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1 A crise do Brasil e o lugar da história Rodrigo Patto Sá Motta Agradeço o convite dos colegas do CRBC para participar deste seminário, oportunidade interessante para compartilhar reflexões sobre a situação política do Brasil, a crise mais grave de que eu participei ou testemunhei. O objetivo é oferecer uma análise de historiador, profissional acadêmico que estuda as mudanças e permanências na vida das sociedades tendo como referência a temporalidade. Portanto, um olhar analítico, crítico, frio, na expectativa de compreender melhor a situação. Trata-se de uma fala cujo objetivo é provocar a reflexão crítica, porém, que está igualmente orientada para a ação. Neste momento grave da história brasileira, que certamente será visto como um marco nos anos vindouros, é importante unir a reflexão à ação, retomando a tradição do republicanismo ativo e do engajamento dos intelectuais, embora livres das ingenuidades iluministas. Defendo uma forma de engajamento que não perde o sentido crítico e permite perceber os erros cometidos deste lado, ou seja da esquerda. Acredito na possibilidade da objetividade e na busca da verdade. Mas, concordando com Jörn Rüsen, a busca da objetividade possível demanda a exteriorização das próprias opiniões e valores, e, ao mesmo tempo, a consideração atenta de todas as informações e opiniões disponíveis sobre o tema em análise. Daí a importância de não demonizar o outro campo, pois isso significa recusar-se a compreender os adversários. Ao contrário, é fundamental estar atento e compreender a direita, para dialogar com seus argumentos e derrota-los no debate público (o que significa retirar do campo da direita alguns cidadãos atraídos para ali inadvertidamente). Afirmar a relevância da história não implica recuperar o regime antigo de historicidade: a história não é cíclica, o seu conhecimento não oferece um manual de como agir no presente; ela não é magistra vitae. Porém, no caso brasileiro ao menos, tampouco chegamos plenamente ao regime do presentismo. Creio que ainda estamos no regime moderno de historicidade, por isso o conhecimento histórico segue relevante para uma sociedade que pode ter um horizonte de expectativa promissor, embora nem tão ambicioso como no tempo das grandes utopias. Ao meu ver, o horizonte de expectativa não é mais uma revolução redentora, mas um processo de mudanças sociais capaz de transformar um dos países mais desiguais do mundo. Estaríamos ainda no regime 2 moderno de historicidade, portanto, mas em uma vertente menos iluminista, menos ingênua. Nesse sentido, o conhecimento histórico ainda pode servir para analisar e compreender o quadro atual, cumprindo o seu papel acadêmico-científico. Simultaneamente, esse mesmo conhecimento contribui para a instituição do cenário político, ao influenciar a construção das identidades políticas e ao oferecer inspiração para as escolhas dos agentes. Eis a razão porque a história ocupa lugar central nas batalhas políticas presentes, sendo objeto de tantas disputas e manipulações, a exemplo da história da ditadura, que inspira atores da esquerda e da direita a escolherem posição nas lutas de hoje. A propósito da importância da história e dos historiadores nos conflitos atuais, há alguns dias (14/06/2016) um dos mais influentes jornais brasileiros, O Estado de São Paulo, publicou editorial significativo intitulado O lugar de Dilma na história. O texto revela o lugar estratégico do conhecimento histórico e indica que a mobilização dos historiadores está causando efeitos, incomodando os grupos que apoiam o impeachment de Rousseff. O editorial ataca os historiadores que tentam (citando o grupo Historiadores pela democracia) mostrar aos cidadãos que o impeachment é ilegítimo e de fundo golpista. A exemplo do que já fizeram N. Sarkozy e a família Le Pen (Jean-Marie e depois Marion Maréchal) o jornal brasileiro citou também Marc Bloch, para mostrar erudição e apropriar-se da imagem de um historiador de renome. Mais uma vez, a memória de Bloch é vilipendiada por tentativas de apropriação conservadora, desta vez no outro lado do atlântico com o jornal brasileiro mostrando-se caudatário da direita francesa. O Estadão cita uma fala de Bloch em que pede aos historiadores apenas “honesta submissão à verdade”. A menção ao historiador francês serve de apoio à acusação de que seus colegas de profissão brasileiros distorcem a verdade ao denunciarem um golpe e exigirem o retorno de Dilma Rousseff em nome do respeito à democracia. Para o Estadão, ao contrário, foi a democracia brasileira que implodiu “o edifício fraudulento que o PT de Lula e seus sequazes acadêmicos estavam erguendo”. Pode-se dizer tudo do Estadão, exceto que ele seja incoerente. Em 1964 o jornal negou o caráter golpista da derrubada de João Goulart e chamou a ditadura de revolução, enquanto hoje chama de democrática a manobra que permitiu o impeachment de Rousseff. Demorei-me no editorial do Estadão para demonstrar a relevância do conhecimento histórico nas disputas pela narrativa e interpretação dos eventos atuais. 