Buscar

sartre jean paul que e escrever e porque escrever

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 25 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 25 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 25 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

-.
Em quemedidaa literatura
deveater-seàvidacircundantee,
a seumodo,refleti-Iae procurar
transformá-Ia?Enfrentandocora-
josamenteessaquestão- que,de
resto,atingeaprópriaessênciada
criaçãoliterária- ]ean-PaulSar-
treescreveuQueéaliteratura?,pu.
blicadooriginariamenteem1947
na revistaLes TempsModernes,
eagoralançadonoBrasilpelaAti-
ca.Tendocomofundohistóricoa
recém-terminadaSegundaGuerra
Mundialeasmarcasdoterrorna-
zifascistasobrea Europa,Sartre
defendeatesedoengajamentodo
escritorcomoformaobjetivadein-
terferirnacoletividadee, assim,
relacionar-secoma História.
A reflexãosartrianapõeem
discussãonoçõeselementares,mas
nempor issodesimportantes,e
avançaparaumareflexãofilosófi-
cadeextremaargúcianaindaga-
çãosocialefenomenológicadaati-
vidadeliterária."O queé escre-
ver?","Por queescrever?","Pa-
raquemseescreve?"sãoquestio-
namentosqueoautorprocuraana-
lisara partirdeumavisãoanti-
individualistadoescritore,conse-
qüentemente,contraanoçãodear-
tepelaarte.Pressupondoque"a
palavraéação",Sartrefazumapa-
nhadohistóricodarelaçãodoes-
critorcomasociedade,edecomo
aliteraturarefleteesseelo.Noen-
saiofinal,"Situaçãodoescritorem
1947",especificao impassede
quemescreve,divididoentreafi-
liaçãoburguesanomododevero
mundoeanecessidadedesuperar
essavisão,refletindoumauniver-
salidadehistórica.
J ean-Paul Sartre
Que é a literatura}?
Tradução:CartasFelipeMoisés
Ô'.,
3.a edição
~fj"
~l:
~;f'
~
I
Que é
escrever?
NãO, nósnãoqueremos"engajartambém"a pintura,
a esculturae a música,pelomenosnãodamesmamaneira.
E porquehaveríamos.dequerer?Quandoumescritordossé-
culospassadosexpressavaumaopiniãosobreseuofício,por
acasoseexigiadelequea aplicasseàsoutrasartes?Masho-
jeéelegante"falardepintura",nojargãodomúsicooudoli-
terato,ou"falardeliteratura",nojargãodopintor,comose
nofundosóexistisseumaúnica.arte,exprimindo-seindiferen-
tementeemqualquerdessaslinguageI1s,àmaneiradasubstân-
ciaspinozista,quecadaumdeseusatributosrefletecomade.
quação.Pode-seencontrar,'semdúvida,naorigemdetodavo.
caçãoartística,umacertaescolhaindiferenciadaqueascircuns.
tâncias,a educaçãoe o contatocomo mundos6maistarde
irãoparticularizar.Tambémnãohádúvidadequeasartes
10 (Jt:E (, A LlTEHATt:HA? QUE f: Ii:SClmVER? 11
deumamesmaépocaseinfluenciammutuamenteesãocondi-
cionadaspelosmesmosfatoressociais.Masaquelesqueque-
remprovaro absurdodeumateorialiteráriamostrandoque
elaé inaplicávelà músicadevemantesprovarqueasartes
sãoparalelas.Ora,esseparalelismonãoexiste.Aqui,como
emtudoomais,nãoéapenasaformaquediferencia,mastam-
bémamatéria;umacoisaétrabalharcomsonse cores,outra
é expressar-secompalavras.As notas,as cores,as formas
nãosãosignos,nãoremetema nadaqueIhessejaexterior.
Semdúvida,éimpossívelreduzi-Iasestritamenteasimesmas,
e a idéiadesompuro,porexemplo,é umaabstração;como
demonstroumuitobemMerleau-PontynaPhénoménologiede
Iaperception[Fenomenologiadapercepção].,nãoexistequalida-
deousensaçãotãodespojadasquenãoestejamimpregnadas
designificação.Maso pequenosentidoobscuroqueashabi-
ta, levealegria,tímidatristeza,lhesé imanenteou tremula
aoseuredorcomoumhalodecalor;essesentidoobscuroé
corousom.Quempoderiadistinguiroverde-maçãdesuaáci-
daalegria?E já nãoseráexcessivodizerliaalegriaácidado
verde-maçã"?Háoverde,háo vermelho,ebasta;sãocoisas,
existemporsi mesmas.É verdadequesepodeconferir-Ihes,
,porconvenção,ovalordesignos.Fala-se,porexemplo,emlin-
;guagemdasflores.Mas depoisdeestabelecidoumacordo,
\seasrosasbrancasparamimsignificam"fidelidade",é que
deixeidevê-Iascomorosas:meuolharasatravessaparami-
rar,alémdelas,essavirtudeabstrata;euasesqueçõ,nãodou
atençãoaoseudesabrocharaveludado,aoseudoceperfume
estagnado;nãochegosequerapercebê-Ias.Issosignificaque
nãomecomporteicomoartista.Parao artista,a cor,o aro-
ma,o tinidodacolhernopiressãocoisasemgraumáximo;
elesedetémnaqualidadedosomoudaforma,retomaaelas
milvezes,maravilhado;é essacor-objetoqueirátransportar
paraatela,eaúnicamodificaçãoporqueafarápassaré,trans-
formá-Iaemobjetoimaginál'io.Ele está,portanto,muitolonge
- Adotou-seoseguintecritérioparaasobrascitadasnotexto:o titulooriginalapa-
rect'seguidodotituloemportuguêsentrecolchetes.noscasosemqueselocali-
zouecliç~obrasileira.(N. E.)
deconsiderarascoreseossonscomoumalinguagem1.Oque;
valeparaoselementosdacriaçãoartísticavaletambémpara.
assuascombinações:o pintornãodesejatraçarsignossobre
a tela,quercriar2algumacoisa;e seaproximao vermelho
doamareloe doverde,nãohárazãoalgumaparaqueo con-
juntopossuaumsignificadodefinível,istoé,paraquereme-
taespecificamenteaalgumoutroobjeto.Semdúvidaessecon-
juntotambémé habitadoporumaalma,e já queo pintorte-
ve motivos,mesmoqueocultos,paraescolhero amareloe
nãoo violeta,pode-sesustentarqueosobjetosassimcriados
refletemassuastendênciasmaisprofundas.Sóquejamaisex-
primiriamsuacólera,suaangústiaousuaalegriadomesmo
modoqueo fariamaspalavrasoua expressãodeumrosto;
estãoimpregnadosdissotudo;e porterem.penetradonessa~I
cores,queporsi mesmasjápossuíamalgocomoumsentido,!!
assuasemoçõesseembaralhameseobscurecem;alininguém',I
serácapazdeidentificá-Iascomclareza.Aquelerasgoamare-
lonocéusobreo Gólgota,Tintorettonãooescolheuparasig-
mficarangústia,nemparaprovocá-ia;'eleéangústia,e céu
amareloaomesmotempo.Nãocéudeangústia,nemcéuan-
gustiado;éumaangústia'feitacoisa,umaangústiaquesetrans-
formounumrasgoamarelodocéu,eassimfoisubmersa,reco-7'
bertapelasqualidadesprópriasdascoisas,pelasuaimpermea-I
bilidade,pelasuaextensão,pelasuapermanênciacega,pelaI-
suaexterioridadee poressainfinidadederelaçõesqueelas
mantêmcomasoutrascoisas;valedizer,a angústiadeixou
deserlegível,écomoumesforçoimensoevão,sempreinter-
rompidoa meiocaminhoentreo céuea terra,paraexprimir
aquiloquesuanaturezaIhesproíbeexprimir.Domesmomo-
do,o significadodeumamelodia-. seéquenestecasoain-
dasepodefalardesignificado- nãoé nadamaisqueapró-
priamelodia,aocontráriodasidéias,quepodemsertraduzi:
dasadequadamentedediversasmaneiras.DigaQuea melodia
éOalegreousombria;elaestarásemprealémouaquémdetu-
doquesepossadizera seurespeito.Nãoporqueo artistate-
nhapaixõesmaisricasoumaisvariadas,masporquesuaspai-
xões,quetalvezestejamnaorigemdotemainventado,aose
incorporaremàs notas,sofreramumatransubstanciaçãoe
umadegradação.UmgritodedorésinaldadorQueoprovoca.,
12 ()l' E (:; ..\ I.ITEIL\TI' R.-\?
Masumcantodedoré aomesmotempoaprópriadoreuma
outracoisaquenãoador.Ou,sesequiseradotarovocabulá-
rioexistencialista,éumadorquenãoexistemais,éumador
queé.Mas,dirávocê,eseopintorfizercasas?Poisbem.pre-
cisamente,eleasfaz,iS,toé,criaumacasaimagináriasobl'ea
tela,enãoumsignodecasa.E acasaassimmanifestaconser-
-'vatodaaambigüidadedascasasreais.O escritorpodedirigir
o leitore,sedescreveumcasebre,mostrarneleosímbolodas
injustiçassociais,provocarnossaindignação.Já opintorému-
do:elenosapresentaumcasebre.sóisso;vocêpodevernele
o quequiser.Essachoupananuncaseráo símbolodamiséria;
paraissoseriaprecisoqueelafossesigno,maselaé coisa.O
maupintorprocuraotipo,pintaoÁrabe,aCriança,aMulher;
obompintorsabequeoÁrabeeoProletárionãoexistem,nem
narealidade,nemnasuatela;elepropõeumoperário- deter-
minadooperário.E oquepensardeumoperário?Umainfinida-
dede'coisascontraditórias.Todosospensamentos,todosos
s~ntimentosestãoali,aglutinadossobreatela,emindiferencia-
çãoprofunda;cabea vocêescolher.Artistasbem-intenciona-
dosjá tentaramcomover;pintaramlongasfilasdeoperários
aguardandonaneveumaofertadetrabalho,osrostosesquáli-
dosdosdesempregados,oscamposdebatalha.Nãocomoveram
maisqueGreuzecomseuFilhopródigo.E OmassacredeGuel'-
nica,essaobra-prima,alguémacreditaqueelatenhaconquista-
doumsócoraçãoà causaespanhola?Contudo,algumacoisa
foiditaquenãosepoderájamaisouvirequeexigiriaumainfi-
nidadedepalavrasparaexpressar.OsesguiosArlequinsdePi-
casso,ambíguos,eeternos,possuídosporumsentidoindecifrá-
vel,inseparáveldasuamagrezaarqueadaedoslosangosdesbo-
tadosdeseustrajes,sãoumaemoçãoquesefezcarnee que
a carneabsorveucomoo mata-borrãoabsorveatinta,uma
emoçãoirreconhecível,perdida,estranhaparasimesma,esquar-
tejadaeespalhadapelosquatrocantosdoespaçoe,noentan.
to,presente.Nãoduvidodequeacaridadeouacólerapossam
produziroutrosobjetos,masneleselasficarãoatoladasdames-
maforma;perderãoo seusignificado,restarãoapenascoisas
'habitadasporumaalmaobscura.Nãosepintamsignificados.
nãosetransformamsignificadosemmúsica;sendoassim,quem
ousariaexigirdopintoroudomúsicoqueseengajem?
.
:.'.
081'
.-'
;li'
.-1
ri'
Qcr~ É ESCRE\'''R? 13
i'
Oescritor,aocontrário,lidacomossignificados.Masca-
bedistinguir:o impériodossignoséaprosa;apoesiaestála-
doa ladocoma pintura,a escultura,a música.Acusam-me
dedetestara poesia:aprova,dizem,équeLesTempsModer.
nesraramentepublicapoemas.Ao contrário.issoprovaque
nósaamamos.Paraseconvencerdisso,bastaveraprodução
contemporânea."Pelomenosaela",dizemoscríticosemtriun-
fo, "vocênãopodenemsonharemengajar".Defato.Mas
porquehaveriaeudequererfazê-lo?Porqueelaseservede
palavras,comoa prosa?Maselanàoo fazdamesmamanei-
ra;naverdade.apoesianãoseservedepalavras;eudiriaan-
tesqueelaasserve.Ospoetassàohomensqueserecusama'
utt'lizaralinguagem.Ora,comoénalinguagemepelalíngua-."
gem,concebidacomoumaespéciedeinstrumento,queseope-,
raabuscadaverdade,nãosedeveimaginarqueospoetas
pretendemdiscerniroverdadeiro,oudá-loaconheçer,Eles'
tampoucoaspirama /tomem'omundo,eporissonãonomeiam
nada,poisa nomeaçãoimplicaumperpétuosacrifíciodono-
meaoobjetonomeado/'ou,parafalarcomoHegel,o nome
serevelainessencialdiantedacoisa- esta.sim,essencial.
Os poetasnãofalam,nemsecalam:trata-sedeoutracoisa.
