Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Viviana Gastaldi Direito Penal na Grécia Antiga S u m á r io Questões preliminares 1. Teorias sobre o nascimento do direito. O mito do pré-direito.......................................................................11 2. Direito grego e Direito Ático. Fontes.......................................... 15 3. As noções de lei e delito na Antigüidade: delitos públicos e delitos privados.............................................. 18 Parte I O Começo: Homero 1. A sociedade homérica e a cultura de vergonha. Códigos de comportamento.......................................................... 25 2. Lei e autoridade nos poemas homéricos....................................26 3. A regulação do homicídio: exílio, vendetta e poiné...................29 4. A questão da intencionalidade..................................................... 35 5. O adultério: a sanção pública e a sanção material...................36 6. O abandono noxal.............................................................................40 Parte II A Época Clássica 1. Evolução do sistema penal. O código de leis de Dracon.............................. .......... ....................45 2. As modificações de Sólon. O sistema democrático................. 48 3. As conseqüências do homicídio: a mácula, o exílio e a purificação..................................................50 4. O testemunho da oratoria em casos de homicidio: mácula e contágio na retórica de A ntifonte.............................54 5. Dikê phonou: o processo por homicidio, A retórica processual: a cena trágica e o tribunal... ............... 62 Parte III A Penalidade 1. Abordagens da penalidade. Considerações gerais................83 2. Vingança versus penalização......... ..................................... .........84 3. Principais punições: evolução e características. Os exemplos das tragédias............................................................86 4. A execução da punição: as instituições......................................95 5. Vohmtário/involuntário como categorias legais. Os aportes da sofistica.................................................................... 97 6. As Teorias sobre a finalidade da punição: retribucionismo e utilitarismo..... .............................................. 106 ' ' 1 ,v ' i ’ Referências............................................................................................ 115 1. T e o r ia s s o b r e o n a sc im en to do d ir e it o . O MITO DO PRÉ-DIREITO A resposta tradicional ao problema da individualização do direito é aquela que, partindo de Platão e passando por Hobbes e Marx, liga a existencia do direito à existencia do Estado. Se gundo esta hipótese, o direito não existia nas sociedades tribais ou pré-literárias. Este ponto de vista, sustentado pelos que en tendem o direito através de uma perspectiva evolucionista, é particularmente defendido - entre os estudiosos do direito gre go - por Michael Gagarin.1 Para tal autor, é praticamente impen sável falar de direito penal em uma sociedade arcaica, pois este surgiria quando o Estado, tendo estabelecido normas legítimas de comportamento, passasse a regular os delitos e, desta forma, as penas. Contrariamente, a antropologia do direito, cujo principal representante é Malinowski, identifica o direito de um modo mais flexível; para esse estudioso das sociedades mais antigas, são jurídicas todas as regras concebidas e aplicadas como obri gações de vínculo. Neste sentido, o autor elaborou uma teoria 1 GAGARIN, Michael (1989). 12 Viviana Gastaldi geral do direito primitivo baseada no mecanismo de reciproci dade de certas atividades sociais.2 Particularmente iluminadora do direito grego mais arcai co é a postura de Hoebel,3 que sustenta que: (...) quando a com unidade considera justo e correto o exercício da força por parte do indivíduo que sofreu um dano, ou por par te do grupo parental em um a situação determ inada, e, ao m es m o tem po im pede ao transgressor o contra-ataque, o direito pre valece e a ordem triunfa sobre a violência. Tal postulado é essencial para a compreensão do direito arcaico e, em especial, para sustentar a opinião de todos aque les que consideram que o direito grego nasce com Homero,4 pois, segundo fontes que os poemas épicos testemunham, a existên cia não só de certas regras de conduta, como também de viola ções a essas regras, e ainda de sanções públicas que fixam a pu nição - executada por uma autoridade legitimamente estabele cida - , permite-nos falar de um direito penal em gestação ou, pelo menos, de um ordenamento jurídico.5 Contudo, um estudo sobre o direito penal, seu surgimento e sua evolução na Grécia apresenta alguns questões que, ainda hoje, são discutidas pela crítica especializada. Referimo-nos, em particular, à etapa denominada pré-direito, que alguns autores diferenciam de outras mais complexas em que se percebe a pre sença de instituições juridicamente organizadas. O certo é que este mito do pré-direito remete os estudiosos 2 Por exemplo, a atividade da pesca. Ver CANTARELLA, Eva (2002, p. 192). 3 Conforme CANTARELLA, Eva (2002, p. 193). 4 Ver, a este respeito, as observações de CALHOUN, Georges (1977) e SAUN DERS, Trevor (1994). 5 CANTARELLA, Eva (1976), (1987) e (2002). Direito Penal na Grécia Antiga 13 ao problema, não menor, de estabelecer - não com exatidão cro nológica, mas sim de forma aproximada - as origens do direito penal na Grécia. A esse respeito, Louis Gemet6 afirma que já em tempos muito antigos identificava-se o delito como um ato sa crílego, e que esta identificação foi, na realidade, o começo do direito penal. Considerando esta questão como - nas palavras de Canta- rella7 - uma "discussão aberta", talvez convenha aqui conside rar que tanto uma cultura de vergonha como uma cultura de culpa8 evidenciam a necessidade de manter determinados com portamentos fixados pelo costume e, por outro lado, a necessi dade de que a sociedade, ainda que precária e de escasso desen volvimento, sancionasse as violações às ditas regras, considera das faltas graves. Segundo observa Gemet, o pré-direito constitui um conjun to de forças que impõe a observação de determinadas normas de comportamento (tal como na sociedade homérica). Não existe ainda um Estado capaz de obrigar os seus a, com a força, obser var a regra; portanto, para Gernet, nesta etapa não havia um direito. O autor determina, a partir do estudo dos mitos, alguns âmbitos nos quais a força do pré-direito se manifesta. O primei ro é o âmbito das relações interfamiliares, regulado através da reciprocidade no benefício da hospitalidade. 6 GERNET, Louis (1917, p. 312 ss). 7 CANTARELLA, Eva (1987). 8 A diferenciação estabelecida por antropólogos e psicólogos americanos foi aplicada por DODDS ROBERTSON, Eric (1951) para explicar o mundo gre go. Mais recente é a interpretação de Hooker (1987), que amplia o sentido de aidos em Homero; para uma visão diferente e menos restritiva ver CAIRNS, Douglas (1993). 14 Viviana Gastaldi No mundo grego pré-citadino, as correspondências entre estrangeiros eram reguladas segundo as leis de hospitalidade (xe- mia); quem havia recebido esta dádiva estava obrigado, no futu ro, a restituir a hospitalidade e seus beneficios a todos os mem bros da casa (oikos). Este mecanismo, deste modo, garantía a cir culação da riqueza e dos bens de prestigio, criando iim vínculo. Neste tipo de pensamento existe também a força do elemen to mágico-religioso. Entre a prática jurídica e a crença nos efei tos mágicos de certos objetos (técnica mágica) podia existir urna relação. A magia verbal eficaz sobreviveu por muito tempo no direito da cidade, como demonstra o recurso das arai, ou impre- cações em função desanções previstas não só nos tratados in ternacionais, mas também nas leis de algumas cidades, como a famosa lei de Teso, de 470 a.C. A relação entre direito e pré-di- reito não é sempre a mesma, nem tem continuidade; certas for mas mais antigas desaparecem, pois mudam os contextos sociais nos quais elas tinham a sua razão de ser.9 Relacionadas também ao mito do pré-direito surgem ou tras questões, tais como a autoridade e a lei. Uma definição ex trema e restritiva da lei, sustentada por alguns juristas, ignora a diferença entre jus e lex. Esta se define exclusivamente em ter mos da existência da lei escrita; ou seja, a lei se baseia em prin cípios formais e abstratos adotados pela autoridade política de uma sociedade que tem uma legislação positiva. Pelo contrário, segundo o modelo de Pospisil,10 a existên cia do direito requer quatro atributos: autoridade, que significa possuir o poder necessário para induzir ou forçar a maioria dos 9 Ver CANTARELLA, Eva (1994). 10 BURCHFIEL, K. (1993). Direito Penal na Grécia Antiga 15 membros de um grupo a aceitar suas decisões; intenção de apli cação universal, ou seja, que existam diferenças entre decisões jurídicas e políticas, podendo as primeiras serem aplicadas a si tuações idênticas no futuro; obrigatio (iuris vinculum), ou deve- res e direitos entre as partes, e, por último, a aplicabilidade da sanção, seja através de força física ou coerção. De acordo com esta teoria antropológica, o direito, definido segundo os quatro critérios acima citados, está presente em todas as sociedades; logo, nem a escrita, nem a formulação de sistemas abstratos de leis são requisitos necessários para a sua existência. 