3 Após essas considerações iniciais passo a apresentar algumas análises sobre a história recente do Brasil, na expectativa de ajudar a compreender o quadro presente. Em seguida vou afastar-me do papel tradicional do historiador e arriscar algumas considerações sobre o quadro atual, assim como sugestões de linha de ação. Arriscar é a expressão correta. Trata-se de correr riscos, tanto acadêmicos como políticos. O momento político do Brasil exige de nós mais engajamento, maior disposição de arriscar-se em benefício de interesses maiores. Precisamos de mais republicanismo, portanto, de mais virtude política, especialmente em dois aspectos: o talento para construir liderança eficaz e a capacidade de agir com desprendimento em relação a interesses menores. Do velho republicanismo devemos evitar apenas a perspectiva que exagera os interesses comuns em detrimento dos conflitos sociais. O combate às desigualdades sociais no Brasil implica o conflito social e a necessidade de construir uma verdadeira República, que integre a todos como cidadãos. Uma luta a ser travada com base em princípios democráticos e no respeito ao pluralismo e às diferenças. Nas páginas seguintes proponho explorar dois caminhos, que têm conexões com pesquisas e trabalhos anteriores: em primeiro lugar, uma comparação entre o quadro atual e a crise de 1964; segundo, uma análise sobre o impacto de fatores estruturais na atual crise, sobretudo a incidência da cultura política. Devido a limitações de tempo a apresentação vai ser sintética e esquemática, mas terei prazer em explicar melhor os argumentos e debater com os colegas e o público logo adiante. Pois bem, comecemos com o golpe de 1964, esse passado que não passa no Brasil. A história do golpe e da subsequente ditadura já eram fundamentais para entender o Brasil e a dificuldade de construir uma sociedade democrática. Agora o tema revestiu-se de maior importância ainda, e não apenas pelo que pode aportar à nossa compreensão da crise política, mas, por sua manipulação nos discursos dos agentes em luta. Sem tempo para entrar na discussão metodológica sobre o comparativismo na história digo apenas o essencial. A comparação é procedimento fundamental na historiografia e tem como base, e como meta, perceber as semelhanças e diferenças entre os objetos em foco. Serei breve nesse exercício comparativo, ademais, porque publiquei recente texto sobre o tema. O primeiro registro a fazer é a impressão inicial de grande semelhança com 1964. Tive essa sensação – quase um choque – nas eleições de 2014, com a mobilização antipetista baseadano anticomunismo dando o tom da campanha da oposição. Nas ruas e seções eleitorais, um grande contingente de pessoas usando camisetas amarelas com que pretendiam manifestar o seu patriotismo antiesquerdista {aliás, um tema interessante a 4 pesquisar; o futebol é tão central na cultura brasileira que marca também os repertórios de manifestação política} No entanto, não devemos exagerar nas semelhanças, por dever de ofício acadêmico e para evitar escolhas políticas erradas sob o peso da sombra de 1964. Se hoje ocorreu um tipo de golpe ele foi diferente de 1964 e as armas para a luta não podem ser as mesmas do passado. Voltarei a isso em pouco. Como tenho afirmado em outras ocasiões, a mobilização direitista de hoje baseou- se em representações idênticas a 1964: luta contra o comunismo e contra a corrupção. No entanto, houve uma mudança nas posições relativas, pois em 1964 o anticomunismo foi mais importante do que o tema da corrupção, ao contrário de hoje. Por que mais importante a corrupção nos discursos de direita atuais? Porque o governo Rousseff não fez nada efetivamente radical (exceto ser amigo de Cuba e dos bolivarianos) e não é convincente derrubá-lo com esse argumento. Não há