Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
p e r c u r s o s n a t e o r i a d a s p r á t i c a s s o c i a i s COLEÇÃO CRÍTICA CONTEMPORÂNEA Direção: Josué Pereira da Silva A coleção Crítica Contemporânea tem a intenção de captar, de uma perspectiva teórica e crítica, a dinâmica das mudanças sociais contemporâneas; contempla, portanto, estudos sobre os temas mais relevantes do debate teórico e político da atualidade. Ao supor que a compreensão da dinâmica das mudanças contemporâneas deve considerar tanto o con- texto internacional quanto os contextos específicos locais, esta coleção privilegia autores nacionais e estrangeiros que se dedicam a diagnosticar a crise atual e também aqueles mais voltados para a discussão de propostas que apontem para sua superação. Conheça os títulos desta coleção no final do livro. c o n t e m p o r â n e a p e r c u r s o s n a t e o r i a d a s p r á t i c a s s o c i a i s a n t h o n y g i d d e n s e p i e r r e b o u r d i e u g a b r i e l p e t e r s PERCURSOS NA TEORIAS DAS PRÁTICAS SOCIAIS: ANTHONY GIDDENS E PIERRE BOURDIEU Projeto, Produção e Capa Coletivo Gráfico Annablume Conselho Editorial Eduardo Peñuela Cañizal Norval Baitello Junior Maria Odila Leite da Silva Dias Celia Maria Marinho de Azevedo Gustavo Bernardo Krause Maria de Lourdes Sekeff (in memoriam) Pedro Roberto Jacobi Lucrécia D’Alessio Ferrara 1ª edição: junho de 2015 © Gabriel Peters Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 554 . Pinheiros 05415-020. São Paulo . SP . Brasil Tel. e Fax. (011) 3539-0226 – Televendas 3539-0225 www.annablume.com.br Infothes Informação e Tesauro agradecimentos Nenhuma linha do que vai adiante teria vindo a lume não fosse pelo inestimável apoio intelectual e emocional que recebi de diversas pessoas ao longo de anos recentes e não tão recentes. Com uma pontada de tristeza por não dispor de espaço para nomeá- los um por um, envio, primeiramente, um agradecimento guarda- chuva a todas e todos que me ofereceram uma mão, um ombro e/ ou um cérebro solidários em momentos decisivos da feitura deste trabalho, versão amplamente revisada de uma densa (quero crer), porém quase ilegível (agora vejo), dissertação de mestrado defendida na Universidade de Brasília por volta de uns dez anos atrás. A inesquecível ajuda que recebi de Ana Cláudia Lyra, Cynthia Hamlin, Diogo Corrêa, Eurico Cursino dos Santos, João Daniel Lima, José Roberto Barreto Lins, Josué Pereira da Silva, Luísa Peters, Maria Cruz Lopes, Maria Stela Grossi Porto e Paulo Peters não poderia passar, entretanto, sem uma menção especial. Por fim, com uma gratidão que não cabe em palavras (o que justifica de imediato, espero, a aparição deste que é o mais apropriado entre os clichês), dedico o trabalho às contínuas lições de inteligência e sensibilidade que são Laura Luedy, Luís Antônio Schmitt Peters, Luís de Gusmão (amigo e orientador da longínqua dissertação de mestrado que desembocou neste livro), Maria Helvécia Arruda Moura e Frédéric Vandenberghe. Aliás, falando em Fred, espero poder tomar de empréstimo, aqui, as palavras que ele me dedicou generosamente (como sempre) noutro lugar: “Este livro é, literalmente, nosso livro, embora eu assuma total responsabilidade pelo seu conteúdo”1. 1 Vandenberghe, Frédéric. Teoria social realista: um diálogo franco-britânico. Belo Horizonte: UFMG, 2010, p. 42. Trechos do texto que se segue apareceram anteriormente nas seguintes publicações: “Humano, demasiado mundano: a teoria do habitus em retrospecto”. Teoria & Sociedade, v.18, n.1, 2010, p.8- 37; “Admirável senso comum? Agência e estrutura na sociologia fenomenológica”. Ciências Sociais Unisinos, v.47, n.1, 2011a, p.85- 97; “The social as heaven and hell: Pierre Bourdieu’s philosophical anthropology”. Journal for the theory of social behavior, v.42, n.1, 2011b, p.63-86; “A praxiologia culturalista de Anthony Giddens”. Teoria & Pesquisa, v.20, n.1, 2011c, p.123-147; “Agência, estrutura e práxis: uma leitura dialógica da teoria da estruturação”. Teoria & Sociedade, v.19, n.1, 2011d, p.8-39; “O social entre o céu e o inferno: a antropologia filosófica de Pierre Bourdieu”. Tempo Social, v.24, n.1, 2012a, p.229-261; “Explicação, compreensão e determinismo na sociologia de Pierre Bourdieu”. Estudos de Sociologia, v.2, n.17, 2012b; “Habitus, reflexividade e neo-objetivismo na teoria da prática de Pierre Bourdieu. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.28, n.83, 2013a, p.47-71; “Explanation, understanding and determinism in Pierre Bourdieu’s sociology”. History of the human sciences, v.27, n.1, 2013b, p.124-149; “Anthony Giddens entre a hermenêutica e a crítica: o status do conhecimento de senso comum na teoria da estruturação”. Plural, v.21, n.2, 2014, p.168-194. sumário 9 introdução 23 duas palavras preambulares 31 i. o problema da relação agência/estrutura na teoria social 49 ii. a teoria da prática de pierre bourdieu – parte i: ob- jetivismo, subjetivismo e o habitus como instância de me- diação 113 iii. a teoria da prática de pierre bourdieu – parte ii: uma sociologia genética do poder simbólico 175 iv. a teoria da estruturação de anthony giddens – par- te i: uma ontologia praxiológica da vida social 243 v. a teoria da estruturação de anthony giddens – par- te ii: a múltipla hermenêutica do estruturacionismo; ou encontros e desencontros com o conhecimento de senso comum e com o pensamento socioteórico contemporâneo 291 vi. considerações finais: em direção a uma praxiologia estruturacionista 305 bibliografia “É tão verdade serem as circunstâncias a fazerem os homens quanto a afirmação contrária” (Marx & Engels, 1974: 49). “Se mais de uma tentativa é necessária, não é porque ninguém tentou antes, mas porque a história da Sociologia tem sido até agora um cemitério de