2 . D i r e i t o G r e g o e D ir e i t o Á t ic o . F o n t e s Entendemos por direito ático, para diferenciá-lo do grego em geral, o ordenamento jurídico vigente em Atenas no seu pe ríodo clássico, entre os séculos V e IV a.C. Tal direito é coerente com a estrutura da polis, com o Estado autônomo e soberano que incluía todos os cidadãos varões livres. O requisito de polites era indispensável para ser considerado ateniense: estavam excluí dos as mulheres, as crianças e os culpados de atimia.11 Esta sociedade, que vive sob a tutela da polis, tem também um direito mais antigo, diferenciado claramente do direito da cidade, que regula as obrigações no seio da família: o direito fa miliar, que se refere à noção de oikos, termo constante nos tex tos de direito ático. Portanto, pela denominação "direito ático" entendem-se o direito público e o privado que imperaram em Atenas nos séculos V e IV a.C. 11 Sobre o significado deste termo ver infra, Parte III. 16 Viviana Gastaldi A reconstrução do direito ático interessa diretamente não somente aos historiadores da Grécia (por pormenorizar o orde namento da polis na política interna e externa, as suas institui ções e os meios através dos quais os cidadãos exerciam as suas atividades), como também aos filólogos (porque o rigor e exati dão das expressões jurídicas, de que dão conta os testemunhos conservados, permitem uma avaliação cabal do direito e uma melhor interpretação dos textos em um sentido interdisciplinar), e, por último, aos juristas em geral, pela contribuição do direito grego à historia e à cultura jurídica da Antigüidade. As fontes para o seu estudo não constituem um conjunto orgânico sistematizado que possa ser tomado como uma refe rência teórica inequívoca; ao contrário, os únicos dados que pos suímos da época arcaica - e ainda da clássica - em Atenas estão dispersos e fragmentados no que os estudiosos do direito deno minam fontes "diretas" e "indiretas". Entende-se por fontes diretas os documentos nos quais emerge de forma imediata a existência de uma norma ou de uma instituição jurídica; já as fontes indiretas, subsidiárias das ante riores, constituem-se naqueles textos em que tais elementos se apresentam de maneira implícita.12 Entre as fontes diretas ou principais, é necessário mencio nar os textos legislativos que foram conservados através de epí grafes ou manuscritos. Neste último sentido, são particularmen te úteis os textos dos oradores, ainda que seja problemático es tabelecer de modo claro e certo em que casos o texto da lei é a reprodução fiel de textos normativos autênticos:13 a Constitui 12 BISCARDI, Arnaldo (1982) e PAOLI, Ugo (1976). 13 BISCARDI, Arnaldo (1982, p. 21 ss). Direito Penal na Grécia Antiga 17 ção de Atenas, equivocadamente atribuída a Xenofonte, pu blicada pela primeira vez em 1891, logo após a sua reconstru ção no Egito; e a antiga lei de Gortina, reveladora de um clima jurídico diferente, as Leis e a República de Platão e a Política de Aristóteles. Entre o segundo grupo de fontes, os críticos mencionam particularmente os autores latinos das palliatae, Menandro, os textos históricos de Xenofonte e Tucídides e os dramas de Aris tófanes, principalmente como fontes para o estudo do direito público; as tragédias, por sua vez, são consideradas - especial mente na obra de Eurípides - documentos essenciais nos quais se refletem situações em conformidade com o direito ático pri vado. O direito grego, inseparável da moral e da política, não aparece restrito a um número limitado de especialistas, mas re- vela-se como "(...) sentimento comum a todo o povo e que se reflete em todas as manifestações da vida".14 As fontes literárias constituem um testemunho válido e in questionável para o estudo das características do direito na An tigüidade. Neste contexto, consoante elementos presentes na épica, é legítimo apontar para determinada organização jurídi ca presente já na obra de Homero. A existência de certas regras de conduta, de violações a essas regras, e de sanções públicas que fixam castigos executados por uma autoridade legitimamen te estabelecida, permite-nos falar de um direito em gestação ou, pelo menos, de um ordenamento jurídico.15 14 "(...) sentimento comune a tutto il popolo e che investe tutte le manifestazioni de lla vita." In: BISCARDI, Arnaldo (1982, p. 14 ss). 15 CANTARELLA, Eva (2002); também Maine, citado por CALHOUN, Geor ge (1977, p. 15, n°l) percebe a peculiar importância dos poemas homéricos para o estudo do direito e das instituições. 18 Viviana Gastaldi 3. As N o ç õ e s d e L e i e D e l i t o n a A n tig ü id a d e : D e l i t o s P ú b l ic o s e D e l i t o s P r iv a d o s Já que o direito penal ou criminal lazo se define como "aquela parte do direito que descreve os crimes e suas punições"/6 é necessário determinar, sobre bases gerais, o que se entende por delito. Pode-se salientar, a esse respeito, que se trata de "( ...) incapacidade ou recusa de viver à altura do padrão de conduta considerado obrigatório pelo restante da comunidade"; também pode ser entendido como "( ...) uma revolta do individuo con tra a sociedade", ou simplesmente como "(...) uma ação proibi da".17 Para o nosso estudo do direito arcaico, toma-se fundamen tal a afirmação de Pollock:18 (...) cada novo exem plo em que a com unidade infligiu um a pu nição reafirm ou um princípio existente ou m ostrou o cam inho ao estabelecim ento de um novo; deste m odo, o corpo do costum e tendo que se fazer com punição pública tendeu constantem ente a expandir-se e tornar-se de m aior autoridade. A qui, tem os o gérm en do direito penal, prim itivo e elem entar, m as apenas di reito, pois consiste em norm as reconhecidas de conduta que eram feitas cum prir pela com unidade, envolvendo um a ação punitiva. 16 "that part o f the law which relates to crimes and their punishment." In: CA LHOUN, George (1977, p. 1). 17 "failure or refusal to live up to the standard o f conduct deemed binding by the rest o f the community (...) a revolt o f the individual against society (...) a prohibitedaction." In: CALHOUN, George (1977, p. 2). Esses primeiros parênteses es tão em itálico no original. 18 "(...) each new instance in which the community inflicted punishment either reaffirmed an existing principle or led the way to the establishment o f a new one; thus the body o f custom having to do with public punishment tended constantly to expand and to become more authoritative. Here we have the germ o f criminal law, primitive and elementary, but none the less law, fo r it consists o f recognized rides o f conduct, enforced by the community and involving a punitive action." Citado por CALHOUN, George (1977, p. 2, n° 8). I >i reito Penal na Grécia Antiga 19 É difícil estabelecer o momento preciso em que o conceito (le delito, compreendido como uma ofensa contra a comunida de, começa a se diferenciar da noção mais primitiva de "dano" ou "injúria". Mas o certo é que um elemento invariável, presen i l ' em todo sistema penal, tem sua origem na idéia primitiva de agravo (tort), através do qual a sociedade auxilia um indivíduo |>ara que este obtenha satisfação por alguma invasão aos seus direitos. De um modo geral, podemos considerar delito uma ofensa que a sociedade costuma punir, primeiro pela ação dire ta do povo, mais tarde pela lei e pela ação pública instituciona lizada. O primeiro termo que se refere à noção de mal e de violên cia na cultura grega é hybris. Em Homero, este não constitui um ato contrário à lei.19 E um atentado à honra e à prosperidade, que tem como sanção somente a reprovação da opinião pública so bre o ato cometido; hybris viola um nomos, mas este entendido como harmonia geral e não como um corpo de leis. O termo com preende também a idéia de ato ilícito religioso, como o delito de traição20 ou qualquer ação contrária à segurança geral.21 O seu sentido difuso marca, porém, a noção primitiva de delito e o primeiro estágio do direito penal. Com o tempo, hybris tende a se caracterizar como uma vio lação das normas que regem a conduta entre os homens. Nos séculos VII e VI a.C., com o desenvolvimento de uma economia interurbana, a noção de hybris absorve a idéia de "injustiça", que implica o desejo desmesurado de riquezas: na cidade, a hybris 19 Em Homero, litada, 1,203 e Odisséia, I, 227-28. 20 Odisséia, XVI, 426-29. 21 Odisséia, II, 192-93. 16 Viviana Gastaldi A reconstrução do direito ático interessa diretamente não somente aos historiadores da Grécia (por pormenorizar o orde namento da polis na política interna e externa, as suas institui ções e os meios através dos quais os cidadãos exerciam as suas atividades), como também aos filólogos (porque o rigor e exati dão das expressões jurídicas, de que dão conta os testemunhos conservados, permitem uma avaliação cabal do direito e uma melhor interpretação dos textos em um sentido interdisciplinar), e, por último, aos juristas em geral, pela contribuição do direito grego à historia e à cultura jurídica da Antigüidade. As fontes para o seu estudo não constituem um conjunto orgânico sistematizado que possa ser tomado como uma refe rência teórica inequívoca; ao contrário, os únicos dados que pos suímos da época arcaica - e ainda da clássica - em Atenas estão dispersos e fragmentados no que os estudiosos do direito deno minam fontes "diretas" e "indiretas". Entende-se por fontes diretas os documentos nos quais emerge de forma imediata a existência de uma norma ou de uma instituição jurídica; já as fontes indiretas, subsidiárias das ante riores, constituem-se naqueles textos em que tais elementos se apresentam de maneira implícita.12 Entre as fontes diretas ou principais, é necessário mencio nar os textos legislativos que foram conservados através de epí grafes ou manuscritos. Neste último sentido, são particularmen te titeis os textos dos oradores, ainda que seja problemático es tabelecer de modo claro e certo em que casos o texto da lei é a reprodução fiel de textos normativos autênticos:13 a Constitui 12 BISCARDI, Arnaldo (1982) e PAOLI, Ugo (1976). 