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Direito penal na Grécia Antiga - Viviana Gastaldi

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Viviana Gastaldi
Direito Penal na 
Grécia Antiga
S u m á r io
Questões preliminares
1. Teorias sobre o nascimento do direito.
O mito do pré-direito.......................................................................11
2. Direito grego e Direito Ático. Fontes.......................................... 15
3. As noções de lei e delito na Antigüidade:
delitos públicos e delitos privados.............................................. 18
Parte I 
O Começo: Homero
1. A sociedade homérica e a cultura de vergonha.
Códigos de comportamento.......................................................... 25
2. Lei e autoridade nos poemas homéricos....................................26
3. A regulação do homicídio: exílio, vendetta e poiné...................29
4. A questão da intencionalidade..................................................... 35
5. O adultério: a sanção pública e a sanção material...................36
6. O abandono noxal.............................................................................40
Parte II 
A Época Clássica
1. Evolução do sistema penal.
O código de leis de Dracon.............................. .......... ....................45
2. As modificações de Sólon. O sistema democrático................. 48
3. As conseqüências do homicídio:
a mácula, o exílio e a purificação..................................................50
4. O testemunho da oratoria em casos de homicidio:
mácula e contágio na retórica de A ntifonte.............................54
5. Dikê phonou: o processo por homicidio,
A retórica processual: a cena trágica e o tribunal... ............... 62
Parte III 
A Penalidade
1. Abordagens da penalidade. Considerações gerais................83
2. Vingança versus penalização......... ..................................... .........84
3. Principais punições: evolução e características.
Os exemplos das tragédias............................................................86
4. A execução da punição: as instituições......................................95
5. Vohmtário/involuntário como categorias legais.
Os aportes da sofistica.................................................................... 97
6. As Teorias sobre a finalidade da punição:
retribucionismo e utilitarismo..... .............................................. 106
' ' 1 ,v ' i ’
Referências............................................................................................ 115
1. T e o r ia s s o b r e o n a sc im en to do d ir e it o .
O MITO DO PRÉ-DIREITO
A resposta tradicional ao problema da individualização do 
direito é aquela que, partindo de Platão e passando por Hobbes 
e Marx, liga a existencia do direito à existencia do Estado. Se­
gundo esta hipótese, o direito não existia nas sociedades tribais 
ou pré-literárias. Este ponto de vista, sustentado pelos que en­
tendem o direito através de uma perspectiva evolucionista, é 
particularmente defendido - entre os estudiosos do direito gre­
go - por Michael Gagarin.1 Para tal autor, é praticamente impen­
sável falar de direito penal em uma sociedade arcaica, pois este 
surgiria quando o Estado, tendo estabelecido normas legítimas 
de comportamento, passasse a regular os delitos e, desta forma, 
as penas.
Contrariamente, a antropologia do direito, cujo principal 
representante é Malinowski, identifica o direito de um modo 
mais flexível; para esse estudioso das sociedades mais antigas, 
são jurídicas todas as regras concebidas e aplicadas como obri­
gações de vínculo. Neste sentido, o autor elaborou uma teoria
1 GAGARIN, Michael (1989).
12 Viviana Gastaldi
geral do direito primitivo baseada no mecanismo de reciproci­
dade de certas atividades sociais.2
Particularmente iluminadora do direito grego mais arcai­
co é a postura de Hoebel,3 que sustenta que:
(...) quando a com unidade considera justo e correto o exercício 
da força por parte do indivíduo que sofreu um dano, ou por par­
te do grupo parental em um a situação determ inada, e, ao m es­
m o tem po im pede ao transgressor o contra-ataque, o direito pre­
valece e a ordem triunfa sobre a violência.
Tal postulado é essencial para a compreensão do direito 
arcaico e, em especial, para sustentar a opinião de todos aque­
les que consideram que o direito grego nasce com Homero,4 pois, 
segundo fontes que os poemas épicos testemunham, a existên­
cia não só de certas regras de conduta, como também de viola­
ções a essas regras, e ainda de sanções públicas que fixam a pu­
nição - executada por uma autoridade legitimamente estabele­
cida - , permite-nos falar de um direito penal em gestação ou, 
pelo menos, de um ordenamento jurídico.5
Contudo, um estudo sobre o direito penal, seu surgimento 
e sua evolução na Grécia apresenta alguns questões que, ainda 
hoje, são discutidas pela crítica especializada. Referimo-nos, em 
particular, à etapa denominada pré-direito, que alguns autores 
diferenciam de outras mais complexas em que se percebe a pre­
sença de instituições juridicamente organizadas.
O certo é que este mito do pré-direito remete os estudiosos
2 Por exemplo, a atividade da pesca. Ver CANTARELLA, Eva (2002, p. 192).
3 Conforme CANTARELLA, Eva (2002, p. 193).
4 Ver, a este respeito, as observações de CALHOUN, Georges (1977) e SAUN­
DERS, Trevor (1994).
5 CANTARELLA, Eva (1976), (1987) e (2002).
Direito Penal na Grécia Antiga 13
ao problema, não menor, de estabelecer - não com exatidão cro­
nológica, mas sim de forma aproximada - as origens do direito 
penal na Grécia. A esse respeito, Louis Gemet6 afirma que já em 
tempos muito antigos identificava-se o delito como um ato sa­
crílego, e que esta identificação foi, na realidade, o começo do 
direito penal.
Considerando esta questão como - nas palavras de Canta- 
rella7 - uma "discussão aberta", talvez convenha aqui conside­
rar que tanto uma cultura de vergonha como uma cultura de 
culpa8 evidenciam a necessidade de manter determinados com­
portamentos fixados pelo costume e, por outro lado, a necessi­
dade de que a sociedade, ainda que precária e de escasso desen­
volvimento, sancionasse as violações às ditas regras, considera­
das faltas graves.
Segundo observa Gemet, o pré-direito constitui um conjun­
to de forças que impõe a observação de determinadas normas 
de comportamento (tal como na sociedade homérica). Não existe 
ainda um Estado capaz de obrigar os seus a, com a força, obser­
var a regra; portanto, para Gernet, nesta etapa não havia um 
direito. O autor determina, a partir do estudo dos mitos, alguns 
âmbitos nos quais a força do pré-direito se manifesta. O primei­
ro é o âmbito das relações interfamiliares, regulado através da 
reciprocidade no benefício da hospitalidade.
6 GERNET, Louis (1917, p. 312 ss).
7 CANTARELLA, Eva (1987).
8 A diferenciação estabelecida por antropólogos e psicólogos americanos foi 
aplicada por DODDS ROBERTSON, Eric (1951) para explicar o mundo gre­
go. Mais recente é a interpretação de Hooker (1987), que amplia o sentido de 
aidos em Homero; para uma visão diferente e menos restritiva ver CAIRNS, 
Douglas (1993).
14 Viviana Gastaldi
No mundo grego pré-citadino, as correspondências entre 
estrangeiros eram reguladas segundo as leis de hospitalidade (xe- 
mia); quem havia recebido esta dádiva estava obrigado, no futu­
ro, a restituir a hospitalidade e seus beneficios a todos os mem­
bros da casa (oikos). Este mecanismo, deste modo, garantía a cir­
culação da riqueza e dos bens de prestigio, criando iim vínculo.
Neste tipo de pensamento existe também a força do elemen­
to mágico-religioso. Entre a prática jurídica e a crença nos efei­
tos mágicos de certos objetos (técnica mágica) podia existir urna 
relação. A magia verbal eficaz sobreviveu por muito tempo no 
direito da cidade, como demonstra o recurso das arai, ou impre- 
cações em função desanções previstas não só nos tratados in­
ternacionais, mas também nas leis de algumas cidades, como a 
famosa lei de Teso, de 470 a.C. A relação entre direito e pré-di- 
reito não é sempre a mesma, nem tem continuidade; certas for­
mas mais antigas desaparecem, pois mudam os contextos sociais 
nos quais elas tinham a sua razão de ser.9
Relacionadas também ao mito do pré-direito surgem ou­
tras questões, tais como a autoridade e a lei. Uma definição ex­
trema e restritiva da lei, sustentada por alguns juristas, ignora a 
diferença entre jus e lex. Esta se define exclusivamente em ter­
mos da existência da lei escrita; ou seja, a lei se baseia em prin­
cípios formais e abstratos adotados pela autoridade política de 
uma sociedade que tem uma legislação positiva.
Pelo contrário, segundo o modelo de Pospisil,10 a existên­
cia do direito requer quatro atributos: autoridade, que significa 
possuir o poder necessário para induzir ou forçar a maioria dos
9 Ver CANTARELLA, Eva (1994).
10 BURCHFIEL, K. (1993).
Direito Penal na Grécia Antiga 15
membros de um grupo a aceitar suas decisões; intenção de apli­
cação universal, ou seja, que existam diferenças entre decisões 
jurídicas e políticas, podendo as primeiras serem aplicadas a si­
tuações idênticas no futuro; obrigatio (iuris vinculum), ou deve- 
res e direitos entre as partes, e, por último, a aplicabilidade da 
sanção, seja através de força física ou coerção. De acordo com 
esta teoria antropológica, o direito, definido segundo os quatro 
critérios acima citados, está presente em todas as sociedades; 
logo, nem a escrita, nem a formulação de sistemas abstratos de 
leis são requisitos necessários para a sua existência.
2 . D i r e i t o G r e g o e D ir e i t o Á t ic o . F o n t e s
Entendemos por direito ático, para diferenciá-lo do grego 
em geral, o ordenamento jurídico vigente em Atenas no seu pe­
ríodo clássico, entre os séculos V e IV a.C. Tal direito é coerente 
com a estrutura da polis, com o Estado autônomo e soberano que 
incluía todos os cidadãos varões livres. O requisito de polites era 
indispensável para ser considerado ateniense: estavam excluí­
dos as mulheres, as crianças e os culpados de atimia.11
Esta sociedade, que vive sob a tutela da polis, tem também 
um direito mais antigo, diferenciado claramente do direito da 
cidade, que regula as obrigações no seio da família: o direito fa­
miliar, que se refere à noção de oikos, termo constante nos tex­
tos de direito ático. Portanto, pela denominação "direito ático" 
entendem-se o direito público e o privado que imperaram em 
Atenas nos séculos V e IV a.C.
