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Os Limiares Críticos da Educação na “África Lusófona”. Fernando Jorge Pina Tavares Universidade de Santiago-Cabo Verde jtavares42@hotmail.com tavaresfjorge@us.edu.cv Resumo A presente comunicação tem por objecto analisar as tendências coloniais e pós-coloniais da Educação nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), com o intuito de averiguar o modelo de homem e de sociedade preconizado pela Educação, seus princípios enformadores e sua ideologia dominante, a partir de dois marcos históricos emblemáticos: o regime colonial cuja “acção educativa” se afigura como “Missão Civilizadora”; o período emancipatório decorrente das independências e auto-determinação políticas caracterizado pela ideologia da “Reconstrução Nacional” e “Reafricanização das Mentes”. Trata-se, do ponto de vista metodológico, de um enfoque hermenêutico sobre o processo educacional, sob o intuito de fornecer pistas epistemológicas ao projecto de constituição de uma Filosofia da Educação na “Comunidade Lusófona”. Palavras Chaves: Educação, Colonialismo, Missão Civilizadora, Pós- colonialismo, Emancipação, Multiculturalismo. 1 –Educação, “Missão Civilizadora” e “Des-africanização das Mentes” O estudo da Educação nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) exige a priori uma análise sobre os discursos e as narrativas que enformam a sua génese e a sua constituição histórica. No período colonial, particularmente , durante o “Estado Novo” de Salazar, a “acção educativa” afigura-se como “missão civilizadora” com o intuito de legitimar a presença e dominação colonial portuguesa em África. Antes da independência das ex- colónias, as escolas funcionavam como locais políticos em que as “iniquidades de classe, sexo e raça eram produzidas e reproduzidas” (Macedo, 1990: 91). A ação educativa do regime colonial tinha como dogma a “des-africanização das mentes” dos colonizados e a sua integração na cultura e civilização europeias, com o intuito de transformá-los em trabalhadores obedientes e conformados com o status quo colonial. Nessa ótica, as escolas foram espaços de excelência na reprodução da cultura europeia dominante, fazendo-se tábua rasa da história e da cultura nativa dos africanos. As escolas eram, na sua essência, “fontes purificadoras” em que os africanos podiam ser salvos de sua “ignorância” profundamente arraigada de sua cultura “selvagem” e de sua língua “abastardada” que, “segundo alguns estudiosos portugueses, era uma forma corrompida do português sem regras gramaticais” (id., ib., p. 91); esse sistema não podia fazer outra coisa senão reproduzir, nas crianças e nos jovens, a imagem que deles havia criado a ideologia colonial, a saber, a de seres inferiores, sem capacidade para nada. A escola, na sociedade colonial, conjugava, assim, uma dupla função: deserdar os nativos de sua cultura, e aculturá-los a um modelo colonial preestabelecido. Nesse sentido, ela funcionava como parte de um aparato ideológico do estado (Althusser, 1985:93), destinado a assegurar a reprodução ideológica e social do capital e de suas instituições, cujos interesses se alicerçam na dinâmica da acumulação de capital e na reprodução da força de trabalho. Claudilene Realce Claudilene Realce Claudilene Realce Claudilene Realce Claudilene Realce A “missão civilizadora” é a categoria que melhor exprime a justificação ideológica da dominação portuguesa nos territórios colonizados e na qual se inseria toda a sua “acção educativa”. O recurso à metáfora “missão civilizadora” como justificação ideológica da presença colonial em África estava sempre presente nos discursos políticos da época, como se pode confirmar pelo extracto a seguir: Estamos aqui depois de mais de quatro séculos e meio, estamos aqui mais engajados hoje do que nunca numa grande e bem sucedida tarefa. Domesticando o mato, construindo cidades e fazendo-as progredir, ensinando e dirigindo a massa rude dos indígenas para uma vida melhor, disciplinando os seus instintos primitivos (...), moldando suas almas nas formas superiores de cristandade, administrando-lhes a justiça, com compreensão afectiva e desgastante, mas nobre e dignificante, como poucas há. É a nossa vocação histórica emergindo outra vez (...). Tudo seja para o bem comum e engrandecimento da