as terras do seu aldeamento foram distribuídas entre algumas famílias indígenas e outras tantas famílias de escravos, que estavam sendo libertadas um pouco antes da abolição da escravatura, em troca de indenizações, pelos fazendeiros da região. Era um bom negócio, pois ao manterem os escravos por perto, nas terras do aldeamento, junto com os índios declarados não mais índios, os fazendeiros lucravam com a abolição sem perderem o controle sobre a sua mão-de-obra. Na década de 1940, porém, quase sessenta anos depois de serem declarados extintos, os Pankararu, que tinham absorvido as famílias negras em sua sociedade por meio dos casamentos, continuavam realizando seus rituais, suas festas e mantendo a religião. Conseguiram, assim, ser reconhecidos novamente como indígenas, recuperando também, em parte, o direito sobre suas terras. Mas a história de João de Páscoa continua por outros caminhos: Aí depois eu fiquei adulto, trabalhei e depois que já tinha duas filhas, aí eu fui agenciado prair pra São Paulo cortar lenha no machado. E eu fui pra lá e ela [aponta para a esposa] ficouaí. Passei um ano, depois era pra vim e não vim. Passei outro ano lá mesmo, aí quando eu vimjá trouxe um bocado de coisa, era relógio, era aquelas cobertas berrantes, aquela vitrolinha demão, aí melhorou. Depois o dinheiro acabou e escrevi para São Paulo de novo. Aí os portuguesesda Light me mandaram que eu fosse, aí eu fui e dessa vez passei 17 anos... [riso]. João de Páscoa, como muitos outros nordestinos, foi trabalhar em São Paulo, levado peloschamados “gatos”, que recrutavam trabalhadores em áreas pobres do Nordeste e os levavampara outras regiões, transportados em caminhões “pau-de- arara”. Lá realizavam serviços cujopagamento também era intermediado pelos “gatos”, que ficavam com a maior parte dele: Eles vinham buscáa gente, era comum, vinham aqui para entregá pra empreiteiro. Aí o paude- arara rodava direto. Cêvê, o homem nordestino, toda a vida ele migrou para o sul, principalmentepra São Paulo, para a lavoura, pro Paraná, para aquele meio de mundo ali. João explica que durante os longos períodos em que ele e seus companheiros passavam emSão Paulo não deixavam de respeitar o ritual tribal: Eu vivia no mato mais esse povo daqui, que tava comigo, era tudo índio. Eu lá não trabalheicom civilizado. Eu recebia dinheiro do civilizado, mas o pessoal meu era tudo índio. [...] Aítodo mundo fazia o ritual. A gente tinha de tudo lá dentro do mato. Tinha cachorro pra caçar e fazia comida de caça. Lá eu achei bonito. Uma tribo podia viver lá na serra de Santos, viu? Eu só não gostei do borrachudo [risos], que me ferrô o sangue. Mas lá a gente mantinha a tradição. Tinha horas que tinha 20, tinha horas que tinha 30 [pessoas], se reunia, e tinha respeito. Ainda assim, fosse na cidade, fosse junto aos outros trabalhadores, João de Páscoa e seus companheiros de aldeia eram questionados quanto à sua identidade de índios. Diziam: “Você não é índio, você não é nada, você não sabe de nada”, conta. E isso acontecia ainda mais com o próprio João devido à cor clara dos seus olhos de mestiço. Falavam: “Oh, seu João, o senhornão é índio não, que o senhor tem olho de gato...”, ao que João Natal respondia: “Eu não sounão? Agora, o meu povo era índio e eu mantenho a tradição e conservo ela até hoje”. Por isso,esses homens e as suas famílias, que aos poucos os acompanhavam nas viagens para São Paulo, não revelavam sua origem indígena: “Não, nós não ia dizer pra ninguém que era índio, a não ser alguém que perguntasse ou qualquer coisa por um acaso, mas nós nunca foi falar que era índio”. O grande dilema era saber que eram índios, apesar de estar fora de suas terras e não ter a aparência que todos esperam que um índio tenha, conforme se aprendeu no cinema, na televisão e mesmo nos livros de escola: Eu não acho que sô índio porque eu fui violado. Agora, eu mantenho minha tradição, porque [...] eu fui, eu me criei como índio. Agora, eu não tenho é a fisionomia de índio, mas talvez um índio [com aparência de índio] não tenha a fé que eu tenho na minha tradição. Depois de dezessete anos, João de Páscoa, sua esposa e parte dos filhos voltaram para a suaterra indígena de origem: “E se eu não venho de lá, tinha ficado meus