1:1 BISCARDI, Arnaldo (1982, p. 21 ss). Direito Penal na Grécia Antiga 17 ção de Atenas, equivocadamente atribuída a Xenofonte, pu blicada pela primeira vez em 1891, logo após a sua reconstru ção no Egito; e a antiga lei de Gortina, reveladora de um clima jurídico diferente, as Leis e a República de Platão e a Política de Aristóteles. Entre o segundo grupo de fontes, os críticos mencionam particularmente os autores latinos das palliatae, Menandro, os textos históricos de Xenofonte e Tucídides e os dramas de Aris tófanes, principalmente como fontes para o estudo do direito público; as tragédias, por sua vez, são consideradas - especial mente na obra de Eurípides - documentos essenciais nos quais se refletem situações em conformidade com o direito ático pri vado. O direito grego, inseparável da moral e da política, não aparece restrito a um número limitado de especialistas, mas re vela-se como "(...) sentimento comum a todo o povo e que se reflete em todas as manifestações da vida".14 As fontes literárias constituem um testemunho válido e in questionável para o estudo das características do direito na An tigüidade. Neste contexto, consoante elementos presentes na épica, é legítimo apontar para determinada organização jurídi- . ca presente já na obra de Homero. A existência de certas regras de conduta, de violações a essas regras, e de sanções públicas que fixam castigos executados por uma autoridade legitimamen te estabelecida, permite-nos falar de um direito em gestação ou, pelo menos, de um ordenamento jurídico.15 14 "(...) sentimento comune a tutto il popolo e che investe tutte le manifestazioni de lla vita." In: BISCARDI, Arnaldo (1982, p. 14 ss). 15 CANTARELLA, Eva (2002); também Maine, citado por CALHOUN, Geor ge (1977, p. 15, n°l) percebe a peculiar importância dos poemas homéricos para o estudo do direito e das instituições. 18 Viviana Gastaldi 3 . A s N o ç õ e s d e L e i e D e l i t o n a A n tig ü id a d e : D e u t o s P ú b lic o s e D e l i t o s P r iv a d o s Já que o direito penal ou criminal law se define como "aquela parte do direito que descreve os crimes e suas punições",16 é necessário determinar, sobre bases gerais, o que se entende por delito. Pode-se salientar, a esse respeito, que se trata de " ( ...) incapacidade ou recusa de viver à altura do padrão de conduta considerado obrigatório pelo restante da comunidade"; também pode ser entendido como "(...) uma revolta do individuo con tra a sociedade", ou simplesmente como "( ...) uma ação proibi da".17 Para o nosso estudo do direito arcaico, toma-se fundamen tal a afirmação de Pollock:18 (...) cada novo exemplo em que a comunidade infligiu uma pu nição reafirmou um princípio existente ou mostrou o caminho ao estabelecimento de um novo; deste modo, o corpo do costume tendo que se fazer com punição pública tendeu constantemente a expandir-se e tornar-se de maior autoridade. Aqui, temos o gérmen do direito penal, primitivo e elementar, mas apenas di reito, pois consiste em normas reconhecidas de conduta que eram feitas cumprir pela comunidade, envolvendo uma ação punitiva. 16 "that part o f the law which relates to crimes and their punishment." In: CA LHOUN, George (1977, p. 1). 17 "failure or refusal to live up to the standard o f conduct deemed binding by the rest o f the community (...) a revolt o f the individual against society (...) a prohibited action." In: CALHOUN, George (1977, p. 2). Esses primeiros parênteses es tão em itálico no original. 18 each new instance in which the community inflicted punishment either reaffirmed an existing principle or led the way to the establishment o f a new one; thus the body o f custom having to do with public punishment tended constantly to expand and tobecome more authoritative. Here we have the germ o f criminal law, primitive and elementary, but none the less law, for it consists o f recognized rules o f conduct, enforced by the community and involving a punitive action." Citado por CALHOUN, George (1977, p. 2, n° 8). Direito Penal na Grécia Antiga 19 É difícil estabelecer o momento preciso em que o conceito de delito, compreendido como uma ofensa contra a comunida de, começa a se diferenciar da noção mais primitiva de "dano" ou "injúria". Mas o certo é que um elemento invariável, presen te em todo sistema penal, tem sua origem na idéia primitiva de agravo (tort), através do qual a sociedade auxilia um indivíduo para que este obtenha satisfação por alguma invasão aos seus direitos. De um modo geral, podemos considerar delito uma ofensa que a sociedade costuma punir, primeiro pela ação dire ta do povo, mais tarde pela lei e pela ação pública instituciona lizada. O primeiro termo que se refere à noção de mal e de violên cia na cultura grega é hybris. Em Homero, este não constitui um ato contrário à lei.19 É um atentado à honra e à prosperidade, que tem como sanção somente a reprovação da opinião pública so bre o ato cometido; hybris viola um nomos, mas este entendido como harmonia geral e não como um corpo de leis. O termo com preende também a idéia de ato ilícito religioso, como o deli to de traição20 ou qualquer ação contrária à segurança geral.21 O seu sentido difuso marca, porém, a noção primitiva de delito e o primeiro estágio do direito penal. Com o tempo, hybris tende a se caracterizar como uma vio lação das normas que regem a conduta entre os homens. Nos séculos VII e VI a.C., com o desenvolvimento de uma economia interurbana, a noção de hybris absorve a idéia de "injustiça", que implica o desejo desmesurado de riquezas: na cidade, a hybris 19 Em Homero, Iliada, I, 203 e Odisséia, I, 227-28. 20 Odisséia, XV1,426-29. 21 Odisséia, II, 192-93. 20 Viviana Gastaldi de alguns implica, por castigo divino, a perdição de todos. No século V, época das representações trágicas no cenário de Ate nas, hybris se aplica a diferentes delitos: sacrilégio, adultério, incesto, violações à hospitalidade, ofensas a mortos e parentes, injúrias verbais, atentados contra a autoridade constituída. É o termo aclikía que se fixa, finalmente, na cultura jurídica grega como referente da idéia de injustiça. Nele prevalece a re presentação do sacrilégio, da violação de algo sagrado, donde viria a mácula criminal; de agos advém, deste modo, o crime con cebido como sacrilégio, tal como testemunham os trágicos;22 e aáikía exige a compensação em virtude da lei de equilíbrio. O conceito de adikía introduz também a noção de impiedade co metida no interior da cidade, e a idéia de delito fixa-se sobre uma repressão organizada. Para diferenciar delitos privados de delitos públicos, Louis Gernet23 cita, a respeito dos primeiros, as seguintes característi cas: 1. Requerem sanção jurídica, ou seja, supõem uma justiça organizada; 2 .0 fato de lesar os indivíduos não é percebido, de forma imediata, como uma ofensa à comunidade e só provoca reação organizada do grupo de forma secundária. De acordo com estas afirmações, Gernet considera delitos privados o ho micídio, o roubo (salvo exceções) e todo o atentado a bens alheios ou a pessoas. Já sobre a noção de lei, a Grécia conhecia, primitivamente, dois tipos: themis e dikê. Não é fácil determinar com precisão o significado destes termos na experiência cultural grega; ambos 22 Especialmente Ésquilo, Os Sete contra Tebas, 1017, e Sófocles, Édipo Rei, 1426. 23 GERNET, Louis (1917, p. 67). Direito Penal na Grécia Antiga 21 os conceitos são de origem diversa, mas interdependentes. O primeiro, característico da época homérica, é definido como o preceito que fixa os direitos e deveres de cada um sob a autori dade do chefe do genos,24 seja no interior do palácio ott em cir cunstâncias excepcionais, tais como aliança, matrimônio ou com bate. Nessa época os gregos não conheciam as leis tal como nós; o poder estava nas mãos dos reis, a sociedade apresentava ca racterísticas feudais e a justiça se resolvia no seio da família ou por meio da arbitragem. Nesta perspectiva, os themistes eram decisões autoritárias emanadas por um chefe, princípios laten tes e fórmulas mágico-religiosas que provinham de Zeus25 e que se impunham a todos os membros da comunidade. Dikê, por sua vez, expressa a idéia de ordem e equilíbrio en tre os interesses individuais e coletivos da sociedade humana. No começo do século VIII, com a expansão colonial e a or ganização das cidades, faz-se necessário examinar os diferentes costumes, com a finalidade de verificar quais devem ser retidos em nome de um interesse comum. Apela-se, então, à elabora ção de regras comuns, fixando deveres e direitos; também apa rece, mais tarde, a escrita. Nas diversas cidades os primeiros le gisladores ditam as suas constituições: a lei se opõe, deste modo, ao arbitrário. Em Atenas, a constituição estabelecida por Clístenes logo após a morte de Sólon destitui a aristocracia gentílica e divide a 24 O termo genos significa família no seu sentido mais amplo: comunidades de parentes de várias gerações que vivem sob um mesmo teto e numa mesma terra. Suas características mais relevantes são: solidariedade recí proca, rituais religiosos comuns, lugares comuns de incineração, direito hereditário, dever de endogamia. 25 Em Homero, litada, I, 238; V, 761; XI, 807; XVI, 387. Odisséia, XVI, 403; IX, 114. 