tentativas fracassadas de resolver teoricamente a con- tradição prática da condição humana: a contradição entre as pessoas fazendo a história (sociedades, sistemas, estruturas, etc.) e a história (sociedades, sistemas, estruturas, etc.) fazendo as pessoas” (Bauman, 1991: 36) “A urgência do problema da relação entre estrutura e agência não se impõe apenas a acadêmicos, mas a todo ser humano. Pois é parte e parcela da experiência cotidiana sentirmo-nos tanto livres quanto coagidos, capazes de moldarmos nosso próprio futuro e ainda sim confrontados por coerções poderosas e aparentemente impessoais. Aqueles cuja reflexão leva-os a rejeitar a grandiosa ilusão de serem mestres de fantoches, mas também a resistir à conclusão inerte de que são meras marionetes, têm então a mesma tarefa de reconciliar essa bivalência experiencial (...) Consequentemente, ao tratar do proble- ma da relação entre estrutura e agência, os teóricos sociais não estão apenas lidando com questões técnicas cruciais no estudo da socie- dade, mas também confrontando o problema social mais premente da condição humana” (Archer, 1988: X). introdução O presente estudo apresenta um exame conjugado dos quadros teórico-metodológicos de análise da vida social for- mulados por Anthony Giddens e Pierre Bourdieu. No seio deste exame, uma ênfase especial será conferida às formas pelas quais cada um deles ataca o problema fundacional da relação indiví- duo/sociedade ou, em termos mais técnicos e afins à cena da teoria sociológica contemporânea, a questão do complexo re- lacionamento entre agência e estrutura, tomadas como as duas dimensões fundamentais de qualquer retrato ou investigação do universo societário - pelo menos, segundo a opinião de grande parte dos autores e autoras que compuseram a paisagem do pen- samento sociológico no recente fin de siècle. Com vistas a uma aproximação introdutória ao nosso tema, o plano conceitual da agência pode ser preliminarmente definido como referenteà esfera da ação individual subjeti- vamente propelida. O escopo da noção de “propulsores sub- jetivos da conduta” deve ser, nessa caracterização inicial, to- mado como suficientemente amplo de maneira a incluir tanto uma dimensão volitiva ou motivacional - os desejos, intenções e finalidades explícitas, tácitas ou inconscientes que os atores perseguem no curso de suas vidas – quanto recursiva ou pro- cedimental - as habilidades cognitivas, práticas e expressivas que capacitam tais agentes a intervir no mundo social e a im- primir suas marcas históricas intencionais ou não-intencionais no mesmo. 10 percursos na teoria das práticas sociais Por outro lado, é ponto pacífico na teoria social, ainda que as implicações extraídas dessa premissa não o sejam, que toda agência individual está imersa em arranjos sociais historicamente herdados com os quais ela trava alguma modalidade de relação. Desse modo, a esfera da ação tem de ser, na investigação históri- co-sociológica de fenômenos societais concretos assim como em qualquer teorização mais geral acerca do mundo social conside- rado in abstracto, sistematicamente relacionada à dimensão das estruturas coletivas. Esta expressão altamente polissêmica tam- bém pode ser compreendida, em princípio, no seu sentido mais lato ou abrangente, referente a toda a constelação de fenômenos e circunstâncias derivados da sociabilidade humana que exercem alguma influência restritiva ou habilitadora na produção, no de- sempenho e nos efeitos de condutas individuais. Uma vez mais, o próprio alcance semântico ou definien- dum do conceito de “estrutura” é matéria de disputa na teoria social, que registra diversos significados associados a essa no- ção-chave da heurística sociológica. De maneira semelhante ao que foi dito a respeito da noção de “propulsores subjetivos” da ação, os quais foram tomados, como vimos, como abarcando tanto a dimensão volitiva/intencional quanto a esfera recursi- va/procedural da conduta humana, vale a pena não apresentar certas especificações conceituais logo no início deste trabalho (por exemplo, a distinção entre os aspectos material e ideacio- nal da vida social, algumas vezes fraseada em termos de uma diferenciação entre estrutura social e cultura). Meu objetivo, ao delinear a questão em termos tão inclusivos, é apenas o de des- tacar todo o imenso leque de dimensões e problemas analíticos implicados na referência genérica de praxe à relação agência/ estrutura. Nesse sentido, essa discussão preliminar também coloca entre parênteses o debate acerca do status ontológico último da noção de “estruturas sociais”, isto é, a controversa questão de se poder ou não tomar tal conceito como designativo de entidades efetivamente existentes no mundo real, em vez de apenas um instrumento heurístico útil, apesar de ontologicamente fictício em última instância, para descrever padrões de conduta e de re- lações empiricamente discerníveis na realidade estudada pelos cientistas sociais. A epoché dessa questão ingrata não me pare- ce, de início, criar maiores problemas para a presente discussão, na medida em que a maior parte das rejeições “nominalistas” à concessão de um estatuto ontológico substantivo ao conceito de estrutura social - que pode estar, em discussões empiricamente orientadas, sub-repticiamente implicado em noções referentes a instâncias coletivas como “estado” ou “mercado” - vem nor- malmente atrelada a um reconhecimento implícito ou explícito de sua conveniência ou mesmo necessidade metodológica (por exemplo, Simmel, 1983: 49; Weber, 2000: 9). De todo modo, a investigação do enfrentamento do proble- ma teórico da interação entre agência e estrutura nas obras de Giddens e Bourdieu justifica-se, a meu ver, pelo fato de que as te- orias avançadas por estes dois autores têm como alicerce comum a