Diz-sequeelespI'etendiamdestruiroverbopormeiodeacasa-
lamentosmonstruosos,masissoé falso;seriaprecisoquejá
estivessemlançadosnomeiodalinguagemutilitáriae procu-
rassemretirardaíaspalavrasempequenosgrupossingulares.
como,porexemplo,"cavalo"e"manteiga",escrevendo"ca-
valodemanteiga"3.Alémdetalempreendimentodemandar
umtempoinfinito,nàoseriaconcebívelmanter-senoplano
doprojetoutilitário,considerandoaspalavrascomoinstrumen-,
tose,aomesmotempo,quererretirardelassuautensilidade../
Naverdade,opoetaseafastouporcompletodalinguagem-ins-
trumento;escolheudeumavezportodasa atitudepoética
queconsideraas palavrascomocoisase nàocomosignos,
Poisa ambigüidadedosignoimplicaquesepossa,a seubelo'i
prazer,atravessá-locomoaumavidraça,evisaratravésdele \
acoisasignificada,ouvoltaroolharparaa realidadedosigno:
e considerá-locomoobjeto.O homemquefalaestáalémdas\___palavras,pertodoobjeto;opoetaestáaquém.Paraoprimei-\
ro,aspalavrassãodomésticas:parao segundo,permanecem
:rr..;
14 (l1'E E .\ LlTEH,\Tl'I{.\',
noestadoselvagem.Paraaquele.sãoconvençõesúteis,instru-
mentosquevãosedesgastandopoucoa poucoe sãojogados
foraquandonãoservemmais;paraosegundo.sãocoisasnatu-
raisquecrescemnaturalmentesobrea terra,comoa relvae
asárvores.
Masseo poetasedetémnaspalavras,comoo pintor
nascoresouo músiconossons,issonãoquerdizerqueaos
seusolhoselastenhamperdidotodoosignificado;defato,so-
menteo significadopodeconferiràspalavrasa suaunidade
verbal;semele,osvocábulossedispersariamemsonsouem
-traçosdepena.Sóquetambémelesetornanatural;deixa
desera metasempreforadealcancee semprevisadapela
transcendênciahumana;é umapropriedadedecadatermo.
análogaà expressãodeumrosto,aopequenosentido,triste
oualegre,dossonse dascores.Fundidoà palavra,absorvi-
dopelasuasonoridadeoupeloseuaspectovisual,adensado.
degradado,osignificadotambémécoisa,incriada,eterna;pa-
rao poeta,a linguagemé umaestruturadomundoexterior.
\ Ofalanteestáemsituaçãonalinguagem,investidopelaspala-
vrãs;sãoos prolongamentosdeseussentidos,suaspinças..
; suasé!,.Dt~n.p:.s,seusq_culo~;eleasmanipulaapartirdedentro.
sente-ascomosenteseucorpo.estárodeadoporumcorpo
verbaldoqualmaltem_c01)S.çi~nciaequeestendesuaação50-
,breo mundo.O poetaestáforadalinguagem,vêaspalavras
rdo'avesso,comosenãopertencesseà condiçãohumana,e.
ao dirigir-seaoshomens,logoencontrassea palavracomo
, umabarreira.Em vezdeconhecerascoisasantesporseusno.
!mes,'parece'quetemcomelasumprimeirocontatosilencio-
i soe,emseguida,voltando-separaessaoutraespéciedecoi-
sasquesão,paraele,as palavras,tocando-as,tateando-as.
palpando-as,nelasdescobreumapequenaluminosidadepró-
i priaeafinidadesparticularescomaterra,océu,aáguaeto.
dasascoisascriadas.Nãosabendoservir-sedapalavracomo
signodeumaspectodomundo.vênelaa imagemdeumdes-
sésaspectos.E aimagemverbalqueeleescolheporsuaseme.
lhança.como salgueiroouo freixonãoénecessariamentea
palavraquenósutilizamosparadesignaressesobjetos.Co-
moelejáestáfora,aspalavrasnãolheservemdeindicadores
queo lancemparaforadesi mesmo,parao meiodascoisas;
"1:'.' j;;,
:~
i,
._~
~
!
:11
~...I~
"0
;11
...
.~.,
QL:E (, ESCRIWlm? 15
emvezdisso,considera-ascomoumaarmadilhaparacapturar
umarealidadefugaz;emsuma,alinguageminteiraé,paraele,
o Espelhodomundo.Emconseqüência,importantesmudan-
çasseoperamnaeconomiainternadapalavra.Suasonorida-
de,suaextensão,suasdesinênciasmasculinasoufemininas,
seuaspectovisual,tudoissojuntocompõeparaeleumrosto'I
carnal,queantesrepresentadoqueexpressaosignificado.ln-J
versamente,comoo significadoé realizado,o aspectofísico
dapalavraserefletenele,e o significadofunciona,porsua1
vez,comoimagem.docorpoverbal.E tambémcomoseusig-.:..
no,poisperdeuapreeminência,ejáqueaspalavrassãoincria-\das,comas coisas,o poetanãodecidese aquelasexistem
emfunçãodestas,ouestasemfunçãodaquelas.Estabelece,seassim,entreapalavraeacoisasignificada,umaduplarela. .
çãorecíprocadesemelhançamágicae designificado.Eco-.J
moo poetanãoutilizaa palavra,nãoescolheentreacepçães
diversas,ecadaumadelas,emvezdeapresentar-secomofun'
çãoautônoma,sedáaelecomoqualidadematerialquesefun'
de,SQbosseusolhos,comasdemaisacepções.Assimreali.
zaeleemcadapalavra,tão.somentegraçasàatitudepoética,
asmetáforascomquesonhavaPicassoquandodesejavafazer
umacaixade fósforosquefosseinteiramentemorcegosem'
deixardesercaixadefósforos.Florençaécidadeefloremu-
lher,é cidade.flore cidade-mulhere donzela-floraomesmo
tempo.E o estranhoobjetoqueassimaparecepossuia liqui-
dezdofluirdorio,odocee fulvoardordoouroe,porfim,
seabandonacomdecênciaeprolongaindefinidamente,peloen-
fraquecimentocontínuodoa finalátono,seudesabrocharple-
noderecato..A issose agregao esforçoinsidiosodabio.
grafia.Paramim,Florenceétambémumacertamulher,uma
atrizamericanaqueatuavanosfilmesmudosdaminhainfân-
ciae dequemesquecitudo,salvoqueeraesguiacomoum'a
longaluvadebailee sempreumpoucoentediadae sempre
casta.semprecasadae incompreendida,e queeua amava,e
quesechamavaFlorence.Poisapalavra,quearrancaoprosa.
dordesi mesmoe o lançanomeiodo mundo,devolveao
.Sartre joga com as palavras!7l'lIr~f1I'II/,('.flor/rio: descobre01'.ouro. no interior
de Flnrence;e chegaa décl'lIcl'.decéncia.pela rima. (N. T.)
16 (WE I~.-\LlTEJ~.-\Tt'IL\~ ()t .(.; (~E~CH I':\"E I~~
17
poeta,comoumespelho,asuaprópriaimagem.É oquejustifi-
cao duploempreendimentodeLeiris,que,deumlado,emseu
Glossaire,procuradara certaspalavrasumadefiniçãopoética,
istoé, quesejaporsi mesmaumasíntesede implicaçõesrecí-
procasentreo corposonoroe a almaverbal.e, deoutrol"do.
numaobraaindainédita,selançaembuscadotempoperdido.
tomandocomopontodereferênciaalgumaspalavrasparticular-
mentecarregadas,paraele,deafetividade.Assim,apalavrapo-
-éticaé ummicrocosmo.A criseda linguagemqueeclodiuno
iníciodesteséculoé umacrisepoética.Quaisquerquetenham
sidoos seusfatoressociaise históricos,elase manifestoupor
acessosdedespersonalizaçãodoescritoremfacedaspalavras.
Estenãosabiamaiscomoseservirdelase, segundoa célebre
fórmulade Bergson,só as reconheciapelametade;abordava-
as comum sentimentode estranhezaextremamentefrutífero;
elasnãomaiseramdele,nãomaiseramele;masnessesespe-
lhosestranhosserefletiamo céu,a terrae a suaprópriavida;
finalmente,elasse tomavamas próplÍascoisas,ou melhor.o
negrocoraçãodascoisas.E quandoo poetajuntaváriosdesses
microcosmos..dá-secomeleo mesmoquesedácomos pinto-
resquandojuntamcoressobreatela;dil"-Se-iaqueelecompõe
umafrase,masé sóaparência;elecriaumobjeto.As palavras-
coisasse agrupampor associaçõesmágicasde conveniência
. ou desconveniência,comoas corese os sons;elasse atraem.
, serepelem,sequ('imallle suáassociaçãocompõea verdadeira
unidadepoéticaqueé a frase-objeto.Commaisfreqüênciaain-
da, o poetajá temno espíritoo esquemada frase,e as pala-
vrasvêmemseguida.Mas esseesquemanãotemnadaemco.
mumcomaquiloquede ordináriose chamaesquemaverbal:
nãopresideà construçãodeumsignificado;aproxima-seantes
doprojetocriadoratravésdoqualPicassoprefiguranoespaço.
antesmesmodetocaro pincel.essacoisaquesetornaráum
saltimbancoouumArlequim.
por inteiro.Do mesmomodo,certospoemascomeçampor
"e". Essaconjunçãonãoé mais,parao espírito,a marcade
umaoperaçãoa efetuar:elaseestendeportodoo parágrafo.
paraconferir-lheaqualidadeabsolutadeumacO'ltinuaçào.Pa-
rao poeta,a frasetemumatonalidade,umgosto;eledegus-
ta,atravésdela.eporsimesmos,ossaboresirritantesdaob.
jeção,dareserva,dadisjunção;eleoslevaaoabsolutoe faz
dessessaborespropriedadesreaisdafrase;estasetornapor.~
inteiroumaobjeção,semserobjeçãoa nadaemparticular.
Voltamosa depararaquicomasrelaçõesdeimplicaçãorecí-
procajáassinaladashápoucoentrea palavrapoéticaeo seu
sentido:o conjuntodaspalavrasescolhidasfuncionacomo'-'.
i/llagemdanuançainterrogativaourest~itivae, inversamente.
a interrogaçãoé imagemdoconjuntoverbalqueeladelimita.
Comonestesversosadmiráveis:
Fugir. !imgcfugir, ('usillt{las a{'('$f!brias
Mas ou/.'('.Ócoração.o ali/todoslIIarujos.
6estações.'6castelos.'
Queal/llaéSCIIIdefeito?
Ninguémé interrogado.ninguéminterroga:o poetaes-''\.
táausente.E ainterrogaçãonãocomportarespostaou,antes,
elaéasuaprópriaresposta.Será,portanto,umafalsainterro-'
gação?MasseriaabsurdocrerqueRimbaud"quisdizer"que
todomundotemseusdefeitos.ComodiziaBretonacercade',
Saint-PolRoux:"Se elequisessedizer,teriadito".Tampou~
co quisdizeroutracoisa.Fezumainterrogaçãoabsoluta;con-'
feriuàbelapalavra"alma"umaexistênciainterrogativa.Eis.
a interrogaçãotornadacoisa,talcomoaangústiadeTintoret.
tosetornoucéuamarelo.Nãoé maisumsignificado,éuma
substância;évistadefora,e Rimbaudnosconvidaavê.lade
foracomele;suaestranhezavemdofatodequenoscoloca-
mos.paraconsiderá-Ia,dooutroladodacondiçãohumana;
eloladodeDeus.
Seassimé.compreende-sefacilmenteatolicequeseria
exigirumengajamentopoético.Semdúvidaaemoção,apró-
priapaixão- e porquenãoa cólera,a indignaçãosocial,o
ódiopolítico- estãonaorigemdopoema.Mas nãoseexpri-
memnele,comonumpanfletoounumaconfissão.À medida
queo prosadorexpõesentimentos.eleosesclarece;o poeta.
Esse"mas",queseerguequalmonolitonolimiardafra-
se,nãoligao versoanterioraoversoseguinte.Colore-ode
certa nuançareservada,deum"ensimesmar-se"queopenetra
18 l)I'L I': ,\ I.ITJ':I~,\'('I 1,,\
aocontrário,quandovazasuaspaixõesemseupoema.deixa
dereconhecê-Ias;aspalavrasseapoderamdelas,ficamimpreg-
nadasporelaseasmetamorfoseiam;nãoassignificam,mes.
-moaosseusolhos.A emoçãosetornoucoisa,passoua tera
opacidadedascoisas;é turvadapelaspropriedadesambíglla~
dosvocábulosemquefoiconfinada.E, sobretudo,hásempre
muitomaisemcadafrase,emcadaverso,comonocéuamare.
IaacimadoGólgotahámaisqueumasimplesangústia.A pa.
lavra,afrase-coisa,inesgotáveiscomocoisas,extravasampor
todaparteo sentimentoqueassuscitou.Comoesperarqueo
poetaprovoquea indignaçãoouo entusiasmopolíticodolei.
tal'quando.precisamente.eleo retiradacondiçãohumanaL'
, oconvidaaconsiderar,comosolhosdeDeus,oavessodalin.