22 Viviana Gastaldi cidade topograficamente; o conselho - composto agora por qui nhentos representantes das dez tribos - e a assembléia do povo impõem um sentido jurídico à norma: a lei, fundamento e ema nação da democracia, tem sua origem na norma política, nomos, que constitui "(...) a expressão do que o povo, como um todo, considera como uma norma válida e obrigatória".26 Mas este ter mo, desconhecido em Homero, está testemunhado com diferen tes valores em Hesíodo e nos poetas líricos do século VI: aplica- se, assim, ao canto e à música, ao ritual religioso, ao costume ou ao princípio de caráter moral.27 Em uma época arcaica, nomos significa "parte", derivada do verbo nemo (dividir ou distribuir proporcionalmente), daí o seu significado de ordem e equilíbrio (eunomia); logo, concilia-se a idéia da boa ordem e dos hábitos simples observados na prática. O seu valor normativo se funda no hábito e mantém a tensão entre valores positivos e normati vos ao longo de toda a experiência jurídica grega.28 26 “(...) the expresión o f what the people as a whole regard as a valid and binding norm." In: JARRAT, Susan (1991, p. 41). 27 Tal como testemunham também os trágicos: Ésquilo, Coéforas, 420; Agam., 594,1207. 28 ROMILLY, Jacqueline de (1971, p. 23); OSTWALD, Martin (1986, p. 84 ss). i . A S o c ied a d e H o m é r ic a e a C u l tu r a d e V er g o n h a . C ó d ig o s d e C o m po r t a m en t o O modelo de sociedade homérica corresponde, em linhas ge rais, ao que a antropologia e a psicologia americana denominaram "cultura de vergonha". Esta denominação refere-se à sociedade na qual o respeito às regras não se deve à imposição de deveres, ca racterística da cultura de culpa. Nesta última, quem tem um com portamento proibido sente-se oprimido pela culpa, pelo temor e pela angústia. Na primeira, a observação da regra é obtida através de modelos positivos de condutas, e os que não se adaptam incor rem na vergonha social e na conseqüente sanção de inadequação definida por vergonha (aideomai). É por isto que, no mundo homé rico, os heróis transferiam os seus atos reprováveis (a responsabi lidade) aos deuses ou às forças externas (moira). Deste modo, quem não estava à altura dos modelos poderia perdera sua própria dignidade; a esta sanção somavam-se o temor a boatos e à burla dos seus concidadãos, o que fazia com que o au tor fosse privado de sua honra. Temia-se, desta maneira, a demou phêmis, voz popular que reconhece a virtude ou sanciona a falta.2'1 29 Em relação ao parricídio e à sanção pública da demou phatis é reveladora a passagem de litada, IX, 458 ss. 26 Viviana Gastaldi Esta sanção é antecedente à atimia clássica, penalização que já na polis implicava a exclusão e a separação dos espaços públicos e a perda total ou parcial dos direitos de cidadão. E indubitável que os modelos propostos para os homens homéricos eram os dos heróis, ou seja: o homem dotado de força física, beleza, coragem; para a mulher, o modelo a seguir era o de Penélope, ideal de be leza, castidade e fidelidade.30 2. Le;i e A u to r id a d e n o s P o e m a s H o m é r ic o s Os poemas homéricos nos oferecem uma descrição comple ta da sociedade grega durante os séculos X e IX a.C.. O poder estava articulado em três órgãos: a assembléia, o conselho de anciãos e a agora. A comunidade estava composta pelos gemé, agrupados em phratrias e philais. O conselho (boulê) era compos to pelos chefes ou reis dos diferentes genos: os gerontes, que eram definidos não pela idade mas por status e constituíam o primei ro nível consultivo. O rei, descendente de um deus ou de um grande herói, tinha o máximo poder político, religioso e militar e ostentava os themistes. Presidia ele a assembléia, cujas decisões - por ele mesmo executadas - eram essenciais para o conjunto da sociedade. A agora, por sua vez, era o lugar dos debates - antecipando, com o exercício da práxis política, o papel funda mental do logos na cultura agonal dos gregos. Sua forma era cir cular e, no seu centro, encontrava-se o círculo sagrado ocupado pelos lugares dos gerontes. Nessas reuniões, o arauto é quem dá 30 Para a ambigüidade feminina de Penélope, virtuosa, mas possuidora de mêtis (astúcia), remetemos a CANTARELLA, Èva (2002, p. 64 ss) Direito Penal na Grécia Antiga 27 a cada um o cetro para que possa falar; o povo tem um papel passivo e só intervém através de sons ou ruídos de aprovação (aclamação ou descontentamento).31 Quando se trata de determinar a administração da justiça em Homero, indo além das considerações sobre a cena do escu do de Aquiles, que posteriormente desenvolveremos, é possível apontar algumas passagens dos poemas que demonstram a exis tência de juizes únicos: 1. Aqui nem todos podem ser reis: não é uma soberania de mui tos; um só seja príncipe, um só rei: aquele a quem o filho do arteiro Cronos deu cetro e leis para que reine sobre nós.32 2. Glorioso Atrida! Rei dos homens, Agamenon! Por ti começa rei e por ti acabarei, já que reinas sobre muitos homens e Zeus te deu o cetro e leis para que olhes pelos súditos.33 3. Ali vi Minos, ilustre filho de Zeus, sentado e empunhando áu reo cetro, pois administrava justiça aos defuntos.34 4. Telêmaco, cultiva em paz tuas verdades e assiste a decorosos banquetes, como deve fazer o varão que administra justiça, pois todos lhe convidam.35 5. A hora em que o juiz se levanta na Ágora, depois de haver fa lhado muitas causas de jovens litigantes (...)36 Enquanto a competência destes juizes, tinicos possuidores do cetro, parecia abranger múltiplos aspectos da vida social e política, a dos gerontes, pelo contrário, e tal como veremos mais adiante, limitava-se ao litígio em matéria de venáetta, ou seja, a 31 Devo estas considerações ao Professor Jorge Piqué, através do seu Defini ciones de categorías descriptivas en los poemas homéricos (inédito). 32 llíada, II, 204-206. 33 llíada, IX, 96-99. 34 Odisséia, XI, 568. 35 Odisséia, XI, 185. 36 Odisséia, XI, 439. 28 Viviana Gastaldi casos de homicídio. Nestes, tal como aponta Cantarella,37 o ór gão encarregado de regular a norma consuetudinária da vendetta parece ser o equivalente ao Areópago no período de Dracon. A respeito da noção de "lei", os termos relativos a "direito" nos poemas, às vezes interdependentes no contexto homérico, são themis e dikê. Ainda que normalmente se defina themis como o con junto de regras de comportamento que coinddem com a vontade divina, tais regras são consuetudinárias: a regra que prescreve o dever de hospitalidade,38 a que impõe o dever de sepultar os mor tos,39 de oferecer libações aos deuses,40 ou mesmo a regra que de creta o direito de expressar na assembléia a própria opinião, em contraste com o parecer do rei.41 Os themistes, por sua vez, são pro nunciamentos oraculares de sentenças divinas recebidas pelos ho mens através da mediação de um eleito (o rei);42 tais preceitos, de formação espontânea, coincidem com a ordem natural do mundo. Um claro exemplo da importância de themis no mundo homérico nos é proporcionado pela Odisséia,43 na passagem em que Odisseu fala dos Ciclopes: (...) E chegamos à terra dos ciclopes, soberbos e sem lei (themis). Não possuem ágoras onde se reunir para deliberar, tampouco leis (themis), mas vivem nos cumes dos altos montes, dentro de co vas escavadas; cada qual impera sobre seus filhos e suas mulhe res, e não se intrometem uns com outros. 37 CANTARELLA, Eva (1976, p. 8). 38 llíada, XI, 779; Odisséia, XIV, 56. 39 llíada, XXIII, 44-46. ' 40 Odisséia, III, 46. 41 llíada, IX, 33. 42"The king held a scepter, a hereditary symbol o f power; he acquired communion with the gods though ritual acts, and he summoned meetings o f the whole people before whom he made known his decisions." In: BONNER Robert; SMITH, Gertrude (1968, p. 9). 43IX, 105-115. Direito Penal na Grécia Antiga 29 A dikê, expressão da justiça humana, manifesta-se como a ordem imánente a que se deve uniformizar a ação do indivíduo enquanto membro de uma coletividade. Dikê surge, desta for ma, como a regra que domina as relações interfamiliares em um âmbito de relações públicas que constitui o prelúdio de um sis tema democrático.44 Deste modo, enquanto o verbo themisteuein (ligado ao substantivo themis) indica o ato de emanar uma nor ma,45 dikazein, ao contrário, diz respeito ao ato de oferecer uma solução para uma controvérsia.46 3 . A R e g u la ç ã o d o H o m ic íd io : E x í l io , V e n d e t t a e P o in é Para uma melhor compreensão do homicídio - o ato ilegí timo mais importante em tempos de Homero - é necessário re considerar os valores e os códigos sociais do mundo épico. Como ponto de partida sobre estas questões, três aspectos apresentam-se relevantes: a solidariedade do grupo familiar (ge nos), o sentimento de honra do grupo e do indivíduo (time) e a escassa intervenção de um Estado organizado. Não é possível entrar, neste contexto, nas notórias e amplamente discutidas questões relativas à reconstrução histórica do mundo da épica: somente se pode afirmar, de acordo com os críticos especialis tas em direito homérico,47 que o período que transcorre entre os séculos IX e VII é bastante homogêneo e apresenta limites: o pos quem, constituído na idade micênica, representada por um so- 44 Ver, a esse respeito, MITTICA, Pietro (1996, p. 190). 45 Odisséia, IX, 114; XI, 569. 46 Conforme infra com relação aos gerontes na cena do escudo de Aquiles. 47 GIOFFREDI, Cario (1974). 