tentativa de superação de uma série de dicotomias intimamente inter-relacionadas, ainda que não completamente idênticas, que atravessam todo o pensamento social no século XX, tendo sido expressas por uma variedade de rótulos binomiais, como ação/ estrutura, individualismo/holismo, micro/macro, determinismo/ voluntarismo e subjetivismo/objetivismo. Em uma primeira ca- racterização inevitavelmente esquemática e redutora, é possível argumentar que tais rótulos indicam uma separação, consolidada ao longo da história das ciências sociais e corporificada tanto no âmbito de teses ontológicas gerais acerca da vida social quanto na construção de metodologias explanatórias dos fenômenos que a constituem (Archer, 1995: cap.1), entre duas espécies distin- tas de abordagens teóricas. Cada uma destas tende a caracterizar a relação ação/estrutura de maneira tal que uma das instâncias desse binômio seja concebida como a variável dependente cujas propriedades podem ser sistematicamente inferidas das proprie- dades da instância designada pelo outro termo, tomada como variável independente ou fator singularmente determinante da relação. Assim, uma das esferas do relacionamento entre a ação individual intencional ou significativa, de um lado, e as proprie- dades estruturais, institucionais ou culturais de formações sociais inteiras, de outro, passa a ser tomada a priori como o fator causal 11gabriel peters 12 percursos na teoria das práticas sociais fundamental do qual a constituição, reprodução e transformação da outra esfera constituem o efeito. Nesse sentido, a paisagem do pensamento social clássico e contemporâneo pode ser dividida em duas constelações de pers- pectivas teóricas: a) de um lado, um conjunto de abordagens subjetivistas, individualistas e tendencialmente microssociológicas, vertentes de análise centradas nas diversas orientações subjetivas e procedimentos práticos de conduta mobili- zados pelos indivíduos na produção da ação e da inte- ração social. A ordem societária tende a ser concebida, nessas abordagens, como um produto contínuo e contin- gentemente modificável de agentes reflexivos e inten- cionais, tidos como dotados de grande poder criativo na estruturação de seus ambientes sociais de atuação; b) no outro pólo, um universo de teorias que tendem a uma perspectiva inversa, isto é, objetivista, holista e centrada em contextos macrossociológicos. A despeito de discordarem acerca de problemas analíticos centrais (como, por exemplo, a importância dada ao consenso ou ao conflito na vida social), tais abordagens dirigem seu enfoque predominantemente às injunções impostas por macroestruturas sociais à conduta dos atores individu- ais, caracterizando as propriedades e o curso histórico de tais arranjos societais macroscópicos como, em grande medida, operantes à revelia da volição e da consciência dos indivíduos e exercendo uma poderosa influência so- bre estes. Obviamente, essa caracterização extremamente ampla do problema em jogo atropela, em extensão bastante significativa, uma série de nuanças e diferenças importantes entre as vertentes teórico-metodológicas que situaríamos prima vista em cada um dos lados dessa dicotomia, além de reunir em uma definição ex- cessivamente geral um conjunto de problemas passíveis de serem diferenciados por uma investigação mais minuciosa. Não obs- gabriel peters 13 tante, acredito que tal caracterização pode fornecer parâmetros heurísticos úteis de comparação entre perspectivas diversas na teoria social, além de se constituir como o próprio prisma analí- tico por meio do qual tanto Bourdieu como Giddens interpretam o desenvolvimento histórico do pensamento social anterior às suas próprias formulações teóricas. O termo classificatório que obtém, aparentemente, a predileção de ambos para diagnosticar de forma mais precisa o pacote de problemas fundamentais que perpassa todos aqueles rótulos é o par subjetivismo/objetivismo. Com efeito, ainda que as expressões“subjetivismo” e “objetivis- mo” tenham sido comumente utilizadas como referentes às dife- rentes posições epistemológicas assumidas no que toca à questão da neutralidade axiológica nas Ciências Sociais, elas apontam, nas discussões de Giddens (1989: XVI) e Bourdieu (1990a: 150), para as ênfases alternativas que distintas perspectivas teóricas oferecem ao problema da relação entre sujeito (isto é, o ator hu- mano individual) e objeto (a sociedade e suas estruturas e insti- tuições) no desenrolar da existência sócio-histórica. Nesse sentido, segundo as lentes interpretativas fornecidas pela teoria da estruturação de Anthony Giddens e pela teoria da prática de Pierre Bourdieu, seria possível situarmos preliminar- mente como perspectivas mais próximas ao pólo subjetivista, por exemplo, o interacionismo simbólico de George Herbert Mead ou Herbert Blumer, a microssociologia “dramatúrgica” de Erving Goffman, a fenomenologia social de Alfred Schutz, a etnometo- dologia de Harold Garfinkel, filosofias neowittgensteinianas da ação social (à la Peter Winch), bem como, ainda que com reser- vas importantes, a teoria da escolha racional, quadro de análise que, a despeito de possuir uma maior popularidade em teorias econômicas, também aparece em algumas perspectivas socio- lógicas contemporâneas, como aquelas desenvolvidas por Ray- mond Boudon e Jon Elster. No segundo grupo supracitado, isto é, o de abordagens mais próximas ao objetivismo, poderíamos incluir, por sua vez, a sociologia durkheimiana, o estrutural-fun- cionalismo radical da última fase do trabalho de Talcott Parsons, a abordagem sistêmica de Niklas Luhmann, a antropologia estru- turalista de Lévi-Strauss e as diversas interpretações ou variantes 14 percursos na teoria das práticas sociais determinísticas do marxismo, como, por exemplo, aquela