Mãe-Pátria1. Após a Conferência de Berlim (1884/1885) e a Conferência Anti-esclavagista de Bruxelas (1889) que determinaram, respectivamente, a partilha da África entre as principais potências coloniais europeias e a abolição do trabalho escravo, Portugal passa a se preocupar com a ocupação efectiva das suas possessões em África, tendo uma presença mais efectiva nas suas colónias, justificando a dominação colonial como “missão civilizadora” e desenvolvendo uma praxis coerente com os interesses político-económicos do sistema. Essa praxis foi afirmada, nas ex-colónias, pela política de assimilação que atribuía ao “nativo civilizado” o status de “cidadão português” (Mazula, 1995:70). O Estatuto do Indigenato decretado pelo “Estado Novo” de Salazar, previa a separação entre os indígenas e os assimilados, tendo engendrado, nas ex- colónias portuguesas da África, uma “elite” restrita de indivíduos “letrados”, 1 1 Discurso proferido em 1946 pelo Governador do Distrito de Manica e Sofala na cerimónia de recepção do então Presidente de Portugal Craveiro Lopes em Moçambique. In: MAZULA B. “Educação, Cultura e Ideologia em Moçambique”, 1995:67. Claudilene Realce Claudilene Realce “utilizados” como pequenos e médios funcionários na “colonização indireta”. Essa força de trabalho “instruída” compunha-se principalmente de funcionários de nível inferior, cujas tarefas mais importantes eram a promoção e a manutenção do status quo colonial. Neste sentido, as escolas coloniais foram “bem-sucedidas”, na medida em que criaram uma classe pequeno-burguesa de funcionários que haviam internalizado a crença de que haviam se tornado brancos ou negros de alma branca e, por isso eram superiores aos camponeses africanos que ainda praticavam o que se considerava uma cultura bárbara. Esse processo de assimilação penetrou até o nível mais profundo de consciência, especialmente na classe burguesa (Macedo 1990:91). Perante o insucesso desta política assimilacionista o regime passou a reconhecer as reivindicações dos nativos pela sua personalidade como indivíduos, mas não como sujeitos políticos (Mazula, 1995:70). A política assimilacionista instituída pelo governo colonial pretendia criar uma “sociedade multirracial”, legitimada pelo estatuto do indigenato que não passava, na realidade, de “um apartheid à portuguesa” (Cabral, 1978:61). O pretendido “não civilizado” é tratado como um objecto e entregue aos caprichos da administração colonial. Ao classificá-lo como “não civilizado”, a lei oficializa a discriminação e justifica a dominação portuguesa em África. Estudo apresentado por Cabral (1978:61), revela que 99,7% da população africana de Angola, Guiné e Moçambique era considerada “não civilizada” pelas leis coloniais portuguesas e 0,3% era considerada assimilada. Nos termos da política assimilacionista, para que uma pessoa “não civilizada” adquirisse o estatuto de “civilizada” teria que fazer prova de estabilidade económica e gozar de um nível de vida mais elevado do que a maior parte da população de Portugal.Teria de viver “à europeia”, pagar impostos, cumprir o serviço militar, saber ler e escrever correctamente o português. Uma ínfima minoria de africanos ditos civilizados e, consequentemente, considerados, teoricamente, portugueses, não gozava, mesmo assim, dos privilégios reservados aos europeus. Alguns deles encontravam-se numa situação de isolamento entre a massa da população africana e os colonos, e estes últimos rejeitavam-nos através de uma discriminação declarada ou dissimulada. A comunidade multirracial portuguesa não passava de um mito. A realidade que esta designação encobre é uma total segregação racial, excepção feita para as relações de trabalho, onde se serve os desígnios do colonialismo. Salvo raras excepções, não há nenhum contacto social entre as famílias africanas e europeias. Os únicos contactos directos praticam-se nas escolas, ou noutros locais exteriores ao ambiente familiar, entre as crianças europeias e os raros alunos “assimilados”. As crianças misturam-se espontaneamente, mas estas relações já estão imbuídas de preconceitos e complexos. Os cinemas, os cafés, os bares, os restaurantes, etc. são quase exclusivamente frequentados por europeus. Um africano suficientemente audacioso para penetrar num destes locais deve estar preparado