30 Viviana Gastaldi berano; o limite ante quem, que não é certamente o da polis, mas o de uma monarquia cedendo diante da aristocracia em um emergente clima democrático. Definitivamente, para melhor compreender os poemas, pode-se afirmar que ambos (ainda que reconhecendo a posterio- ridade da Odisséia) cobrem um amplo período de tempo, unitá rio em suas características e variado em muitos aspectos.48 Neste sentido, é possível pensar a sociedade homérica em termos de uma cultura da vergonha, diferenciando-a, como afir mamos, de uma cultura daculpa. A sociedade operava, neste contexto, mediante os códigos de nidos (vergonha e pudor, utili zados em sentido amplo, já que abrangem a aidos pessoal e a cooperação na batalha49), a time, a cólera (orge) e, obviamente, a valorização excessiva de bia (ou seja, a força física) numa socie dade fortemente competitiva. Tomando como base os episódios centrais da Ilíada e da Odisséia: a ira de Aquiles,50 a vendetta de Odisseu, a quem os pa rentes injuriaram dilapidando os bens de sua casa51 e, entre am bos, a ofensa de Paris a Menelau, que mobilizou gregos contra troianos,52 podem-se distinguir, nos poemas, três situações de ruptura da ordem social: o homicídio, a lesão da honra e os atos que provocam algum tipo de dano ao patrimonial. 48 CANTARELLA, Eva (2002, p. 16) afirma que nos poemas confluem tradi ções culturais diversas: desde um ponto de vista geográfico, cobrem todo o mundo do Mediterrâneo oriental. Não é possível, portanto, pensar nos poe mas homéricos como uma única fonte de conhecimento, que se refere a uma sociedade determinada em um único contexto espaço-temporal. 49 CAIRNS, Douglas (1993). 50 Ilíada, IX, 387. 51 Odisséia, XXIV, 458. 52 Ilíada, III, 351,366; XIII, 622; XVII, 92; Odisséia, XIV, 70. Direito Penal na Grécia Antiga 31 O homicídio no mundo homérico, segundo Eva Cantare- 11a,53 era aceito na medida em que refletia a superioridade do homicida, o qual demonstrava ter mais força e arete54 do que o morto. Se ele recorria ao engano, evitando confrontar-se com a vítima, não somente deixava de provar que era o melhor, mas, ao contrário, demonstrava pelo meio utilizado que efetivamen te não o era. Em somente três casos o homicídio era reprova do: quando acompanhado de engano, contra um hóspede, e em caso de parricídio.55 A violação a estes valores heróicos (a philia nos laços parentais, o dever de hospitalidade) era, por tanto, objeto de reação. Quais eram, então, as conseqüências? O homicídio dava início a uma reação, às vezes de tipo pri vado; outras vezes parecia ser um meio através do qual a comu nidade expressava os seus sentimentos e reagia com violência física à violação de uma regra. A vendetta, dominada pelo senti mento de honra do grupo e pela necessidade de dar satisfação ao morto, era uma sanção material, mas na interação jurídica existiam outras, como a desonra e a sanção da demou phatis.56 Existiam dois modos de evitar a vendetta por parte do gru po da vítima: o exílio e a poiné, mas a aplicação de um não ex cluía a possibilidade de que o outro também viesse a ser aplica do. Todavia, não fica claro se o exílio era um modo de fuga ou ''' CANTARELLA, Eva (1976, p. 23). M Definida arete como "excelência prática de natureza física, intelectual ou moral", e também "excelência e virtude", foi adquirindo, com o tempo, di ferentes matizes por causa da diversidade das situações contextuáis. VIA- NELLO DE CÓRDOVA, Paola (1990) esboça os diferentes significados do termo de acordo com a realidade histórica, política e social de Atenas. ’ Odisséia, XIV, 402; XXI, 22-30; Iliada, IX, 558-61. 86 Ver exemplos em Ilíada, XIII, 414; XIV, 482; XXII,271; XVII, 34; XVIII, 333 ss. 32 Viviana Gastaldi se era fruto de um acordo com os parentes da vítima.57 Pois bem, o grupo do morto não estava obrigado a aceitar a poiné: se o fizesse, não poderia executar a vingança, que seria então um ato reprovável e legitimaria uma nova vendetta. A poiné - composição pecuniária fruto de um acordo entre as partes, com a qual se renuncia à vendetta de sangue de modo a evitar o exílio - era em parte utilizada para honrar e aplacar o morto.58 O termo poiné está relacionado a time: ambos indicam valorização, honra, pagamento. Pode ser inicialmente entendi do como indenização, ressarcimento material; posteriormente virá a se revestir de um caráter mais moral de sanção, pena ou expiação; em Homero, contudo, não era somente um remédio de fato contra a vendetta: era uma instituição com uma configuração jurídica precisa, tal como se aponta em uma passagem da Ilíada: Pela morte do irmão ou do filho recebe-se uma compensação; e, uma vez paga a importante quantia, o assassino fica no povoa do, e o coração e o ânimo irado se acalmam com a compensação recebida (...)59 De qualquer sorte, caso houvesse dúvidas sobre o paga mento efetivo da poiné, ou seja, sobre a legitimidade da vendet ta, a comunidade intervinha com os gerontes, e tinha lugar um processo que reconhecia e investigava os fatos e os argumentos de cada uma das partes em litígio. Este processo - considerado um dos primeiros testemunhos de repressão por homicídio - é o que aparece representado no escudo de Aquiles: 57 Ilíada, XIII, 696. 58 Ilíada, XXIV, 592 ss. 59 Ilíada, 632-36. Direito Penal na Grécia Antiga 33 Os homens estavam reunidos no mercado. Ali uma discussão se iniciou. Dois homens pleiteavam a pena devida por causa de um assassinato: um deles insistia em que tinha pago tudo em presen ça do público, o outro negava ter recebido. Ambos pediam o re curso a um árbitro para o veredicto. As gentes aclamavam a ambos, em defesa de um ou de outro; os arautos, por sua vez, tentavam conter o povo. Os anciãos esta vam sentados sobre polidas pedras em um círculo sagrado e ti nham nas mãos os cetros dos claros arautos, com os que se iam levantando, por turno, para dar o seu veredicto. No centro, havia dois talentos de ouro no chão, para premiar àquele que pronunciasse a sentença mais justa.60 O povo (laoi), na cena homérica, aparece reunido em assem bléia (agorê). Dois homens disputam a causa da poiné por homi cídio; o povo aclama, tomando partido por uma ou outra parte; os arautos contêm a multidão, e os anciãos, sentados sobre pe dras, em círculo sagrado, levantam os cetros com os quais fazem justiça. Omitindo algumas questões de tradução e de interpre tação do texto grego,61 somente diremos que, das partes, uma dizia ter pago, a outra negava ter recebido a poiné. E esta era a questão a resolver: tinha-se pago ou não, ou seja, qual dos dois argumentos era legítimo? No que concerne ao caráter da decisão, a crítica formula o seguinte problema: a sentença emitida era de caráter arbitrai ou judicial? O uso de dikazein no texto grego remete a uma decisão i mediata e direta, baseada no exame dos fatos por parte dos an- riãos, sem que se mediasse a vontade das partes. Ou seja, os ge ro ates constituíam um órgão institucional, público, que emitia lllada, XVIII, 496-508. Ver CANTARELLA, Eva (1976). 34 Viviana Gastaldi uma sentença judicial?62 A presença do istôr, por sua vez, re mete a uma testemunha ou a uma espécie de juiz instrutor do seu testemunho? Dependia, definitivamente, da decisão dos ge- rontes. Por último, os dois talentos dos versos 507-508 estavam destinados a quem fosse o vencedor, ou seja, à parte que ofe recesse a dikê (o raciocínio) mais justa. Como notas conclusivas sobre a cena do julgamento, pode- se afirmar que, nela, emergem alguns elementos sobre a admi nistração da vendetta no interior da comunidade. A assembléia é o único juiz da sociedade representada; tal órgão guia o com portamento dos homens tendo por base regras e valores comuns. A incerteza sobre o comportamento a seguir tem como conse qüência o recurso ao conselho, o pronunciamento dos gerontes, os quais, como depositários das regras, devem procurar uma solução. Deste modo, a dikê nasce como norma do direito ritual mente proposta em assembléia, em um contexto formalmente público e diferente da sanção espontânea da demon phêmis. Quanto ao exílio, salientando uma vez mais que o mesmo não constituía uma pena, mas sim - junto à poiné - outro remé dio para evitar a vingança de sangue, é importante ter em men te que não era condição suficiente para que o homicida ficasse a salvo: os parentesdo morto podiam prendê-lo em fuga e execu tar a vendetta.63 62 Para uma explicação exaustiva da cena e análise filológica do texto, reme temos a CANTARELLA, Eva (1994, p. 183). 63 Ver Uíada, II, 661-66; XII, 694-97; XXIII, 83-88. Odisséia, XV, 272-78, XXIII; 117- 122; XXIV, 480-44. I >ireito Penal na Grécia Antiga 35 4. A Q u e s tã o d a In t e n c io n a lid a d e O problema central apresentado por toda noção de penali dade liga-se ao exame do elemento intencional. É necessário I >erguntar-se, neste sentido, se no mundo homérico a vendetta I >oderia assumir outras formas que considerassem o caráter vo- luntário do ato cometido. Uma das passagens mais reveladoras da Ilíada expõe com clareza a condição de quem cometeu um delito (neste caso, um homicídio): sua presença infunde terror e temor na comunida- (le (thambos), e por isso ele foge para outro país;64 segundo o texto, aquele que comete o delito é, na realidade, vítima da própria condição humana; isto não o isenta, porém, da responsabilida de, nem o protege da vingança dos ofendidos. No caso de um homicídio "preterintencional", como surge da leitura de Ilíada XXIII, 85, mesmo não pretendendo provocar a morte do outro, (i homicida parte para o exílio: com isto, outorga-se satisfação 11.1 ra a alma da vítima, que não tolera a presença do criminoso na própria terra. Ao mesmo tempo, a honra do grupo é restitui da pelo afastamento do culpável. Revela idênticas conseqüências a passagem da Odisséia, \ 111,259 ss. Nesta, fingindo, Ulisses conta à deusa Atena um re í a l o : ele mata um homem de forma premeditada e pede para os 1 oinpanheiros deste que o ajudem a exilar-se longe da pátria. Mais importante ainda é a passagem de Odisséia65 na qual a fuga ocorre após matar um consangüíneo, por temor à vendetta do C.rupo. Conseqüentemente, como salienta Gioffredi, a necessi- ¡Inula, XXIV, 480. ( >rlisséia, XV, 272. 