avan- çada por Louis Althusser. Nunca é exagerado insistir na diversificação interna des- ses dois conjuntos de perspectivas, bem como no fato de que as veias subjetivista ou objetivista das mesmas materializam-se com diferentes “intensidades” e de distintas formas em cada uma dessas abordagens, assim como nas obras dos representantes de cada abordagem particular e até mesmo em diferentes momen- tos da obra de um mesmo autor. O conflito entre interpretações voluntarísticas e determinísticas do pensamento de Marx, por exemplo, é um traço proeminente de toda a história intelectual e política do(s) marxismo(s), podendo ser retrospectivamente radiografado inclusive nas ambiguidades presentes na obra de seu próprio fundador. Para tanto, basta contrapor, por exemplo, a crítica da alienação sob as condições do regime capitalista deli- neada em escritos de juventude como Os manuscritos econômi- co-filosóficos (2001) de 1844 ou a famosa análise do fetichismo da mercadoria desenvolvida no primeiro capítulo de O Capital (1967), inspiradora do materialismo dialético bem mais dialético do que materialista de “marxistas ocidentais” (Merquior, 1987; Jay, 1984) como Lukács e os frankfurtianos, às obras ou passa- gens em que, por outro lado, se desenha uma defesa explícita de um enfoque rigorosamente determinista e holista da história humana, concebida como submetida a leis naturais de desenvol- vimento operantes independentemente de vontades e interesses individuais, perspectiva esparsamente defendida em textos di- versos e condensada no célebre prefácio da obra Contribuição à crítica da economia política (1982), de 1859. No campo subjetivista, por sua vez, podemos observar que, se Schutz (1962; 1979), por um lado, ao propor uma síntese ori- ginal entre a filosofia fenomenológica de Husserl e a sociologia compreensiva de Weber, mergulha fundo na experiência subjeti- va do ator imerso no mundo social e nos processos por meio dos quais o indivíduo imbui de sentido seus horizontes cotidianos de atuação, a etnometodologia de Garfinkel se afasta da vida men- tal do indivíduo singular para dirigir-se à análise de contextos públicos de interação entre os atores, centrando-se nos intrinca- gabriel peters 15 dos procedimentos através dos quais os indivíduos se esforçam continuamente por tornar suas práticas publicamente accounta- ble - ou seja, “visivelmente-racionais-e-inteligíveis-para-todos- -os-propósitos-práticos” (Garfinkel, 1967: VII) -, constituindo ininterruptamente a própria ordem social como uma consecução ativa, local e contingente precisamente por meio desse esforço. Como o próprio rótulo indica, a categoria de “interação”, mais do que a de ação individual, também é obviamente central nas diferentes versões do interacionismo simbólico, sendo a obra de Mead um fundamental ponto de referência para abordagens que visam demonstrar o papel constitutivo de interações sociais simbolicamente mediadas na formação e manutenção contínua da personalidade e auto-representação identitária dos atores in- dividuais, em contraposição ao modelo individualista do “homo clausus” (Elias), da subjetividade “cartesiana” isolada e auto-su- ficiente postulada pela hoje tão mal vista “filosofia da consciên- cia” ou do sujeito (Habermas, 2000: 411-434; Domingues, 2004: 26; Berger, 1972: 112-113). Por fim, ainda que a teoria da escolha racional seja comumente situada nesse primeiro pólo de perspec- tivas teórico-metodológicas, em virtude de seu compromisso de princípio com a explicação dos fenômenos sociais em termos da conduta intencional de indivíduos, ela se distingue das três abor- dagens supracitadas devido à sua tradicional preocupação com fenômenos sociais de cunho macroscópico (Boudon, 1993: 29), além de não ser propriamente incompatível com teorias ou análi- ses históricas objetivistas1. 1. Afirmando que todas as permutações entre as caracterizações da ação como racio- nal ou não-racional, de um lado, e as concepções quanto à natureza da ordem social de cunho individualista ou holista/coletivista, de outro, são logicamente possíveis e empiricamente exemplificáveis na paisagem histórica do pensamento sociocientífico, Alexander ecoa o velho argumento ventilado por seu mestre Parsons em A estrutura da ação social e sustenta que “muitas teorias coletivistas assumem que as ações são motivadas por uma forma estreita, meramente tecnicamente eficiente, de racionali- dade. Quando isso acontece, as estruturas coletivas são retratadas como se fossem externas aos indivíduos em um sentido físico. Estas estruturas aparentemente mate- riais-externas, como os sistemas políticos ou econômicos, são tidas como capazes de controlar os atores a partir de fora, gostem estes disso ou não. Elas o fazem por meio do arranjo de sanções punitivas e recompensas positivas para um ator, que é reduzido 16 percursos na teoria das práticas sociais De modo semelhante, o espectro de versões teóricas do ob- jetivismo na sociologia é multifacetado, envolvendo perspectivas tradicionalmente contrapostas conforme a caracterização do uni- verso social através de um viés centrado no consenso/integração (como na tradição estrutural-funcionalista que vai de Durkheim a Parsons) ou no conflito/dominação (como em Marx ou Weber, pelo menos nas interpretações “não-parsonianas” do pensamento desse último). Além disso, a ênfase partilhada no que respeita à concessão de prioridade ontológica e/ou metodológica à estrutura sobre a agência disfarça a importante distinção entre o sentido es- trutural-funcional ou marxista da noção de “estrutura”, referente a um certo arranjo relacional das diferentes “partes” de uma dada formação social, e o significado estruturalista ou pós-estruturalis- ta do conceito, referente ao modo “virtual” ou “paradigmático” (Jakobson) de