filhos todinhos lá... Aí casou dois que ficaram”. João voltou e transformou-se em importante liderança na luta pela demarcação definitiva das suas terras, passou um período como cacique, mas novamente foi desrespeitado pelos funcionários da Funai (Fundação Nacional do Índio) em função dos seus “olhos de gato”. Hoje ele vive com a esposa em uma casinha da aldeia, cercado pelas casas de seus filhos que voltaram com o casal e já criaram suas próprias famílias. Mas uma de suas filhas continuou em São Paulo, morando na favela do Real Parque, bairro do Morumbi, junto com mais cerca de 1.200 índios Pankararu. Desde a década de 1950, quando da viagem de João de Páscoa, várias outras famílias Pankararu migraram para São Paulo, mas sempre procurando morar umas perto das outras, já que a identidade de parentesco e o fato de serem índios da mesma aldeia formavam uma rede de solidariedade entre eles. Desde então, o grupo vive no Real Parque, mas sempre voltando, de tempos em tempos, para a aldeia original, onde passam férias ou vão trabalhar na terra, alternando períodos na aldeia e na favela. Em São Paulo, como disseJoão de Páscoa, eles sempre realizavam seus rituais apenas em ambientes familiares, sem revelar serem índios. Mas isto mudou na década de 1980, depois que a morte de um jovem Pankararu1 chegou aos jornais e ao conhecimento da Funai. Como forma de se protegerem da crescente violência urbana que atingia a sua favela, os Pankararu resolveram dar a conhecer que eram um grupo indígena em plena metrópole, e passaram a se organizar em associações e a receber amparo da Igreja Católica, da Funai e de outras entidades de apoio ao índio e aos Direitos Humanos. Deixaram de realizar seus rituais apenas em ambientes familiares e retomaram as danças do Toré em terreiros abertos, voltando a usar trajes tradicionais em dias de festa. Com isso também conseguiram realizar uma parceria com a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e tiveram acesso a uma cota de bolsas de estudos para os seus jovens, assim como para os jovens de outros grupos indígenas que atualmente também moram em São Paulo. Atualmente existe um outro programa semelhante também na USP. A filha de João de Páscoa, moradora da favela Real Parque, que poucas vezes tinha voltado à aldeia dos seus pais e que tantas vezes fora chamada de negra, hoje é bolsista do curso de literatura da PUC-SP e freqüenta reuniões quinzenais, aos sábados, para discutir questões relacionadas à identidade dos indígenas que moram na cidade. 2. Os discursos da história A questão indígena confunde-se com a própria história denosso país. Mas os relatos sobre a presença dosnativos americanos no continente foram predominantementeescritos pelos europeus, uma vezque a cultura indígena estava baseada na tradiçãooral. Apesar disso, há muitos registros da arte dosnativos americanos em produtos de cerâmica artesanale nas pinturas rupestres, encontradas pelotrabalho de sítios arqueológicos espalhados porvárias regiões do país. 1 O índio Pankararu Jair Celestino de Barros, 20 anos, que tinha saído de seu povo, para trabalhar em São Paulo, pois entre os seis filhos, do Senhor Celestino Abílio e Dona Maria do Carmo Barros, ele era o mais velho, e por sua família não possuir nenhuma renda financeira, e o seu pai estar muito doente, a única solução encontrada no momento foi dele, ir para São Paulo. Mesmo contra a vontade de sua mãe, Jair foi assim mesmo, com um sonho de resolver seus problemas financeiros de sua família, e realmente quando chegou, ao seu destino ele logo começou a trabalhar, e a ajudar sua família que deixou em Pankararu. E quando ele achava que tudo estava indo bem, aconteceu uma tragédia, ao retornar do seu trabalho para sua casa, no Real Parque, zona sul de São Paulo, no dia 25 de julho de 1994, por volta das 20:00hs, ele foi assassinado com vários tiros, em frente a sua casa. Segundo testemunha, ele foi confundido com outra pessoa. E nesse dia 25 de julho de 2006, faz doze anos de seu assassinato, e nada foi esclarecido, e nem os culpados foram punidos. Então fica uma pergunta no ar, de quem é a responsabilidade pela segurança de um índio, que sai de seu povo para procurar um meio de sustentabilidade, em outro local sem ser o de