'guagem?"Vocêestáesquecendo"I alguémdirá,"ospoetas
da Resistência,VocêestáesquecendoPierreEmmanuel",
Masnão;euiajustamentecitá-Iasparaendossaro meuargu-
mento~,
Masofatodeaopoetaservedadoengajar-seserárazão
suficienteparadispensaro prosadorde fazê-Io?QueháeleL'O
mumentreeles?Oprosadorescreve.éverdade.eopoetatam,
bém.Masentreessesdoisatosdeescrevernãohánadaem
comumsenãoo movimentodamãoquetraçaasletras.Quan-
toaomais,seusuniversospermanecemincomunicáveis.e o
quevaleparaumnãovaleparao outro.A prosaé utilitária
poressência;eudefiniriadebomgradoo prosadorcomoum
homemques('ser/'c daspalawas.MOl/sicl/rJourdainfaziapro
saparapedirseuschinelos,e Hitler,paradeclararguerra11
Polônia.Oescritoréumfalador;designa,demonstra,ordena.
recusa,interpela,s~plica,insulta,persuade,insinua.Seo faz
novazio,nemporissosetornapoeta:é umprosadorquefa-
laparanãodizernada.Já vimossuficientementealinguagem
peloavesso;convémagoraconsiderá-Iadoladodireito:i,
A artedaprosaseexercesobreo discurso,S~lamatéria
é naturalmentesignificante:valedizer.aspalavrasnàosão,
deinício.objetos,masdesignaçõesdeobjetos.Nãosetrata
desaberseelasagradamoudesagradamporsi próprias,mas
simseindicamcorretamentedeterminadacoisadomundoou
determinadanoção.Assim,acontececomfreqüênciaquenos
encontremosdepossededeterminadaidéiaquenosfoiCOI1lU'
...,
.'.',
'.
;",
(Jl'(o; J~ (o;~l:I~E\'I':I~~ 19
nicadaporpalavras,semquenospossamoslembrardeuma
sódaspalavrasquea transmitiram.A prosaé antesdemais
nadaumaatitudedoespírito;háprosaquando.parafalarco-,
moValéry,nossoolharatravessaapalavracomoo solaovi-
dro.Quandose estáemperigooudificuldade,empunha-se
uminstrumentoqualquer.Passadaadificuldade.nemnoslem-
bramosmaissefoiummarteloouumpedaçodelenha.Aliás.
nemchegamosá sabê-Io:faltavaapenasumprolongamento
donossocorpo.ummeiodeestenderamãoatéogalhomais
alto;eraumsextodedo.umaterceiraperna- emsuma,uma
purafunçãoqueassimilamos,Assimalinguagem:elaénos-
sacarapaçae nossasantenas.protege-noscontraosoutrose
informa-nosa respeitodeles.éumprolongamentodosnossos
sentidos.Estamosnalinguagemcomoemnossocorpo:nósa
se11timosespontaneamenteultrapassando-aemdireçãoaou-
trosfins,talcomosentimosasnossasmãose osnossospés;
percebemosalinguagemquandoéooutroqueaemprega.as-
simcomopercebemososmembrosalheios.Existea palavra
,'h'idae a pala\Taencontrada.Masnosdoiscasosissosedá
nocursodeumaatividade.sejademimsobreosoutros.seja
dooutrosobremim.A falaé umdadomomentoparticular
daaçãoe nãose,compreendeforadela.Sabemosquecertos
afásicosperdemapossibilidadedeagir,deentenderassitua-
ções,demanterrelaçõesnormaiscomo sexooposto.Noseio
dessaapraxia.adestruiçãodalinguagempareceapenasodes-
moronamentodeumadasestruturas:amaisfinae maisapa.
rente.E sea prosanãoé senãoo instrumentoprivilegiado
decertaatividade,sesóaopoetacabecontemplaraspalavras
demaneiradesinteressada,temoso direitodeperguntarao
prosadorantesdemaisnada:comquefinalidadevocêescre-
ve?Emqueempreendimentovocêselançoueporqueneces-,
sitaeledorecursoàescrita?E emcasoalgumesseempreen-,
dimentopoderiater comofinalidadea puracontemplação.
Poisa intuiçãoésilêncioeafinalidadedalinguagemécomu.
nicar.O prosadorpode,semdúvida,fixarosresultadosdain-
tuição.masnessecasobastarãoalgumaspalavrasatiradasàs
pressasnopapel:oautorsempresereconheceránelas.Seas
palavrassearticulamemfrases.comumapreocupaçãopela
clareza,é precisoqueintervenhalimadecisãoestranhaà
20 ql'I-; J:; .-\ I.ITJ';R,\TIOI~,\' Ql'E É ESCRI;;\'ER? 21
intuição,àpróprialinguagem:a decisãodecomunicaraosou.
trososresultadosobtidos,Em cadacaso,éessaadecisãoque
cabequestionar.E o bomsenso,queos nossosdoutostãofa-
cilmenteesquecem,nãose cansaderepeti-!o.Pois nãoé cos-
otumecolocarparatodososjovensquesepropõema eSCr0\'er
; estaquestãodeprincípio:"Vocêtemalgumacoisaa dizer?"
Por aí deve-seentender:algumacoisaquevalhaapenaserco-
municada.Mas comocompreendero que"vale a pena".se-
nãorecorrendoa umsistemadevalorestranscendente?
Aliás, se considerarmosapenasessaestruturasecundá-
riadoempreendimentoqueé o momentol/erbal,o graveerro
dosestilistaspuroséacreditarquea falaé apenasumzéfiro
queperpassaligeiramentea superfíciedascoisas.queasafio-
ra semalterá-Ias.E queo falanteépuratestemunhaqueresu-
omenumapalavrasuacontemplaçãoinofensiva.Falar é agir:
. umacoisanomeadanãoémaisinteiramentea mesma,perdeu
a suainocência.Nomeandoa condutadeum indivíduo,nósa
revelamosa ele;elesevê.E comoaomesmotempoa nomea-
mosparatodosos outros,no momentoemqueelese tê.sa-
bequeestá'sendovisto;seugestofurtivo,quedelepassava
desperceb.ido,passaa existirenormemente,a existirparato-
dos,integra-senoespíritoobjetivo.assumedimensõesnovas,
.é recuperado.Depoisdisso,como'sepodequererqueelecon-
tinueagindodamesmamaneira?Ouiráperseverarnasuacon-
dutaporobstinação,ecomconhecimentodecausa,ouiráaban-
doná-Ia.Assim,aofalar,eudesvendoa situaçãopormeupró'
prio projetode mudá-Ia;desvendo-aa mimmesmoe aosou-
o tros,paramudá-Ia;atinjo-aemplenocoração,traspasso-aefi.
o , xo.asob,todososolhares;passoadispordela;acadapalavra
:quedigo,engajo-meumpoucomaisnomundoe.aomesmo
I tempo,passoaemergirdeleumpoucomais,já queoultrapas-
I 50nadireçãodoporvir,Assim, o prosadoré um homemque
o escolheudeterminadomododeaçãosecundária.quesepode-
riachamardeaçãopordesvendamento,É legítimo,pois,pro-
por-lheestasegundaquestão:queaspectodo mundovocê
querdesvendar,quemudançasquertrazeraomundopores-
sedesvendamento?O escritor"engajado"sabequeapalavra
éação:sabequedesvendarémudarequenãosepodedesven-
darsenãotencionandomudar.Eleabandonouo sonhoimpos-
sívelde fazerumapinturaimparcialdaSociedadee daccmdi1/
çãohumana.O homemé o seremfacedequemnenhumou-
tro ser'podemanter.aimpa;-cialidade~nemmesmoDeus.Pois
Deus,seexistisse,estaria.comobemviramcertosmísticos.
emsitllaçãoemrelaçãoaohomem.E é tambémoserquenào
podesequerverumasituaçãósemmudá-Ia,poiso seuolhar
imobiliza,destrói,ouesculpe,ou,comofazaeternidade,trans-
formao objetoemsi mesmo.É noamor,no6dio,nac6lera.
nomedo,naalegria.naindignação,naadmiração,naesperan.
ça,nodesesperoqueo,homemeo mundoserevelamemsua
,verdade.Semdúvida,o escritorengajadopodesermedíocre.
podeteratémesmoconsciênciadesê-Io.mascomonãoseria
possívelescreversemopropósitodefazê-Iodomelhormodo.
a modéstiacomqueeleencaraa suaobranãodevedesviá.lo
daintençâodeconstruí-IaC01110seeladevesseatingiramáxi.
maressonãncia.Nuncadevedizer:"Bem,tereinomáximo
trêsmilleitores";massim."oqueaconteceriasetodoo muno
dolesseoqueeuescrevo?"Ele'selembradafrasedeMosca
diantedocochequelevavaFabrícioeSanseverina:"Seapala.
vraAmorviera surgirentreeles,estouperdido".Sabeque
eleéo homemquenomeiaaquiloqueaindanãofoinomeado,
ouquenãoousadizeropróprionome;sabequefaz"surgir"
a palavraamore apalavra6dioe,comelas.o amore o ódio
entreduaspessoasquenãohaviamaindadecididosobreos
seussentimentos.Sabequeaspalavras,comodizBrice-Pa-
rain,sã'o"pistolascarregadas".Quandofala,eleatira.Pode
calar-se,masumavezquedecidiuatiraré precisoqueo faça
comoumhomem,visandoo alvo,e nãocomoumacriança.
",oacaso,fechandoosolhos,s6peloprazerdeouvirostiros.
Tentaremosmaisadiantedeterminarqualpoderiaseroobjeti.
vodaliteratura.Masdesdejápodemosconcluirqueo escri-
tor.decidiudesvendaro mundoeespecialmenteohomempa.
ra os outroshomens,a fimdequeestesassumamemface
doobjeto,assimpostoa nu,a suainteiraresponsabilidade.
Ninguém'podealegarignorânciadalei,poisexisteumc6di.
goea leié coisaescrita:apartirdaí,vocêélivreparainfrin-
gi-Ia,massabeosriscosquecorre.Domesmomodo,afunção'
doescritoré fazercomqueninguémpossaignoraro mundo
e considerar-seinocentediantedele.E umavezengajadono/
22 (}I"E I~A LlTERA1TH..\: Qt'E I~I':~CHE\'EI{:- 23
universodalinguagem.nãopodenuncamaisfingirquenãosa-
befalar:quementranouniversodossignificados.nãoconse-
guemaissair;deixemosaspalavrasseorganizarememliber-
dade.eelasformarãofrases.ecadafrasecontémalinguagem
todae remetea todoouniverso;oprópriosilênciosedefine
emrelaçãoàs palavras,assimcomoa pausa.emmúsica.ga-
nhao seusentidoa partirdosgruposdenotasquea circun-
'-'dam.Essesilêncioéummomentodalinguagem;calar-senão
éficarmudo.érecusar-seafalar- logo,aindaéfalar.Portan-
to,seumescritordecidiucalar-sediantededeterminadoas.
pectodomundo.ou,comodizumalocuçãocorrente.particu.
larmenteexpressiva,decidiudfixflrpassar{'/lisilencio.élegíti-
mopropor-lheumaterceiraquestão:porquevocêfaloudisso
e nãodaquilo.e já quevocêfalaparamudar.porquedeseja
mudarissoenãoaquilo? .
Nadadissoimpedequehajaamaneiradeescrever.Nin-
guémé escritorporhaverdecididodizercertascoisas.mas
\[ porhaverdecididodizê-Iasdedeterminadomodo.E oestilo., decerto,é o quedeterminao valordaprosa.Maselede\"('
passardespercebido.Já queaspalavrassãotransparentese
, oolharas,atravessa,seriaabsurdointroduzirvidrosopacosen-
treelas.A belezaaquiéapenasumaforçasuaveeinsensível.
Sobreumatela,elaexplodedeimediato;numlivroelasees-
conde,ageporpersuasãocomoocharmedeumavozoude
umrosto;nãoconstrange.maspredispõesemqueseperce-
ba,eacreditamoscederaargumentosquandonaverdadeesta
mossendosolicitadosporumencantoquenãosevê.A etique-
tadamissanãoé a fé.elapredispõeparaa fé;a harmonia
daspalavras,suabeleza,o equilíbriodasfrasespredispõcm
aspaixõesdoleitor,semqueestesedêconta;organizam-nas.
comofaza missa,comoamúsica.comoumadança;seo lei-
torpassaa considerá-Iasporelasmesmas.perdeo sentido:
restamapenascadênciastediosas.Napl'osa.o pl'azcl'estc'ti
cosóépuroquandovemporacréscimo.Éconstrangedorlem-
braraquiidéiastãosimples.masparecequehojeemdiaelas
foramesquecidas.Seassimnãofosse.comoviriamnosdizer
queestamospremeditandoo assassinatoda literatul'a.Otl
maissimplesmente,queoengajamentoprejudicaaal'tedees-
crever?Seacontaminaçãodedeterminadaprosapelapoesia
nãotivesseembaralhadoasidéiasdosnossoscríticos,pensa-','
riamelesemnosatacarquantoàforma,sendoquenuncafala-'
mossenãodoconteúdo?Quantoà forma.nãohánadaa dizer
deantemãoe nadadissemos:cada um inventaasuaesóde-,
poiséquesejulga.É verdadequeostemassugeremoestilo.'
masnãoo comandam:nãohátemassituadosaprioriforada
arteliterária.Oquepodehaverdemaisengajado,maistedio-
so.doqueo propósitodeatacara CompanhiadeJesus?Pois
PascalfezcomissosuasPl'ol'illciales[Provinciais].Emsuma.
trata.sedesaberarespeitodequesequerescrever:deborbo-
letasoudacondiçãodosjudeus.Equandojásesabe,restade-I
cidircomoseescreverá.Muitasvezesocorrequeasduases.J
colhassejamumas6,masjamais.nosbonsautores,asegun-.
daprecedeaprimeira.SeiqueGiraudouxdizia:tOAúnicatare-
faéencontraroestilo;aidéiavemdepois".Maseleestavaen-
ganado:a idéianãoveio.Seos temasforemconsideradosco-
moproblemassempreemaberto,comosolicitações,expectati-
vas.compreendet'emosqueaartenãoperdenadacom<;>enga-
jamento;aocontrário.Assimcomoafísicasubmeteaosmate-
máticosnovosproblemas,queosobrigamaproduzirumasim-
bologianova,assimtambémasexigênciassemprenovasdo'
socialoudametafísicaobrigamo artistaadescobriru~ano-
valínguae novastécnicas.Senãoescrevemosmaiscomono
séculoXVII. é porquea línguadeRacineoudeSaint-Évre-
mondnãoseprestaparafalardelocomotivasoudoproletaria-
do.Depois,..disso.ospuristastalveznosproíbamdeescrever
sobrelocom'otivas.Masaartenuncaestevedo.ladodospuristas.