mais o peso da Guerra Fria e não há mais o tema da subversão nos quartéis, que foi o ponto chave da mobilização dos militares em favor do golpe de 1964. Ademais, o volume da corrupção atual é maior do que em 1964, basta comparar os escândalos envolvendo a Petrobrás naquela época e agora. No que toca às punições dos acusados de práticas corruptas, entre 1964 e hoje existe uma semelhança importante: houve e tem havido uma forte manipulação pelos líderes políticos e pela grande mídia {acabei de escrever um artigo sobre isso}. As ações anticorrupção têm um viés político, pois invariavelmente atingem apenas os corruptos adversários, e não os corruptos aliados. A grande mídia, portanto, tem um papel semelhante ao que teve em 1964 e por razões parecidas (é o caso do Estadão e de O Globo). Nesse ponto, uma diferença significativa a favor da democracia é que hoje as redes sociais diminuíram a influência da mídia tradicional e permitem circulação mais livre de informações, embora sejam um instrumento usado pela direita também. Temos uma polarização esquerda/direita parecida à de 1964, que provoca as pessoas a tomarem posição e a escolherem o seu lado. A distinção entre os dois campos políticos é basicamente a mesma, ou seja, as atitudes de apoio ou de oposição a políticas visando à igualdade. Mas há também nuanças e diferenças significativas, que são importantes para definir as pautas de ação atuais. Então, como hoje, a direita teme que mudanças sociais moderadas possam desembocar (ou “degenerar”) futuramente em medidas mais radicais. Em 1964 o tema forte eram as reformas de base (agrária e política em especial), enquanto hoje as questões agrárias não têm a mesma importância (até por mudanças na perspectiva da esquerda), e o tema do voto dos analfabetos já foi resolvido 5 pela Constituição de 1988. Hoje provocam mais celeuma os programas de distribuição de renda via bolsas e quotas, e os programas visando a igualdade de gênero, racial e respeito às minorias sexuais. Uma diferença fundamental e que trará importantes consequências: na direita atual é mais forte o liberalismo (bem entendido: a defesa do mercado e as críticas ao estatismo) do que foi em 1964. Naquela época o carro forte da direita era a religiosidade católica. Não é à toa que o maior evento de rua em 1964 foi uma Marcha com Deus com palanques organizados na Catedral da Sé de SP. Nos dias atuais, significativamente, o lugar dos eventos da direita é a avenida Paulista, coração do capitalismo brasileiro em que estão as sedes da Federação das Indústrias de SP (FIESP) e dos grandes bancos. Outra peculiaridade: a religião segue importante, não há dúvida, e a defesa da família tradicional continua na linha de frente contra o “comunismo”. Mas a vanguarda do conservadorismo religioso não é mais o catolicismo, e sim os pastores evangélicos e sua forte bancada parlamentar, como vimos na votação da Câmara em 17 de abril. Ainda sobre a direita, há que destacar seu crescimento marcante e rápido nos anos recentes. Isso é fruto dos acertos e erros das administrações petistas, que provocaram o inimigo, mas, também, deve-se a algumas ações concertadas nos últimos anos: o surgimento de blogueiros de direita e gurus anticomunistas da internet, a constituição de think tanks liberais e sua campanha na mídia, o ativismo de militares descontentes com as políticas de memória referidas à última ditadura, mesmo que o governo não desejasse ações judiciais contra os criminosos a serviço da ditadura (um desses críticos, aliás, está no poder com Temer, o general Etchegoyen). No campo da esquerda, a novidade em relação a 1964 é que as políticas igualitárias de hoje incluem temas raciais e sexuais. Eis aí questão fundamental para perceber as diferenças do quadro atual e o que mudou nas esquerdas, cujas novas bandeiras, aliás, têm sido importantes para provocar a direita. É verdade que algumas bandeiras raciais e sexuais poderiam ser aceitas pela direita liberal, pois seus verdadeiros inimigos são os direitistas conservadores. Mas, em vista da aliança entre liberais e conservadores, tais bandeiras estão firmemente plantadas no campo da esquerda e são importantes para a sua renovação. Outro tema importante relevante a comparar é a influência externa sobre a crise brasileira. Muitas análises sobre o papel dos EUA na situação atual têm sido publicadas nas redes sociais, em que se argumenta duas razões para apoio à destituição de Rousseff: o