11 Sobre o significado deste termo ver infra, Parte III.
16 Viviana Gastaldi
A reconstrução do direito ático interessa diretamente não 
somente aos historiadores da Grécia (por pormenorizar o orde­
namento da polis na política interna e externa, as suas institui­
ções e os meios através dos quais os cidadãos exerciam as suas 
atividades), como também aos filólogos (porque o rigor e exati­
dão das expressões jurídicas, de que dão conta os testemunhos 
conservados, permitem uma avaliação cabal do direito e uma 
melhor interpretação dos textos em um sentido interdisciplinar), 
e, por último, aos juristas em geral, pela contribuição do direito 
grego à historia e à cultura jurídica da Antigüidade.
As fontes para o seu estudo não constituem um conjunto 
orgânico sistematizado que possa ser tomado como uma refe­
rência teórica inequívoca; ao contrário, os únicos dados que pos­
suímos da época arcaica - e ainda da clássica - em Atenas estão 
dispersos e fragmentados no que os estudiosos do direito deno­
minam fontes "diretas" e "indiretas".
Entende-se por fontes diretas os documentos nos quais 
emerge de forma imediata a existência de uma norma ou de uma 
instituição jurídica; já as fontes indiretas, subsidiárias das ante­
riores, constituem-se naqueles textos em que tais elementos se 
apresentam de maneira implícita.12
Entre as fontes diretas ou principais, é necessário mencio­
nar os textos legislativos que foram conservados através de epí­
grafes ou manuscritos. Neste último sentido, são particularmen­
te úteis os textos dos oradores, ainda que seja problemático es­
tabelecer de modo claro e certo em que casos o texto da lei é a 
reprodução fiel de textos normativos autênticos:13 a Constitui­
12 BISCARDI, Arnaldo (1982) e PAOLI, Ugo (1976).
13 BISCARDI, Arnaldo (1982, p. 21 ss).
Direito Penal na Grécia Antiga 17
ção de Atenas, equivocadamente atribuída a Xenofonte, pu­
blicada pela primeira vez em 1891, logo após a sua reconstru­
ção no Egito; e a antiga lei de Gortina, reveladora de um clima 
jurídico diferente, as Leis e a República de Platão e a Política de 
Aristóteles.
Entre o segundo grupo de fontes, os críticos mencionam 
particularmente os autores latinos das palliatae, Menandro, os 
textos históricos de Xenofonte e Tucídides e os dramas de Aris­
tófanes, principalmente como fontes para o estudo do direito 
público; as tragédias, por sua vez, são consideradas - especial­
mente na obra de Eurípides - documentos essenciais nos quais 
se refletem situações em conformidade com o direito ático pri­
vado. O direito grego, inseparável da moral e da política, não 
aparece restrito a um número limitado de especialistas, mas re- 
vela-se como "(...) sentimento comum a todo o povo e que se 
reflete em todas as manifestações da vida".14
As fontes literárias constituem um testemunho válido e in­
questionável para o estudo das características do direito na An­
tigüidade. Neste contexto, consoante elementos presentes na 
épica, é legítimo apontar para determinada organização jurídi­
ca presente já na obra de Homero. A existência de certas regras 
de conduta, de violações a essas regras, e de sanções públicas 
que fixam castigos executados por uma autoridade legitimamen­
te estabelecida, permite-nos falar de um direito em gestação ou, 
pelo menos, de um ordenamento jurídico.15
14 "(...) sentimento comune a tutto il popolo e che investe tutte le manifestazioni de­
lla vita." In: BISCARDI, Arnaldo (1982, p. 14 ss).
15 CANTARELLA, Eva (2002); também Maine, citado por CALHOUN, Geor­
ge (1977, p. 15, n°l) percebe a peculiar importância dos poemas homéricos 
para o estudo do direito e das instituições.
18 Viviana Gastaldi
3. As N o ç õ e s d e L e i e D e l i t o n a A n tig ü id a d e : 
D e l i t o s P ú b l ic o s e D e l i t o s P r iv a d o s
Já que o direito penal ou criminal lazo se define como "aquela 
parte do direito que descreve os crimes e suas punições"/6 é 
necessário determinar, sobre bases gerais, o que se entende por 
delito. Pode-se salientar, a esse respeito, que se trata de "( ...) 
incapacidade ou recusa de viver à altura do padrão de conduta 
considerado obrigatório pelo restante da comunidade"; também 
pode ser entendido como "( ...) uma revolta do individuo con­
tra a sociedade", ou simplesmente como "(...) uma ação proibi­
da".17
Para o nosso estudo do direito arcaico, toma-se fundamen­
tal a afirmação de Pollock:18
(...) cada novo exem plo em que a com unidade infligiu um a pu­
nição reafirm ou um princípio existente ou m ostrou o cam inho ao 
estabelecim ento de um novo; deste m odo, o corpo do costum e 
tendo que se fazer com punição pública tendeu constantem ente 
a expandir-se e tornar-se de m aior autoridade. A qui, tem os o 
gérm en do direito penal, prim itivo e elem entar, m as apenas di­
reito, pois consiste em norm as reconhecidas de conduta que eram 
feitas cum prir pela com unidade, envolvendo um a ação punitiva.
16 "that part o f the law which relates to crimes and their punishment." In: CA­
LHOUN, George (1977, p. 1).
17 "failure or refusal to live up to the standard o f conduct deemed binding by the rest 
o f the community (...) a revolt o f the individual against society (...) a prohibitedaction." In: CALHOUN, George (1977, p. 2). Esses primeiros parênteses es­
tão em itálico no original.
18 "(...) each new instance in which the community inflicted punishment either 
reaffirmed an existing principle or led the way to the establishment o f a new one; 
thus the body o f custom having to do with public punishment tended constantly to 
expand and to become more authoritative. Here we have the germ o f criminal law, 
primitive and elementary, but none the less law, fo r it consists o f recognized rides 
o f conduct, enforced by the community and involving a punitive action." Citado 
por CALHOUN, George (1977, p. 2, n° 8).
I >i reito Penal na Grécia Antiga 19
É difícil estabelecer o momento preciso em que o conceito 
(le delito, compreendido como uma ofensa contra a comunida­
de, começa a se diferenciar da noção mais primitiva de "dano" 
ou "injúria". Mas o certo é que um elemento invariável, presen­
i l ' em todo sistema penal, tem sua origem na idéia primitiva de 
agravo (tort), através do qual a sociedade auxilia um indivíduo 
|>ara que este obtenha satisfação por alguma invasão aos seus 
direitos. De um modo geral, podemos considerar delito uma 
ofensa que a sociedade costuma punir, primeiro pela ação dire­
ta do povo, mais tarde pela lei e pela ação pública instituciona­
lizada.
O primeiro termo que se refere à noção de mal e de violên­
cia na cultura grega é hybris. Em Homero, este não constitui um 
ato contrário à lei.19 E um atentado à honra e à prosperidade, que 
tem como sanção somente a reprovação da opinião pública so­
bre o ato cometido; hybris viola um nomos, mas este entendido 
como harmonia geral e não como um corpo de leis. O termo com­
preende também a idéia de ato ilícito religioso, como o delito de 
traição20 ou qualquer ação contrária à segurança geral.21 O seu 
sentido difuso marca, porém, a noção primitiva de delito e o 
primeiro estágio do direito penal.
Com o tempo, hybris tende a se caracterizar como uma vio­
lação das normas que regem a conduta entre os homens. Nos 
séculos VII e VI a.C., com o desenvolvimento de uma economia 
interurbana, a noção de hybris absorve a idéia de "injustiça", que 
implica o desejo desmesurado de riquezas: na cidade, a hybris
19 Em Homero, litada, 1,203 e Odisséia, I, 227-28.
20 Odisséia, XVI, 426-29.
21 Odisséia, II, 192-93.
16 Viviana Gastaldi
A reconstrução do direito ático interessa diretamente não 
somente aos historiadores da Grécia (por pormenorizar o orde­
namento da polis na política interna e externa, as suas institui­
ções e os meios através dos quais os cidadãos exerciam as suas 
atividades), como também aos filólogos (porque o rigor e exati­
dão das expressões jurídicas, de que dão conta os testemunhos 
conservados, permitem uma avaliação cabal do direito e uma 
melhor interpretação dos textos em um sentido interdisciplinar), 
e, por último, aos juristas em geral, pela contribuição do direito 
grego à historia e à cultura jurídica da Antigüidade.
As fontes para o seu estudo não constituem um conjunto 
orgânico sistematizado que possa ser tomado como uma refe­
rência teórica inequívoca; ao contrário, os únicos dados que pos­
suímos da época arcaica - e ainda da clássica - em Atenas estão 
dispersos e fragmentados no que os estudiosos do direito deno­
minam fontes "diretas" e "indiretas".
Entende-se por fontes diretas os documentos nos quais 
emerge de forma imediata a existência de uma norma ou de uma 
instituição jurídica; já as fontes indiretas, subsidiárias das ante­
riores, constituem-se naqueles textos em que tais elementos se 
apresentam de maneira implícita.12
Entre as fontes diretas ou principais, é necessário mencio­
nar os textos legislativos que foram conservados através de epí­
grafes ou manuscritos. Neste último sentido, são particularmen­
te titeis os textos dos oradores, ainda que seja problemático es­
tabelecer de modo claro e certo em que casos o texto da lei é a 
reprodução fiel de textos normativos autênticos:13 a Constitui­
12 BISCARDI, Arnaldo (1982) e PAOLI, Ugo (1976).
1:1 BISCARDI, Arnaldo (1982, p. 21 ss).
Direito Penal na Grécia Antiga 17
ção de Atenas, equivocadamente atribuída a Xenofonte, pu­
blicada pela primeira vez em 1891, logo após a sua reconstru­
ção no Egito; e a antiga lei de Gortina, reveladora de um clima 
jurídico diferente, as Leis e a República de Platão e a Política de 
Aristóteles.