para enfrentar a humilhação. A teoria colonialista da pretendida “assimilação” era inaceitável não só do ponto de vista teórico, como mais ainda na prática. Tal teoria se baseava na ideia racista da incapacidade e da falta de dignidade dos africanos e tinha implícito o nulo valor das culturas e civilizações africanas. A acção educativa desenvolvida por Portugal nas antigas colónias africanas, está directamente relacionada com a sua política de exploração colonial. Em finais do século XIX, “intelectuais” e teóricos do colonialismo português sustentavam ideias muito pessimistas e racistas em relação à educação e escolarização dos africanos. Refira-se, entre outros - Oliveira Martins, Mouzinho de Alburquerque e António Enes, “verdadeiros teóricos” da nova política colonial portuguesa do período pós-conferência de Berlim e de Bruxelas. Oliveira Martins considera absurda a ideia de uma educação para negros: “Só pela força se educam povos bárbaros; a educação dos negros era absurda não só perante a história, como também perante a capacidade mental dessas raças inferiores”; o autor prossegue ainda afirmando ser uma ilusão pensar em “civilizar os negros com a bíblia, educação e panos de algodão”, tendo em vista que “toda a história prova, (...) que só pela força se educam povos bárbaros” (Martins, apud Mazula, 1995). Mas as depreciações de Oliveira Martins não param por aí. O extracto a seguir evidencia a magnitude do preconceito que esse teórico do colonialismo português sustentava relativamente à raça e cultura negras: A precocidade, a mobilidade e a agudeza própria das crianças, não lhes faltam; mas essas qualidades infantis não se transformam em qualidades intelectuais superiores (...). Há decerto, e abundam documentos que nos mostram ser o negro um tipo antropologicamente inferior; não raro do antropóide, e bem pouco digno de nome de homem. A transição de um para outro manifesta- se, como se sabe, em diversos caracteres; o aumento da capacidade da actividade cerebral, a diminuição inversamente relativa do crânio e da face, a abertura do ângulo facial. Em todos estes sinais os negros se encontram colocados entre o homem e o antropóide (Martins apud Mazula, 1995:70). Criticando ainda os missionários portugueses católicos que segundo Eduardo de Noronha “ensinavam ao preto em língua europeia, moendo-lhe a inteligência com dogmas incompreensíveis”, Oliveira Martins ironiza, interrogando: E se não há relações entre a anatomia do crânio e a capacidade intelectual e moral porque há de parar a filantropia do negro? Porque não há de ensinar-se a bíblia ao gorila ou ao orangotango, que nem por não terem fala, não deixam de ter ouvidos, e hão de entender quase tanto como o preto, a metafísica da encarnação do Verbo e o dogma da Trindade? Na mesma linha ideológica, Albuquerque considera a educação dos negros uma ficção: “As escolas são uma ficção (...). Quanto a mim o que nós devemos fazer para educar e civilizar o indígena é desenvolver-lhe de forma prática as habilidades para uma profissão manual e aproveitar o seu trabalho na exploração da província” (Albuquerque apud Mazula, 1975:70). Por seu lado, Enes considerava que a educação não era prioritária; era mais “uma exigência formal que necessidade real”. Os discursos supra citados tornam evidentes o ambiente agressivo e controverso em que se desenrolou a “missão civilizadora”, metáfora educacional do regime colonial em África, mas revela igualmente a hostilidade da relação social em contexto colonial. De igual modo, os depoimentos de Amílcar Cabral (1978:62), citados no quadro a seguir, ilustram a percepção desse controverso ambiente “civilizacional” nos territórios colonizados: As línguas africanas estão proibidas nas escolas. O homem branco é sempre apresentado como um ser superior e o africano como um ser inferior. Os conquistadores coloniais são descritos como santos e heróis. As crianças africanas adquirem um complexo de inferioridade ao entrarem na escola primária. Aprendem a temer o homem branco e a ter vergonha de serem africanas. A geografia, a história e a cultura de África não são mencionadas, ou são adulteradas e a criança é obrigada a estudar a geografia e a história da Europa. Moldada na pedagogia da dominação e opressão, a “acção educativa” do regime colonial não oferece