Seesteé'o princípiodoengajamento,queobjeçõeslhe
poderãoserfeitas?E, sobretudo,queobjeçõesjálheforam
feitas?Parecequeosmeusadversáriosnãoestavamcommui-
tadisposiçãoparaatarefa.eseusartigosnãocontinhammais
queum longosuspiroescandalizado.quesearrastavapor
duasoutrescolunas.Gostariadesaber('11/1/011/('d('qur.de
qualconcepçãodaliteraturaelesmecondenavam;masnãoo
disseram,elesmesmosnãosabiam.Omaisconseqüenteteria
8ic1obasearseuveredictonavelhateoriadaartepelaarte.
Masnenhumdelesaceitaria.Éumateoriaigualmenteincômoda.
Sabe-sequeartepurae artevaziasãoa mégmacoisa,e que
opurismoestéticofoiapenas\lmabrilhantemanobradefensiva
24 (){'E I~.-\ I.ITERAT\'I~..\:.
do::;burguesesdoséculopassado,queachavammelhorserde-
nunciadoscomofilisteusdoquecomoexplorad6res.É preci-
so,pois- eelespróprioso reconhecem-, queoescritorfa-
ledealgumacoisa.Masdequê?Creioqueoseuembaraçose-
ria extremoseFernandeznãoth'esseencontradoparaeles,
apósa PrimeiraGuerra,a noçãodemensagem.O escritorde
hoje,dizemeles.nãodeveemcasoalgumocupar.sedascoi-
sastemporais;nãodevetampoucoalinharpalavrassemsigni-
ficado.,nemprocurarapenasa belezadasfrasese dasima-
gens:asua:'funçãoépassarmensagensaosseusleitores,Que
vemaser.então.umamensagem?
É precisolembrarquea maioriadoscríticossãohomens
quenãoti\'~rammuitasortenavida.equequandojáesta\'am
àbeiradodesespero.encontraramumlugarzinhotranqÜiloco-moguardaC;lecemitério.Deussabequantooscemitériossão
tranqüilos:'nàoexistemmaisridentesqueumabiblioteca.Os
mortosláestão:nadamaisfizeramsenãoescrever,hámuito
tempo,estãolavadosdopecadodeviver.e.deresto.sóconhe-
cemosassuasvidasatravésdeoutroslivrosqueoutrosmor-
tosescrevera'ma seurespeito.Rimbaudestámorto.Mortos
PaterneBerrichoneIsabelleRimbaud;osimportunosdesapa-
recer3.m,.só'r.estampequenosataúdesdispostossobretábuas
aolongodosmuros.comoasurnasdeumcolumbário.Ocríti-
covivemal;suamulhernãoo apreciacomoseriadesedese-
jar,seusfilhossãoingratos,osfinsdemêssãodifíceis.Mas
eleaindapodeentraremsuabiblioteca.apanhar,umlivrona
estanteeabri.Jo.Dolivroescapaumleveodordeporão,etem
inícioentãoumaestranhaoperaçãoqueeledecidiuchamar
deleitura.Por umlado,é umapossessão;empresta-seo cor-
poaosmortosparaquepossamreviver,Poroutro,éumcon-
tatocomo além.Defato,o livronãoé umobjeto,tampouco
umato,nemsequerumpensamento:escritoporummorto
acercadecoisasmortas,nãotemmaisnenhumlugarnesta
terra.nãofaladenadaquenosinteressediretamente;entre.
guea si mesmo,eleseencarquilhae desmorona,nãorestam
maisquemanchasdetintasobreo papelembolorado,equan-
doo críticoreanimaessasmanchas,transformando-asemle.
trase palavras,estaslhefalamdepaixõesqueelenãosente.
decólerassemobjeto,detemorese esperançasdefuntas.É
I,
Ol'E E ES(,RE\'EI~~ 25
todoummundodesencarnadoqueo rodeia.ummundoem
queasafeiçõeshumanas,comonãocomovemmais,passaram'
à categoriadeafeiçõesexemplares.emsuma.det'alores.As-,'
simeleseconvencedehaverentradoemcontatocomum
mundointeligívelqueécomoquea verdadee arazãodeser
dosseussofrimentoscotidianos.Acreditaquea naturezaimi-
taaarte.comoparaPiatãoomundosensívelimitavaodosar.
quétipos.E enquantolê,suavidacotidianasetornaaparên-
cia.Aparênciasuamulherrabugenta.aparênciaseufilhocor.'
cunda:equeserãosalvasporqueXenofontedescreveuXanti-
pa,e Shakespe'areretratouRicardom. É umafestaparaele
quandoosautorescontemporâneoslhefazemofavordemar,
rer:seuslivros.muitocrus,muitovivos.muitoexigentes.pas-
samparaa outramargem,emocionamcadavezmenose se
tornamcadavezmaisbelos:apósumabrevetemporadano
purgatório,irãopovoarocéuinteligíveldenovosvalores.Ber-
gotte,Swann.Siegfried.BellaeMOllsieltl'Teste:eisalgumas
aquisiçõesrecentes.Aguardam-seNathanaeleMénalque.Quan-
to aosescritoresqueseobstinamemviver.pede-seapena~
quenãoseagitemdemasiado.e queseempenhemdesdejá
emseparecercomosmortosquefuturamenteserão.Valéry
saiu-sebastantebem,poisvinhapublicandolivrospóstumos
hávintee cincoanos.Eisporque,comoacontececomalguns'
santosdefatoexcepcionais.foicanonizadoemvida.MasMal-
rauxescandaliza.Nossoscríticossãocomoosheregescátaros:
nãoquel'emternadaa vercomo mundoreal.salvocomere
beber.ejáqueé imperiosamentenecessárioconvivercomos
nossossemelhantes,decidiramfazê-Iacomos defuntos.Só
seapaixonampelosassuntosarquivados,pelasquestõesfecha.
das,pelashistóriasdequejáseconheceofim.Nuncaapostam
numdesfechoincerto,ecomoa históriadecidiuporeles.co.
mooso'bjetosqueaterrorizavamouindignavamosautoresli.
dosporelesjádesapareceram,comoadoisséculosdedistân.
ciaavaidadedasdisputassangrentasaparececomclareza.po'
demencantar-secoma cadênciadasfrases.e tudosepassa.
a seusolhos.comosetodaa literaturafosseapenasumavas-
tatautologiaecadanovoprosadortivesseinventadoumano.
vamaneiradefalarparanãodizernada.Falardosarquétipos
e da "naturezahumana".falarparanãodizernada?Todas
26 QI'E (~,\ f.ITEHATI 'I~A:' l)1 'I,: E E:-;l'I~,,, I';I~: ?--,
asconcepçõesdosnossoscríticososcilamentreessasdua~
idéias.Naturalmente,ambassãofalsas:osgrandesescritores
queriamdestruir,edificar,demonstrar.Masnósnãoguarda-
mosasprovasqueapresentaram,porquenãonospreocupa-
moscoriloqueelesquiseramprovar.Osabusosquedenuncia-
,ramnãosãomaisdonossotempo;hojeháoutrosquenosin-
dignamequeelesnemsequerimaginavam;ahistóriadesmen-
tiu algumasdesuasprevisões,e aquelasqueserealizaram
setornaramverdadeirashátantotempoquejá nosesquece-
mosdequeforam,antes,traçosdoseugênio;algunsdosseus
pensamentosestãointeiramentemortos,eháoutrosqueogê-
nerohumanointeiroassimilouequeagoratomamoscomolu-
gares-comuns.Segue-sequeosmelhoresargumentosdesses
autoresperderamasuaeficácia;hojeadmiramosapenasasua
ordemeoseurigor;pormaisbemestruturadosquesejam,pa-
ra nósnãopassamdeornamento,umaarquiteturaelegante
dademonstração,semmaisaplicaçãopráticadoqueaarquite-
turadasfugasdeBachoudosarabescosdeAlhambra.
Nessasgeometriasapaixonadas,quandoageometrianão
convencemais,apaixãoaindacomove.Ouantes,arepresen-
taçãodapaixão.As idéiassetornaraminsossasaolongodos
séculos,maspermanecemcomopequenasobstinaçõespes-
soaisdeumhomemquefoidecarnee osso;portrásdasI'a-
zõesdarazão,queesmaecem,percebemosasrazõesdocora-
ção,asvirtudes,osvíciose essagrandedorqueoshomens
têmdeviver,Sade'fez tudoparanosconvencere, quando
muito,conseguenosescandalizar:nàoé maisqueumaalma
corroídaporumbelomal,umaostraqueproduzpérolas,A
LeUreSUl'lesspectacles[Cartasobre0$espetricu/os]nãodissua.
demaisninguémdeir aoteatro,masachamosdivertidosaber
queRousseaudetestavaaartedramática.Seformosumpou-
coversadosempsicanálise,nossoprazerseráperfeito:expli-
caremosDu contra!social[Docontratosocianpelocomplexo
deÉdipoeL 'espritdes/ois[O('s/JíritodasleisI pelocomplexo
deinferioridade;istoé,desfrutaremosplenamentedareconhe-
cidasuperioridadequeoscàesvivostêmsobreosleõesmor-
tos.Assim,quandoumlivroapresentapensamentosinebrian-
tesqueoferecemaaparênciaderazõessóparasedissolverem
sobo nossoolharesereduziremàsbatidasdocoração,quan-
doo ensinamentoquesepodeextrairdeleé radicalmentedife-
rentedaquelequeoautorquisdar,chama-seaesselivromen-
sagem.TantoRousseau.paidaRevoluçãoFrancesa,comoGo-\
bineau.paidoracismo.nosenviarammensagens,Eocrítico.
asconsidel'acomigualsimpatia.Fossemvivos.eleteriadeop. .
tal'porumcontraooutro,amaraum,odiarooutro.Maso
queosaproxima.antesdemaisnada,équeelescompartilham
deummesmodefeito,profundoedelicioso:ambosestãomortos.
Assim.deve-serecomendaraosautorescontemporâneos
:}uepassemmensagens.istoé.quelimitemvoluntariamente
seusescritosàexpressãoinvoluntáriadesuasalmas.Digoin-
,'oluntáriaporqueosmortos,deMontaigneaRimbaud.pinta.
ramasi mesmosporinteiro,masnãointencionalmenteeco-
moporacréscimo;justamenteissoquenoslegarama mais.
semquerer,é quedeveconstituiro fimprimordiale confes-
sodosescl'itoresvivos.Nãoseexigedelesquenosentreguem
confissõessemretoques.nemque'seabandonemaolirismo
demasiadonudosromânticos.Masjáquetemosprazeremde-
sarmarasartimanhasdeChateaubriandoudeRousseau..em -'
surpreendê-Iosnasuaprivacidadeno mesmomomentoem
quesefazemdehomenspúblicos,emdeslindarascausaspar-
ticularesdesuasafirmaçõesmaisuniversais.pede-seaosre-
cém-chegadosquenosproporcionemdeliberadamenteesse
mesmoprazer.Queraciocinem.pois,queafirmem.neguem.
!'efuteme provem;masa causaquedefendemdeveserape-
nasafinalidadeaparentedosseusdiscursos:afinalidadepro-
fundaé entregar-sesemo aparentar.Quantoa seusraciocí-
nios,éprecisoqueelesprimeiroosdesarmem,comofezotem.
poemrelaçãoaosclássicos;queosapliquemaassuntosque
nãointeressama ninguém.oua verdadestàogeraisqueos
leitoresjáestejamconvencidosdelasantecipadamente;quan-
to a suasidéias.devemdara elasumar deprofundidade.
mas,'azio.e formá-Iasdetalmaneiraqueela::;seexpliquem.
e\'identcmente.porumainfânciainfeliz.umódiodeelasse
ouumamorincestuoso.Quenãoseatrevamapensardever-
dade:o pensamentoescondeo homem,e é sóo homemque
nosinteressa.Umsoluçototalmentenunãoébelo;eleofen-
de.Umbomraciocíniotambémofende.comoStendhalbem
percebeu.Masumraciocínioqueocultaumsoluço.eisoque
28 'lI I. ,.: .\ I.ITI-:I~,\TI'''..\:' ()1'J': E lê~L'I~E\'I':I~: 2~)
, nosinteressa.Oraciocíniotiradaslágrimasoqueestastêm
deobsceno;aslágrimas,revelandoasuaorigempassional.ti-
ramdoraciocínioo queeletemdeagressÍ\'o;nàoficaremos
muitocomovidos,nemdetodoconvencidos.epoderemosen-
. tregar.noscomsegurançaàquela\'oluptuosidademoderada
que,comotodossabem.é proporcionadapelacontemplaçào
dasobras'dearte.Tal é,pois.a "verdadeira"e "pura"litera-
tura:umasubjetividadequeseentregasobaaparênciadeob-jetividade,umdiscursotãocuriosamenteengendradoqueequi-
valeaosilêncio;umpensamentoquesecontestaasi mesmo,
umaRazãoqueé apenasá máscaradaloucura.umEterno
quedáa entenderqueé apenasummomentoeleHistória,
ummomentohistóricoque.pelosaspectosocultosquerevela.
remetedesúbitoaohomemeterno;umperpétuoensinamen'
to,masquesedácontraavontadeexpressadaquelesqueen-
sinam.