organização das relações opositivas estabelecidas entre signos no interior de um sistema semiótico, seja este lin- guístico ou não2. É claro que, se qualquer tentativa de caracterização globaldo significado e das principais implicações teórico-metodológicas de cada uma das dicotomias referidas pelos rótulos agência/es- trutura, individualismo/holismo, microssociologia/macrossocio- logia, subjetivismo/objetivismo e tutti quanti já corre o risco de simplificar brutalmente as teorias normalmente encaixadas nessas classificações, o perigo é ainda mais acentuado se o que busca- mos é capturar analiticamente a questão nuclear que transversali- za todas essas designações, como ensaiei fazer acima. O problema é complexificado, além disso, pelo fato de que tais antinomias referem-se tanto a caracterizações ontológicas abstratas da vida a um calculador de prazer e dor. Como esse ator responde objetivamente a influências externas, os ‘motivos’ são eliminados como uma preocupação teórica. A subjetividade desaparece na medida em que é assumido que a resposta do ator pode ser predita a partir da análise de seu ambiente externo” (1987b: 13-14). 2. Para uma clássica análise de sistemas de parentesco calcada no modelo da linguística estrutural, em continuidade, nesse sentido, com o velho programa saussuriano de uma semiologia geral que consideraria também fenômenos não-linguísticos como siste- mas de signos ou unidades significativas contrastivamente definidas, ver Lévi-Strauss (1973). gabriel peters 17 social quanto à construção de esquemas metodológicos de expli- cação dos fenômenos societários, ordens de preocupação que, apesar de certamente interpenetrarem-se em diversos momentos, acabam gerando distintas formas de tratamento da relação indiví- duo/sociedade3. A controvérsia em torno das abordagens alternativas do in- dividualismo e holismo metodológicos, por exemplo, apesar de obviamente envolver argumentos de caráter ontológico, pode ser mais precisamente classificada como um confronto entre lógicas explanatórias distintas, as quais “diferem quanto ao que consideram como explicativo” (Levine/Sober/Whright, 1993: 192). De acordo com o princípio metódico holista, os fatos sociais explicariam uns aos outros, sendo as condutas e intenções dos indivíduos que com- põem uma dada formação coletiva concebidas como irrelevantes do ponto de vista explicativo e/ou como manifestações epifenomênicas dos processos próprios a uma coletividade ou sistema social toma- do como entidade sui generis. Por outro lado, partindo da asserção ontológica básica de que todo e qualquer fenômeno coletivo que aparente constituir uma unidade acima e para além dos indivíduos não passa, em última instância, de um agregado ou combinação de ações individuais, individualistas metodológicos defendem que es- tas devem figurar, então, em última instância, sempre como causas e não como consequências do devir de instituições sociais, mesmo daquelas de cunho mais macroscópico4 (Boudon, 1979: 16). 3. Por exemplo, um modelo reducionista da ação individual e de processos sociais em geral pode eventualmente ser visto como um desagradável vício no primeiro tipo de empreendimento (e.g., a abordagem “multidimensional” de Jeffrey Alexander) e, ao contrário, como uma saudável virtude de qualquer ciência digna desse nome no segun- do (e.g., o modelo de explicação “mecanísmica” avançado por Jon Elster). 4. É interessante notar que, tomado apenas como lógica explanatória, o individualismo metodológico não precisa necessariamente carregar consigo as implicações cogniti- vamente perniciosas rotineiramente imputadas a essa abordagem, dentre as quais vale ressaltar a redução das propriedades de instituições e fenômenos societários a pro- priedades de agentes individuais (o “psicologismo” de Stuart Mill vilipendiado pelo próprio Popper [1987: 99-100]), a concessão analítica de implausíveis graus de liber- dade e poderes criativos aos atores no confronto destes com seus ambientes sociais e institucionais de ação (os graus de coação exercidos por estes últimos sobre o espectro de condutas possíveis aos indivíduos obviamente são historicamente variáveis, mas sempre podem entrar nas explicações individualistas sob a forma de condições situ- 18 percursos na teoria das práticas sociais Enquanto a dicotomia individualismo/holismo insere-se de modo mais característico no debate acerca do status expla- natório da ação individual e de fatores coletivos como variáveis na estrutura da explicação sociológica, opondo-se conforme a caracterização inversa de tais variáveis como explanans ou ex- planandum respectivamente, as expressões agência/estrutura e subjetivismo/objetivismo acomodam-se melhor à descrição de diferentes ontologias da vida social, ainda que estas também sejam quase sempre pensadas por seus progenitores como guias heurísticos necessários às explicações de processos sócio-his- tóricos substantivos (Giddens, 1984: XXXIII, Archer, 1995: 16-30; Sibeon, 2004: 12-15). Não é preciso ir muito longe na análise desse tipo de esforço para verificarmos que o proble- ma fundamental de qualquer empreendimento dessa natureza refere-se à relação de contínua influência recíproca ou interde- pendência causal entre ações individuais e formações coletivas no curso do devir histórico; em outros termos, dos processos simultâneos de constituição e reconstituição da sociedade e de seus arranjos cristalizados através das práticas de indivíduos, de um lado, e de formação (ou “condicionamento”) de tais in- divíduos como agentes historicamente socializados, de outro – questão eloquentemente indicada pelas epígrafes de Bauman e Marx colocadas no início deste trabalho. A terceira epígrafe do mesmo, aliás, também traz a necessidade de reconciliação ana- lítica da fundamental “bivalência experiencial” a que se refere ali Margaret Archer, a constante e irrevogável coexistência de acionais que conformam o contexto das ações e intenções dos agentes) ou a cegueira diante dos efeitos não-intencionais da ação, os quais na verdade constituem temas privilegiados de investigação de alguns de seus advogados mais proeminentes, como Weber (pelo menos, no terreno do inquérito histórico-sociológico substantivo deli- neado em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo [1967]), Boudon (1979) e Elster (1994: 113-123). Nesse sentido, certas versões do individualismo metodológico podem ser legitimamente consideradas como exemplos de alternativas teórico-meto- dológicas que engrossam as fileiras de perspectivas que intentam superar (ainda que muitas vezes sem referência explícita a esse debate) a dicotomia agência/estrutura; constituem, por assim dizer, parte da solução mais do que do problema, ainda que obviamente estejamos diante de um terreno intelectual em que as soluções propostas muitas vezes criam tantos (ou mais) problemas do que resolvem. gabriel peters 19 um aspecto ativo e um aspecto passivo no curso da existência individual em sociedade. Tal diagnóstico ecoa, mais de dois mil anos depois, a referência à ambiguidade existencial inescapável da condição humana já contida in nuce na clássica afirmação de Aristóteles de que “a história constitui o relato do que cada ser humano fez e sofreu”5 (apud Berlin, 2002: 58; grifos meus). Trata-se de captar os modos de operação e interpenetração entre o que é “feito” e o que é “sofrido” pelos seres humanos no fluxo ininterrupto da vida social, de um esforço de compreensão das condições de possibilidade de fenômenos os quais, ao mesmo tempo em que engendrados por pessoas, possuem característi- cas e direções que escapam às intenções de qualquer indivíduo ou grupo particular e exercem coações incontornáveis sobre estes. Anthony Giddens e Pierre Bourdieu afirmam, cada um à sua maneira, que o pensamento social clássico e contemporâ- neo foi inundado por tentativas analiticamente unilateralizantes de solução dessa problemática tenaz, as quais terminaram por eclipsar, de maneira mais ou menos completa ou parcial, oim- pacto causal específico e a autonomia relativa de uma dessas dimensões da vida social, o que teve como corolário sua subor- dinação à outra esfera, investida de primazia ontológica ou ex- planatória. A qualificação anterior “de maneira mais ou menos completa ou parcial” é, no entanto, importante, pois a antino- mia subjetivismo/objetivismo não deve ser pensada como uma oposição rígida entre teorias que tomam o sujeito como simples epifenômeno do objeto e abordagens que fazem precisamente o contrário, mas como um eixo contínuo em que diversas pers- pectivas podem ser distintamente classificadas conforme suas diferenças de ênfase evidenciem uma maior ou menor aproxi- mação a um desses pólos extremos. Tal eixo também pode com- portar, portanto, abordagens que sustentam, mesmo que ape- nas retoricamente, a existência de um interplay dialético entre 5. Como frequentemente lembrado, tal ambiguidade está embutida na própria noção de sujeito, passível de ser entendida tanto em um sentido ativo (sujeito de) quanto passivo (sujeito a). 20 percursos na teoria das práticas sociais as dimensões subjetiva e objetiva da vida social (ressalva que pode ser mantida em mente para a avaliação crítica do grau de sucesso analítico dos esforços teórico-metodológicos dos pró- prios Giddens e Bourdieu6). De toda forma, os dois autores se notabilizam pela tese de que a polarização dicotômica entre alternativas em maior ou me- nor medida unilaterais no tratamento dessa questão é altamente perniciosa para a teoria social. Uma compreensão mais acurada da vida societária exigiria, assim, um esforço de síntese teórica capaz de retratar como estão articulados ou entrelaçados os planos da ação, isto é, da conduta individual cotidiana e de seus motores subjetivos, e das estruturas coletivas, ou seja, dos padrões institu- cionalizados de conduta ou de relações que atuam coercitivamente sobre os agentes individuais e que se estendem pelas coordenadas espaço-temporais mais amplas que conformam grupos ou socie- dades inteiras (ultrapassando o escopo existencial da biografia de qualquer indivíduo)7. Nesse sentido, este estudo buscará analisar as estratégias teórico-metodológicas levadas a cabo por Anthony Giddens e Pierre Bourdieu para a construção da referida síntese. 6. Aliás, vale lembrar também que as instâncias da ação e da estrutura não devem ser res- pectivamente identificadas prima facie com as dimensões micro e macro do universo social, na medida em que é perfeitamente possível, e de fato empiricamente frequen- te, encontrarmos agência no nível macroscópico – pensemos, por exemplo, no efeito de irradiação institucional das escolhas e ações de “mega-atores” (Mouzelis) como chefes de estado no mundo contemporâneo, ou ainda na atuação en bloc de atores coletivos altamente centrados, como partidos políticos ou outras organizações formais -, bem como situações microssociológicas fortemente estruturadas, como a compra de um chocolate, uma entrevista de seleção para um determinado cargo profissional ou mesmo as interações fortemente ritualizadas que caracterizam o início de relações erótico-afetivas nas sociedades contemporâneas. 