interesse de empresas estrangeiras em quebrar o monopólio da Petrobrás sobre o pré- 6 sal; o interesse dos EUA em quebrar o bloco dos BRICs, que seria uma ameaça à sua hegemonia global. Alguns autores chegam a apontar nos EUA a verdadeira origem do movimento contra os governos petistas. Certamente que esse tema será mais conhecido adiante, quando houver mais dados para análise. Mesmo assim, creio que há exagero em alguns autores. De qualquer modo, na comparação com 1964 seguramente o peso do fator externo na crise atual é menor. Basta lembrar que o Embaixador dos EUA na época (Lincoln Gordon) foi figura proeminente na política brasileira e que foi preparada uma frota naval para operar no Brasil em caso de guerra civil. E que a grande mídia norte-americana recebeu com entusiasmo a queda de Goulart. Veja-se o contraste com o ceticismo (às vezes má vontade) da mídia internacional em relação ao impeachment de Rousseff. Alguns jornais influentes têm apontado o absurdo da nossa situação política, como o New York Times. Mesmo o Financial Times, que há anos vêm batendo forte no governo petista e com isso contribuiu indiretamente para a sua derrubada, agora criticou o impeachment. {curioso o contraste entre a atitude da mídia francesa em 1964 e hoje} É certo que grupos da direita norte-americana devem ter financiado congêneres locais. E também que a diplomacia brasileira está incluída na crise e que o governo Temer tentará promover uma nova linha, menos independente dos EUA e distante dos governos de esquerda da A. Latina. Mas, ainda assim, o impeachment (ou golpe parlamentar) foi um produto nacional. As origens principais da crise são internas. Passo agora ao segundo ponto da apresentação, o impacto de fatores estruturais e especialmente da cultura política brasileira. Importa levar em conta as tradições culturais não apenas para entender sua incidência na crise, mas, para perceber as dificuldades a serem vencidas pelos projetos voltados à transformação social e, com isso,pensar melhor as estratégias para o futuro. Que fique claro, não se trata de incidir em qualquer forma de estruturalismo. Os sujeitos não são peças inertes diante de estruturas sociais perenes. O campo da política supõe o protagonismo de agentes que fazem escolhas: há sempre margem para a opção entre diferentes caminhos de ação. O argumento é que as escolhas podem sofrer a influência da cultura política, que oferece aos agentes alguns padrões de ação já inscritos nas tradições, mais atraentes e viáveis por terem gerado sucesso em ocasiões anteriores. Assim, não há que supor oposição entre a influência de padrões culturais e o arbítrio dos agentes políticos. 7 Por razões já apontadas a análise desse ponto será breve e sumária também. Sinteticamente, a cultura política envolve uma série de características que são parte das tradições brasileiras: o patrimonialismo, a cordialidade, o paternalismo, o personalismo, a flexibilidade, a ojeriza ao conflito e a busca de integração, e a conciliação/acomodação, entre outros. Esse conjunto de características produz uma tradicional desconfiança nas instituições políticas e o apego a líderes carismáticos, assim como uma frágil adesão popular aos partidos e um baixo grau de participação política dos cidadãos (embora no momento estejamos vivendo um pico de participação, espero que não seja efêmero como é costumeiro na nossa tradição). Uma ressalva fundamental: abordar essas questões não implica voltar ao nosso velho complexo de inferioridade; não pretendo fazer uma lista das nossas mazelas e carências e lamentar a distância em relação às sociedades dos países centrais. Importante perceber que esse sistema político e essa cultura política tiveram realizações positivas também: a manutenção e expansão do território da antiga América portuguesa, a construção de uma nação mais coesa do que seria de esperar (em vista dos problemas raciais), a capacidade de encontrar saídas políticas negociadas para conflitos graves. O último ponto implica o tema da conciliação/acomodação, característica central da cultura política brasileira que passo a discutir melhor, inclusive relacionando-a ao projeto petista ou lulista de poder. A estratégia da acomodação tem servido historicamente como fundamento para preservar a ordem, evitar rupturas sociais, manter a dominação. Mas também serviu para abrir caminho a projetos de mudanças lentas, situação em que podemos enquadrar os governos