Enfim,a mensageméumaalmafeitaobjeto.Umaalma;
e oquefazercomumaalma?Nósa contemplamosaumadis-
tânciarespeitosa.Nãotemoso costumedeexibirnossaalmél
emsociedadesemummotivoimperioso.Mas.porconvenção
e com'algun:tas.reservas,é permitidoaalgumaspessoascolo-
carsuaalmaemcirculaçào,equalqueradultopodeadquiri-Ia,
Assim,hoje,paramuitaspessoas,asobrasdoespíritosãope-
quenasalmaserrantesquesepodemadquirirporpreçomódi.
co:háaqueladobomevelhoMontaigne,adocaroLaFontai.
ne;adeJean-Jacques,adeJean-PauleadodeliciosoGérard.
Chama-searteliteráriaaoconjuntodebeneficiamentosque
astornaminofensivas.Curtidas,refinadas,quimicamentetra-
tadas,elasfornecemaosseuscompradoresa oportunidade
: 'deconsagrarà culturadasubjetividadealgunsmomentosele
umavidainteiramentevoltadaparao exterior.Pode-seutili-
zá-Iassemperigo:quemlevaráasériooceticismodeMontaigne.
já queo aUtordosEssais[Ensaios]sentiumedoquandoapes-
tedevastavaBordeaux?E o humanismodeRousseau,saben-
do que"Jean-Jacques"colocouseusfilhosnumorfanato?E
asestranhasrevelaçõesdeSylvie[Sílvia],umavezqueGérard
deNervaleralouco?Quandomuito,o críticoprofissionalesta.
beleceráentreelesdiálogosinfernaisenosensinaráqueopen-
samentofrancêsé umaperpétuaconversaçãoentrePascale
Montaigne.Comisso.a suaintençãonãoé tornarPascale
Montaignemais\'ivos,massimMalrauxeGidemaismortos.
Quando,enfim,ascontradiçõesinternasdavidaedaobrator'
naremambasinutilizáveis.quandoa mensagem,emsuapro-
fundidadeindecifrável.nostiverensinadoestasverdadescapi-
tais:"o homemnãoé bomnemmau","hámuitosofrimento
numavidahumana"."o gênioésóquestãodeumalongapa-
ciência"- entãoofimúltimodessaculináriafúnebre'seráatin-
gido,e o leitor,repousandoseulivro,poderáexclamar,com
aalmatranqüila:"Tudoissonãopassadeliteratura",
Masumavezque,paranqs,umescritoéumaempreita'
da.uma\'ezqueos escritoresestàovivos.antesdemorre-
rem,umavezquepensamosserprecisoacertaremnossosli-
vros,eque,mesmoquemaistardeosséculosnoscontradigam.
issonãoé motivoparanosrefutaremporantecipação,uma
vezqueacreditamosqueoescritor.deveengajar-seinteiramen-
tenassuasobras,e nãocomoumapassividadeabjeta,colo-
candoemprimeiroplanoosseusvícios.assuasdesventuras
eassuasfraquezas.massimcomoumavontadedecidida.co-
moumaescolha.comessetotalempenhoemviverqueconsti-
tuicadaumdenós- entãoconvé,mretomaresteproblema
desdeo inícioe nosperguntarmos.pornossavez,porqu('se
escl~eve?
(H'" I:: "SCH""EI{? 31
NOTAS
Somenteo fraca,:so.interrompendocomoumapar~deasélieinfinita
elosseusprojetos.o de\'olvea si mesmo.emsuapureza.O mundopt!r-
maneceinessencial.mascontinuapresente:agora.comopretextopa.
ra a derrota.A finalidadedacoisaédevol\'ero homema si mesmo.
barrando-Iheocaminho.Nãosetrata.aliás,deintroduzirarbitrariamen.
teaderrotae aruínanocursodomundo,masantesdesóterolhospa.
ra elas.A empresahumanatemduasfaces:é aomesmotempoexito
e frncasso.Parapensá-Ia.o esquemadialéticoé insuficiente:é preciso
tomaraindamaisflexívelo nossovocabulárioeasestruturasdanos,
sa razão,Tentareiqualquerdia descre\'eressaestranharealidade.11
História.quenãoénemobjeti\'a.nemjamaisabsolutamentesubjeti\'a.
emquea dialéticaé contestada.penetrada,corroídaporumaespécie
deantidialética.quenoentantoseguesendodialética.Masessatarefa
é dofilósofo:normalmentenãoseconsideramasduasfacesdeJano:
o homemde ação\'e uma e o poetaveaoutra. Quandoos instrumen.
tosestàoquebrados.foradeuso.osplanosfrustrados.osesforçosim\.
teis.o mundoaparececomumfrescorinfantile terrí\'el,sempontos
deapoio.semcaminhos.Eletemaío máximoderealidadeporqueéêS'
magaelorparao homem,e.comoa açãodequalquermodogeneraliza,
a derrotaconfereàscoisassuarealidadeindi\'idual.Mas.porumain,
\'ersãoprevista,o fracassoconsideradocomofimderradeiroé aomes'
motempocontestaçãoe apropriaçãodesseuniverso.ContestaçàopOl"
queo homemmiemaisdoqueaquiloqueo esmaga;elenãocontesta
maisascoisasemseu"poucoderealidade",comoo engenheiroouo
capitão.mas.aocontrário.emseuexcessoderealidade.exatamentepor
suacondiçãode\'encido;o homeméoremorsodomundo.Apropriaçào
pOI'queomundo,deixandodeserinstrumentodoêxito.torna.seinsu'Ú,
mentodofracasso,Ei.lopercorridoporumélobscurafinalidade:onum.
dopassaasen'irporseucoeficientedead\'ersidade:tantomaishuma.
noquantomaishostilaohomem,Ofracassosetransformaemsah'açào.
1'\ãoquenosdêacessoaalgumplanodoalém:pOl'si mesmo,eleosci.
Iaesemetamorfoseia,Porexemplo.a linguagempoéticasurgedasruí,
nasdaprosa.Seé \'erdadequea palawaé umatraiçãoé quea comu.
nicaçãoéimpossí\'el.entàocada\'ocábulo.porsi só.retomasuaindÍ\;.
dualidade.torna-seihstrumentodanossaderrotaereceptadordoinco-
municá\'el.~ãoqueexistaou/ra('riisaacomunicar:é que.tendomaio'
gradoa comunicaçãodaprosa.é o própriosentidoelapala\'l"aque:;l\
tornao puroincomunicá\'el.Assim,o fracassodacomunicaçãosetor-
nasugestãodo incomunicá\'el:e o projetodeutilizaraspalavras,con.
trariado.dálugarà puraintuiçãod'?sinteressadadafala,Assim,,'olta.
mosaencontraradescliçãoensaiadanaapresentaçãodestaobra.,masago.
ra soba perspecti\'amaisgeralda valorizaçãoabsolutado fracasso.
1Ao menosemgeral.A grandezaeoerrodeKleeresidemnasuatenta-
tivadefazerumapinturaquesejaaomesmotemposignoeobjeto.
~Digo"criar".e não"imitar".o quebastaparareduzira nadatodo()
patéticodosr.CharlesEstienne.queevidentementl'nàocompreendeu
nadadomeupropósitoeteimaematacarassombra,:.
:!É o exemplocitadoporBatailleemL '('xprl'i('l/(c;II/('/,;C/(/,('[A ('.I'pc/'i';/I'
cia;nferio/'].
~Casosequeiraconheceraorigemdessaatitudeemrelaçãoàlinguagem.
dareiaquialgumasbrevesindicações.Originalmentea poesiacriaoII/i-
/0dohomem.enquantoo prosadortraçaoseu/'('/m/o,1'\arealidade.o
ato hUmano.comandadopelasnecessidades.solicitadopelol1til.l'.
emcertosentido,UI11II/eio.Comotal,passadespercebido,e éo resulta.
doqueconta:quandoestendoa mãoparaapanharacaneta.tenhoapl'
nasumaconsciênciafugidiaeobscuradomeugesto:oque\'ejoéaca-
neta.Assim,ohomeméalienadopelosseusfins. A poesiain\'el'teare.
lação:o mundoeascoisaspassamparao inessencial.con\'ertem-se
empretextoparaoato.quesetornao seuprópriofim.O \'asoexiste
paraqueajo\'emfaçao gestograciosodeenchê.lo:a guermdeTróia,
paraqueHeitoreAquilestravemessecombateheróico,A ação.desli-
gadadosseusfins.que\'ãoseatenuando.torna-seproezaoudança.
Contudo.porindiferentequesejaaosucessoeloempreendimento.oPOl"
ta.antesdo ~éculoXIX. mantém.seemacordocoma sociedadeem
seuconjunto;elenàousaa linguagemcoma finalidade\'isadapelapro-
sa.masdepositanelaa mesmaconfiançadoprosador.
Apósoad\'entodasociedadeburguesa.opoetafazfrentecomum
como prosadore a declarainsuportável.Paraele.trata-seaindade
criaro mitodohomem.maspassadamagiabrancaparaamagiane-
gra.O homemcontinuasendoapresentadocomoo fimabsoluto.porém
alcançandoêxitonoseuempreendimento.eleseéltolanumacoletÍ\'icla.
eleutilitária.Aquiloquenoseuatoestáemsegundoplano.e quepcr.
mitinia passagemaomito.mi.oé.portanto.o suce,:so.maso fracasso,
Trata-se da "Aprt'scntação de L!'s TcII/p.< .\Iod('J'//c's".'lu,' abre o \'olul11<'Si/I/ti I:
'io/l5. 11. onde originariamente foi incluído o presente ensaio. G\, E,I
32 ()I'!-; f.:,\ I.IT"'~,\T{ 't~.-\'
que me pareceser a atitudeoriginal da poesiacontemporânea.i\ote.
se tambémqueessaescolhaconfereao poetauma funçãomuitopreci.
sa na coletividade:numasociedademuito integradaou religiosa,o fra-
cassoé mascaradopeloEstadoou resgatadopelaReligião: numasocie.
dade menosintegradae laica. como sào as nossasdemocracias.cabe
à poesiaresgatá-Ia.
A poesiaé um quemperdeganha.E o poetaautênticoescolhe
perder a ponto de morrer para ganhar. Repito que se trata da poesia
contemporànea;a históriaapresentaoutrasformasdepoesia.i',.Ieuobje.
tivo nãoé mostraros vínculosentreessasoutrasfOI'masea nossa.Por.
tanto, se se desejai'ealmentefalar do engajamentodo poeta.digamos
que ele é o homemquese empenhaem perder, É o sentidoprofundo
desseazar,dessamaldiçãoqueelesemprereivindicae quesempreatri-
bui a uma intervençãodo exterior,quandona verdadeé a suaescolha
mais profunda- nãoa conseqüência,masa própria fonteda sua poe.
sia. Ele tem certezado fracassototal da empresahumanae dá umjei.
to de malograrnasuaprópria\'ida. a fim de testemunhar.por sua der.
rotaparticular,aderrotahumanaemgeral.Ele contesta,pois.como\'e..
remos,assimcomofaz o prosador,Mas a contestaçãoda prosase fa7.
em nomede um êxito maior.e a da poesiaem nomeda derrotaoculta
que todavitória traz consigo.
5 É claro queem todapoesiaestápresenteumacertaformade prosa.is-
to é, de êxito; e reciprocamente,a prosa mais seca encerra sempre
um poucode poesia,isto é, certa formade fracasso:nenhumprosador.
mesmoo maislúcido,entendeplcl/Gmclltco quequerdizer;oudizde-
mais,ounãodiz o suficiente,cadafraseé um desafio,um riscoassumi-
do; quantomais se vacila, mais a palavrase singulariza:ninguém,co.
mo mostrouValéry, co"nseguecompreenderuma palavraaté o fundo.
Assim, cadapalavraé empregadasimultaneamentepor seusentidoela.
, ro e social e por certasressonânciasobscuras;eu quasediria: por sua
fisionomia.É exatamentea isso que tambémo leitor é sensível.E já
nãoestâmosmaisno planoda comunicaçãoconcertada,masno'dagra-
ça e do acaso;os silênciosda prosasão poéticosporquemarcamseus
limites, e é por umaquestãode clareza queescolhi os casosextremos
da pura prosae da poesiapura. Não se deveriaconcluir, porém.que
se podepassarda poesiaà prosaporumasériecontínuadeformasin.