36 Viviana Gastaldi dade de reparar a honra perdida e de dar satisfação à vítima não levava em consideração a intencionalidade do homicídio. O exílio, então, para além do caráter voluntário do homicídio, advém do costume admitido pelo grupo social em conjunto. Por último, deve-se destacar, sobre o exame do delito e a regulação do homicídio, a importância da religiosidade. Os poe mas tentam harmonizar a liberdade do homem com a vontade divina e a determinação do destino. O mal opera como um equí voco, que faz do culpado um homem digno de desprezo e re pulsa.66 Desta forma, fala-se do homicídio como um fato triste e desprezível,67 um erro fatal.68 Embora não exista ainda a idéia de impureza do homicida e de contaminação, os poemas reve lam a noção de ódio da vítima e terror do grupo diante da pre sença do homicida. 5 . O A d u lt é r io : a S a n ç ã o P ú b l ic a e a S a n ç ã o M a t e r i a l A forma elementar do matrimônio homérico fundamenta- se em relações de reciprocidade,69 doação e contrapartida. Trata- se de um complexo sistema de negociação de bens e riquezas que representa a base de um intercâmbio político, social e econômi co. A transferência da noiva da casa paterna para a do seu mari do era socialmente legitimada por vizinhos e pela philoi, os quais atuavam como testemunhas na celebração das bodas ou gamos. 66 Na época clássica falaremos em mancha (miasma) e na periculosidade de seu contagio. Conforme infra, Parte II. 67 Iliada, XXIII, 85. 68 Iliada, XXIV, 480. 69 Para o exame da reciprocidade em Homero, remetemos especialmente a SEAFORD, Richard (1994). Direito Penal na Grécia Antiga 37 A presença do povo na celebração, tal como testemunha do pela descrição do escudo de Aquiles,70 ratifica a importância do reconhecimento social do matrimônio, já que este se realiza kata nomon, ou seja, de acordo com a lei e o costume. Por outro lado, enquanto no sistema dotal, característico de uma época mais tardia, o pai transfere os seus bens para o ma rido, na época homérica é o marido quem oferece os seus bens ,10 pai de sua esposa (eedna). Tais bens, que geralmente con sistiam em algumas cabeças de gado, poderiam ser reclamados pelo marido uma vez que se comprovasse o adultério femini no. Esta instituição jurídica, chamada por Homero engue,71 é o (|ue hoje conhecemos sob a denominação de "garantias pessoais d<‘ obrigações".72 Em se tratando de adultério, Homero refere-se na Odisséia mediante o relato do aedo Demódoco - aos amores ilícitos de Ares e Afrodite. Tal ato divino contém, todavia, elementos cha ves de semelhança com o adultério cometido entre os homens; I.iremos menção a estes com o objetivo de elucidar a passagem ( ilada: 1. como é aplicada a sanção da demou phati; 2. o poder da assembléia para sancionar; 3. as garantias pessoais e a devolu- i..io dos eedna; 4. o pagamento de uma multa (khreos) por moikha- yj in; 5. o papel feminino no adultério. Uma vez que os amantes deitaram-se no leito, tomaram- c prisioneiros da armadilha que Hefesto fabricou. Este deus, rntão, chamou os demais deuses para que se reunissem em as- ■ mhléia e fossem testemunhas de sua desonra: " IIliida, XVIII, 490. ' i hlwséia, VIII, 351. 1 ( ANTARELLA, Eva (2002). 38 Viviana Gastaldi Pai Zeus, bem aventurados e sempre eternos deuses! Vide presen ciar estas coisas ridículas e intoleráveis: Afrodite, filha de Zeus. Infama-me continuamente, a mim, que sou manco, desejando o pernicioso Ares (...) Vereis como se deitaram no meu leito e eu me angustio ao con templá-los! O requerimento da devolução do dote entregue por Hefesto não se faz esperar: _(...) Mas os enganosos laços os sujeitarão até que o pai me resti- tua integralmente o dote que entreguei pela sua filha desavergo nhada. Esta é bela, mas incontinente. Com a chegada dos deuses, que riem ao contemplar os amantes na armadilha, a sanção pública do ridículo e do boato é infligida e a honra de Ares já está comprometida. A reação rei- vindicatória de Hefesto, enquanto marido traído que não pode recuperar por si só a honra perdida, apela a um procedimento público que tende a tutelar sua vendetta: a assembléia dos deu ses, em paralelo com a assembléia humana, exige que Ares pa gue pelo adultério: E um riso inextinguível ergueu-se entre os bem-aventurados númenes ao ver o artifício do engenhoso Hefesto. E um deles disse ao que tinha mais próximo: "As más ações não prosperam e o mais tardio alcança o mais ágil; como agora Hefesto, que é man co e lento, aprisionou com o seu artifício Ares, o mais veloz dos deuses que o Olimpo possui, que terá de pagar-lhe a multa pelo adultério" As três sanções indicam a regulação do adultério homéri- co: o riso e a sanção psíquica (o ridículo); a devolução do dote por parte do pai, ligado possivelmente ao repúdio da adúltera, a sanção material e o pagamento da multa. O texto revela, em Direito Penal na Grécia Antiga 39 relação ao poder da assembléia, a voz e o murmúrio dos deu ses, similar ao que acontece em uma reunião de homens. Indu bitavelmente, ainda reconhecida a semelhança e não a verdade da passagem homérica, trata-se de uma descrição da sociedade real, cujas regras de comportamento estabelecem obrigações contratuais. A outra questão importante que aparece mencionada nos versos da Odisséia é aquela relativa às garantias pessoais. Pos- seidon, o único deus que não ri, suplica a Hefesto pela liberda de de Ares, e diz: Desata-lhe e eu te prometo que pagará, como mandas, o que seja justo entre os deuses imortais. A exortação de Posseidon é rejeitada por Hefesto, diante da insegurança que pressupõe a promessa de um terceiro, de um mediador; Hefesto aceita a proposta de Posseidon somente quando este, mais tarde, anuncia sua própria promessa de pa gamento; se o aprisionado fugir, ele próprio tornar-se-á deve dor: Se Ares fugir, se recusandoa satisfazer a dívida, eu mesmo te pagarei tudo. A menção homérica de khreos, como ressarcimento material I >or adultério ou moikheia, implica uma consideração importan te: o uso deste termo, e não de poiné, aplicado em casos de ho micídio ou dano patrimonial, parece antecipar uma mudan- i,.i na regulação da venãetta, uma diferenciação substancial na natureza do dano, indício de uma maior precisão e maior aper- leiçoamento do sistema reivindicatório. Por último, em relação ao papel feminino no adultério, se 40 Viviana Gastaldi gundo demonstra o texto homérico, não há, além do repúdio e da vergonha, sanção alguma para a mulher. Esta ausência de outro tipo de sanção denota, ao que parece, o papel passi vo da mulher, considerada "seduzida" e não responsável pela sua ação. Tal como observa Cantarella,73 nos poemas a mulher não é culpável de adultério: Helena não tem nenhuma respon sabilidade pelo seu adultério com Paris, já que foi Afrodite quem a persuadiu para que lhe obedecesse. De modo similar, Pené- lope74. afirma que algum deus fez com que Helena ultrajasse o leito de Menelau. Na morte de Agamenon, segundo a fonte ho- mérica, Clitemnestra também não é culpável de homicídio; a responsabilidade recai sobre Egisto, seu cúmplice. O único destino possível para a adúltera era, por certo, o retomo à casa paterna e a uma vida de reclusão e humilhação. A mudança mais significativa terá lugar dois séculos mais tar de, uma vez que o Estado passa a regular o delito de moikheia e o marido pode, então, dar morte impunemente ao cônjuge adúl tero sob certas condições de flagrante. A lapidação, ademais, impõe-se não como lei, mas como sanção coletiva para a adúl tera, tal como testemunham o mito e os textos trágicos.75 6 . O A b a n d o n o N o x a l No direito primitivo, os membros de uma família são soli dários entre si, não só quando se trata de demandar por uma ofensa, mas também quando se trata de satisfazer o grupo da 73 CANTARELLA, Eva (2002, p.119). 74 Odisséia, 23. 75 Especialmente Troianas, de Eurípides (950-1050). Direito Penal na Grécia Antiga 41 vítima: no primeiro caso fala-se de solidariedade ativa, no segun do de solidariedade passiva. Conforme os testemunhos conser vados, a primeira, que une em uma ação comum os parentes da vítima, permaneceu na Grécia por muito mais tempo do que a solidariedade passiva. Os testemunhos que nos oferecem os poemas homéricos dão conta do seguinte: quando alguém mata um membro de outro genos, o exílio é a conseqüência imposta, seja por ele mes mo ou por alguém próximo.76 O abandono noxal é, então, essen cialmente, um ato de rompimento da solidariedade entre o cul- pável e seu grupo, e marca na história jurídica o ponto de emer gência do princípio de responsabilidade.77 No caso do adultério, Hefesto não demanda a caução aos parentes de Ares, o adúltero, mas Posseidon oferece-se volun tariamente como avalista; ou seja, não existe nenhuma ação con- Ira a família do sedutor. Tal como aponta Glotz:78 Em um tempo em que toda obrigação real era ainda no fato ou na forma uma obrigação ex delicto, as famílias não aceitavam mais, a este respeito, o peso da solidariedade.79 '' ¡liada, II, 661, em caso de exilio forçado por parentes; Odisséia, XIII, 556, .) uto-exilio de Odisseu; Ilíada, XXIII, 85-88, exilio forçado pelo pai do ho micida. ' ' VISSCHER, Fernand de (1932, p. 858 ss). ( iLOTZ, Gustave (1904, p. 192). .... (...) en un temps où toute obligation réelle était encore en fait ou en la forme une obligation ex delicto, les familles n'acceptaient plus à cet égard les charges de la solidarité. " l. A E volução do S ist e m a P en a l . 