origem. Pois o órgão governamental, que de fato é de proteção ao índio FUNAI, nada fez perante a esse caso, e pelo o contrario o administrador da FUNAI Recife, na época o Senhor Petrônio, tentou criminalizar a vitima na época, dizendo então que Jair, tinha ido para São Paulo fugido, por ter cometido algum crime em seu povo. Então até hoje, a família de Jair não cansa em busca de justiça, mas se a FUNAI não se responsabiliza pelos índios, então quem é de fato responsável. No site: <http://www.indiosonline.net/assassinato/> acesso em 07/11/2012. No entanto, apesar de povoarem o continente há milhares de anos, a presença dos nativos americanosfoi intensamente difundida depois das primeiras expedições oficiais dos séculos XV e XVI. Assim, a descriçãoque nos foi herdada sobre os povos nativos americanos partiu da perspectiva do ponto de vista europeu.As descrições sobre a terra e os povos que nela habitavam tinham como referência a experiência de mundoadquirida na Europa. O nativo americano, ou simplesmente o índio, com foi comumente chamado, foicaracterizado pelo exotismo que o diferenciava de uma cultura dita civilizada. No caso brasileiro, o primeiro documento oficial que marcou este encontro, considerado pela historiografiaocidental, foi a carta de Pero Vaz de Caminha, atenuando as diferenças culturais entre os doiscontinentes. Em cada documento escrito, os historiadores consideraram as possibilidades de circunstânciascontextuais de quem o escreveu. No caso das primeiras navegações portuguesas, o projeto de colonizaçãoainda não estava claro, o que caracterizou, em certa medida, os primeiros contatos interculturais comoamistosos. Esta relação foi escrita pelo europeu da seguinte forma: E além do rio andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante os outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então para a outra banda do rio Diogo Dias, que fora almoxarife de Sacavém, o qual é homem gracioso e de prazer. E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar com eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem fez ali muitas voltas ligeiras, andando no chão, e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo os segurou e afagou muito, tomavam logo uma esquiveza como de animais monteses, e foram-se para cima. (CAMINHA, online, acessado em 22/01/2010) Apesar das relações de contatos terem forte proximidade física, o autor do documento deixa bem claroo seu distanciamento quanto à cultura do “outro”. Realiza inclusive uma comparação grosseira dos nativosamericanos com animais. Com os interesses político-econômicos dos estados absolutistas europeus emprimeiro plano, dado o desenvolvimento e expansão das práticas mercantilistas na Europa, a timidez dosprimeiros contatos foi substituída por uma relação de imposição marcada por intensa violência. As primeiras impressões edênicas (de éden) sobre os ativos foram gradativamente desaparecendo medianteo confronto que impunha a usurpação da terra e a imposição dos nativos a trabalhos forçados deextração vegetal e, quando possível, mineral. A antropofagia foi divulgada como uma prática demoníaca quedeveria ser exterminada, sendo a conversão ao catolicismo a solução para a salvação dos habitantes queestavam no continente americano. As diferenças étnicas entre os índios, caracterizadas por sua multiplicidade ao longo do território, foram consideradas pelos europeus apenas para o estabelecimento de alianças visando ao embate físico, algo que foi astuciosamente aproveitado para defender os interesses daqueles que vinham de solo além-mar. As variações dos discursos que foram construídos sobre os povos indígenas brasileiros oscilavam conforme o seu autor. Poderiam ser eles franceses, como os relatos decorrentes da invasão desses no Rio de Janeiro, entre 1555 e 1567, ou religiosos em missão catequética, como os discursos produzidos, também no século XVI, pelo padre espanhol José de Anchieta. Já no século XIX, as missões artísticas estrangeiras contribuíram para a construção desta formação do olhar eurocêntrico sobre o “outro”, caracterizando uma representação distanciada do índio brasileiro. Além do recurso verbal, o poder da imagem contribui significativamente para a construção desse discurso. Tiveram