. termediárias,Se o prosadorcultiva demasiadamenteas palavras.o ri.
dos "prosa" se rompee caímosnumaalgaraviaincompreensível.Se o
poetanarra, explicaou ensina,a poesiase tornaprosaica;ele perdeua
partida.Trata-sedeestruturascomplexas,impurasmasbemdelimitadas.
I
t
11
Por que
escrever?
Cadaumtemsuasrazões:paraeste,aarteéumafu.
ga;paraaquele,.umamaneiradeconquistar.Maspode-sefu'-
gir paraumclaustro,paraa loucura,paraa morte;pode-se
conquistarpelasarmas.Porquejustamenteescrever,empreen-
derporeSC11tosuasevasõese suasconquistas?É queexiste.:
portrásdosdiversosdesígniosdosautores,umaescolhamais
profundaemaisimediata,queé comumatodos.Tentaremos
elucidaressaescolhaeveremossenãoéemnomedaprópria
opçãodeescreverquesedeveexigiroengajamentodosescri-"
tores.
Cadaumadenossaspercepçõeséacompanhadada.cons-'
ciênciadequearealidadehumanaé"desvendante";istoquer
dizerqueatravésdela"há"o ser,ouaindaqueohomeméo
meiopeloqualascoisassemanifestam;é nossapresençano
34 lJ{"E E ,\ J.lTI';I{'\TI'I{,\' POR lH'1-: ESL'RE\'EI{! 35
mundoquemultiplicaasrelações,somosnósquecolocamos
essaárvoreemrelaçãocomaquelepedaçodecéu;graçasa
~ósessaestrela,mortahámilênios,essaluanovaeesserio
escurosedesvendamnaunidadedeumapaisagem;éaveloci-
dadedonossoautomóvel,donossoaviãoqueorganizaasgr.an-
desmassasterrestres;a cadaumdosnossosatos,o mundo
nosrevelaumafacenova.Massesabemosquesomososele-
tectadoresdoser,sabemostambémquenãosomososseus
produtores.Essapaisagem,sedelanosdesviarmos,seestag-
nará,longedosolhos,emsuapermanênciaobscura.Pelome-
noselasóseestagnará:nãoháninguémsuficientementelou-
coparaacreditarqueeladesaparecerá.Nóséquedesaparece.
remos,eaterrapermaneceráemsualetargiaatéqueumaou-
. traconsciênciavenhadespertá-Ia.Assim,ànossacertezainte.
riordesermos"desvendantes",sejuntaaqueladesermosines-
senciaisemrelaçãoàcoisadesvendada.
Umdosprincipaismotivosdacriaçãoartísticaé certa-
mentea necessidadedenossentirmosessenciaisemrelação
aomundo.Esteaspectodoscamposoudomar,estear de
umrosto,pormimdesvendados,seosfixonumatelaounum
texto,estreitandoasrelações,introduzindoordemondenào
havial1enhuma,impondoa unidadedeespíritoà diversidade
dacoisa,tenhoaconsciênciadeproduzi-Ios,valedizer,sinto-
meessencialemrelaçãoà minhacriação.Masdestavezé o
objetocriadoquemeescapa:nãopossodesvendareproduzir.
aomesmotempo.A criàçãopassaparao inessencialemrela-
çãoàatividadecriadora.Primeiramente,mesmoqueapareça
.aosoutroscomodefinitivo,o objetocriadonospareceestar
r sempreemsuspenso:podemossemprealterarestalinha,es-
tecolorido,estapalavra;assimo objetojamaisseimpõe.Um
. pintoraprendizperguntouaoseumestre:"Quandodevocon-
siderarconcluídoomeuquadro?"Eomestrerespondeu:"Quan-
dovocêpuderolhá-Iacomsurpresa,dizendo:Fuieuquefizisso!"
É omesmoquedizer:nunca.Poisissoequivaleriaacon-
. sideraraprópriaobracomosolhosdeoutrem,edesvendar
. aquiloquesecriou.Masé evidentequetemostantomenos
consciênciadacoisaproduzidaquantomaioré a consciência
danossaatividadeprodutora.Quandosetratadeumapeça
decerâmicaoudeumaestruturademadeirae nósasfabrica-
mossegundonormastradicionais,comferramentascujouso
estejacodificado,éo famoso"man",o sujeitoindeterminado
deHeidegger,quetrabalhapornossasmãos.Nessecaso,ore-
sultadopodeparecer-nossuficientementeexteriorparaconser.
vara suaobjetividadeaosnossosolhos.Massenósmesmos
produzirmosasregrasdaprodução,asmedidaseoscritérios,
e seo nossoimpulsocriadorvierdomaisfundodocoraçào,
entãonuncaencontraremosemnossaobranadaalémdenós
mesmos:nóséqueinventamosasleissegundoasquaisajul~
gamos;é a nossahistória,o nossoamor,a nossaalegriaque.
reconhecemosnela;aindaqueacontemplemossemtocá-Ia,ja-
maisrecebemosdelaessaalegriaouesseamor:nósoscoloca-
mosali;osresultadosqueobtivemosnatelaounopapelnun-
canosparecemobjetivos;temosdemasiadafamiliaridadecom'
osprocessosqueosoriginaram.Essesprocessospermanecem,'
umachadosubjetivo:sãonósmesmos,sãonossainspiração,!
nossaastúcia,equandotratamosdepercebernossaobraacria-o
mosoutravez,repetimosmentalmenteasoperaçõesqueapro-i
duziram,ecadaumdosseusaspectosaparececomoumresul-
tado.Assim,napercepção,o objetosedácomoo essenciale
o sujeitocomoo inessencial;esteprocuraa essencialidade
nacriaçãoeaobtém,masentãoéoobjetoquesetornaoines-
sencia!.
Emnenhumaoutraatividadeessadialéticaé tàomani-
festacomonaartedeescrever.Poisoobjetoliterárioéumes-
tranhopião,quesóexisteemmovimento.Parafazê-Iasurgir
é necessárioumatoconcretoquesechamaleitura,e ele.só
duraenquantoessaleituradurar.Foradaí,háapenastraços,
negrossobreopapel.Ora,oescritornãopodeleroqueescre-
ve,aopassoqueo sapateiropodecalçarossapatosqueaca.
boudefazer,casoesteslhesirvam,eoarquitetopodehabitaf
acasaqueconstruiu.Lerimplicaprever,esperar.Preverofim'!
dafrase,a fraseseguinte,a outrapágina;esperarqueelasi
confirmemouinfirmemessasprevisões;aleiturasecompõeI
deumaquantidadedehipóteses,desonhosseguidosdedes-
I
'
\pertar,deesperançase decepções;os leitoresestãosempre
adiantedafrasequelêem,numfuturoapenasprovável,que
empartesedesmoronae emparteseconsolidaàmedidaque
aleituraprogride,umfuturoquerecuadeumapáginaaoutra
36 \)1".; J: .\ I.ITI';H.\TI'I~,\: I'OI{ lH"E ESCRI';\'EI{: 37
, 'eformaohorizontemóveldoobjetolitcrtlrio.Semespera,sem
futuro,semignorância,nãoháobjetividade.Ora,aoperação
deescrevercomportaumaquase-leituraimplícitaquetornaim-
possívela verdadeiraleitura,Quandoaspalavrasseformam
sobapena,oautorasvê,semdúvida,masnãodamesmama-
neiraqueo leitor,poisjá asconheceantesdeescrever;seu
olharnãotema funçãodedespertarcomlevetoqueaspala-
vrasadormecidasqueaguardamserlidas,massimdecontro-
laro traçadodossignos;é umamissãopuramenteregulado-
ra,emsuma,eaquiavistanãoinformanada,anãoserpeque-
noserrosmanuais.Oescritornãoprevênemconjectura:ele
projeta.Acontecemuitélsvezesquefiqueà esperaelesi mes-
mo;queespere,comosediz,ainspiração.Masnãoseficaà
esperadesimesmocomoseficaàesperadosoutros;elehesi-
ta,sabequeo futuroaindanão,estáfeitoe queé elemesmo
quemofará;seaindanãosabeoqueaconteceráaoseuherói,
é quesimplesmenteaindanãopensounoassunto,aindanào
, .decidiu;paraele,o futuroé umapáginaembranco,enquan-
too futurodoleitorsãoessasduzentaspáginassobrecarrega-
dasdepalavrasqueo separamdofinal.Assim,paraonde
querquesevolte,o escritorsóencontrao seusaber,a sua
vontade,osseusprojetos,emsuma,a si mesmo;nadaatinge, alémdasuaprópriasubjetividade;o objetoporelecriadoes-
táforadoseualcance,elenãoocriapara si,Quandoserelê.
já étardedemais;a seusolhos,suafrasejamaisseráinteira-
. -menteumacoisa.Elechegaatéoslimitesdosubjetivomas
nãoosultrapassa;apreciaoefeitodeumtraço,deumamáxi.
ma,deumadjetivobemcolocado;mastrata-sedoefeitoque
produzirãonosoutros;elepodeavaliá-Io,masnãosenti-Jo.
Proustnuncadescobriua homossexualidadedeCharlus,pois
já sehaviadecididoporelaantesmesmodecomeçara escre.
vero seulivro.E seaobraganhaumdia,aosolhosdoautor.
umafeiçãoobjetiva,é queosanospassaram,elea esqueceu.
nãoentramaisnelaesemdúvidanãoseriamaiscapazdees.
crevê-Ia.É ocasodeRousseaurelendoDo cOlltmtosocialno
fimdavida.
Nâoéverdade,pois,queo escritorescrevaparasi mes.
mo:seriao piorfracasso;projetarasprópriasemoçõesnopa.
pelresultaria,quandomuito..emdar-Ihesumprolongamento
enlanguescido.Oatocriadoréapenasummomentoincomple-
toe abstratodaproduçãodeumaobra;seo escritorexistis-
sesozinho.poderiaescreverquantoquisesse,eaobraenquan-
toobjetojamaisviriaà luz:sólherestariaabandonara pena
oucairnodesespero.Masa operaçãodeescreverimplicaa
deler,comoseucorrelativodialético.eessesdoisatoscone.
xosnecessitamdedoisagentesdistintos.É oesforçoconjuga-I
dodoautorcomo leitorquefarásurgiresseobjetoconcretol
e imaginárioqueé aobradoespírito.Sóexistearteporepai
raoutrem.
A leitura,defato,parecesera síntesedapercepçãoe'
dacriaçàoI;elacolocaaomesmotempoaessencialidadedo
sujeitoea doobjeto.O objetoé essencialporqueérigorosa--
mentetranscendente,porqueimpõeassuasestruturaspróprias
eporquesedeveesperá-Ioeobservá-ia;masosujeitotambém
éessencialporqueénecessário,nãosóparadesvendaroobje-
to(istoé.parafazercomquehajaumobjeto),mastambém
paraqueesseobjetosejaemtermosabsolutos(istoé, para
produzi-lo).Emsuma,o leitortemconsciênciadedesvendar
eaomesmotempodecriar;dedesvendarcriando.decriarp'e-
10desvendamento.Nãosedeveachar,comefeito,quealeitu-
rasejaumaoperaçãomecânica,queoleitorsejaimpressiona-
dopelossignoscomoaplacafotográficapelaluz.Seestádis:
traído,cansado,confuso,desatento,a maiorpartedasrela-
çõeslheescaparão,elenãoconseguiráfazer"pegar".oobje-
to(nosentidoemquesedizqueo fogo"pegou"ou"nãope-...
gou");tirarádasombrafrasesqueparecerãosurgiraoacaso:'
Seestiveremsuamelhorforma,projetaráparaalémdaspala-'-\
vrasumaformasintéticadaqualcadafraseseráapenasuma,'.
funçãoparcial:.o"tema",o"assunto"ouo "sentido".Assim,./
desdeo início,o sentidonãoestámaiscontidonaspalavras.
poiséele.aocontrário,quepermitecompreenderasignifica-
çãodecadaumadelas;eoobjetoliterário,aindaqueserealV
zeatravésda linguagem,nuncaé dadolia linguagem;aocon...
trário,eleé,pornatureza.silêncioe contestaçãodafala.DQ
mesmomodo,ascemmilpalavrasalinhadasnumlivropodem
serlidasumaa umasemqueiss.ofaç~surgiro sentidoda
obra;o sentidonãoéa somadaspalavrasmassuatotalidade
orgânica.Nadaaconteceráseo leitornãosecolocar,logode
38 ()I'!,: f,; t\ I.ITJo:I~,\TI'I~..\.' I'()H ()('Jo: Jo:~CI~Jo:\'lm? 39
rsaídaequasesemguias,à alturadessesilêncio.Senãoo in-
.ventar,emsuma,senãointroduzire mantiverneleaspala-
vraseasfrasesquedesperta.E sealguémmedisserquese-
riapreferívelchamaressaoperaçãodereinvençãooudesco-
berta,respondereique,emprimeirolugar,umatalreinvenção
seriaumatotãonovoetãooriginalquantoainvençãoprimei-
ra.E sobretudo,quandoumobjetonuncaexistiuantes,não
é possívelreinventá-lonemdescobri-Jo.Poisseo silênciode
quefaloé,defato,ofimvisadopeloautor,pelomenosesteja-
maisoconheceu;seusilêncioé subjetivoe anteriorà lingua-
gem,éaausênciadepalavras,éosilêncioindiferenciadoevi-
vidodainspiração,quea palavraparticularizaráemseguida
\
- aopassoqueo silêncioproduzidopeloleitoré umobjeto.