Entre o segundo grupo de fontes, os críticos mencionam 
particularmente os autores latinos das palliatae, Menandro, os 
textos históricos de Xenofonte e Tucídides e os dramas de Aris­
tófanes, principalmente como fontes para o estudo do direito 
público; as tragédias, por sua vez, são consideradas - especial­
mente na obra de Eurípides - documentos essenciais nos quais 
se refletem situações em conformidade com o direito ático pri­
vado. O direito grego, inseparável da moral e da política, não 
aparece restrito a um número limitado de especialistas, mas re­
vela-se como "(...) sentimento comum a todo o povo e que se 
reflete em todas as manifestações da vida".14
As fontes literárias constituem um testemunho válido e in­
questionável para o estudo das características do direito na An­
tigüidade. Neste contexto, consoante elementos presentes na 
épica, é legítimo apontar para determinada organização jurídi- . 
ca presente já na obra de Homero. A existência de certas regras 
de conduta, de violações a essas regras, e de sanções públicas 
que fixam castigos executados por uma autoridade legitimamen­
te estabelecida, permite-nos falar de um direito em gestação ou, 
pelo menos, de um ordenamento jurídico.15
14 "(...) sentimento comune a tutto il popolo e che investe tutte le manifestazioni de­
lla vita." In: BISCARDI, Arnaldo (1982, p. 14 ss).
15 CANTARELLA, Eva (2002); também Maine, citado por CALHOUN, Geor­
ge (1977, p. 15, n°l) percebe a peculiar importância dos poemas homéricos 
para o estudo do direito e das instituições.
18 Viviana Gastaldi
3 . A s N o ç õ e s d e L e i e D e l i t o n a A n tig ü id a d e : 
D e u t o s P ú b lic o s e D e l i t o s P r iv a d o s
Já que o direito penal ou criminal law se define como "aquela 
parte do direito que descreve os crimes e suas punições",16 é 
necessário determinar, sobre bases gerais, o que se entende por 
delito. Pode-se salientar, a esse respeito, que se trata de " ( ...) 
incapacidade ou recusa de viver à altura do padrão de conduta 
considerado obrigatório pelo restante da comunidade"; também 
pode ser entendido como "(...) uma revolta do individuo con­
tra a sociedade", ou simplesmente como "( ...) uma ação proibi­
da".17
Para o nosso estudo do direito arcaico, toma-se fundamen­
tal a afirmação de Pollock:18
(...) cada novo exemplo em que a comunidade infligiu uma pu­
nição reafirmou um princípio existente ou mostrou o caminho ao 
estabelecimento de um novo; deste modo, o corpo do costume 
tendo que se fazer com punição pública tendeu constantemente 
a expandir-se e tornar-se de maior autoridade. Aqui, temos o 
gérmen do direito penal, primitivo e elementar, mas apenas di­
reito, pois consiste em normas reconhecidas de conduta que eram 
feitas cumprir pela comunidade, envolvendo uma ação punitiva.
16 "that part o f the law which relates to crimes and their punishment." In: CA­
LHOUN, George (1977, p. 1).
17 "failure or refusal to live up to the standard o f conduct deemed binding by the rest 
o f the community (...) a revolt o f the individual against society (...) a prohibited 
action." In: CALHOUN, George (1977, p. 2). Esses primeiros parênteses es­
tão em itálico no original.
18 each new instance in which the community inflicted punishment either 
reaffirmed an existing principle or led the way to the establishment o f a new one; 
thus the body o f custom having to do with public punishment tended constantly to 
expand and tobecome more authoritative. Here we have the germ o f criminal law, 
primitive and elementary, but none the less law, for it consists o f recognized rules 
o f conduct, enforced by the community and involving a punitive action." Citado 
por CALHOUN, George (1977, p. 2, n° 8).
Direito Penal na Grécia Antiga 19
É difícil estabelecer o momento preciso em que o conceito 
de delito, compreendido como uma ofensa contra a comunida­
de, começa a se diferenciar da noção mais primitiva de "dano" 
ou "injúria". Mas o certo é que um elemento invariável, presen­
te em todo sistema penal, tem sua origem na idéia primitiva de 
agravo (tort), através do qual a sociedade auxilia um indivíduo 
para que este obtenha satisfação por alguma invasão aos seus 
direitos. De um modo geral, podemos considerar delito uma 
ofensa que a sociedade costuma punir, primeiro pela ação dire­
ta do povo, mais tarde pela lei e pela ação pública instituciona­
lizada.
O primeiro termo que se refere à noção de mal e de violên­
cia na cultura grega é hybris. Em Homero, este não constitui um 
ato contrário à lei.19 É um atentado à honra e à prosperidade, que 
tem como sanção somente a reprovação da opinião pública so­
bre o ato cometido; hybris viola um nomos, mas este entendido 
como harmonia geral e não como um corpo de leis. O termo com­
preende também a idéia de ato ilícito religioso, como o deli to de 
traição20 ou qualquer ação contrária à segurança geral.21 O seu 
sentido difuso marca, porém, a noção primitiva de delito e o 
primeiro estágio do direito penal.
Com o tempo, hybris tende a se caracterizar como uma vio­
lação das normas que regem a conduta entre os homens. Nos 
séculos VII e VI a.C., com o desenvolvimento de uma economia 
interurbana, a noção de hybris absorve a idéia de "injustiça", que 
implica o desejo desmesurado de riquezas: na cidade, a hybris
19 Em Homero, Iliada, I, 203 e Odisséia, I, 227-28.
20 Odisséia, XV1,426-29.
21 Odisséia, II, 192-93.
20 Viviana Gastaldi
de alguns implica, por castigo divino, a perdição de todos. No 
século V, época das representações trágicas no cenário de Ate­
nas, hybris se aplica a diferentes delitos: sacrilégio, adultério, 
incesto, violações à hospitalidade, ofensas a mortos e parentes, 
injúrias verbais, atentados contra a autoridade constituída.
É o termo aclikía que se fixa, finalmente, na cultura jurídica 
grega como referente da idéia de injustiça. Nele prevalece a re­
presentação do sacrilégio, da violação de algo sagrado, donde 
viria a mácula criminal; de agos advém, deste modo, o crime con­
cebido como sacrilégio, tal como testemunham os trágicos;22 e 
aáikía exige a compensação em virtude da lei de equilíbrio. O 
conceito de adikía introduz também a noção de impiedade co­
metida no interior da cidade, e a idéia de delito fixa-se sobre uma 
repressão organizada.
Para diferenciar delitos privados de delitos públicos, Louis 
Gernet23 cita, a respeito dos primeiros, as seguintes característi­
cas: 1. Requerem sanção jurídica, ou seja, supõem uma justiça 
organizada; 2 .0 fato de lesar os indivíduos não é percebido, de 
forma imediata, como uma ofensa à comunidade e só provoca 
reação organizada do grupo de forma secundária. De acordo 
com estas afirmações, Gernet considera delitos privados o ho­
micídio, o roubo (salvo exceções) e todo o atentado a bens alheios 
ou a pessoas.
Já sobre a noção de lei, a Grécia conhecia, primitivamente, 
dois tipos: themis e dikê. Não é fácil determinar com precisão o 
significado destes termos na experiência cultural grega; ambos
22 Especialmente Ésquilo, Os Sete contra Tebas, 1017, e Sófocles, Édipo Rei, 
1426.
23 GERNET, Louis (1917, p. 67).
Direito Penal na Grécia Antiga 21
os conceitos são de origem diversa, mas interdependentes. O 
primeiro, característico da época homérica, é definido como o 
preceito que fixa os direitos e deveres de cada um sob a autori­
dade do chefe do genos,24 seja no interior do palácio ott em cir­
cunstâncias excepcionais, tais como aliança, matrimônio ou com­
bate. Nessa época os gregos não conheciam as leis tal como nós; 
o poder estava nas mãos dos reis, a sociedade apresentava ca­
racterísticas feudais e a justiça se resolvia no seio da família ou 
por meio da arbitragem. Nesta perspectiva, os themistes eram 
decisões autoritárias emanadas por um chefe, princípios laten­
tes e fórmulas mágico-religiosas que provinham de Zeus25 e que 
se impunham a todos os membros da comunidade.
Dikê, por sua vez, expressa a idéia de ordem e equilíbrio en­
tre os interesses individuais e coletivos da sociedade humana.
No começo do século VIII, com a expansão colonial e a or­
ganização das cidades, faz-se necessário examinar os diferentes 
costumes, com a finalidade de verificar quais devem ser retidos 
em nome de um interesse comum. Apela-se, então, à elabora­
ção de regras comuns, fixando deveres e direitos; também apa­
rece, mais tarde, a escrita. Nas diversas cidades os primeiros le­
gisladores ditam as suas constituições: a lei se opõe, deste modo, 
ao arbitrário.
Em Atenas, a constituição estabelecida por Clístenes logo 
após a morte de Sólon destitui a aristocracia gentílica e divide a
24 O termo genos significa família no seu sentido mais amplo: comunidades 
de parentes de várias gerações que vivem sob um mesmo teto e numa 
mesma terra. Suas características mais relevantes são: solidariedade recí­
proca, rituais religiosos comuns, lugares comuns de incineração, direito 
hereditário, dever de endogamia.
25 Em Homero, litada, I, 238; V, 761; XI, 807; XVI, 387. Odisséia, XVI, 403; IX, 114.
22 Viviana Gastaldi
cidade topograficamente; o conselho - composto agora por qui­
nhentos representantes das dez tribos - e a assembléia do povo 
impõem um sentido jurídico à norma: a lei, fundamento e ema­
nação da democracia, tem sua origem na norma política, nomos, 
que constitui "(...) a expressão do que o povo, como um todo, 
considera como uma norma válida e obrigatória".26 Mas este ter­
mo, desconhecido em Homero, está testemunhado com diferen­
tes valores em Hesíodo e nos poetas líricos do século VI: aplica- 
se, assim, ao canto e à música, ao ritual religioso, ao costume ou 
ao princípio de caráter moral.27 Em uma época arcaica, nomos 
significa "parte", derivada do verbo nemo (dividir ou distribuir 
proporcionalmente), daí o seu significado de ordem e equilíbrio 
(eunomia); logo, concilia-se a idéia da boa ordem e dos hábitos 
simples observados na prática. O seu valor normativo se funda 
no hábito e mantém a tensão entre valores positivos e normati­
vos ao longo de toda a experiência jurídica grega.28
26 “(...) the expresión o f what the people as a whole regard as a valid and binding 
norm." In: JARRAT, Susan (1991, p. 41).
27 Tal como testemunham também os trágicos: Ésquilo, Coéforas, 420; Agam., 
594,1207.
28 ROMILLY, Jacqueline de (1971, p. 23); OSTWALD, Martin (1986, p. 84 ss).
i . A S o c ied a d e H o m é r ic a e a C u l tu r a d e V er g o n h a .