7. A imprecisão da noção de “coerção” já foi diversas vezes sublinhada nos debates acerca do estatuto desse conceito em Durkheim (Lukes, 1985: 12; Aron, 2000: 327). No contexto da presente discussão, é suficiente destacar que a influência coercitiva das estruturas sociais sobre a ação individual a que me refiro acima deve ser pensada de modo amplo, não precisando ser concebida apenas como referente a uma restrição exterior à conduta dos agentes, mas podendo operar também de forma subjetivamente mediada, através de seu papel (nesse sentido, ao mesmo tempo restritivo e capacita- dor) na própria constituição das motivações e recursos cognitivos, normativos e ex- pressivos de conduta mobilizados pelos atores em suas práticas em um dado contexto coletivo. gabriel peters 21 A investigação que deu origem ao presente trabalho não es- tava, de início, voltada apenas para a exegese detalhada da teoria da prática de Pierre Bourdieu e da teoria da estruturação de An- thony Giddens, mas também envolvia o propósito de submeter aspectos centrais de tais teorias a uma comparação. Seguindo a lei da lucidez e da cegueira cruzadas, supunha-se que esta fosse capaz de evidenciar algumas das semelhanças e dessemelhanças mais significativas entre seus respectivos corpos de categorias conceituais e proposições substantivas acerca do mundo social, ensejando um diálogo tão fecundo quanto possível entre os dois autores, na esperança de que a análise simultânea de seus qua- dros analíticos pudesse servir para iluminar, em cada um deles, aspectos ou dimensões que antes permaneciam na sombra (ou, pelo menos, na penumbra). Este esforço de comparação sistemá- tica entre as lentes teórico-metodológicas de investigação da vida social cunhadas por cada um dos sociólogos não pôde ser finali- zado (por uma pletora de motivos) e, nesse sentido, não faz parte dos desideratos perseguidos no texto que o leitor têm em mãos, primordialmente ocupado apenas com a documentação dos mo- dos pelos quais a relação agência/estrutura é concebida nos es- quemas socioanalíticos avançados por Giddens e Bourdieu8. Não obstante, o presente trabalho traz alguns rudimentos para um diálogo entre as perspectivas destes autores, rudimentos contidos em referências ocasionais a algumas das convergências e divergências entre as suas construções teóricas, bem como nas reflexões que encerram o estudo, nas quais é avançada a tese de que Giddens e Bourdieu, em suas tentativas de superação de uma série de dicotomias inter-relacionadas que estruturaram podero- samente a imaginação sociológica no século XX, arquitetaram duas versões específicas de uma praxiologia culturalista. Esta perspectiva carrega no seu núcleo a ideia de que o conceito de práticas sociais constitui o “ponto de partida sócio-ontológico” (Schatzki, 1997: 283) heuristicamente mais frutífero para a aná- 8. De modo semelhante, ainda que este estudo seja informado por parte da volumosa lite- ratura crítica acerca da teoria da prática e da teoria da estruturação, o exame detalhado da recepção destes modelos socioteóricos também não integra seus objetivos. 22 percursos na teoria das práticas sociais lise das múltiplas dimensões do universo social, dimensões tais como as disposições cognitivas, normativas e expressivas de conduta socialmente adquiridas e recursivamente implementadas pelos atores individuais em suas ações cotidianas ou as proprie- dades macroestruturais que configuram a fisionomia histórica de sistemas sociais inteiros. Por fim, é importante ressaltar que, ainda que tal empreendi- mento esteja ausente nas páginas que se seguem, a exegese reali- zada tem, em última instância, precisamente o fim de subsidiar o esforço de avaliação crítica do sucesso analítico das teses e concei- tos gerais delineados nas obras dos dois teóricos sociais focados. Tal esforço poderia ser emoldurado inclusive pelos parâmetros de uma crítica “dialógica”, com base na qual seria possível contrapor ambos os sistemas conceituais de modo a iluminar comparativa- mente suas forças e fraquezas heurísticas, com vistas à tessitura de um quadro teórico-sintético ancorado nos recursos combinados daquelas perspectivas. Este trabalho terá alcançado seu propósito caso se constitua em uma preparação exegética útil à realização ulterior de uma empreitada dessa natureza. duas palavras preambulares De modo a facilitar, do ponto de vista estilístico, o percurso da argumentação subsequente, será conveniente elidir a distin- ção conceitual, comum em certas paragens do mundo acadêmi- co anglo-saxão (Giddens, 2003: XVII, Giddens/Turner, 1999: 7; Parker, 2000: 90), entre as expressões “teoriasocial” e “teoria sociológica”. A acepção de “teoria social” normalmente suposta nessa diferenciação se refere a um espaço intelectual inerente- mente interdisciplinar de reflexão acerca de uma série de pro- blemas presentes, sob uma forma expressa ou tácita, nas mais diversas ciências humanas, problemas que podem assumir um caráter: a) ontológico, relativo ao diagnóstico das entidades e processos constitutivos do mundo social, o que envolve, por exemplo, caracterizações da natureza da conduta individual e de sua relação com as motivações subjetivas conscientes e/ou in- conscientes dos agentes, das propriedades genéricas da interação social, do relacionamento entre agência e estrutura ou entre as dimensões micro e macroscópica do universo societário etc.; b) metodológico, ordem de preocupações que abarca os espinhosos problemas epistemológicos implicados no projeto de uma inves- tigação científica da ação humana, de representações sociocul- turais e de processos coletivos, problemáticas tais como as mo- dalidades de descrição, compreensão interpretativa e explicação causal aventadas no universo das ciências humanas, procedimen- tos normalmente pensados tendo como pano de fundo emulativo ou contrastivo as características metodológicas observadas nas ciências da natureza; c) normativo, dimensão que compreende as 24 percursos na teoria das práticas sociais pressuposições, engajamentos ou implicações morais ou prático- -políticas das teorias e diagnósticos produzidos no campo das ciências humanas. A noção de “teoria sociológica”, por