tréguas à diferença cultural e dignidade do homem africano, transformando-se, por vezes naquilo que a “Teoria da Reprodução Cultural” denomina de “violência simbólica”. Nesse sentido, cabe o argumento de Bourdieu (1975) o qual considera que “toda a acção pedagógica é objectivamente uma violência simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbitrário cultural”. Não obstante as restrições epistemológicas que hoje se colocam à “Teoria da Reprodução Cultural”, a ideia de “violência simbólica” encaixa-se perfeitamente na análise da “acção educativa” do regime colonial. Nesse contexto, a educação escolar não tem outra finalidade senão a produção e reprodução da força de trabalho com vista à exploração económica dos territórios colonizados. Com efeito, o lucro e somente o lucro, afigura-se princípio axiológico essencial da sociedade colonial, sobrepondo-se, esse princípio, aos outros valores fundamentais da dignidade da pessoa humana. A catequização, a educação e o ensino (aprendizagem das primeiras letras) constituíram a trilogia que Portugal confiou às ordens e congregações religiosas que desde os primórdios da expansão europeia procuraram a conquista das populações para a Igreja Católica. A acção missionária como prática assente na ideologia do poder colonial, implicou uma conjugação recíproca de interesses entre o Estado e a Igreja. Apesar de serem concepções aparentemente contraditórias, Estado e Igreja conseguiram, no entanto, complementar-se, pois a instituição religiosa vai representar um papel político: ensinar e espalhar os valores ocidentais em colaboração com o poder colonial. A participação dos missionários no processo de expansão portuguesa tinha a pretensão não só de instalar ou consolidara Igreja, mas também preparar estruturas sólidas para que a política colonial se instalasse definitivamente. Com efeito, a par da evangelização propriamente dita, estava a divulgação da cultura e do saber. Assim, não se pode separá-los porque foram as “missões católicas” que primeiramente se encarregaram do ensino nas colónias, constituindo-se em veículos de uma verdadeira política de assimilação que visava fazer dos autóctones da África, trabalhadores ou artesãos na óptica exclusivamente materialista e economicista da expansão europeia. As missões católicas detinham assim, o monopólio da educação dos pretendidos “não civilizados”. Os acordos concluídos entre Portugal e o Vaticano determinavam que esta educação deveria estar conforme os princípios doutrinais da constituição portuguesa e seguir a linha dos projectos e dos programas emanados do Governo. De acordo com essa concordata, 99,7% da população africana ficava impedida de frequentar as escolas laicas. Para uma população de cerca de quatro milhões de habitantes, apenas quarenta mil crianças frequentavam as escolas das missões em Angola. No entanto, na mesma época no Congo Belga, 1.300.000 crianças frequentavam a escola primária, ou seja, proporcionalmente, dez vezes mais do que em Angola. Em Moçambique, em Angola e na Guiné Bissau, 99% da população era analfabeta. Os filhos dos assimilados (0,3% da população ) tinham o direito de frequentar as escolas primárias oficiais, as escolas secundárias e as universidades. Mas as várias formas de que a discriminação racial se revestia nas escolas coloniais, especialmente em Angola e em Moçambique, assim como a enorme miséria das famílias africanas, limitavam o número de alunos que podiam ser diplomados. Só os alunos capazes de um extraordinário esforço conseguiam terminar os estudos. O objectivo de Portugal consistia principalmente em assegurar a sua continuidade como nação e difundir o mais possível os valores da vida portuguesa. Assim, “a transmissão de conhecimentos era feita nas escolas de suas colónias a partir de manuais preparados de acordo com padrões europeus, não tendo em conta as realidades locais” (Lopes, 1996: 2006). De acordo com essa política, seguia-se um ensino uniforme para todas as províncias não dando assim respostas às reais necessidades de cada comunidade. A escola ignorava os tradicionais padrões culturais das comunidades, tentando integrá-las numa cultura que lhes era totalmente estranha. Na medida em que foi privilegiada toda uma cultura europeia, a língua e costumes portugueses foram os elementos utilizados