E dentrodessemesmoobjetoaindaháoutrossilêncios:aqui-
loqueo autornãodiz.Trata-sedeintençõestãoparticulares
quenãopoderiammantersentidoforadoobjetoquealeitura
Ifazsurgir;sãoelas,porém,queconferemdensidadeao obje-. toe lneatribuemseusemblantesingular.É poucodizerque
nãoestãoexpressas:elassão,justamente,o inexprimíveLE
porissonãoasencontramosemnenhummomentodefinido
daleitura;estãoemtodolugareemlugarnenhum:aqualida-
dedemaravilhosodeLegrandMeaulnes,o babilonismode
f!.rmallCe,o grauderealismoe verdadedamitologiadeKaf-
i. ka- nadadissojamaisédado;é precisoqueo leitorinvente
tudo,numperpétuoir alémdacoisaescrita.Semdúvida,oau.
',!toroguia,massomenteisso;asbalizasquecolocouestãose-
iIparadaspor espaçosvazios,é precisointerligá-Ias,é preciso
i!iralémdelas.Emresumo,a leituraé criaçãodirigida.Defa-
. to,porumladoo objetoliterár:ionão.temoutrasubstânciaa
nãosera subjetividadedoleitor:a esp'eradeRaskolnikoffé
,aminhaespera,queeuemprestoaele;semessaimpaciência
Idoleitornãorestariamsenãosignosesmaecidos;seuódiocon-
:traojuizqueoestáinterrogandoéomeuódio,solicitado,cap-
:tadopelossignos,e o própriojuiz nãoexistiriasemo ódio
quesintoporeleatravésdeR~skolnikoff;é esseódioqueo
anima,éasuaprópriacarne.Mas,poroutrolado,aspalavras
estãoali como'armadilhas,parasuscitarnossossentimentos
e fazê-losrevertersobrenós;cadapalavraé umcaminhode
\\ transcendência,dáforma'e nomeàsnossasafeições;elaas
atribuiaumapersonagemimagináriaqueseincumbedevi.
vê-Iaspornósequetemcomoúnicasubstânciaessaspaixões
emprestadas;apalavralheconfereobjetos,perspectivas,um'\:
horizonte.Assim,parao leitortudoestáporfazere tudojá I
estáfeito;aobrasóexistenaexatamedidadassuascapacida-;
des;enquantolêecria,sabequepoderiair sempremaisacÚan-'
teemsualeitura,criarmaisprofundamente;comissoa obra.
lhepareceinesgotáveleopaca,comoascoisas.Essaprodução.
absolutadequalidade,sque,à medidaqueemanamdanossa
subjetividade,seimobilizamdiantedosnossosolhoscomoob.
jetividadesimpermeáveis,nósaaproximaríamosdebomgra-
dodaquela"intuiçãoracional"queKantreservavaà Razão
divina.
Umavezqueacriaçãosópod.eencontrarsuarealização
finalnaleitura,umavezqueo artistadeveconfiara outrem
atarefade.completaraquiloqueiniciou,umavezqueés6atra-
vésdaconsciênciadoleitorqueele.podeperceber-secomoes-
sencialàsuaobra,todaobraliteráriaéumapelo.Escreveré;
apelaraoleitorparaqueestefaçapassaràexistênciaobjeti.,1
vao desvendamentoqueempreendipormeiodalinguagem.L .' .,
Casosepergunteaqueapelaoescritor,arespo$taésimples. ' .......
Comonuncaseencontranolivroa razãosuficienteparaque',
o objetoestéticoapareça,masapenasestímulosàsuaprodu- "~
ção;comotampoucohárazãosuficientenoespíritodoautor, ,: '"
ecomoasuasubjetividade,daqualelenãopodeescapar,não '~ I
consegueesclarecerapassagemparaaobjetividade,aapari-i "~
çãodaobradearteéumacontecimentonovo,quenãopode-ji' ,t)
riaexplicar-sepelosdadosanteriores.E comoessacriaçãodiri-l
gidaé umcomeçoabsoluto,elaé operadapelaliberdadedo"
leitor,naquiloqueessaliberdadetemdemaispuro.Assim,o '
escritorapela.àliberdadedoleitorparaqueestacolaborena
produçãodasuaobra.Haveráquemdigaquetodasasferra-
mentassedirigemànossaliberdade,poissãoosinstrumentos
deumaaçãopossívele,sobesseaspecto,aobradeartenão
éespecífica.E éverdadequeaferramentaéoesboçoimóvel
deumaoperação.Maselasemantémnoníveldoimperativ9
hipotético:possoutilizarummartelotantoparapregaruma.
caixacomoparadarumamarteladanovizinho.Considerada
emsimesma,aferramentanãoéumapeloàminhaliberdade,
I:-..
"}\
40 ()I'I': I:; ..\ I.ITEIL\TI'I\,\ 1'()1~lWE ESl..'HE"I,:W' 41
nãomecolocaemfacedela,visaantesa servi-Ia,substituin-
do a livre invençãodosmeiospor umasucessãoreguladade
.condutastradicionais.O livronãoserveàminhaliberdade:ele
a requi,sita.Comefeito,nãoseriapossíveldirigir-sea umali-
berdadéenquantotalpelacoerção,pelafascinaçãooupelassú-
'plicas.Paraatingi.la,háapenasummétodo:primeiroreconhé-
cê-Ia,depoisconfiarnela;por fim,exigirdelaumato,emno-
'me delaprópria,istoé, emnomedessaconfiançaquedeposi-
tamosnela.Assim,o livronãoé, comoa ferramenta,ummeio
queviseaalgumfim: elese propõecomofim paraa liberda-
de do leitor. E a expressãokantiana"finalidadesem fim"
mepareceinteiramenteimprópriaparadesignara obradear-
te. Tal expressãoimplica,de fato,queo objetoestéticoapre-
senteapenasaaparênciadeumafinalidadee se limitea soli-
citar o jogo livre, masregulado,da imaginação.É esquecer
quea imaginaçãodo espectãCiortemnãoapenasumafunção
reguladoramasconstitutiva;elanãoapenasrepresenta:écha-
madaa recomporoobjetobeloparaalémdostraçosdeixados
peloartista.A imaginação,comoas demaisfunçõesdoespíri-
to, nãop9deusufruirdesimesma;estásempredoladodefo-
ra, sempreengajadanumempreendimento.Haveriafinalida-
desemfimsealgumobjetooferecesseumaordenaçãotãore-
guladaquenosconvidassea admitirparaeleum fim,quando
nósprópriosfõssemosincapazesdelheatribuiralgumfim.De-
finindoo belodessamaneira,seriapossível- e é exatamen-
teoobjetivodeKant - assimilara belezadaarteàbelezana-
tural,poisumaflor,porexemplo,mostratantasimetria,co-
restãoharmoniosas,curvastãoregulares,queimediatamen.
, te temosa tentaçãodeprocurarumaexplicaçãofinalistapa-
ratodasessaspropriedades,vendonelasumconjuntodemeios
, dispostoscomvistasa umafinalidadedesconhecida.Masé
Ii justamenteaí queestáo erro:a belezada naturezanãoé em
, nadacomparávelàdaarte.A obradeartenãotemlimafinali-
dade;nissoestamosdeacordocomKant. Mas é porqueelaé
umafinalidadeemsi mesma.A fórmulakantiananãoexplica
oapeloqueressoanoãmagodecadaquadro,decadaestátua,
de cadalivro.Kant crê queprimeiroa obraexistedefato,e
1
1 sódepoisé vista.No entanto,a obrasó existequandoa vc-
: mos;elaé primeiramentepuroapelo,puraexigênciade exis.
Lir.A obranàoé lIminstrumentocujaexistênciaé manifesta
e cujofim é indeterminado:elaseapresentacomoumatare.
fa a cumprir,coloca-sedeimediatoaoníveldo imperativoca-'
tegórico.Vocêé perfeitamentelivreparadeixaresselivroso-
brea mesa.Mas umavezqueoabra,vocêassumearesponsa-
bilidade.Poisa liberdadenão se provanafruiçãodolivrefun.'
cionamentosubjetivo,massimnumatocriadorsolicitadopor
um imperativo.Esse fim absoluto,esseimpera~iYQ.tr:<m~ç~n-/
dent~,porémconsentido,assumidopelapróprialiberdade,é ';
aquiloaquesechamavalor.A obradearteévalorporqueéapelo. ;'
Serecorroa meuleitorparaqueelelevea bomtermo
a tarefaqueiniciei,é evidentequeo considerocomoliberda-
depura,puropodercriador,atividadeincondicionada;emca.\.
so algumpoderiadirigir-meà suapassividade,isto é, tentar
afetá-Io,comunicando-lhedeimediatoemoçõesdemedo,de
desejooudecólera.Semdúvidaháautoresquesepreocupam.
apenasemprovocaressasemoções,poiselassãoprevisíveis,
governáveis,e elesdispõemde meioscomprovados,segura.
mentecapazesdesuscitá-Ias.Mas é verdadetambémquesão
recriminadospor isso,comoocorreucomEurípedesjánaAn-
tiguidade,porquecolocavacriançasemcena.Na paixão,a li-
berdadeéalienada;abruptamenteengajadaemempreendimen-
tos parciais,ela perdede vistaa sua tarefa,queé produzir
umfimabsoluto.E olivronàoémaisqueummeiodealimen-
taroódioouodesejo.Oescritornàodeveprocurartranslor.I
/lar, senãoentraráemcontradiçãoconsigomesmo;sequerI
exigir, é preciso que apenasproponha a tarefa a cumprir. Daí i
o caráterde pura apresentaçãoquepar~ceessencialàobrade"
arte:o leitordevedispordecertorecuoestético.É oqueGau':.-'
tier tolamenteconfundiucom"artepelaarte";e os parnasia.'/
noscoma impassibilidadedoartista.Trata.seapenasdeumaL
precaução,eGenetachama,maisacertadamente,deumacor.
tesiado autorparacomo leitor.Mas issonãoquerdizerque
o escritorfaçaapeloanãoseiqueliberdadeabstrataeconcei.
tua!.De fato,é comsentimentosqueserecriao objetoestéti.
co;se eleé comovente,sóapareceráatravésdãsnossaslágri-
mas;seécõmico,seráreconhecidopeloriso.Acontecequees.
sessentimentossãode umaespéciepeculiar:têma liberda.
:le comoorigem;sãodadospor empréstimo.Toda crençaé
.'
42 (~{'E ,::..\ LlTEHATI'IU:'
livrementeconsentida,mesmoaquelaquedepositonanarrati-
{va.Trata.sedeumaPaixão,nosentidocristéioelapalavra,is-
Ito é, umaliberdadequesecolocaresolutamenteemestado
, depassividade,a fimdeobter,por essesacrifício,umcerto
, efeitotranscendente.Oleitorsefazcrédulo,desceatéacl:edu-
!idadee esta,emboraacabepor sefecharsobreelecomoum
sonho,éacompanhadaa cadainstantepelaconsciênciadeser
livre.Já sedesejouaprisionarosautoresnestedilema:"Ou
seacreditanasuahistória,e entãoelaé intolerável,ounão
seacredita,eentãoelaéridícula".Masoargumentoéabsur-
do,poiséprópriodaconsciênciaestéticasercrençaporenga-
jamento,porjuramento,crençacontínuapelafidelidadea si
mesmaeaoautor,opçãodeacreditar,perpetuamenterenova-
da.A cadainstantepossodespertareseidisso;masnãoode-
sejo:a leituraéumsonholivre.Demodoquetodosossenti.
. mentosqueseagitamnocampodessacrençaimagináriasão
comomodulaçõesparticularesdaminhaliberdade;longede
absorvê-Iaouocultá-Ia,sãomeiosqueelaescolheuparasere-
velara si mesma.Raskolnikoff,comojá disse,nãopassaria
.deumasombrasema mescladerepulsaeamizadequesinto
porelee queo fazviver.Mas,porumainversãoqueé pró-
priadoobjetoimaginário,nãoésuacondutaqueprovocami.'
nhaindignaçãoouminhaestima,masminhaindignação,mi-
, nhaestimaquedãoconsistênciaeobjetividadeaosseuscom-
i. portamentos.Assim,asafeiçõesdoleitornuncasãodomina-
r daspeloobjetoe,comonenhumarealidadeexteriorpodecon-
"!dicioná.las,têmsuafontepermanentenaliberdade,istoé,to-
: 'dassãogenerosas- poischamodegenerosaumaafeiçãoque
:,:temaliberdadepororigemeporfim.Assim,aleituraéum
,exercíciodegenerosidade;e aquiloqueo escritorpedeaolei-
tornãoéaaplicaçãodeumaliberdadeabstrata,masadoação
de todaa suapessoa,comsuaspaixões,suasprevenções.
suassimpatias,seutemperamentosexual,suaescaladevaio-
. res.Som~nteessapessoaseentregarácomgenerosidade;a li-
berdadeaatravessadeladoaladoevemtransformarasmas-
sasmaisobscurasdasuasensibilidade.E comoa atividade
" sefezpassiva,paramelhorcriaro objeto,reciprocamentea
passividadesetornaato;o homemquelê seelevaaoplano
maisalto.Eisporquevemospessoasreconhecidamenteduras
J.'!~
.~
"I '. ,: i".