0 C ó d ig o d e L e is d e D racon O primeiro passo para o desenvolvimento das instituições jurídicas na antiga polis aconteceu através da separação de po deres e de funções judiciais, a serem desenvolvidas por nove magistrados: o arconte epônimo, o arconte basileus (chefe religio so da comunidade), o polemarco (que comandava durante a guerra) e seis thesmothetai. O primeiro deles tinha responsabili dades especiais em questões de herança, o segundo presidia fes- 1 ¡vais e julgamentos por homicidio, o polemarco era o respon sável pela justiça militar e os outros seis magistrados, cuja eti mologia significa "fixadores de pareceres" ,80 eram, presumivel- i nente, responsáveis pela organização de tribunais e julgamen- los; em outros termos, eram juízes. Com a expansão do alfabeto,81 tornou-se possível fixar por escrito as normas que deveriam ser aplicadas. Os primeiros le gisladores surgiram no Oriente, em meados do século VII: Za- .....fixers ofrulings." In: HUMPHREYS, Sally (1983, p. 238). 111 <) nlfabeto não é uma invenção dos gregos: já na época micênica era uti lizado um sistema silábico, logo substituído por um alfabeto fenício, mo dificado e adaptado pelos gregos com a inclusão das vogais. 46 Viviana Gastaldi leuco, em Locros, e Carondas, em Catana. A invenção da es crita82 passa a ser, então, um requisito para a emergência da legislação. Nas últimas décadas do século VII (621 a.C.) aparece um documento legislativo de fundamental importância para a his tória do direito na Grécia arcaica. Este documento, representa do nas leis de Dracon, demonstra que o Estado, no século VII, toma para si, por via exclusiva, o direito de punir quem comete um homicídio. É deste modo que a idéia de delito, de crime, aparece como um comportamento proibido, sancionado por um órgão institucionalmente competente. Na realidade, a situação político-social de Atenas no final do século VII, após o levante de Cilon numa tentativa de derro car a aristocracia, fez com que fosse imperativa a redação de um código de leis que mantivesse a regulamentação fora do alcan ce exclusivo dos árbitros ou dos juizes, colocando-a no plano de administração da justiça.83 Tinha por intenção substituir o regi me da vingança privada pela repressão social e colocar freio ao derramamento de sangue; por isto, a parte lesada ficava obri gada a levar o culpável perante os magistrados e a reconhecer que o direito de punir caberia somente aos representantes da cidade. As leis, escritas em axones (tabuinhas de madeira sustenta das por eixos giratórios), foram descobertas em 1843 em uma 82 Platão, em Leis, III, 680a, salienta a importância da escrita para a vida cul tural grega. 83 Ante tal situação, já se tinha ouvido a voz de Hesíodo, que em sua obra Os trabalhos e os dias contrapõe a cidade justa à injusta e expressa sua aspiração por uma justiça mais reta, não exercida por juizes que obram pelo seu pró prio arbítrio (202-255). Direito Penal na Grécia Antiga 47 lábua de pedra sobre a qual foram reeditadas no ano de 409 pelos anagrafeis; nelas aparece pela primeira vez a distinção ('ntre homicídio premeditado, voluntário e homicídio involun- lário. Também previa uma aiáesis, concedida pelos membros do grupo da vítima, por meio da qual o homicida poderia evi- lar a pena ou retornar à pátria após o exílio. Um elemento importante a ser destacado refere-se ao esta belecimento do exílio não como remédio para a vendetta, mas como pena. Neste sentido, deve-se salientar o aparecimento do exílio na época de Dracon como a única sanção pública para o homicídio.84 Esta lei influenciou notavelmente o oráculo de Delfos e o culto de Apoio, que instituiu o princípio de impureza do homi- c ida (miasma) e a regulamentação do katharmós (puro).85 Logo, a lei grega sobre o homicídio tem suas raízes mais profundas na religião, tal como afirmam os estudiosos do direito.86 A implantação de diferentes tribunais encarregados de jul gar os delitos foi outro elemento considerado essencial para a • ■volução do sistema jurídico: São passíveis de ir ao Aréopago os culpáveis por morte voluntária; neste caso, a cidade associa-se inteiramente ao sentimento religioso de vingança provado pela família; sem embargo, ela o assiste e garante esta vingança: a morte do culpável. O Palladion julga os assassinatos involuntários; é necessário, ainda, satisfa zer à família e a cidade o concede, mas de modo limitado. Um 111 l .m definitiva, e segundo a opinião de MODRZEJEWSKI, J. Mélèze (1991, p. 11), tanto o exílio como a pena de morte para o homicídio voluntário não são mais do que modalidades da vingança de sangue, estabelecidas i lentro de um sistema profundamente reivindicatório. " I ’latão, em Leis, IX, 805b, afirma a necessidade de purificação do homicida. "" ( ANTARELLA, Eva (1976, p. 84), GERNET, Louis (1917, p. 149). 48 Viviana Gastaldi degrau abaixo, o Dophinion: trata dos assassinatos que mais tar de serão considerados legítimos, aqueles que o costume inocen tava desde há muito tempo, aqueles que, se beneficiando do pres tígio das graças seculares, encontram agora no sistema um lugar definido e privilegiado.87 No caso de homicídio premeditado, a lei não impedia a in tervenção da família: a prorresis, ou proibição ao homicida de aparecer em lugares públicos, bem como o anúncio de vingan ça, poderiam ser realizadas pelos parentes da vítima: o pai, ir mão e os filhos apresentavam-se, deste modo, como acusadores oficiais. A lei também permitia ao homem matar o sedutor, o adúltero pego em flagrante com sua esposa, mãe, irmã, filha ou concubina. 2. As Modificações de Sólon. 0 Sistema Democrático O código draconiano, com exceção de sua lei em matéria de homicídio, foi substituído, ao cabo de tuna geração, pelo có digo soloniano. Sólon, poeta e magistrado principal, é conside rado o fundador do Estado ateniense. Suas reformas foram co nhecidas como "a liberação das cargas", ou seja, a abolição da 87 "De l'Aréopage sont passibles les coupables de meurtre volontaire: dans ce cas, la cité s'associe entièrement au sentiment religieux de vengeance éprouvé par la fam i lle, sans réserve elle l'assiste et lui garantit cette vengeance, la mort du coupable. Le Palladion juge les meurtres involontaires; il faut encore satisfaction â la famille, et la cité la lui accorde, mais limitée. A un degré au- dessous, le Dophinion: il s'agit des meurtres qu'on dira plus tard légitimes, ceux que la coutume innocentait de puis longtemps, ceux qui, bénéficiant du prestige des grâces séculaires trouvent ma intenant dans le système une place define et comme privilégiée." In: GERNET, Louis (1917, p. 374). Ver também SAID, Suzanne (1978, p. 151). Direito Penal na Grécia Antiga 49 escravidão por dívidas e a redistribuição de terras, junto a es sas medidas, Sólon estabeleceu que a riqueza seria o único cri tério para a atribuição do poder público, e não mais a nobreza de berço. De acordo com Aristóteles,88 as suas reformas democráti cas mais importantes foram duas: a norma que estabelecia que qualquer cidadão que desejasse poderia empreender uma ação a favor dos agravados e o direito de apelação a um tribunal po pular contra a decisão de um magistrado (ephesis).89 Portanto, a disposição draconiana que reconhecia a um membro da família lesada o direito de vingança é estendida por Sólon a qualquer cidadão. Surgem, deste modo, as graphai, ou ações públicas, junto às dikai, ou ações privadas. Graças a Sólon, as graphai se multiplicaram à medida que .1 justiça pública se fortaleceu: o povo transformou-se, deste modo, em mestre da república.90 O tempo de gestação e de exercício do sistema democráti co teve, então, seu primeiro impulso com a constituição de Só lon, e, logo após, uma contribuição fundamental advinda das medidas adotadas por Clístenes. No final do século VI, entre 510 i' 500 a.C., limitaram-se os poderes do Areópago, introduziu-se 0 ostracismo, ou seja, o desterro dos cidadãos considerados pe rigosos para a democracia, e fomentou-se, na população da Áti- 1 .i, a idéia de defesa de seus próprios direitos. As fontes de po- i ler residiam em três órgãos institucionais: o Conselho (boulê), < iimposto por quinhentos membros eleitos por sorteio entre os •* ( 'onstituiçao dos Atenienses, 9. MURRAY, Oswyn (1983, p. 179). "" ( ’onstituiçao dos Atenienses, 9. 50 Viviana Gastaldi cidadãos, os tribunais e a Assembléia Geral. Nestas sessões, ce lebradas não menos do que 40 vezes por ano, o povo exercia di retamente seu voto em caráter resolutivo e previa a discussão das pautas elaboradas pelo Conselho. A votação na assembléia realizava-se pelo simples levantar da mão; nos tribunais, era decidida através do uso de pedras (pebble): cada dikastes coloca va, em segredo, uma pedra numa das duas um as (em uma de las colocavam-se os votos para a condenação e na outra os vo tos para a absolvição). 