nesse processo de colonização. Os saberes nativos e tradicionais de cada povo foram abandonados e quando não sofreram deformações, interpenetraram-se com a cultura europeia. Ao introduzir este processo de enculturação, o objetivo do colonizador, foi talvez, “unir a grande diversidade de culturas que integravam um ‘império’ espalhado por vários continentes e, daí a escola ter servido como um dos meios escolhidos para a obtenção desse resultado” (id., ib., p. 207). A “instrução”, no regime colonial, foi um processo demasiado drástico e violento, impondo ao aluno o estudo de matérias como a história e a geografia de um país que ele nunca visitou e provavelmente nuca chegaria a conhecer. Claudilene Realce Claudilene Realce Claudilene Realce Claudilene Realce Nas ex-colónias portuguesas, a escola tornou-se, deste modo, o veículo de excelência na consolidação do poder vigente, preparando homens com uma formação moral, religiosa e política baseada nos padrões europeus, com o intuito de incrementar o poder da metrópole nas colónias. O conformismo e a obediência afiguram-se, assim, premissas fundamentais da “acção educativa” do regime colonial em África. 2 - Educação, Emancipação e Re-africanização das Mentes A independência e a auto-determinação política das ex-colónias, no início da década de 1970, inaugura uma nova fase na história política, económica e cultural dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. A ideologia da “reconstrução nacional” e a “reafirmação da identidade cultural” foram a palavra-de-ordem consignada nos discursos políticos das novas elites dirigentes. Com efeito, a instauração de uma nova ordem política e institucional coincide com a proliferação de um novo discurso pedagógico-educacional, marcado pela busca de “re-africanização das mentes”, dilaceradas pelas práticas sociais coloniais. Esse novo discurso começa a configurar-se já nas narrativas do nacionalismo independentista, liderado pelos activistas políticos, nomeadamente, Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Eduardo Mondelane2, entre outros, no decurso da luta de libertação das ex-colónias. Na mesma perspectiva que Gramsci (1986), os lideres do movimento independentista postulavam o “suicídio da pequena burguesia como classe, e sua ressurreição com o povo”, como condição para a autenticidade da revolução. Esse postulado é reconfirmado por Pereira3 2 Os activistas supra mencionados, Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Eduardo Mondlane são, respectivamente, líderes da luta de libertação que conduziu à independências de Cabo Verde e Guiné, de Angola e de Moçambique. 3 Aristides Pereira foi combatente e primeiro Presidente da República de Cabo Verde Independente. Claudilene Realce Claudilene Realce (1990) em discurso proferido nos primórdios da independência nacional, em que afirmava: “expulsamos os colonizadores, agora precisamos descolonizar nossas mentes” (apud Macedo, 1990:91). Como observamos na primeira parte desta comunicação a “missão civilizadora”- princípio orientador da “acção educativa” do regime colonial - tinha como meta fundamental a “desafricanização” das mentalidades e sua integração na “civilização” europeia, mediante assimilação e apropriação da cultura dominante. Com a proclamação da independência política, e no âmbito do projecto de reconstrução de uma nova sociedade nas ex-colónias, as escolas assumiram como tarefa mais importante, a “descolonização e a “reafricanização das mentes”. Para as novas elites dirigentes, era imprescindível a criação de um sistema de ensino em que se formulasse uma nova mentalidade purgada de todos os vestígios do colonialismo. “Sistema de ensino em que era imprescindível reformular os programas de geografia, história e língua portuguesa, mudando todos os textos de leitura que estavam tão visceralmente impregnados da ideologia colonialista” (Macedo, 1990:92). Para os novos dirigentes, tornava-se imperiosa uma reforma curricular consentânea com a realidade endógena dos educandos. Uma reforma radical que possibilitasse aos alunos o estudo da sua própria história e geografia e não a de Portugal. “Era absolutamente necessário que estudassem a própria história, a história da resistência de seu povo ao invasor e da luta por sua libertação, que lhes devolveu o direito de fazer