petistas, como logo comentarei. A acomodação de conflitos é uma estratégia de dominação enraizada no período colonial português, mas que foi desenvolvida sobretudo a partir da independência, quando as elites locais decidiram assumir o comando. Uma independência, a propósito, sem ruptura aguda com Portugal, já que muitos laços com a antiga metrópole foram mantidos. Nesse sentido, a independência foi o primeiro grande episódio de acomodação, tendo como meta essencial manter o sistema de dominação social e evitar rupturas sociais. A exclusão política dos setores populares era e é um objetivo permanente dos grupos dominantes, que para esse efeito usaram não apenas a repressão, mas estratégias sutis de negociação e acordo, conciliação ou acomodação. As estratégias de controle social mesclam violência (Canudos) e integração subalterna dos grupos populares (política indígena paternalista e assimilacionista; elevada taxa de libertação de escravos e integração dos negros como cidadãos de segunda classe), mas sempre com a intenção de 8 manter tais grupos excluídos da cidadania efetiva. Uma questão chave, naturalmente, era garantir a dominação da enorme população escrava. Em grande medida, o medo do potencial rebelde dos escravos e o fantasma do haitianismo explicam as estratégias de acomodação política dos grupos dirigentes brasileiros no século XIX. E não apenas no processo de negociação da Independência (com os portugueses, a quem pagamos uma indenização) e na manutenção da unidade das ex-colônias portuguesas (uma façanha baseada em violência e acordo), mas em outras conciliações seguintes, como a criação da República sem participação popular de 1889. Nas décadas posteriores houve novos jogos de acomodação, inclusive durante a ditadura, como mostrei em livro recente, e ao final dela também, com uma saída pós-autoritária das mais suaves do mundo. A pergunta que vale ouro é saber como as estratégias de acomodação provenientes do Estado e das elites influenciaram o comportamento político dos setores populares ao longo do século XX. (Tais estratégias alimentaram o discurso de que o povo brasileiro seria ordeiro e pacífico, exatamente para convencê-lo disso.) Nesse sentido, chama a atenção a fragilidade política dos movimentos populares brasileiros quando fazemos comparações rápidas com países semelhantes da América Latina como Colômbia, México, Argentina, Bolívia. Certamente tivemos explosões de participação política em alguns momentos, mas fugazes, e seguidas de retiradas rápidas quando chegava a hora de embates mais agudos. A repressão fez o seu trabalho, é óbvio, mas ela explica tudo? O cientista político André Singer em recente estudo sobre o lulismo argumenta que há uma camada importante da população pobre que é avessa ao radicalismo, preferindo mudanças lentas aos riscos dos confrontos agudos. E que o governo de Lula teria compreendido esses sentimentos profundos e governou sintonizado com eles. Estou de acordo em linhas gerais com a proposta analítica de Singer, mas, proponho pensar o tema em duração mais longa, inscrevendo o que ele chama de lulismo nos traços essenciais da cultura política. Pois bem, acredito que o PT e Lula se adaptaram à cultura política brasileira, depois de alguns anos tentando mudar as coisas por meio de embate frontal contra o sistema político. Perceberam a fraca disposição da maioria da população em apoiar soluções radicais e também as possibilidades de utilizar o personalismo em favor do projeto de esquerda. Decidiram, pois, integrar-se à cultura e às tradições políticas para ter chances de ganhar as eleições e para ter meios de governar depois da vitória eleitoral. Protagonizaram, assim, mais um episódio de acomodação. Foi um exercício de real politik, talvez temperado, ou justificado, com um pouco da ética bolchevique (é moral tudo o que for necessário para o sucesso do projeto). Como tem sido comum na história 9 brasileira começou um processo de mudanças ambíguo, uma espécie de modernização conservadora com viés de esquerda. Um arranjo que integrou setores conservadores ao governo de esquerda e manteve os piores aspectos do sistema político. Mas, como uma pré-condição para chegar ao poder e realizar as almejadas mudanças sociais. Uma acomodação com segmentos da classe dominante, porém, desta vez com o objetivo de gerar a inclusão social, ainda que lentamente. E, de fato, os governos petistas impulsionaram parte da agenda de mudanças