3 . As C o n seq ü ên c ia s do H o m ic íd io : a M ácula , o E x íl io e a P u rifica ç ã o Uma característica importante na evolução do direito ate niense é sua estreita relação com a religião. Os delitos cometi dos no interior da cidade implicam um atentado contra a ordem estabelecida pela divindade. Deste modo, a religião força a so ciedade a intervir nos assuntos de sangue interfamiliares, e esta atua contra a família que rejeita a sua intervenção. Uma idéia nova aparece no espírito dos gregos: a da mácula que o homici da contrai. O miasma vinculado ao crime vira objeto de horror, já que constitui uma ameaça de contágio; por esta razão, o ho micida está proibido de habitar sob um teto comum e de parti cipar da mesma refeição; e sua presença, na Ágora ou nos tem plos, deixava a cidade vulnerável à maldição dos deuses. Para ele, só restava o exílio como recurso. Sob este regime, o crime cometido contra um membro da família torna-se um delito particularmente grave, a ser julga do com a mesma severidade de um ato voluntário e premedi Direito Penal na Grécia Antiga 51 tado.91 Ao mesmo tempo, Apoio, instalado em Delfos, no an tigo tripé consagrado à deusa Themis, exige que todo crime seja expiado para assegurar a punição do culpável. Os testemunhos que as tragédias nos oferecem a respeito são eloqüentes. Em Coéforas, de Esquilo, logo após ter assassi nado sua mãe, Orestes se apresenta diante dos espectadores como um ser maculado: "Afligem-me crimes e dor e a toda a minha estirpe, quando sobre mim sinto a indesejável mácula desta vitória" ,92 e vítima de uma incipiente demência: mediante a imagem platônica, Esquilo ilustra para o público ali presente os terríveis perigos em que um homem cai ao ter sobre ele o peso da mácula do crime. Mas, saibas - não sei como isso vai acabar, pois é como se eu ti vesse os meus cavalos fora da pista: sim, os meus pensamentos, que já não domino, me arrastam vencido, e, no meu coração, o terror está presto (—).93 Deste modo, Orestes acredita ver "as odiosas cadelas de sua mãe cercando-o".94 Não é por acaso que o poeta trágico concede uma impor- l.tncia particular à enfermidade contraída pelo miasma: é a con- I irmação dos problemas que, como vimos, gerava o crime con- I ra um parente. Assim, a ilusão das Erínnias (seres monstruo- fic>s que pertencem ao mundo feminino) não constitui uma re- I 'resentação religiosa da realidade, mas sim um recurso dramá " I'latão, Leis, IX. 1016. 1021. Versos 1056 e 1057. 52 Viviana Gastaldi tico através do qual Esquilo confere um caráter fictício à con duta hum ana .95 Um outro elemento importante nesta consideração sobre a questão da mácula é que o homicídio cometido no interior da família cria um laço estreito de contágio entre o homicida e os seus parentes mais próximos. Deste modo, Platão impõe se veras restrições ao homicida logo após o retorno do seu exílio .96 Na cena trágica, esta penalidade, estabelecida na realidade se gundo a lei ateniense pelo tribunalcorrespondente, revela-se como uma sanção auto-imposta. Assim, o exílio de Orestes em C oéforas: Estas mulheres horrendas como Górgones! Vestidas de negro e emaranhadas em múltiplas serpentes! Já não posso ficar aqui!97 Ligada à questão do homicídio justificado ou legítim o aparece a idéia da purificação como medida punitiva. A esse respeito, não existe unanimidade: para Platão ,98 certos crimes requerem purificação, mesmo que estejam isentos de sanção legal, mas nestes casos é somente depois da purificação que o criminoso é chamado katharós. Para D emóstenes, ao contrá rio, e da mesma forma que para oradores posteriores,99 katha rós significa "sem sanção legal" e "p u ro", pois, como afirma Parker: 95 Ver, para uma ampliação do tema, GASTALDI, Viviana (2001, p. 102). 96 Ver Leis, 868c-869a. 971050. 9SLeis, 865b-869a. 99 O autor de uma morte "legítima" é chamado piedoso (hosios) em Andóci- des, I, 95, 96; Demóstenes, Terc. Fil., 44; conforme também SAID, Suzanne (1971, p. 152, nota 25). Direito Penal na Grécia Antiga 53 O status ritual e jurídico é assimilado fazendo com que, em con textos de hom icídio "puro" e "não sujeito às sanções legais", se jam freqüentemente sinônim os.100 Todavia, estudiosos do direito grego afirmam que, nos tes temunhos da oratória, katharós não significa que o homicida de um ato justificado esteja isento de uma purificação simbólico-re- ligiosa, e o fato de um homicídio justificado não ser punível pela lei não implica que o criminoso seja dispensado da purificação: N a Grécia histórica, a purgação era exigida daqueles que perpe travam homicídio justificável. Isto, em sua opinião, confirma sua própria visão de que a purgação de homicídio era um símbolo sacro e solene de reconciliação entre o assassino e seus deuses em lugar de um apaziguamento de fantasmas ou uma expiação ofe recida aos deuses. Ela simboliza a reintegração do assassino à sociedade.101 No texto de Esquilo, Orestes afirma implicitamente que sua purificação foi praticada em Delfos e presidida por Apoio, que é o verdadeiro purificador de hom ens e lares, tal como aponta Parker.102 Mas, na verdade, a purificação é um ritual muito mais efetivo do que a súplica. A limpeza com água faz parte dos rituais, sendo mencionada na lei de Cirene,103 m as, ao que parece, trata- ioo " R i t u a l and legal status are assimilated to the extent that in contexts o f homicide 'pure' and 'not subject to legal sanctions' are often synonymous." In: PA RK ER, Robert (1983, p .114). 1(11 "Purgation in historical Greece was required o f the perpetrators o f justifiable ho micide. This, in his opinion, confirms his own view that homicide purgation was a sacred and solemn symbol o f reconciliation between the slayer and his native gods rather than a placation o f ghosts or an expiation offered to the gods. It symbolizes the reinstatement of the slayer in society." In: B O N N ER , R obert; SM ITH , G er trude (1968, p. 206). " I’ARKER, R obert (1986, p. 139). A sua fu nção p u rificad ora foi apontada, entre outros, por SID W ELL , K eith (1996, p. 8) e D YER, R. R. (1969, p. 43). 1 I’A RKER, R obert (1986, p. 371) 54 Viviana Gastaldi se somente de um ritual subsidiário; o ato central era a purifi cação do sangue pelo sangue, tal como o revelam os testemu nhos das tragédias.104 4 . O T e s te m u n h o d a O r a t ó r i a em C a s o s d e H o m ic íd io : M á c u la e C o n tá g io n a R e t ó r i c a d e A n t i f o n t e 105 O documento mais revelador da questão da mácula e do contágio por homicídio é o produzido por um orador: Antifon te, primeiro logógrafo grego e mestre da persuasão. O sofista demonstra com absoluta clareza que a oratoria Atica constitui uma fonte importantíssima de dados para a apreciação da cul tura e da vida política de Atenas. Indo além das discussões acer ca da autenticidade e da autoria das Tetralogías, um fato certo e incontestável é que a retórica de Antifonte contém numerosos traços que a aproximam do pensamento sofista da segunda me tade do século V; não menos certo é o fato de que suas obras demonstram um profundo conhecimento de pautas e valores sociais que faziam parte do imaginário ateniense, tais como as relacionadas com o homicídio, a responsabilidade, a vítima e a mácula contraída pelo homicida. As Tetralogías, ainda que de data incerta, foram provavel mente produzidas entre 430 e 425 a.C.. Embora apresentem es truturalmente o formato dos discursos forenses, não foram es critas para deliberação nos tribunais, mas para uma audiência 104 Eurípides, Ifigênia entre os Touros, 1223,1224,1338; Ésquilo, Euménides, 449. 105 Para uma versão ampliada com bibliografia, remetemos a GASTALDI, Vi viana (2004). Direito Penal na Grécia Antiga 55 mais intelectualizada. São, na realidade, criações fictícias com preendidas na categoria das Antilogiai ou discursos opostos. Mesmo mantendo grande semelhança formal com os dis cursos, algumas diferenças também podem ser salientadas: a narrativa é quase inexistente, o esforço do orador concentra-se nos argumentos, dando quase por óbvios outros pormenores. O mundo das Tetralogías, como foi tão bem salientado por Gaga rin,106 é uma Sophistopolis, denominação que revela explorar o autor as complexidades de um conjunto de "padrões'" cuja exi bição era virtualmente impossível nas cortes reais. Os discursos forenses (I, V e VI) apresentam diferentes estratégias argumen tativas e, em geral, parecem ter sido escritos para uma performan ce oral. Para além de semelhanças e diferenças de estilo que marcam destinatários opostos, ambas as obras contêm traços que as ligam estreitamente ao direito arcaico, fato este que não dei xa de surpreender, considerando a época em que foram produ zidas e, em conseqüência, a notável evolução do pensamento jurídico. O Discurso I e as Tetralogías serão, pois, nosso objeto de análise para o tema proposto. No discurso I (Contra a sua madrasta) - escrito para um clien te, provavelmente entre 420-411 a.C. - , o filho da vítima acusa sua madrasta de envenenamento, tendo como cúmplice a con- ( tibina (pallakê) do amigo de seu pai. A concubina (que tinha atua- i Io administrando o veneno) - em termos jurídicos "a autora material do fato" - tinha sido condenada a morrer na roda (tro- i lusteisa), suplício reservado aos escravos. Indo além de questões idativas à questão da responsabilidade, o discurso expõe - como GAGARIN, Michael (2000, p. 104). 56 Viviana Gastaldi no teatro - uma viva narrativa na qual - e isso é o que, na re alidade, interessa - é o sentimento do genos no que concerne à matéria criminal. Toda a exposição enquadra-se, deste modo, em uma dikê phonou, procedimento por homicídio no qual os parentes da ví tima - logo após uma proclamação na Ágora em que declaram o nome do agressor e exigem vingança - conduzem a causa para a frente do basileus, oficial encarregado dos assuntos de homicí dio. Apesar da intervenção do Estado em matéria de homicídio, este continuava sendo um assunto privado (tinha vigência a lei de Dracon com as reformulações posteriores de Sólon). Mas, diferentemente de épocas mais primitivas, no século V eram o Estado e os seus tribunais que, mediante um julgamento, com provavam a culpabilidade do acusado e, conseqüentemente, pronunciavam um veredicto. Neste caso, o tribunal era o Areópago, que entendia em matéria criminal. O que se torna curioso no caso formulado por Antifonte é a permanente recorrência da necessidade de puni ção, não em termos de sentença justa, mas sim de vingança. A vingança é quase o leitmotiv que norteia o discurso e, como ocorre na cena trágica, é motivada pela piedade e pelo dever para com o pai.107 A obrigação da vingança por parte do filho, receptor da episkepsis,m está
Compartilhar