a própria história - não a história de Portugal e das intrigas da corte” (id., ib., p. 92). A “descolonização das mentalidades”, que equivale à “reafricanização dos espíritos”, pressupõe, mais do que a emancipação política, também a “revolução cultural”, que deveria traduzir-se principalmente na valorização e inclusão da língua e cultura nativas no sistema de ensino. Claudilene RealceClaudilene Realce Claudilene Realce Claudilene Realce Não obtante iniciativas empreendidas pelos governos pós-coloniais na promoção e democratização do acesso à educação e emancipação, as escolas perpetuam a alienação cultural, excluindo línguas e culturas nacionais dos sistemas de ensino. A proposta de incorporar às escolas uma “pedagogia radical” (Giroux, 1999; McLaren, 1997; 2000) foi recebida com pouco entusiasmo pelas elites dirigentes que assumiram o comando do poder no período pós-colonial em África. Como faz notar Macedo (1990: 92), a desconfiança de muitos educadores africanos está profundamente enraizada na questão da língua (africana versus portuguesa) e levou à criação de uma campanha de alfabetização neo-colonialista sob a bandeira superficialmente radical de acabar com o analfabetismo nas novas repúblicas. A resistência à utilização das línguas nativas nos programas curriculares de “instrução” levou à criação de “alfabetizados funcionais” em língua portuguesa. Ignorando o capital cultural dos africanos, o programa de alfabetização, nas ex- colónias, incorporou abordagens positivistas e instrumentais de alfabetização, marcadas principalmente pela aquisição mecânica de habilidades na língua portuguesa. A única abordagem da alfabetização compatível com a construção de uma sociedade anticolonial nova é a que se alicerça na dinâmica da produção cultural e que é animada por uma “pedagogia radical”. A “reconstrução nacional” e a “reafricanização dos espíritos” pressupõe um programa de alfabetização que represente a afirmação do povo oprimido e lhe permita recriar a própria história, cultura e identidade; aquele que ao mesmo tempo ajude a levar os indivíduos assimilados que se sentem cativos da ideologia colonial, a “cometer suicídio de classe’”. Sem descurar a importância estratégica da língua portuguesa nas relações nacionais e internacionais do PALOP, é pertinente perguntar: como operar a descolonização das mentes pela educação, utilizando, para o efeito, a única Claudilene Realce Claudilene Realce Claudilene Realce Claudilene Realce língua, isto é, a língua que as oprimiu? O recurso ao uso do português como única língua de instrução nos PALOP, ameaça o projecto político de “reafricanização das mentalidades”, perpetuando a reprodução daqueles valores colonialistas que eram e que ainda são inculcados por meio do uso da língua portuguesa. Como diz Paulo Freire (1975) é impossível “reafricanizar” o povo utilizando o meio que o “desafricanizou”. A abertura ao multi-partidarismo no início da década dos anos noventa, conduziu alguns Países Africanos de Expressão Portuguesa para a senda da liberalização económica e do mercado global, fazendo emergir um novo discurso, dominante em todos os sectores do desenvolvimento, inclusive, educação. Trata-se da lógica neoliberal economicista, substituindo, o discurso económico estatizante, outrora informado pela ideologia do “Estado-Nação”. Com efeito, aliado a uma certa mentalidade neocolonial emergente no período pós-independência, o discurso neoliberal passa a ter um papel preponderante na re-definição de políticas educacionais na “África Lusófona”. Sob o signo do Banco Mundial (BM) e do Fundo Monetário Internacional (FMI), o processo educativo conhece uma nova fase nos PALOP, a partir da década de noventa. Esse período coincide com a publicação da primeira Lei de Bases do Sistema Educativo , por conseguinte, o início das “grandes reformas” operadas na educação, sob o financiamento do BM e do FMI. Com efeito, as grandes opções políticas implementadas no setor da educação passam a ser diretamente determinadas pelos princípios neoliberais postulados pelos “experts” das instituições financeiras supra mencionadas. É o início da era neoliberal e da “mercantilização da educação”. No contexto africano a educação e a escolarização teêm sido, historicamente, enformadas por um legado teórico-cultural eurocêntico