sociais, apesar dos seus sócios conservadores. Acredito que o lulismo/petismo fez um uso inteligente e bem-intencionado da acomodação. Usaram os meios disponíveis e tentaram apropriar-se de uma estratégia tradicionalmente conservadora, invertendo o seu sentido. Touché! Um golpe de mestre, ou assim parece. O personalismo (encarnado em Lula) e a acomodação com setores conservadores permitiu a eleição de dois presidentes de esquerda (dois mandatos cada) em um país em que o voto de esquerda não chega a 20% (especulo, mas com base em pesquisas de opinião e nos resultados eleitorais). Se considerarmos que a política é a arte do possível, ou se evocarmos a ética da responsabilidade de M. Weber, o projeto lulista é compreensível e até aceitável. E pormuito tempo pareceu funcionar perfeitamente, trazendo benefícios aos mais pobres e implantando políticas sociais, educacionais e culturais avançadas. É preciso reconhecer que sem os acordos feitos pelo PT tais benefícios não existiriam, pois ele não teria chegado ao poder, nem governado. E, também, que a estratégia de mudanças lentas é adequada em contexto de ausência de sólido apoio popular para projetos de mudança brusca. Por isso, não entendo porque alguns interlocutores recusam-se a aceitar que o PT adotou a estratégia de acomodação. Argumentam, de maneira pouco convincente, que os acordos se devem à formação sindicalista de Lula, muito afeita à negociação. Pensando melhor, entendo a resistência em admitir a estratégia de acomodação dos governos Lula e Dilma. É porque a conciliação sempre foi criticada e considerada ação típica das elites. Porém, a acomodação também pode servir à mudança social lenta, como observamos nos anos de governo petista. O problema maior, além da lentidão nas mudanças sociais, é que os compromissos implicam arranjos paradoxais, às vezes, contraditórios. Começa-se um processo de mudanças lentas, sem confrontos e com estabilidade política, mas a acomodação protege os interesses dos aliados conservadores. É mudança com conservação, ao mesmo tempo. O 10 pior aspecto desse arranjo, e origem da crise que engoliu o governo petista, foi a falta de uma estratégia do PT para mudar o sistema político. Se pretendia manter-se fiel à ideia de mudanças, o projeto petista não poderia ter se acomodado inteiramente ao sistema político, à velha cultura política. Claro que não é fácil mudar tradições arraigadas. Mas para que serve um partido de esquerda? Haveria que tentar! Faltou uma estratégia para mudar o sistema político, que as lideranças petistas pensaram ser capazes de controlar para sempre, à base do fisiologismo e corrupção. Creio que há uma responsabilidade grave do PT nesse ponto: imaginando-se o único partido decente e representativo do povo, preferiu manter o apoio dos outros com base na corrupção, desistindo da possibilidade de melhorar o sistema partidário. Uma democracia pluralista precisa de partidos representativos, consistentes, e os governos petistas não contribuíram para melhorar o quadro. Além disso, ao privilegiar os laços baseados na corrupção, o governo montou uma base de apoio frágil e cavou sua sepultura, como está claro hoje. Outros erros foram cometidos também, por exemplo, em relação aos movimentos sociais, que se afastaram do PT e reduziram a densidade social do partido. Erros na condução política e econômica do governo Dilma, especialmente no segundo mandato, que foram um presente para a oposição. Difícil supor o sucesso do impeachment sem levar em conta tais erros. No entanto, o impeachment também foi fruto dos acertos dos governos petistas. Suas políticas sociais e culturais atiçaram uma reação de direita que vem sendo construída desde 2002. A política, como sabemos, é um jogo de disputas agudas, e as ações de um campo influenciam os cálculos e estratégias dos seus adversários. O PT está pagando também por seus acertos. E Dilma Rousseff está pagando por tentar reduzir a corrupção do Estado brasileiro, ao permitir que as investigações prosseguissem sem intervenção do poder executivo, que se tivesse outro chefe teria agido diferente. Por isso, o processo de impeachment tem ares de tragédia. Resumidamente, o impeachment resultou da combinação explosiva entre crise econômica, ascensão da direita, a campanha anticorrupção da “lava-jato” e o declínio do projeto petista/lulista, que foi abandonado pelas elites econômicas que o haviam apoiado. Sem esquecer o auxílio inestimável da grande mídia