C ó d ig o s d e C o m po r t a m en t o
O modelo de sociedade homérica corresponde, em linhas ge­
rais, ao que a antropologia e a psicologia americana denominaram 
"cultura de vergonha". Esta denominação refere-se à sociedade na 
qual o respeito às regras não se deve à imposição de deveres, ca­
racterística da cultura de culpa. Nesta última, quem tem um com­
portamento proibido sente-se oprimido pela culpa, pelo temor e 
pela angústia. Na primeira, a observação da regra é obtida através 
de modelos positivos de condutas, e os que não se adaptam incor­
rem na vergonha social e na conseqüente sanção de inadequação 
definida por vergonha (aideomai). É por isto que, no mundo homé­
rico, os heróis transferiam os seus atos reprováveis (a responsabi­
lidade) aos deuses ou às forças externas (moira).
Deste modo, quem não estava à altura dos modelos poderia 
perdera sua própria dignidade; a esta sanção somavam-se o temor 
a boatos e à burla dos seus concidadãos, o que fazia com que o au­
tor fosse privado de sua honra. Temia-se, desta maneira, a demou 
phêmis, voz popular que reconhece a virtude ou sanciona a falta.2'1
29 Em relação ao parricídio e à sanção pública da demou phatis é reveladora 
a passagem de litada, IX, 458 ss.
26 Viviana Gastaldi
Esta sanção é antecedente à atimia clássica, penalização que já 
na polis implicava a exclusão e a separação dos espaços públicos 
e a perda total ou parcial dos direitos de cidadão. E indubitável 
que os modelos propostos para os homens homéricos eram os dos 
heróis, ou seja: o homem dotado de força física, beleza, coragem; 
para a mulher, o modelo a seguir era o de Penélope, ideal de be­
leza, castidade e fidelidade.30
2. Le;i e A u to r id a d e n o s P o e m a s H o m é r ic o s
Os poemas homéricos nos oferecem uma descrição comple­
ta da sociedade grega durante os séculos X e IX a.C.. O poder 
estava articulado em três órgãos: a assembléia, o conselho de 
anciãos e a agora. A comunidade estava composta pelos gemé, 
agrupados em phratrias e philais. O conselho (boulê) era compos­
to pelos chefes ou reis dos diferentes genos: os gerontes, que eram 
definidos não pela idade mas por status e constituíam o primei­
ro nível consultivo. O rei, descendente de um deus ou de um 
grande herói, tinha o máximo poder político, religioso e militar 
e ostentava os themistes. Presidia ele a assembléia, cujas decisões 
- por ele mesmo executadas - eram essenciais para o conjunto 
da sociedade. A agora, por sua vez, era o lugar dos debates - 
antecipando, com o exercício da práxis política, o papel funda­
mental do logos na cultura agonal dos gregos. Sua forma era cir­
cular e, no seu centro, encontrava-se o círculo sagrado ocupado 
pelos lugares dos gerontes. Nessas reuniões, o arauto é quem dá
30 Para a ambigüidade feminina de Penélope, virtuosa, mas possuidora de 
mêtis (astúcia), remetemos a CANTARELLA, Èva (2002, p. 64 ss)
Direito Penal na Grécia Antiga 27
a cada um o cetro para que possa falar; o povo tem um papel 
passivo e só intervém através de sons ou ruídos de aprovação 
(aclamação ou descontentamento).31
Quando se trata de determinar a administração da justiça 
em Homero, indo além das considerações sobre a cena do escu­
do de Aquiles, que posteriormente desenvolveremos, é possível 
apontar algumas passagens dos poemas que demonstram a exis­
tência de juizes únicos:
1. Aqui nem todos podem ser reis: não é uma soberania de mui­
tos; um só seja príncipe, um só rei: aquele a quem o filho do 
arteiro Cronos deu cetro e leis para que reine sobre nós.32
2. Glorioso Atrida! Rei dos homens, Agamenon! Por ti começa­
rei e por ti acabarei, já que reinas sobre muitos homens e Zeus 
te deu o cetro e leis para que olhes pelos súditos.33
3. Ali vi Minos, ilustre filho de Zeus, sentado e empunhando áu­
reo cetro, pois administrava justiça aos defuntos.34
4. Telêmaco, cultiva em paz tuas verdades e assiste a decorosos 
banquetes, como deve fazer o varão que administra justiça, pois 
todos lhe convidam.35
5. A hora em que o juiz se levanta na Ágora, depois de haver fa­
lhado muitas causas de jovens litigantes (...)36
Enquanto a competência destes juizes, tinicos possuidores 
do cetro, parecia abranger múltiplos aspectos da vida social e 
política, a dos gerontes, pelo contrário, e tal como veremos mais 
adiante, limitava-se ao litígio em matéria de venáetta, ou seja, a
31 Devo estas considerações ao Professor Jorge Piqué, através do seu Defini­
ciones de categorías descriptivas en los poemas homéricos (inédito).
32 llíada, II, 204-206.
33 llíada, IX, 96-99.
34 Odisséia, XI, 568.
35 Odisséia, XI, 185.
36 Odisséia, XI, 439.
28 Viviana Gastaldi
casos de homicídio. Nestes, tal como aponta Cantarella,37 o ór­
gão encarregado de regular a norma consuetudinária da vendetta 
parece ser o equivalente ao Areópago no período de Dracon.
A respeito da noção de "lei", os termos relativos a "direito" 
nos poemas, às vezes interdependentes no contexto homérico, são 
themis e dikê. Ainda que normalmente se defina themis como o con­
junto de regras de comportamento que coinddem com a vontade 
divina, tais regras são consuetudinárias: a regra que prescreve o 
dever de hospitalidade,38 a que impõe o dever de sepultar os mor­
tos,39 de oferecer libações aos deuses,40 ou mesmo a regra que de­
creta o direito de expressar na assembléia a própria opinião, em 
contraste com o parecer do rei.41 Os themistes, por sua vez, são pro­
nunciamentos oraculares de sentenças divinas recebidas pelos ho­
mens através da mediação de um eleito (o rei);42 tais preceitos, de 
formação espontânea, coincidem com a ordem natural do mundo.
Um claro exemplo da importância de themis no mundo 
homérico nos é proporcionado pela Odisséia,43 na passagem em 
que Odisseu fala dos Ciclopes:
(...) E chegamos à terra dos ciclopes, soberbos e sem lei (themis). 
Não possuem ágoras onde se reunir para deliberar, tampouco leis 
(themis), mas vivem nos cumes dos altos montes, dentro de co­
vas escavadas; cada qual impera sobre seus filhos e suas mulhe­
res, e não se intrometem uns com outros.
37 CANTARELLA, Eva (1976, p. 8).
38 llíada, XI, 779; Odisséia, XIV, 56.
39 llíada, XXIII, 44-46.
' 40 Odisséia, III, 46.
41 llíada, IX, 33.
42"The king held a scepter, a hereditary symbol o f power; he acquired communion with 
the gods though ritual acts, and he summoned meetings o f the whole people before 
whom he made known his decisions." In: BONNER Robert; SMITH, Gertrude 
(1968, p. 9).
43IX, 105-115.
Direito Penal na Grécia Antiga 29
A dikê, expressão da justiça humana, manifesta-se como a 
ordem imánente a que se deve uniformizar a ação do indivíduo 
enquanto membro de uma coletividade. Dikê surge, desta for­
ma, como a regra que domina as relações interfamiliares em um 
âmbito de relações públicas que constitui o prelúdio de um sis­
tema democrático.44 Deste modo, enquanto o verbo themisteuein 
(ligado ao substantivo themis) indica o ato de emanar uma nor­
ma,45 dikazein, ao contrário, diz respeito ao ato de oferecer uma 
solução para uma controvérsia.46
3 . A R e g u la ç ã o d o H o m ic íd io : E x í l io , V e n d e t t a e P o in é
Para uma melhor compreensão do homicídio - o ato ilegí­
timo mais importante em tempos de Homero - é necessário re­
considerar os valores e os códigos sociais do mundo épico.
Como ponto de partida sobre estas questões, três aspectos 
apresentam-se relevantes: a solidariedade do grupo familiar (ge­
nos), o sentimento de honra do grupo e do indivíduo (time) e a 
escassa intervenção de um Estado organizado. Não é possível 
entrar, neste contexto, nas notórias e amplamente discutidas 
questões relativas à reconstrução histórica do mundo da épica: 
somente se pode afirmar, de acordo com os críticos especialis­
tas em direito homérico,47 que o período que transcorre entre os 
séculos IX e VII é bastante homogêneo e apresenta limites: o pos 
quem, constituído na idade micênica, representada por um so-
44 Ver, a esse respeito, MITTICA, Pietro (1996, p. 190).
45 Odisséia, IX, 114; XI, 569.
46 Conforme infra com relação aos gerontes na cena do escudo de Aquiles.
47 GIOFFREDI, Cario (1974).
30 Viviana Gastaldi
berano; o limite ante quem, que não é certamente o da polis, mas
o de uma monarquia cedendo diante da aristocracia em um 
emergente clima democrático.
Definitivamente, para melhor compreender os poemas, 
pode-se afirmar que ambos (ainda que reconhecendo a posterio- 
ridade da Odisséia) cobrem um amplo período de tempo, unitá­
rio em suas características e variado em muitos aspectos.48
Neste sentido, é possível pensar a sociedade homérica em 
termos de uma cultura da vergonha, diferenciando-a, como afir­
mamos, de uma cultura daculpa. A sociedade operava, neste 
contexto, mediante os códigos de nidos (vergonha e pudor, utili­
zados em sentido amplo, já que abrangem a aidos pessoal e a 
cooperação na batalha49), a time, a cólera (orge) e, obviamente, a 
valorização excessiva de bia (ou seja, a força física) numa socie­
dade fortemente competitiva.
Tomando como base os episódios centrais da Ilíada e da 
Odisséia: a ira de Aquiles,50 a vendetta de Odisseu, a quem os pa­
rentes injuriaram dilapidando os bens de sua casa51 e, entre am­
bos, a ofensa de Paris a Menelau, que mobilizou gregos contra 
troianos,52 podem-se distinguir, nos poemas, três situações de 
ruptura da ordem social: o homicídio, a lesão da honra e os atos 
que provocam algum tipo de dano ao patrimonial.