e neoliberal, ancorado em princípios universalistas, homogeneizantes e unificadoras do sujeito, do Claudilene Realce Claudilene Realce Claudilene Realce conhecimento e da história, relegando o “Outro” para as margens do poder, porquanto exclui a sua própria história, cultura e identidade, do sistema de ensino. As orientações pedagógicas emanadas do regime colonial, do pós- colonialismo e do neoliberalismo em África, refletem uma profunda crise de identidade ideológica, repercutindo diretamente no processo de construção de sujeitos e identidades na educação e escolarização. Aliada a essa crise, reporta-se, ademais, a agravante de os diferentes sistemas educativos dos PALOP não conseguirem incluir as línguas e culturas nativas nas escolas. A construção de sistemas educativos consentâneos com a realidade endógena das nações africanas, sugere um discurso pedagógico transformador e emancipatório, passível de superar as narrativas educacionais eurocêntricas e homogeneizantes dominantes, estabelecendo um diálogo intercultural permanente com as diferentes sensibilidades étnicas existentes em cada país. Refira-se, concretamente, à problemática da exclusão da língua e cultura nativas dos sistemas de ensino, constituindo-se numa das maiores lacunas do processo educacional em África ”. Os limiares críticos da educação contemporânea, nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, revelam uma face oculta da Escola, marcada pela proliferação de discursos e identidades subalternas, formatados na fronteira da cultura e do currículo oficiais. Contudo, o território escolar não se confina ao espaço oficial da sala de aula. A Escola dispõe, igualmente, de um outro território não oficial, de um “espaço descolonizado” (Habermas, 2003), de entreternimento. No “espaço descolonizado” da Escola, na região de fronteira, da “cultura da escola” (Candau, 2000), configuram-se outros discursos, outras identidades. Discursos e identidades formatados nas margens e fronteiras da cultura oficial, cuja interpretação e reconhecimento requerem uma nova abordagem pedagógica, uma “pedagogia de fronteira” (McLaren, 1997; 2000). A “pedagogia de fronteira” é um discurso pedagógico de oposição, estruturado no bojo dos discursos pós-coloniais, da “pedagogia crítica”. É um novo paradigma epistemológico germinado nas margens da pedagogia convencional, do paradigma pedagógico dominante. A pedagogia de fronteira é uma tendência pedagógica pós-colonial que se demarca substantivamente dos modelos pedagógicos tradicionais, universalistas, eurocêntricos, e homogeinizantes do sujeito, do conhecimento e da história. É um discurso pedagógico heterogéneo, centrado na valorização das “subculturas” endógenas, das esferas epistemológicas não convencionais, centradas na afirmação do “outro” e do “diferente”, na emancipação das múltiplas vozes e histórias de vidas dos diferentes sujeitos que interagem na construção social da escola. Ao contrário da “pedagogia de exclusão”, a “pedagogia de fronteira” deve ser uma “pedagogia de inclusão” da língua e da voz oprimidas, que se coloca na fronteira do conhecimento e das culturas dominantes. É uma nova abordagem pedagógica ancorada nos princípios dos direitos humanos e da cidadania activa. É uma pedagogia de vanguarda na luta pela inclusão do corpo e da voz. A “pedagogia de fronteira” é um projecto pedagógicoe curricular compartilhado e negociado no contexto do multiculturalismo e da interculturalidade, da globalização e da “diasporização” (Hall, 1999). Uma pedagogia de oportunidades para “sujeitos sem pessoa”, para “discursos sem voz”. Referencia Bibliográfica BOURDIEU, P.; PASSERON, J.C. - A Reprodução: elementos para uma Teoria do Sistema de Ensino. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1975; CABRAL, A. - A Arma da Teoria: Unidade e Luta. Lisboa, Seara Nova. 1978; CANDAU, V. - Cotidiano Escolar e Cultura(s). Encontros e Desencontros. In CANDAU, V. M. (ORG). Reinventar a Escola, Petrópolis, Vozes, 2000; FREIRE, P. ; MACEDO, D. - Alfabetização: Leitura do Mundo Leitura da Palavra. Trad. Lólio de Oliveira. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990; FREIRE, P. - Pedagogia do Oprimido. Porto, Afrontamento, 1975; GRAMSCI, A. - Concepção Dialética da História. 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