grande valorização, presente até os dias de hoje em nossa iconosfera – conjunto de imagens recorrentes em nosso cotidiano –, as missões artísticasfrancesas. Dentre os artistas de maior destaque, está o pintor Jean Baptiste Debret, que criou imagens do exotismo e da submissão indígena diante do homem branco. Ao longo dos anos, o discurso predominante sobre os povos indígenas foi aquele baseado nos moldes da perspectiva europeia. Consolidou-se a visão de um índio genérico, sem uma distinção séria de sua diversidade étnica e linguística, da importância de seus papéis sociais e da dignidade que se buscava através dos muitos movimentos de luta e resistência visando à preservação da cultura contra a dominação. Durante o período imperial brasileiro, no século XIX, vale ainda lembrar a má contribuição de José Bonifácio para a construção de uma imagem do índio integrada ao contexto nacional. A incitação de Bonifácio baseou-se na prevalência da chamada civilidade branca sobre os povos indígenas. Constatava-se ainda a necessidade de catequizar e aldear o “outro” para que este pudesse se integrar à sociedade, visando à construção deelementos que originassem um sentimento comum e de unidade à nação. Nosso patriarca da independência, como ficou conhecido José Bonifácio, escreveu em 1823 umaobra discriminatória, que ao pensamento da época julgava coerente, denominada “Apontamentos para acivilização dos índios bravos do Império do Brasil”, na qual, entre outras reflexões que não consideravamminimamente a preservação da diversidade cultural brasileira, escreveu: Provém primeiro de serem os índios povos vagabundos e dados a contínuas guerras e roubos; segundo de não terem algum freio religioso e civil que coíba e dirija suas paixões, donde nasce ser-lhes insuportável rejeitarem-se às leis e costumes regulares; terceiro de serem entregues à preguiça fogem dos trabalhos aturados e diários de cavar, plantar e mondar as sementeiras, que pelo nimio viço da terra se cobrem logo de mato e de ervas ruins; quarto porque temem, largando sua vida conhecida e habitual de caçadores, sofrer fomes faltando-lhes alimento à sua gula desregrada. (BONIFÁCIO, José, online, acessado em 22/01/2010) O projeto dito civilizatório que impunha novos valores culturais aos povos indígenas adentrou-se com o início da República no Brasil e o decorrer do século XX. Com o apoio financeiro dos Estados Unidos, realizouse em 1913, em parte da Bacia Amazônica, a expedição científica Rondon-Roosevelt, que tinha por intençãorealizar um levantamento étnico, botânico e zoológico da região. A expedição que contou com a participação do Marechal Cândido Rondon influenciou muitas outras nos anos seguintes, marcando, no que diz respeito aos povos indígenas, a aplicação dos primeiros métodos antropológicos no país, a serviço do Estado. Como se pode perceber,foram muitos os subsídios que construíram um discurso sobre os povos indígenas ao longo da história, que se consolidaram como integrantes indissociáveis da memória brasileira.No entanto, um discurso próprio e efetivo, representativo das muitas sociedades indígenas, foi praticamente ignorado no decorrer dos anos. Um discurso oficial se criou em relação aos povos indígenas, sem que a eles próprios fosse dada a autonomia e a aceitação de tomar o curso de sua própria história. Porém, as conquistas oriundas da aceitação de muitas diversidades culturais no Brasil, concretizadas especialmente no plano legislativo, buscam corrigir estas falhas consolidadas no discurso da nossa história. Mas vamos continuar adentro neste universo de representações? Cabe ainda vermos mais algumas apropriações sobre a identidade os povos indígenas brasileiros que foram criadas, por exemplo, nos campos do pensamento filosófico, literário, musical e cinematográfico. 