48 CANTARELLA, Eva (2002, p. 16) afirma que nos poemas confluem tradi­
ções culturais diversas: desde um ponto de vista geográfico, cobrem todo o 
mundo do Mediterrâneo oriental. Não é possível, portanto, pensar nos poe­
mas homéricos como uma única fonte de conhecimento, que se refere a uma 
sociedade determinada em um único contexto espaço-temporal.
49 CAIRNS, Douglas (1993).
50 Ilíada, IX, 387.
51 Odisséia, XXIV, 458.
52 Ilíada, III, 351,366; XIII, 622; XVII, 92; Odisséia, XIV, 70.
Direito Penal na Grécia Antiga 31
O homicídio no mundo homérico, segundo Eva Cantare- 
11a,53 era aceito na medida em que refletia a superioridade do 
homicida, o qual demonstrava ter mais força e arete54 do que o 
morto. Se ele recorria ao engano, evitando confrontar-se com 
a vítima, não somente deixava de provar que era o melhor, mas, 
ao contrário, demonstrava pelo meio utilizado que efetivamen­
te não o era. Em somente três casos o homicídio era reprova­
do: quando acompanhado de engano, contra um hóspede, e 
em caso de parricídio.55 A violação a estes valores heróicos (a 
philia nos laços parentais, o dever de hospitalidade) era, por­
tanto, objeto de reação. Quais eram, então, as conseqüências?
O homicídio dava início a uma reação, às vezes de tipo pri­
vado; outras vezes parecia ser um meio através do qual a comu­
nidade expressava os seus sentimentos e reagia com violência 
física à violação de uma regra. A vendetta, dominada pelo senti­
mento de honra do grupo e pela necessidade de dar satisfação 
ao morto, era uma sanção material, mas na interação jurídica 
existiam outras, como a desonra e a sanção da demou phatis.56
Existiam dois modos de evitar a vendetta por parte do gru­
po da vítima: o exílio e a poiné, mas a aplicação de um não ex­
cluía a possibilidade de que o outro também viesse a ser aplica­
do. Todavia, não fica claro se o exílio era um modo de fuga ou
''' CANTARELLA, Eva (1976, p. 23).
M Definida arete como "excelência prática de natureza física, intelectual ou 
moral", e também "excelência e virtude", foi adquirindo, com o tempo, di­
ferentes matizes por causa da diversidade das situações contextuáis. VIA- 
NELLO DE CÓRDOVA, Paola (1990) esboça os diferentes significados do 
termo de acordo com a realidade histórica, política e social de Atenas.
’ Odisséia, XIV, 402; XXI, 22-30; Iliada, IX, 558-61.
86 Ver exemplos em Ilíada, XIII, 414; XIV, 482; XXII,271; XVII, 34; XVIII, 333 ss.
32 Viviana Gastaldi
se era fruto de um acordo com os parentes da vítima.57 Pois 
bem, o grupo do morto não estava obrigado a aceitar a poiné: 
se o fizesse, não poderia executar a vingança, que seria então 
um ato reprovável e legitimaria uma nova vendetta.
A poiné - composição pecuniária fruto de um acordo entre 
as partes, com a qual se renuncia à vendetta de sangue de modo 
a evitar o exílio - era em parte utilizada para honrar e aplacar o 
morto.58 O termo poiné está relacionado a time: ambos indicam 
valorização, honra, pagamento. Pode ser inicialmente entendi­
do como indenização, ressarcimento material; posteriormente 
virá a se revestir de um caráter mais moral de sanção, pena ou 
expiação; em Homero, contudo, não era somente um remédio de 
fato contra a vendetta: era uma instituição com uma configuração 
jurídica precisa, tal como se aponta em uma passagem da Ilíada:
Pela morte do irmão ou do filho recebe-se uma compensação; e, 
uma vez paga a importante quantia, o assassino fica no povoa­
do, e o coração e o ânimo irado se acalmam com a compensação 
recebida (...)59
De qualquer sorte, caso houvesse dúvidas sobre o paga­
mento efetivo da poiné, ou seja, sobre a legitimidade da vendet­
ta, a comunidade intervinha com os gerontes, e tinha lugar um 
processo que reconhecia e investigava os fatos e os argumentos 
de cada uma das partes em litígio.
Este processo - considerado um dos primeiros testemunhos 
de repressão por homicídio - é o que aparece representado no 
escudo de Aquiles:
57 Ilíada, XIII, 696.
58 Ilíada, XXIV, 592 ss.
59 Ilíada, 632-36.
Direito Penal na Grécia Antiga 33
Os homens estavam reunidos no mercado. Ali uma discussão se 
iniciou. Dois homens pleiteavam a pena devida por causa de um 
assassinato: um deles insistia em que tinha pago tudo em presen­
ça do público, o outro negava ter recebido. Ambos pediam o re­
curso a um árbitro para o veredicto.
As gentes aclamavam a ambos, em defesa de um ou de outro; os 
arautos, por sua vez, tentavam conter o povo. Os anciãos esta­
vam sentados sobre polidas pedras em um círculo sagrado e ti­
nham nas mãos os cetros dos claros arautos, com os que se iam 
levantando, por turno, para dar o seu veredicto.
No centro, havia dois talentos de ouro no chão, para premiar 
àquele que pronunciasse a sentença mais justa.60
O povo (laoi), na cena homérica, aparece reunido em assem­
bléia (agorê). Dois homens disputam a causa da poiné por homi­
cídio; o povo aclama, tomando partido por uma ou outra parte; 
os arautos contêm a multidão, e os anciãos, sentados sobre pe­
dras, em círculo sagrado, levantam os cetros com os quais fazem 
justiça. Omitindo algumas questões de tradução e de interpre­
tação do texto grego,61 somente diremos que, das partes, uma 
dizia ter pago, a outra negava ter recebido a poiné. E esta era a 
questão a resolver: tinha-se pago ou não, ou seja, qual dos dois 
argumentos era legítimo?
No que concerne ao caráter da decisão, a crítica formula o 
seguinte problema: a sentença emitida era de caráter arbitrai ou 
judicial? O uso de dikazein no texto grego remete a uma decisão
i mediata e direta, baseada no exame dos fatos por parte dos an- 
riãos, sem que se mediasse a vontade das partes. Ou seja, os ge­
ro ates constituíam um órgão institucional, público, que emitia
lllada, XVIII, 496-508.
Ver CANTARELLA, Eva (1976).
34 Viviana Gastaldi
uma sentença judicial?62 A presença do istôr, por sua vez, re­
mete a uma testemunha ou a uma espécie de juiz instrutor do 
seu testemunho? Dependia, definitivamente, da decisão dos ge- 
rontes. Por último, os dois talentos dos versos 507-508 estavam 
destinados a quem fosse o vencedor, ou seja, à parte que ofe­
recesse a dikê (o raciocínio) mais justa.
Como notas conclusivas sobre a cena do julgamento, pode- 
se afirmar que, nela, emergem alguns elementos sobre a admi­
nistração da vendetta no interior da comunidade. A assembléia 
é o único juiz da sociedade representada; tal órgão guia o com­
portamento dos homens tendo por base regras e valores comuns. 
A incerteza sobre o comportamento a seguir tem como conse­
qüência o recurso ao conselho, o pronunciamento dos gerontes, 
os quais, como depositários das regras, devem procurar uma 
solução. Deste modo, a dikê nasce como norma do direito ritual­
mente proposta em assembléia, em um contexto formalmente 
público e diferente da sanção espontânea da demon phêmis.
Quanto ao exílio, salientando uma vez mais que o mesmo 
não constituía uma pena, mas sim - junto à poiné - outro remé­
dio para evitar a vingança de sangue, é importante ter em men­
te que não era condição suficiente para que o homicida ficasse a 
salvo: os parentesdo morto podiam prendê-lo em fuga e execu­
tar a vendetta.63
62 Para uma explicação exaustiva da cena e análise filológica do texto, reme­
temos a CANTARELLA, Eva (1994, p. 183).
63 Ver Uíada, II, 661-66; XII, 694-97; XXIII, 83-88. Odisséia, XV, 272-78, XXIII; 117- 
122; XXIV, 480-44.
I >ireito Penal na Grécia Antiga 35
4. A Q u e s tã o d a In t e n c io n a lid a d e
O problema central apresentado por toda noção de penali­
dade liga-se ao exame do elemento intencional. É necessário
I >erguntar-se, neste sentido, se no mundo homérico a vendetta
I >oderia assumir outras formas que considerassem o caráter vo- 
luntário do ato cometido.
Uma das passagens mais reveladoras da Ilíada expõe com 
clareza a condição de quem cometeu um delito (neste caso, um 
homicídio): sua presença infunde terror e temor na comunida- 
(le (thambos), e por isso ele foge para outro país;64 segundo o texto, 
aquele que comete o delito é, na realidade, vítima da própria 
condição humana; isto não o isenta, porém, da responsabilida­
de, nem o protege da vingança dos ofendidos. No caso de um 
homicídio "preterintencional", como surge da leitura de Ilíada 
XXIII, 85, mesmo não pretendendo provocar a morte do outro, 
(i homicida parte para o exílio: com isto, outorga-se satisfação 
11.1 ra a alma da vítima, que não tolera a presença do criminoso 
na própria terra. Ao mesmo tempo, a honra do grupo é restitui­
da pelo afastamento do culpável.
Revela idênticas conseqüências a passagem da Odisséia, 
\ 111,259 ss. Nesta, fingindo, Ulisses conta à deusa Atena um re­
í a l o : ele mata um homem de forma premeditada e pede para os
1 oinpanheiros deste que o ajudem a exilar-se longe da pátria. 
Mais importante ainda é a passagem de Odisséia65 na qual a fuga 
ocorre após matar um consangüíneo, por temor à vendetta do 
C.rupo. Conseqüentemente, como salienta Gioffredi, a necessi-
¡Inula, XXIV, 480. 
( >rlisséia, XV, 272.
36 Viviana Gastaldi
dade de reparar a honra perdida e de dar satisfação à vítima 
não levava em consideração a intencionalidade do homicídio. 
O exílio, então, para além do caráter voluntário do homicídio, 
advém do costume admitido pelo grupo social em conjunto.
Por último, deve-se destacar, sobre o exame do delito e a 
regulação do homicídio, a importância da religiosidade. Os poe­
mas tentam harmonizar a liberdade do homem com a vontade 
divina e a determinação do destino. O mal opera como um equí­
voco, que faz do culpado um homem digno de desprezo e re­
pulsa.66 Desta forma, fala-se do homicídio como um fato triste e 
desprezível,67 um erro fatal.68 Embora não exista ainda a idéia 
de impureza do homicida e de contaminação, os poemas reve­
lam a noção de ódio da vítima e terror do grupo diante da pre­
sença do homicida.