em sua campanha de manipulação de informações. Ademais, o impeachment foi alimentado por uma mescla de ingenuidade e superficialidade política de uns e extremo oportunismo de outros. No primeiro grupo estão os cidadãos com opinião política superficial, que mudam de ideia ao sabor do vento, 11 o que explica as oscilações bruscas na popularidade dos governantes no período recente (poucas semanas depois de receber 54 milhões de votos Dilma viu sua popularidade virar fumaça). No segundo grupo perfilam os que aceitam um impeachment sem crime para livrar-se de governo incômodo e, especialmente, os que viram no afastamento de Dilma uma chance de salvar-se dos processos anticorrupção. O impeachment foi um golpe? A discussão visa encontrar o conceito mais adequado ou abraçar uma bandeira política? Acho correto dizer que foi um golpe parlamentar, que aparentemente respeitou a Constituição, mas, na verdade, a violou, já que afastaram uma presidente honesta (pelo menos nada se encontrou contra ela até agora) para entregar o poder a uma quadrilha. Dilma possivelmente tem responsabilidade em esquemas ilegais para financiamento de campanha, que são corriqueiros na política brasileira. Mas ela parece uma freira em comparação com os seus adversários. Está claro como cristal que o objetivo real a impulsionar o impeachment não foi o combate à corrupção. Independente da melhor conceituação para o processo de afastamento de Rousseff, o fato é que a direita está no poder de novo. A direita liberal (a que pertencem, p.e., a FIESP e a grande mídia) e a direita conservadora (p.e. os saudosistas da ditadura, os cristãos integristas), associadas ao cortejo de oportunistas que ontem estavam com o PT. Apesar das semelhanças em alguns aspectos, este não é um golpe militar como o de 1964. Naquela ocasião, os civis foram protagonistas centrais, mas quem mandava eram os militares, baseados no argumento da força armada. Essa distinção entre 2016 e 1964 não é mera nuança, ela importa muito. Não estamos em uma ditadura e isso faz toda a diferença para a luta da oposição, que se utiliza da liberdade para atacar o governo e força- lo a recuar, às vezes com sucesso como temos visto. Na mesma linha de raciocínio, não devemos pensar planos de ação como se estivéssemos em 1964 de novo. As condições para a luta são diferentes. No plano externo, por exemplo, em que o governo Temer tem sofrido muitas derrotas, mas também no interno, em que há muitas oportunidades de ação a explorar. Evidentemente, o primeiro objetivo deve ser inviabilizar o governo Temer e obter o retorno de Dilma, o que parece possível graças ao descrédito rápido desse medíocre governo interino. Para conseguir a derrota do impeachment há que ter estratégia sólida para os dias seguintes, já que muitos parlamentares votaram pelo impeachment por acreditar que Dilma não tinha mais condições de governar. Uma das opções para 12 convencê-los a derrotar o impeachment é a proposta de realizar plebiscito sobre eleições gerais em 2016. Mas pairam dúvidas e hesitações, pois há quem prefira deixar Temer no poder até 2018, esperando que seu desgaste facilite a recuperação do prestígio do PT e aumente as chances eleitorais da esquerda. No entanto, as coisas podem tomar outro rumo e o governo interino consolidar-se e ter candidato forte em 2018, quem pode garantir? Além do mais, para a democracia brasileira seria fundamental reverter esse impeachment espúrio, para evitar que no futuro manobras parecidas venham a acontecer. Por isso, estou entre os que preferem o retorno de Dilma com realização de plebiscito e novas eleições em 2016, como tentativa de saída da crise política. Olhando a crise por outro prisma, é importante perceber que ela abre oportunidades interessantes também. Pode ser um momento criativo, um período de renovação e de questionamento. Em primeiro lugar de renovação política, mas quem sabe com efeitos positivos na produção cultural também(na música precisamos muito...). Quem sabe essa crise vai ser um marco, uma quebra de paradigmas no que toca aos comportamentos e valores políticos? E talvez tenha força para gerar uma nova cultura política? Estamos presenciando a formação de uma cidadania mais envolvida com as lutas políticas, mais visceral, mais conflitiva? Menos tolerante com estratégias de acomodação? Será possível aproveitar o momento para criar instituições políticas mais representativas e um sistema partidário melhor? No que