3. O mito do “bom selvagem” Vamos ver, de forma breve, um pouco sobre a criação do denominado mito do “bom selvagem”, atestando aos povos indígenas uma determinada passividade no que concerne a sua relação de resistência cultural. No início da Idade Moderna, encontraremos alguns autores que defendiam uma visão edênica e pacificadora dos nativos americanos. O frei dominicano Bartolomé de las Casas, por exemplo, denunciava no início do século XVI as atrocidades cometidas pelos conquistadores espanhóis contra os povos indígenas nas regiões da América Centrale México. Defendia o religioso que Deus havia criado todas as espécies desprovidas de malícia, muito obedientes, sem ira, ódio ou desejos de vingança. Desta forma, condenava-se a imposição agressiva de espanhóis contra os nativos americanos, mas por outro se defendia uma quase infantilidade indígena, assimcomo sua predisposição para a conversão ao cristianismo. O escritor francês Michel de Montaigne também contribuiu, no final do século XVI, para com a literatura que caracterizava, dessa mesma forma, os povos indígenas. Utilizava, por sua vez, um tom discursivo irônico para criticar a sociedade contemporânea à sua época. Podemos considerar que não defendia propriamentea diversidade, mas se valia dela para fins outros. É Montaigne quem, apreciando os chamados canibais, num dos seus ensaios mais cheios de malícia, põe em destaque as qualidades do índio, louvando sempre o “bom selvagem”, que não se entregava às guerras de conquista, que se caracterizava pela ausência de bens pessoais, que se conduzia sempre com bravura, criatura assim plena de virtudes, numa sociedade também digna de elogios a que os civilizados deviam invejar. (SODRÉ, 1964, pp. 261-262) Sob a égide iluminista do século XVIII, o filosofo francês Jean Jacques Rousseau também contribui em parte com a tese do “bom selvagem”, uma vez que defendia a existência de um estado deonsciência selvagem, no qual os homens não distinguiam o bem do al. Caracterizava, em linhas gerais, um indivíduo afastado do regramento dito civilizado pela sua inocência, cujas ações eram regidas pelos seus instintos naturais. Também complementavam o pensamento de Rousseau os filósofos iluministas franceses, seus conterrâneos, Denis Diderot e Charles de Montesquieu. Nessa tipologia social, portanto, que se encontravam os povos indígenas. As influências do pensamento filosófico europeu transpuseram-se para o campo da criação literária. Em busca de uma identidade literária nacional, alguns autores brasileiros, especialmente os românticos e os modernistas, absorveram o pensamento eurocêntrico para buscar as representações, sob a forma da criação em nas letras, para caracterizar um estereótipo que, por sua vez, sobrepunha a diversidade étnica indígena. 4. Pensando na sala de aula Os antropólogos Aracy Lopes da Silva e Luís DoniseteGrupioni, na obra “A temática indígena na escola”, lembram-nos sobre a importância do estudo da diversidade nos ambientes escolares e nos demais espaços de aprendizagem disponíveis em nosso convívio social. O processo de educação deve superar a simples acumulação de conhecimento e ser posto em práticas sociais efetivas, que busquem resultados concretos para o bom relacionamento ente os membros de uma mesma e de diferentes sociedades. O convívio da diferença: a afirmação da possibilidade e a análise das condições necessárias para o convívio construtivo entre segmentos diferenciados da população brasileira, visto como processo marcado pelo conhecimento mútuo, pela aceitação das diferenças, pelo diálogo. Nestes tempos de violência generalizada no país, a reflexão sobre os povos indígenas e sobre as lições de sua história e suas concepções de mundo e de vida social podem trazer, aliada ao exame dos modos de relacionamento que a sociedade e o Estado nacionais oferecem às sociedades indígenas constituem um campo fértil para pensarmos o país e o futuro que queremos. (SILVA e GRUPIONI, 1998, pp. 15-16).No decorrer de suas atividades docentes, pense em como você pode contribuir para a difusão de um pensamento em prol da diversidade para a educação. Algo que supere a comemoração cívica do Dia do Índio, por exemplo, assim como a construção canônica de discurso usurpado acerco de um indivíduo estereotipado pelo olhar eurocêntrico. Como o exemplo da diversidade indígena pode nos auxiliar na construção de um mundo melhor através da educação? Encaminhamos o fim da unidade propondo esta questão para reflexão. 