5 . O A d u lt é r io : a S a n ç ã o P ú b l ic a e a S a n ç ã o M a t e r i a l
A forma elementar do matrimônio homérico fundamenta- 
se em relações de reciprocidade,69 doação e contrapartida. Trata- 
se de um complexo sistema de negociação de bens e riquezas que 
representa a base de um intercâmbio político, social e econômi­
co. A transferência da noiva da casa paterna para a do seu mari­
do era socialmente legitimada por vizinhos e pela philoi, os quais 
atuavam como testemunhas na celebração das bodas ou gamos.
66 Na época clássica falaremos em mancha (miasma) e na periculosidade de 
seu contagio. Conforme infra, Parte II.
67 Iliada, XXIII, 85.
68 Iliada, XXIV, 480.
69 Para o exame da reciprocidade em Homero, remetemos especialmente a 
SEAFORD, Richard (1994).
Direito Penal na Grécia Antiga 37
A presença do povo na celebração, tal como testemunha­
do pela descrição do escudo de Aquiles,70 ratifica a importância 
do reconhecimento social do matrimônio, já que este se realiza 
kata nomon, ou seja, de acordo com a lei e o costume.
Por outro lado, enquanto no sistema dotal, característico de 
uma época mais tardia, o pai transfere os seus bens para o ma­
rido, na época homérica é o marido quem oferece os seus bens 
,10 pai de sua esposa (eedna). Tais bens, que geralmente con­
sistiam em algumas cabeças de gado, poderiam ser reclamados 
pelo marido uma vez que se comprovasse o adultério femini­
no. Esta instituição jurídica, chamada por Homero engue,71 é o 
(|ue hoje conhecemos sob a denominação de "garantias pessoais 
d<‘ obrigações".72
Em se tratando de adultério, Homero refere-se na Odisséia 
mediante o relato do aedo Demódoco - aos amores ilícitos de 
Ares e Afrodite. Tal ato divino contém, todavia, elementos cha­
ves de semelhança com o adultério cometido entre os homens; 
I.iremos menção a estes com o objetivo de elucidar a passagem 
( ilada: 1. como é aplicada a sanção da demou phati; 2. o poder da 
assembléia para sancionar; 3. as garantias pessoais e a devolu-
i..io dos eedna; 4. o pagamento de uma multa (khreos) por moikha- 
yj in; 5. o papel feminino no adultério.
Uma vez que os amantes deitaram-se no leito, tomaram- 
c prisioneiros da armadilha que Hefesto fabricou. Este deus, 
rntão, chamou os demais deuses para que se reunissem em as- 
■ mhléia e fossem testemunhas de sua desonra:
" IIliida, XVIII, 490.
' i hlwséia, VIII, 351.
1 ( ANTARELLA, Eva (2002).
38 Viviana Gastaldi
Pai Zeus, bem aventurados e sempre eternos deuses! Vide presen­
ciar estas coisas ridículas e intoleráveis: Afrodite, filha de Zeus. 
Infama-me continuamente, a mim, que sou manco, desejando o 
pernicioso Ares (...)
Vereis como se deitaram no meu leito e eu me angustio ao con­
templá-los!
O requerimento da devolução do dote entregue por Hefesto 
não se faz esperar:
_(...) Mas os enganosos laços os sujeitarão até que o pai me resti- 
tua integralmente o dote que entreguei pela sua filha desavergo­
nhada. Esta é bela, mas incontinente.
Com a chegada dos deuses, que riem ao contemplar os 
amantes na armadilha, a sanção pública do ridículo e do boato 
é infligida e a honra de Ares já está comprometida. A reação rei- 
vindicatória de Hefesto, enquanto marido traído que não pode 
recuperar por si só a honra perdida, apela a um procedimento 
público que tende a tutelar sua vendetta: a assembléia dos deu­
ses, em paralelo com a assembléia humana, exige que Ares pa­
gue pelo adultério:
E um riso inextinguível ergueu-se entre os bem-aventurados 
númenes ao ver o artifício do engenhoso Hefesto. E um deles disse 
ao que tinha mais próximo: "As más ações não prosperam e o 
mais tardio alcança o mais ágil; como agora Hefesto, que é man­
co e lento, aprisionou com o seu artifício Ares, o mais veloz dos 
deuses que o Olimpo possui, que terá de pagar-lhe a multa pelo 
adultério"
As três sanções indicam a regulação do adultério homéri- 
co: o riso e a sanção psíquica (o ridículo); a devolução do dote 
por parte do pai, ligado possivelmente ao repúdio da adúltera, 
a sanção material e o pagamento da multa. O texto revela, em
Direito Penal na Grécia Antiga 39
relação ao poder da assembléia, a voz e o murmúrio dos deu­
ses, similar ao que acontece em uma reunião de homens. Indu­
bitavelmente, ainda reconhecida a semelhança e não a verdade 
da passagem homérica, trata-se de uma descrição da sociedade 
real, cujas regras de comportamento estabelecem obrigações 
contratuais.
A outra questão importante que aparece mencionada nos 
versos da Odisséia é aquela relativa às garantias pessoais. Pos- 
seidon, o único deus que não ri, suplica a Hefesto pela liberda­
de de Ares, e diz:
Desata-lhe e eu te prometo que pagará, como mandas, o que seja
justo entre os deuses imortais.
A exortação de Posseidon é rejeitada por Hefesto, diante da 
insegurança que pressupõe a promessa de um terceiro, de um 
mediador; Hefesto aceita a proposta de Posseidon somente 
quando este, mais tarde, anuncia sua própria promessa de pa­
gamento; se o aprisionado fugir, ele próprio tornar-se-á deve­
dor:
Se Ares fugir, se recusandoa satisfazer a dívida, eu mesmo te
pagarei tudo.
A menção homérica de khreos, como ressarcimento material
I >or adultério ou moikheia, implica uma consideração importan­
te: o uso deste termo, e não de poiné, aplicado em casos de ho­
micídio ou dano patrimonial, parece antecipar uma mudan-
i,.i na regulação da venãetta, uma diferenciação substancial na 
natureza do dano, indício de uma maior precisão e maior aper- 
leiçoamento do sistema reivindicatório.
Por último, em relação ao papel feminino no adultério, se­
40 Viviana Gastaldi
gundo demonstra o texto homérico, não há, além do repúdio 
e da vergonha, sanção alguma para a mulher. Esta ausência 
de outro tipo de sanção denota, ao que parece, o papel passi­
vo da mulher, considerada "seduzida" e não responsável pela 
sua ação. Tal como observa Cantarella,73 nos poemas a mulher 
não é culpável de adultério: Helena não tem nenhuma respon­
sabilidade pelo seu adultério com Paris, já que foi Afrodite quem 
a persuadiu para que lhe obedecesse. De modo similar, Pené- 
lope74. afirma que algum deus fez com que Helena ultrajasse o 
leito de Menelau. Na morte de Agamenon, segundo a fonte ho- 
mérica, Clitemnestra também não é culpável de homicídio; a 
responsabilidade recai sobre Egisto, seu cúmplice.
O único destino possível para a adúltera era, por certo, o 
retomo à casa paterna e a uma vida de reclusão e humilhação. 
A mudança mais significativa terá lugar dois séculos mais tar­
de, uma vez que o Estado passa a regular o delito de moikheia e 
o marido pode, então, dar morte impunemente ao cônjuge adúl­
tero sob certas condições de flagrante. A lapidação, ademais, 
impõe-se não como lei, mas como sanção coletiva para a adúl­
tera, tal como testemunham o mito e os textos trágicos.75
6 . O A b a n d o n o N o x a l
No direito primitivo, os membros de uma família são soli­
dários entre si, não só quando se trata de demandar por uma 
ofensa, mas também quando se trata de satisfazer o grupo da
73 CANTARELLA, Eva (2002, p.119).
74 Odisséia, 23.
75 Especialmente Troianas, de Eurípides (950-1050).
Direito Penal na Grécia Antiga 41
vítima: no primeiro caso fala-se de solidariedade ativa, no segun­
do de solidariedade passiva. Conforme os testemunhos conser­
vados, a primeira, que une em uma ação comum os parentes da 
vítima, permaneceu na Grécia por muito mais tempo do que a 
solidariedade passiva.
Os testemunhos que nos oferecem os poemas homéricos 
dão conta do seguinte: quando alguém mata um membro de 
outro genos, o exílio é a conseqüência imposta, seja por ele mes­
mo ou por alguém próximo.76 O abandono noxal é, então, essen­
cialmente, um ato de rompimento da solidariedade entre o cul- 
pável e seu grupo, e marca na história jurídica o ponto de emer­
gência do princípio de responsabilidade.77
No caso do adultério, Hefesto não demanda a caução aos 
parentes de Ares, o adúltero, mas Posseidon oferece-se volun­
tariamente como avalista; ou seja, não existe nenhuma ação con- 
Ira a família do sedutor. Tal como aponta Glotz:78
Em um tempo em que toda obrigação real era ainda no fato ou 
na forma uma obrigação ex delicto, as famílias não aceitavam mais, 
a este respeito, o peso da solidariedade.79
'' ¡liada, II, 661, em caso de exilio forçado por parentes; Odisséia, XIII, 556, 
.) uto-exilio de Odisseu; Ilíada, XXIII, 85-88, exilio forçado pelo pai do ho­
micida.
' ' VISSCHER, Fernand de (1932, p. 858 ss).
( iLOTZ, Gustave (1904, p. 192).
.... (...) en un temps où toute obligation réelle était encore en fait ou en la forme une
obligation ex delicto, les familles n'acceptaient plus à cet égard les charges de la 
solidarité. "
l. A E volução do S ist e m a P en a l .
0 C ó d ig o d e L e is d e D racon
O primeiro passo para o desenvolvimento das instituições 
jurídicas na antiga polis aconteceu através da separação de po­
deres e de funções judiciais, a serem desenvolvidas por nove 
magistrados: o arconte epônimo, o arconte basileus (chefe religio­
so da comunidade), o polemarco (que comandava durante a 
guerra) e seis thesmothetai. O primeiro deles tinha responsabili­
dades especiais em questões de herança, o segundo presidia fes-
1 ¡vais e julgamentos por homicidio, o polemarco era o respon­
sável pela justiça militar e os outros seis magistrados, cuja eti­
mologia significa "fixadores de pareceres" ,80 eram, presumivel- 
i nente, responsáveis pela organização de tribunais e julgamen- 
los; em outros termos, eram juízes.