tange à renovação política, seja qual for o futuro do governo Dilma é preciso reorganizar a esquerda. Há que fazer uma crítica séria dos erros recentes para superá-los. O PT, principalmente, precisa mudar se quiser manter seu lugar de proeminência na esquerda e recuperar a credibilidade perdida. Não pretendo uma crítica arrasadora, pois precisamos do PT e não se criam partidos da noite para o dia. O melhor caminho é tentar renovar o partido, que tem sido importante na luta por mudanças sociais e pela afirmação dos direitos humanos. Para tanto, a liderança petista tem que ser corajosa e aceitar mudanças, não basta reafirmar antigas verdades e velhos mitos (“o único partido criado por trabalhadores...”). Há que descer do pedestal, assumir os erros e dialogar em termos igualitários com as demais forças de esquerda e democráticas, para que uma aliança mais ampla sob a liderança do PT seja viável. Certamente que a figura de Lula é um trunfo importante e credencia naturalmente o PT para liderar o campo da esquerda. Mas, não podemos fingir que a crise foi artificialmente inventada pela mídia golpista. Uma pauta de esquerda passa, inexoravelmente, pela luta contra as desigualdades sociais e a concentração de renda. E também pelo combate às desigualdades raciais e 13 sexuais (e de gênero). Aliás, um dos efeitos mais interessantes do impeachment e do crescimento do discurso conservador foi aguçar a sensibilidade em relação ao racismo e às questões de gênero, provocando à ação grande contingente de pessoas. Os governos petistas apoiaram políticas relevantes nessas áreas, mas, é necessário repensá-las em vista do novo quadro e das futuras disputas eleitorais, em que certamente terão grande repercussão. O desafio é construir um projeto político de esquerda que fortaleça as instituições democráticas e os mecanismos de participação da sociedade, com base no respeito ao pluralismo, mas agudo o suficiente para combater as desigualdades sociais (incluída a temática racial e de gênero) brasileiras. Porém, um projeto político não revolucionário (ou seja, não disruptivo), até porque não teria suficiente apoio nas camadas sociais inferiores, por razões já apontadas, ou seja, os efeitos da cultura política (para o que o comportamento da população pobre diante da crise do impeachment serve de confirmação). As dificuldades para um projeto radical no Brasil e o fato da esquerda ser minoritária trazem à tona a questão das alianças. A crítica ao fisiologismo e à corrupção não deveriam gerar um retorno ao purismo e radicalismo das origens do PT, o que seria um beco sem saída. No jogo político as alianças são indispensáveis, tanto mais no quadro de fragmentação partidária do Brasil, em que nenhum partido consegue governar sozinho. Mas as alianças têm que ser programáticas e não fisiológicas. Deveríamos acabar com a tradição de conciliações e acomodações espúrias, mas para tentar construir alianças baseadas em projetos sólidos. Olhando mais além da esquerda, precisamos muito de uma reforma política. Para ter partidos mais representativos, melhorar a qualidade da liderança parlamentar e reduzir a influência das grandes empresas. No momento surgem informações positivas: está faltando dinheiro para as campanhas eleitorais de outubro de 2016, como fruto da proibição do STF e pelos efeitos da lava jato. Maravilha! Quem sabe teremos eleições com menor peso das grandes corporações e um novo começo. Entretanto, são necessárias outras mudanças na legislação, para fortalecer o sistema representativo. Como a simples reforma das leis não é suficiente para mudar os comportamentos, necessário pensar outras estratégias de ação. Um ponto importante é investir no fortalecimento dos movimentos sociais e intensificar o debate público. Fundamental é estimular a participação dos jovens na política, pois a renovação e melhoria na qualidade das lideranças políticas é problema urgente. No caso dos movimentos sociais 14 vale a pena apostar em inovações organizativas, assim como em formas de participação que transcendam os partidos tradicionais. Entretanto, não vejo possibilidade de projeto de esquerda viável sem a ocupação do parlamento e do poder executivo, para o que os partidos continuam indispensáveis. Enfim, são alguns esboços para um horizonte de expectativa que pode parecer modesto, mas, na verdade, é muito ambicioso tendo em vista a história brasileira.
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