5. Povos Indígenas, nossos contemporâneos Devemos reconhecer o passado dos povos indígenas, ao invés de aceitá-los acriticamente como povos do passado? Pois são eles também membros de nossa sociedade e compartilhamos juntos o mesmo tempo. No caso de nossa federação, podemos afirmar que a sociedade brasileira está composta também pelas suas diferenças, sejam elas religiosas, étnicas ou políticas, de uma maneira geral. Há importância em conservar as tradições indígenas, mas não é por isso que devemos negar os mecanismos legais para que isso ocorra, ou que seja feito seu aprimoramento, conforme o interesse de cada comunidade. A educadora Maria Aparecida Bergamaschi lembra alguns dos focos de interesse contemporâneos indígenas, entre os quais estão as universidades. O ensino superior também vem sendo foco de interesse dos povos indígenas, sendo que em sete universidades públicas brasileiras funcionam as “licenciaturas interculturais”, responsáveis pela formação de mais de mil professores. Políticas afirmativas para ingresso de indígenas têm sido uma prática crescente nas universidades brasileiras, sendo pioneira a Universidade de Brasília (UnB). A [Universidade Federal do Rio Grande do Sul] UFRGS e a Universidade de Santa Maria (UFSM) adotaram o sistema de cotas a partir do ano de 2008, iniciando com dez e cinco vagas, respectivamente. (BERGAMASCHI, 2008, p. 11) Devemos considerar também a existência de um considerável crescimento da população indígena no Brasil. Por mais que governos, autoridades, instituições e estudiosos digam ou ainda anunciam um fim inexorável dos povos indígenas, vemos através de dados estatísticos um crescimento populacional. Alguns censosjá estimam o registro de aproximadamente 700 mil indígenas no Brasil. ATIVIDADE Este Texto conta a instigante história de João de Páscoa, um índio Pankararu, cuja trajetória mostra os processos vividos pela diversidade étnico-racial no Brasil. Mostra ainda, uma forma de ser indígena pouco comum no imaginário social. Com base nisso, pense em como podemos unir o conhecimento desta leitura com a prática desenvolvida dentro de uma sala de aula? Faça um levantamento sobre a forma de abordagem das concepções acerca da temática indígena no seu cotidiano. O que se pensa sobre os índios? Como os imaginamos? De que forma conhecemos sua cultura e nos aproximamos ou distanciamos dela? Como a temática está presente nos livros didáticos? Após este levantamento, verifique se há reprodução de alguns estereótipos: 1) índio é exótico ou bárbaro. 2) Índio romântico, apresentado sempre como uma figura ambígua, de herói e perdedor. 3) Índio sempre anda sem roupas. Referência Bibliográfica AZANHA, Gilberto e VALADÃO, Virgínia Marcos. Senhores destas terras: os povos indígenas no Brasil – da colônia aos nossos dias. São Paulo: Atual, 1991. BERGAMASCHI, Maria Aparecida (org.). Povos indígenas & educação. Porto Alegre: Mediação, 2008. BONIFÁCIO, José. Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil. Disponível em http://www.obrabonifacio.com.br/ colecao/obra/1072/digitalizacao. Acessado em 22/01/2010. CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a El Rei D. Manuel. Disponível em http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/carta.html. Acessado em 22/01/2010. BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto. Curso de Aperfeiçoamento em Educação Para a Diversidade. Porto Alegre, 2010. DIAS, Gonçalves Dias. I - Juca Pirama. Disponível em http://www.cce.ufsc.br/~nupill/ literatura/i-jucapirama.html. Acessado em 22/10/2010. JECUPÉ, KakaWerá. A terra dos mil povos: história indígena do Brasil contada por um índio. 4.ª edição. São Paulo: Peirópolis,1998. Gênero e diversidade na escola: formação de professoras/es em Gênero, Orientação Sexual e Relações Étnico-Raciais. Livro de conteúdo. Versão 2009. – Rio de Janeiro: CEPESC; Brasília: SPM, 2009. SILVA, Aracy Lopes da e GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (orgs.). A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1.º e 2.º graus. São Paulo: Global; Brasília: MEC/MARI/UNESCO, 1998. SODRÉ, Nelson Wernek. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964. TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1993. YANOMANI, Davi Kopenawa e ALBERT, Bruce. Descobrindo os brancos. In: NOVAES, Adauto (org.). A outra margem do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Pp. 15-21.
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