Com a expansão do alfabeto,81 tornou-se possível fixar por 
escrito as normas que deveriam ser aplicadas. Os primeiros le­
gisladores surgiram no Oriente, em meados do século VII: Za-
.....fixers ofrulings." In: HUMPHREYS, Sally (1983, p. 238).
111 <) nlfabeto não é uma invenção dos gregos: já na época micênica era uti­
lizado um sistema silábico, logo substituído por um alfabeto fenício, mo­
dificado e adaptado pelos gregos com a inclusão das vogais.
46 Viviana Gastaldi
leuco, em Locros, e Carondas, em Catana. A invenção da es­
crita82 passa a ser, então, um requisito para a emergência da 
legislação.
Nas últimas décadas do século VII (621 a.C.) aparece um 
documento legislativo de fundamental importância para a his­
tória do direito na Grécia arcaica. Este documento, representa­
do nas leis de Dracon, demonstra que o Estado, no século VII, 
toma para si, por via exclusiva, o direito de punir quem comete 
um homicídio. É deste modo que a idéia de delito, de crime, 
aparece como um comportamento proibido, sancionado por um 
órgão institucionalmente competente.
Na realidade, a situação político-social de Atenas no final 
do século VII, após o levante de Cilon numa tentativa de derro­
car a aristocracia, fez com que fosse imperativa a redação de um 
código de leis que mantivesse a regulamentação fora do alcan­
ce exclusivo dos árbitros ou dos juizes, colocando-a no plano de 
administração da justiça.83 Tinha por intenção substituir o regi­
me da vingança privada pela repressão social e colocar freio ao 
derramamento de sangue; por isto, a parte lesada ficava obri­
gada a levar o culpável perante os magistrados e a reconhecer 
que o direito de punir caberia somente aos representantes da 
cidade.
As leis, escritas em axones (tabuinhas de madeira sustenta­
das por eixos giratórios), foram descobertas em 1843 em uma
82 Platão, em Leis, III, 680a, salienta a importância da escrita para a vida cul­
tural grega.
83 Ante tal situação, já se tinha ouvido a voz de Hesíodo, que em sua obra Os 
trabalhos e os dias contrapõe a cidade justa à injusta e expressa sua aspiração 
por uma justiça mais reta, não exercida por juizes que obram pelo seu pró­
prio arbítrio (202-255).
Direito Penal na Grécia Antiga 47
lábua de pedra sobre a qual foram reeditadas no ano de 409 
pelos anagrafeis; nelas aparece pela primeira vez a distinção 
('ntre homicídio premeditado, voluntário e homicídio involun- 
lário. Também previa uma aiáesis, concedida pelos membros 
do grupo da vítima, por meio da qual o homicida poderia evi- 
lar a pena ou retornar à pátria após o exílio.
Um elemento importante a ser destacado refere-se ao esta­
belecimento do exílio não como remédio para a vendetta, mas 
como pena. Neste sentido, deve-se salientar o aparecimento do 
exílio na época de Dracon como a única sanção pública para o 
homicídio.84
Esta lei influenciou notavelmente o oráculo de Delfos e o 
culto de Apoio, que instituiu o princípio de impureza do homi- 
c ida (miasma) e a regulamentação do katharmós (puro).85 Logo, a 
lei grega sobre o homicídio tem suas raízes mais profundas na 
religião, tal como afirmam os estudiosos do direito.86
A implantação de diferentes tribunais encarregados de jul­
gar os delitos foi outro elemento considerado essencial para a 
• ■volução do sistema jurídico:
São passíveis de ir ao Aréopago os culpáveis por morte voluntá­ria; neste caso, a cidade associa-se inteiramente ao sentimento 
religioso de vingança provado pela família; sem embargo, ela o 
assiste e garante esta vingança: a morte do culpável. O Palladion 
julga os assassinatos involuntários; é necessário, ainda, satisfa­
zer à família e a cidade o concede, mas de modo limitado. Um
111 l .m definitiva, e segundo a opinião de MODRZEJEWSKI, J. Mélèze (1991, 
p. 11), tanto o exílio como a pena de morte para o homicídio voluntário 
não são mais do que modalidades da vingança de sangue, estabelecidas
i lentro de um sistema profundamente reivindicatório.
" I ’latão, em Leis, IX, 805b, afirma a necessidade de purificação do homicida.
"" ( ANTARELLA, Eva (1976, p. 84), GERNET, Louis (1917, p. 149).
48 Viviana Gastaldi
degrau abaixo, o Dophinion: trata dos assassinatos que mais tar­
de serão considerados legítimos, aqueles que o costume inocen­
tava desde há muito tempo, aqueles que, se beneficiando do pres­
tígio das graças seculares, encontram agora no sistema um lugar 
definido e privilegiado.87
No caso de homicídio premeditado, a lei não impedia a in­
tervenção da família: a prorresis, ou proibição ao homicida de 
aparecer em lugares públicos, bem como o anúncio de vingan­
ça, poderiam ser realizadas pelos parentes da vítima: o pai, ir­
mão e os filhos apresentavam-se, deste modo, como acusadores 
oficiais. A lei também permitia ao homem matar o sedutor, o 
adúltero pego em flagrante com sua esposa, mãe, irmã, filha ou 
concubina.
2. As Modificações de Sólon.
0 Sistema Democrático
O código draconiano, com exceção de sua lei em matéria 
de homicídio, foi substituído, ao cabo de tuna geração, pelo có­
digo soloniano. Sólon, poeta e magistrado principal, é conside­
rado o fundador do Estado ateniense. Suas reformas foram co­
nhecidas como "a liberação das cargas", ou seja, a abolição da
87 "De l'Aréopage sont passibles les coupables de meurtre volontaire: dans ce cas, la 
cité s'associe entièrement au sentiment religieux de vengeance éprouvé par la fam i­
lle, sans réserve elle l'assiste et lui garantit cette vengeance, la mort du coupable. 
Le Palladion juge les meurtres involontaires; il faut encore satisfaction â la famille, 
et la cité la lui accorde, mais limitée. A un degré au- dessous, le Dophinion: il s'agit 
des meurtres qu'on dira plus tard légitimes, ceux que la coutume innocentait de­
puis longtemps, ceux qui, bénéficiant du prestige des grâces séculaires trouvent ma­
intenant dans le système une place define et comme privilégiée." In: GERNET, 
Louis (1917, p. 374). Ver também SAID, Suzanne (1978, p. 151).
Direito Penal na Grécia Antiga 49
escravidão por dívidas e a redistribuição de terras, junto a es­
sas medidas, Sólon estabeleceu que a riqueza seria o único cri­
tério para a atribuição do poder público, e não mais a nobreza 
de berço.
De acordo com Aristóteles,88 as suas reformas democráti­
cas mais importantes foram duas: a norma que estabelecia que 
qualquer cidadão que desejasse poderia empreender uma ação 
a favor dos agravados e o direito de apelação a um tribunal po­
pular contra a decisão de um magistrado (ephesis).89 Portanto, a 
disposição draconiana que reconhecia a um membro da família 
lesada o direito de vingança é estendida por Sólon a qualquer 
cidadão. Surgem, deste modo, as graphai, ou ações públicas, junto 
às dikai, ou ações privadas.
Graças a Sólon, as graphai se multiplicaram à medida que 
.1 justiça pública se fortaleceu: o povo transformou-se, deste 
modo, em mestre da república.90
O tempo de gestação e de exercício do sistema democráti­
co teve, então, seu primeiro impulso com a constituição de Só­
lon, e, logo após, uma contribuição fundamental advinda das 
medidas adotadas por Clístenes. No final do século VI, entre 510 
i' 500 a.C., limitaram-se os poderes do Areópago, introduziu-se
0 ostracismo, ou seja, o desterro dos cidadãos considerados pe­
rigosos para a democracia, e fomentou-se, na população da Áti-
1 .i, a idéia de defesa de seus próprios direitos. As fontes de po- 
i ler residiam em três órgãos institucionais: o Conselho (boulê),
< iimposto por quinhentos membros eleitos por sorteio entre os
•* ( 'onstituiçao dos Atenienses, 9.
MURRAY, Oswyn (1983, p. 179). 
"" ( ’onstituiçao dos Atenienses, 9.
50 Viviana Gastaldi
cidadãos, os tribunais e a Assembléia Geral. Nestas sessões, ce­
lebradas não menos do que 40 vezes por ano, o povo exercia di­
retamente seu voto em caráter resolutivo e previa a discussão 
das pautas elaboradas pelo Conselho. A votação na assembléia 
realizava-se pelo simples levantar da mão; nos tribunais, era 
decidida através do uso de pedras (pebble): cada dikastes coloca­
va, em segredo, uma pedra numa das duas um as (em uma de­
las colocavam-se os votos para a condenação e na outra os vo­
tos para a absolvição).
3 . As C o n seq ü ên c ia s do H o m ic íd io : 
a M ácula , o E x íl io e a P u rifica ç ã o
Uma característica importante na evolução do direito ate­
niense é sua estreita relação com a religião. Os delitos cometi­
dos no interior da cidade implicam um atentado contra a ordem 
estabelecida pela divindade. Deste modo, a religião força a so­
ciedade a intervir nos assuntos de sangue interfamiliares, e esta 
atua contra a família que rejeita a sua intervenção. Uma idéia 
nova aparece no espírito dos gregos: a da mácula que o homici­
da contrai. O miasma vinculado ao crime vira objeto de horror, 
já que constitui uma ameaça de contágio; por esta razão, o ho­
micida está proibido de habitar sob um teto comum e de parti­
cipar da mesma refeição; e sua presença, na Ágora ou nos tem­
plos, deixava a cidade vulnerável à maldição dos deuses. Para 
ele, só restava o exílio como recurso.
Sob este regime, o crime cometido contra um membro da 
família torna-se um delito particularmente grave, a ser julga­
do com a mesma severidade de um ato voluntário e premedi­
Direito Penal na Grécia Antiga 51
tado.91 Ao mesmo tempo, Apoio, instalado em Delfos, no an­
tigo tripé consagrado à deusa Themis, exige que todo crime 
seja expiado para assegurar a punição do culpável.