:~:,
.."4i
....
I.
.
.
..i
t~{J,.. ,',.,
:.i ~t
"
! ~~
,,.
'f'
i'
I'OI~QI'E ESCRE\'EH~ 43
verteremlágrimasdiantedorelatodeinfortúniosimaginários;:
porummomentoelassetornamaquiloqueseriamsenàoti. I
Ivessempassadoavidamascarandoapróprialiberdade. I
Assim,o autorescreveparasedirigirà liberdadedos
leitores,e asolicitaparafazerexistirasuaobra.Masnãose
limitaa issoeexigetambémqueelesretribuamessaconfian-
çanelesdepositada,quereconheçama liberdadecriadorado
autore asolicitem,porsuavez,atravésdeumapelosimétri-
coe inverso.Aquiapareceentãoo outroparadoxodialético"
Idaleitura:quantomaisexperimentamosa nossaliberdade,:
maisreconhecemosa dooutro;quantomaiseleexigedenós, !
maisexigimosdele. -~
Quandomeencantocomumapaisagem,sei muitobem
quenãosoueuquea estoucriando,masseitambémque,sem
mim,as relaçõesquese estabelecemdiantedos meusolhos
entreasárvores,a folhagem,a terra,a relva,emabsolutonão
existiriam.Essaaparênciadefinalidade'quedescubronavarie.~
dadedascores,naharmoniadasformas,nosmovimentospro-.
vocadospelovento,seibemquenãopossoexplicá-Ia.Elaexis.
te,porém,estáaí,diantedosmeusolhos;afinal,nãopossofa-
zer com'quehajao sera menosqueele já seja;porém,mes.
moqueeucreiaemDeus,nãopossoestabelecernenhuma
passagem,anàoserpuramenteverbal,entreauniversalsoli-
citudedivinae o espetáculoparticularqueestouconsideran-
do:dizerqueDeusfeza paisagemparameencantar,ouque
mefezdetalmodoqueapaisagemmeagrade,étomaruma
perguntaporresposta.O casamentoentreesse,azule essel
verde,foipremeditado?Comosaber?A idéiadeumaprovidên-J
ciauniversalnãopodegarantirnenhumaintençãosingular,so.
bretudono'casoemquestão,poiso verdedarelvaseexplica
porleisbiológicas,porconstantesespecíficas,porumdeter-
minismogeográfico,aopassoqueoazuldaáguaencontrasua
razãonaprofundidadedorio,nanaturezadosolo,narapidez
dacorrenteza.A combinaçãodascores,seédesejada,sópo;,
desê-loporacréscimo,éoencontrodeduassériescausais,is.
toé,àprimeiravista,resultadodoacaso.Namelhordashipó-,
teses,a finalidadecontinuaproblemática.Todasasrelações'
queestabelecemospermanecemhipóteses;nenhumfimnosé
propostoàmaneiradeumimperativo,jáquenenhumserevela
44 (H"E J:: :\ LlTER..\TI 'IU:'
'expressamentecomo tendosido desejadopor umcriador,I
;Em conseqüência.nossaliberdadejamaisésolicitadapelabele-
zanatural.Oumelhor:nesseconjuntodefolhagens.formase
movimentosháumaaparênciadeor.dem,portantoumailusão
deapelo,queparecesolicitaressaliberdade.masquelogo
sedesvanecesobo nossoolhar.Mal começamosa percorrer
comosolhosessaordenaçãoe o apelodesaparece:ficamos
sós,livresparaassociarestacoràquelaoutraouaumatercei-
ra,pararelacionara árvorecoma água,oua árvorecomo
'céu,ouaárvorecomo céue aágua.Minhaliberdadesetor-
'na capricho;à medidaqueestabeleçorelaçõesnovas,mais
meafastodailusóriaobjetividadequemesolicitava;sonl1oso-
brecertosmotivosvagamenteesboçadospelascoisas,areali-
dadenaturalnãoé maisqueumpretextoparadevaneios.Ou
então,porterlamentadoprofundamentequeaquelaordena-
ção,percebidaporuminstante,nãometenhasidooferecida
porninguém,e portantonãosejaverdadeira,podeacontecer
queeufixeomeusonho,queo transponhaparaumatela.pa-
raumtexto.Assim,interponho-meentrea finalidadesemfim
queaparecenosespetáculosnaturaise oolhardosoutrosho-
mens;transmito-aaeles;porestatransmissão,elasetornahu-
mana;aarteéaquiumacerimôniadodomesóodomopera
umametamorfose:existeaíqualquercoisacomo,a transrriis-
sãodetítulose poderesnomatronimato,emquea mãenão
detémosnomesmasé a intermediáriaindispensávelentreo
tioe o sobrinho.Umavezquecapteidepassagem'essailu.
são,umavezquea proponhoaosoutroshomens,e quejá a
pusemevidência,repensadaparaeles,estespodemexaminá-
Iacomconfiança:elasetornouintencional.Quantoa mim,é
claro,mantenho-menolimiteentreasubjetividadeeoobjeti-
vo,semjamaispodercontemplara ordenaçãoobjetivaque
transmito.
Oleitor,aocontrário,progridecomsegurança.Pormais
longequevá,o autorjá foimaislongeainda.Quaisquerque
sejamasrelaçõesqueestabeleçaentreas diferentespartes
dolivro- entreoscapítulosouentreaspalavras- o leitor
temumagarantia:é queessasrelaçõesforamexpressamente
desejadas.Elepodeaté,comodizDescartes,fingirqueexis-
te limaordemsecretaentrecertaspartesqueparecemnão
')1;-.:
!t...
"
I
::'
! r;
~~
.
fi
,'~I,(
i f.
~~~~
ir'
POR Ql:(': (,:SCJ{(.:\'lm:' 45
ternenhumarelaçãoentresi;ocriadoroprecedeunessadire'~çãoeasmaisbelasdesordenssãoefeitosdaarte,istoé,conti~:
nuamsendoordem.A leituraéindução,interpolação,extrapo.; ,
lação,e o fundamentodessasatividades.repousanavontade
\
: "~
doautor,domesmomodocomoseacredItou,pormuitotem- .
po,queofundamentodainduçãocientíficarepousavanavon-
tadedivina.Umaforçasuavenosacompanhaenossustenta:
daprimeiraatéaúltimapágina.Isso.nãoquerdizerquedecio
fraremossemdificuldadeasintençõesdoartista:comodisse-
mos,elassãoobjetodeconjecturas,e existeumaexperiência.
doleitor;masessasconjecturasseapóiamnagrandecerteza'~',
quetemosdequeasbelezasqueaparecemnolivronuncare-
sultamdeencontros.A árvoreeocéu,nanatureza,sósehar-
monizamporacaso;no romance,aocontrário,seos heróis
seacham11estatorre,nestaprisão,sepasseiamporestejardim,
trata-seaomesmotempodarestituiçãodesériescausaisinde-
pendentes(apersonagemestavaCOJl1certoestadodeãnimo
devidoa umasucessãodeeventospsicológicosesociais;por
outrolado.dirigia-separadeterminadolugareaconfiguração
dacidadea obrigavaa atravessarcertoparque)e daexpres-
sãodeumafinalidademaisprofunda.poisoparquesóganhou
existênciaparaseharmonizarcomdeterminadoestadodeâni.
mo,paraexprimi-Iopor meiodascoisasou destacá-Iopor
meiodeumvivocontraste;e o próprioestadodeânimofoi
concebidoemligaçãocoma paisagem.Aquia causalidadeé'
queé a aparênciae poderíamosdesigná-Iapor"causalidade
semcausa",e afinalidadeéqueéa realidadeprofunda.Mas
seposso,assim,subordinarcomtantasegurançaaordemdos
finsà ordemdascausas,équeafirmo,aoabriro livro,queé
daliberdadehumanaqueo objetoextraia suafonte.Sesus-
peitassequeoartistaescreveumovidopelapaixãoeemesta-
do de paixão,minhaconfiançadesapareceriade imediato.
poisdenadavaleriaterapoiadoa ordemdascausassobrea
ordemdosfins;estaúltimaseriasustentada.porsuavez,por
umacausalidadepsíquicae,finalmente,aobradeartereingres-
sarianacadeiadodeterminismo.Quandoleionãonego,éver-
dade,queo autorpossaestarapaixonado,oumesmoquete-
nhaconcebidoo primeiroesboçodasuaobrasobo império
dapaixão.Masasuadecisãodeescreversupõequeassuma\\,
46 (JI'E I~.\ LITERATI.'JC\:'
umdistanciamentoemrelaçãoàssuasafeições;empoucaspa-
lavras,quetenhatransformadoas suasemoçõesememoções
livres, comofaçocomas minhas,ao lê-lo,isto é, queesteja
ematitudedegenerosidade.Assima leituraéumpactodege-
nerosidadeentreo autore o leitor;'cadaum confiano outro.
contacomo outro,exigedo outrotantoquantoexigede si
mesmo.Essaconfiançajá é, emsi mesma,generosidade:nin-
guémpodeobrigaro autora crer queo leitorfaráusodasua
liberdade;ninguémpodeobrigaro leitora crer queo autor
fez usoda sua.É umadecisãolivre quecadaum delestoma
. independentemente.Estabelece-seentãoumvaivémdialético;
quandoleio,exijo;oqueleio,então,desdequeminhasexigên-
ciassejamsatisfeitas,meincitaa exigirmaisdo autor,o que
significa:exigirdoautorqueeleexija maisde mimmesmo.
Reciprocamente,a exigênciado autoré queeu leveao mais
, altograuasminhasexigências.Assimaminhaliberdade.ao
se manifestar,desvendaa liberdadedooutro.
Poucoimportaqueo objetoestéticosejao produtode
umaarte"realista"(ouquese pretendacomotal)oudeuma
arte"formal".De qualquermaneira,as relaçõesnaturaissão
invertidas:estaárvore,noprimeiroplanodeumquadrodeCé-
zanne,surgedeiníciocomoprodutodeumencadeamentocau-
sal.Mas a causalidadeé umailusão;permanecerá,semdúvi-
da, comoproposição,enquantofitarmoso quadro,masserá
sustentadaporumafinalidadeprofunda:seaárvorefoicoloca-
da ali é porqueo restodo quadroexigiaque se colocassem
noprimeiro planoestaformae estas cores. Assim, através
dacausalidadefenomênica,o nossoolharatingea finalidade,
comoaestruturaprofundadoobjetoe,paraalémdafinalida-
de,atingea liberdadehumanacomosuafontee fundamento
original.O realismodeVermeeré tãoacentuadoquese pode-
riacrer,numprimeiromomento,queé fotográfico.Mas quan-
doseconsiderao esplendordesuamatéria,a glóriaróseae
aveludadadesuasparedezinhasde tijolo, a densidadeazul
deumramode madressilva,a obscuridadeenvernizadade
seusvestíbulos,acarnealaranjadadeseusrostosbrunidosco-
moa pedradaspiasdeáguabenta,sente-sederepente,pelo
prazerquese experimenta,que a finalidadenão estátanto
nasformasou nascorescomoemsuaimaginaçãomaterial:é
i:
'I!.;,:.
;
,
'
Ii, ",.,;
.:}
:'lrh
:~"
:,1\1'
;11.
'o!
"
..,')'
~J
l'OJ{ (~I.:E ESCJW\'ER? 47'.
'f!
,-
,,'
a própriasubstância,amassadascoisas,queconstituiaquia
razãodeserdesuasformas;comesserealistachegamos,tal-
vez,o maispróximopossíveldacriaçãoabsoluta,já queé na
própriapassividadedamatériaqueencontramosa insondável
liberdadedo homem.
Ora, a obrajamaisse limitaao objetopintado,esculpi-
do ou narrado;assimcomosó percebemosascoisassobreo
fundodo mundo,tambémos objetosrepresentadospelaarte
aparecemsobreo fundodo universo.As aventurasde Fabrí-
cio têmcomopanode fundoa Itália de 1820,a Áustria e a
França,o céucomseusastros,consult~dospelopadreBlanes
e, por fim, a terrainteira.Se o pintornosapresentaumcam-
po ouumvasodeflores,seusquadrossãojanelasabertaspa-
ra o mundointeiro;essecaminhovermelhoquepenetrapelos
trigais,nóso seguimosbemmaislongedoqueVanGogho
pintou,entreoutroscamposdetrigo,soboutrasnuvens,até
um rio quese lançano mar;e prolongamosao in.finito,atéo
outroladodomundo,a terraprofundaquesustentaaexistên.
ciadoscamposedafinalidade.Demodoque,atravésdospau.
cosobjetosqueproduzou reproduz,o atocriadorvisaa uma
retomadatotaldomundo.Cadaquadro,cadalivroéumarecuo
peraçãodatotalidadedoser;cadaumdelesapresentaessato-
talidadeà liberdadedoespectador.Poisé bemestaa finalida-
deúltimadaarte:recuperarestemundo,mostrando-otal co-
mo ele é, mas como setivesseorigemnaliberdadehumana.
Mas comoaquiloqueo autorcria só ganharealidadeobjeti-
vaaosolhosdoespectador,é pelacerimôniado espetáculo
- eparticularmentedaleitura- queessarecuperaçãoécon-
sagrada.Estamosagoraemcondiçãoderesponderà pergun-
ta feitahá pouco:o

Outros materiais