Os testemunhos que as tragédias nos oferecem a respeito 
são eloqüentes. Em Coéforas, de Esquilo, logo após ter assassi­
nado sua mãe, Orestes se apresenta diante dos espectadores 
como um ser maculado: "Afligem-me crimes e dor e a toda a 
minha estirpe, quando sobre mim sinto a indesejável mácula 
desta vitória" ,92 e vítima de uma incipiente demência: mediante 
a imagem platônica, Esquilo ilustra para o público ali presente 
os terríveis perigos em que um homem cai ao ter sobre ele o peso 
da mácula do crime.
Mas, saibas - não sei como isso vai acabar, pois é como se eu ti­
vesse os meus cavalos fora da pista: sim, os meus pensamentos, 
que já não domino, me arrastam vencido, e, no meu coração, o 
terror está presto (—).93
Deste modo, Orestes acredita ver "as odiosas cadelas de sua 
mãe cercando-o".94
Não é por acaso que o poeta trágico concede uma impor- 
l.tncia particular à enfermidade contraída pelo miasma: é a con-
I irmação dos problemas que, como vimos, gerava o crime con-
I ra um parente. Assim, a ilusão das Erínnias (seres monstruo- 
fic>s que pertencem ao mundo feminino) não constitui uma re-
I 'resentação religiosa da realidade, mas sim um recurso dramá­
" I'latão, Leis, IX.
1016.
1021.
Versos 1056 e 1057.
52 Viviana Gastaldi
tico através do qual Esquilo confere um caráter fictício à con­
duta hum ana .95
Um outro elemento importante nesta consideração sobre 
a questão da mácula é que o homicídio cometido no interior 
da família cria um laço estreito de contágio entre o homicida e 
os seus parentes mais próximos. Deste modo, Platão impõe se­
veras restrições ao homicida logo após o retorno do seu exílio .96 
Na cena trágica, esta penalidade, estabelecida na realidade se­
gundo a lei ateniense pelo tribunalcorrespondente, revela-se 
como uma sanção auto-imposta. Assim, o exílio de Orestes em 
C oéforas:
Estas mulheres horrendas como Górgones! Vestidas de negro e
emaranhadas em múltiplas serpentes! Já não posso ficar aqui!97
Ligada à questão do homicídio justificado ou legítim o 
aparece a idéia da purificação como medida punitiva. A esse 
respeito, não existe unanimidade: para Platão ,98 certos crimes 
requerem purificação, mesmo que estejam isentos de sanção 
legal, mas nestes casos é somente depois da purificação que
o criminoso é chamado katharós. Para D emóstenes, ao contrá­
rio, e da mesma forma que para oradores posteriores,99 katha­
rós significa "sem sanção legal" e "p u ro", pois, como afirma 
Parker:
95 Ver, para uma ampliação do tema, GASTALDI, Viviana (2001, p. 102).
96 Ver Leis, 868c-869a.
971050.
9SLeis, 865b-869a.
99 O autor de uma morte "legítima" é chamado piedoso (hosios) em Andóci- 
des, I, 95, 96; Demóstenes, Terc. Fil., 44; conforme também SAID, Suzanne 
(1971, p. 152, nota 25).
Direito Penal na Grécia Antiga 53
O status ritual e jurídico é assimilado fazendo com que, em con­
textos de hom icídio "puro" e "não sujeito às sanções legais", se­
jam freqüentemente sinônim os.100
Todavia, estudiosos do direito grego afirmam que, nos tes­
temunhos da oratória, katharós não significa que o homicida de 
um ato justificado esteja isento de uma purificação simbólico-re- 
ligiosa, e o fato de um homicídio justificado não ser punível pela 
lei não implica que o criminoso seja dispensado da purificação:
N a Grécia histórica, a purgação era exigida daqueles que perpe­
travam homicídio justificável. Isto, em sua opinião, confirma sua 
própria visão de que a purgação de homicídio era um símbolo 
sacro e solene de reconciliação entre o assassino e seus deuses em 
lugar de um apaziguamento de fantasmas ou uma expiação ofe­
recida aos deuses. Ela simboliza a reintegração do assassino à 
sociedade.101
No texto de Esquilo, Orestes afirma implicitamente que sua 
purificação foi praticada em Delfos e presidida por Apoio, que 
é o verdadeiro purificador de hom ens e lares, tal como aponta 
Parker.102 Mas, na verdade, a purificação é um ritual muito mais 
efetivo do que a súplica. A limpeza com água faz parte dos rituais, 
sendo mencionada na lei de Cirene,103 m as, ao que parece, trata-
ioo " R i t u a l and legal status are assimilated to the extent that in contexts o f homicide 
'pure' and 'not subject to legal sanctions' are often synonymous." In: PA RK ER, 
Robert (1983, p .114).
1(11 "Purgation in historical Greece was required o f the perpetrators o f justifiable ho­
micide. This, in his opinion, confirms his own view that homicide purgation was a 
sacred and solemn symbol o f reconciliation between the slayer and his native gods 
rather than a placation o f ghosts or an expiation offered to the gods. It symbolizes 
the reinstatement of the slayer in society." In: B O N N ER , R obert; SM ITH , G er­
trude (1968, p. 206).
" I’ARKER, R obert (1986, p. 139). A sua fu nção p u rificad ora foi apontada, 
entre outros, por SID W ELL , K eith (1996, p. 8) e D YER, R. R. (1969, p. 43).
1 I’A RKER, R obert (1986, p. 371)
54 Viviana Gastaldi
se somente de um ritual subsidiário; o ato central era a purifi­
cação do sangue pelo sangue, tal como o revelam os testemu­
nhos das tragédias.104
4 . O T e s te m u n h o d a O r a t ó r i a em C a s o s d e H o m ic íd io : 
M á c u la e C o n tá g io n a R e t ó r i c a d e A n t i f o n t e 105
O documento mais revelador da questão da mácula e do 
contágio por homicídio é o produzido por um orador: Antifon­
te, primeiro logógrafo grego e mestre da persuasão. O sofista 
demonstra com absoluta clareza que a oratoria Atica constitui 
uma fonte importantíssima de dados para a apreciação da cul­
tura e da vida política de Atenas. Indo além das discussões acer­
ca da autenticidade e da autoria das Tetralogías, um fato certo e 
incontestável é que a retórica de Antifonte contém numerosos 
traços que a aproximam do pensamento sofista da segunda me­
tade do século V; não menos certo é o fato de que suas obras 
demonstram um profundo conhecimento de pautas e valores 
sociais que faziam parte do imaginário ateniense, tais como as 
relacionadas com o homicídio, a responsabilidade, a vítima e a 
mácula contraída pelo homicida.
As Tetralogías, ainda que de data incerta, foram provavel­
mente produzidas entre 430 e 425 a.C.. Embora apresentem es­
truturalmente o formato dos discursos forenses, não foram es­
critas para deliberação nos tribunais, mas para uma audiência
104 Eurípides, Ifigênia entre os Touros, 1223,1224,1338; Ésquilo, Euménides, 449.
105 Para uma versão ampliada com bibliografia, remetemos a GASTALDI, Vi­
viana (2004).
Direito Penal na Grécia Antiga 55
mais intelectualizada. São, na realidade, criações fictícias com­
preendidas na categoria das Antilogiai ou discursos opostos.
Mesmo mantendo grande semelhança formal com os dis­
cursos, algumas diferenças também podem ser salientadas: a 
narrativa é quase inexistente, o esforço do orador concentra-se 
nos argumentos, dando quase por óbvios outros pormenores. O 
mundo das Tetralogías, como foi tão bem salientado por Gaga­
rin,106 é uma Sophistopolis, denominação que revela explorar o 
autor as complexidades de um conjunto de "padrões'" cuja exi­
bição era virtualmente impossível nas cortes reais. Os discursos 
forenses (I, V e VI) apresentam diferentes estratégias argumen­
tativas e, em geral, parecem ter sido escritos para uma performan­
ce oral. Para além de semelhanças e diferenças de estilo que 
marcam destinatários opostos, ambas as obras contêm traços que 
as ligam estreitamente ao direito arcaico, fato este que não dei­
xa de surpreender, considerando a época em que foram produ­
zidas e, em conseqüência, a notável evolução do pensamento 
jurídico. O Discurso I e as Tetralogías serão, pois, nosso objeto de 
análise para o tema proposto.
No discurso I (Contra a sua madrasta) - escrito para um clien­
te, provavelmente entre 420-411 a.C. - , o filho da vítima acusa 
sua madrasta de envenenamento, tendo como cúmplice a con- 
( tibina (pallakê) do amigo de seu pai. A concubina (que tinha atua-
i Io administrando o veneno) - em termos jurídicos "a autora 
material do fato" - tinha sido condenada a morrer na roda (tro-
i lusteisa), suplício reservado aos escravos. Indo além de questões 
idativas à questão da responsabilidade, o discurso expõe - como
GAGARIN, Michael (2000, p. 104).
56 Viviana Gastaldi
no teatro - uma viva narrativa na qual - e isso é o que, na re­
alidade, interessa - é o sentimento do genos no que concerne à 
matéria criminal.
Toda a exposição enquadra-se, deste modo, em uma dikê 
phonou, procedimento por homicídio no qual os parentes da ví­
tima - logo após uma proclamação na Ágora em que declaram
o nome do agressor e exigem vingança - conduzem a causa para 
a frente do basileus, oficial encarregado dos assuntos de homicí­
dio. Apesar da intervenção do Estado em matéria de homicídio, 
este continuava sendo um assunto privado (tinha vigência a lei 
de Dracon com as reformulações posteriores de Sólon). Mas, 
diferentemente de épocas mais primitivas, no século V eram o 
Estado e os seus tribunais que, mediante um julgamento, com­
provavam a culpabilidade do acusado e, conseqüentemente, 
pronunciavam um veredicto.
Neste caso, o tribunal era o Areópago, que entendia em 
matéria criminal. O que se torna curioso no caso formulado por 
Antifonte é a permanente recorrência da necessidade de puni­
ção, não em termos de sentença justa, mas sim de vingança. A 
vingança é quase o leitmotiv que norteia o discurso e, como ocorre 
na cena trágica, é motivada pela piedade e pelo dever para com
o pai.107 A obrigação da vingança por parte do filho, receptor da 
episkepsis,m está

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