sua vez, designaria, segundo aquela distinção, o exame sistemático dos marcos estru- turais e processos de reprodução e transformação da modernida- de, conceito tomado não em um sentido estritamente histórico- -cronológico, mas analítico ou “qualitativo” (Adorno), isto é, referente a um tipo historicamente específico de arranjo social e institucional articulado a modos característicos de conduta. Tal arranjo, ainda que assumindo múltiplas manifestações nos diversos contextos particulares do mundo atual, tornou-se con- temporaneamente global em sua influência através de processos de emulação, incorporação, convergência transformacional rela- tivamente autônoma e/ou imposição colonial ou imperial (bas- ta pensarmos, por exemplo, no alcance hodierno da economia de mercado ou do modelo de organização territorial e jurídico- -política do estado-nação). Naturalmente, é nessa mesma área de investigação que se desenrolam os recentes e acalorados debates a respeito da suposta transição histórica contemporânea (pelo menos, nas sociedades do Atlântico Norte) da constelação ins- titucional característica da modernidade “clássica” em direção a um novo tipo de configuração societal, para a qual, com efei- to, já está disponível no mercado acadêmico uma profusão im- pressionante de rótulos, como “modernidade tardia (Giddens), capitalismo tardio (Mandel), sociedade pós-moderna (Lyotard), pós-industrial (Bell), pós-fordista (Coriat), programada (Tourai- ne), informacional (Castells) e do risco (Beck)” (Vandenberghe, 2005: 3). Desnecessário dizer, o presente trabalho se situa primor- dialmente no plano da teoria social tal como definida acima, in- serindo-se bem mais substancialmente nas suas dimensões onto- lógica e metodológica e tomando-a, apenas pelo motivo prosaico de conveniência estilística, como sinônima da expressão “teoria sociológica”. A “teoria” é, nesse sentido, pensada aqui em um sentido frequentemente conceituado como metassociológico ou mesmo metateórico, isto é, como uma reflexão sistemática acerca de problemas fundacionais ou pressuposicionais inevitavelmente implicados nas diversas ciências humanas (em particular, aque- les relativos ao compromisso expresso ou implícito com teses e conceitos gerais). Em nosso caso particular, tal reflexão acarreta uma ênfase bem mais significativa sobre a relevância heurística dessas questões para o âmbito de uma disciplina específica, qual seja, a sociologia histórica, concebida como o terreno intelectual de investigação empírica de fenômenos e contextos sociais con- cretos, ainda que estas investigações assumam por vezes a forma de amplas caracterizações tipológicas de propriedades comuns a constelações societárias diversas (como é o caso das discus- sões supracitadas a respeito da modernidade como um tipo de configuração institucional passível de ser descrito de forma re- lativamente independente de suas corporificações singulares em formações sócio-históricas definidas). O fato de nos movermos quase exclusivamente no espaço designado pelo primeiro pólo da distinção citada entre teoria so- cial/sociológica e investigação histórico-sociológica obviamente não implica defesa do encerramento de empreendimentos deste tipo na art pour l’art da “teoria teórica” (Bourdieu, 2001a: 59), mas, ao contrário, depende precisamente da crença de que com- promissos teórico-metodológicos gerais assumidos a respeito da vida social humana têm consequências significativas para o trabalho substantivo de pesquisa, “determinando (em parte) os tipos de problemas que são colocados, os tipos de explicações que são oferecidas e os tipos de técnicas de estudo empírico que são empregados” (Brubaker, 1985: 749-750). Nesse sentido, um exame dos quadros teórico-metodológicos tecidos por certas fi- guras proeminentes na cena da sociologia contemporânea per- manece sendo perfeitamente compatível com a ideia de que tais quadros não são fins em si mesmos, mas instrumentos heurísticos fabricados, antes de tudo, para serem criativamente mobilizados na pesquisa histórico-sociológica do “socialmente real” (Weber). Os argumentos expositivos avançados no presente trabalho estão, como é óbvio, ancorados nas obras teórico-sociológicas de Giddens e Bourdieu, bem como em parte da mastodôntica litera- tura secundária capaz de contribuir para uma clarificação das an- 26 percursos na teoria das práticas sociais gulações analíticas específicas por meio das quais cada um ataca a questão fundacional da relação ação/estrutura na teoria social. O caráter fundacional de tal problema, com efeito, deve ser com- preendido tanto do ponto de vista histórico, no que se refere à sua inserção no cerne das preocupações teórico-metodológicas que estiveram na origem das ciências sociais, como também do ponto de vista metateórico, na medida em que essa questão está neces- sariamente implicada nas suposições explicitamente formuladas ou tacitamente admitidas que orientam qualquer reflexão teórica ou pesquisa empírica acerca da realidade societária. No que tan- ge à investigação que deu origem a este trabalho, foi justamente a maior ou menor sistematicidade na tematização dessa proble- mática o elemento utilizado como critério a partir do qual certas obras mereceram um exame mais longo e detido do que outras na incursão ao corpus de textos produzidos pelos dois autores. No caso de Giddens, a seleção de escritos para um estu- do mais detalhado foi relativamente fácil de ser delineada, já que há uma distinção um tanto nítida entre: a) a fase de sua obra em que ele se compromete com a construção de uma te- oria social geral, uma ontologia da vida societária formulada a partir de um confronto crítico construtivamente orientado com diversas alternativas teóricas coexistentes, um tanto ba- gunçadamente, na paisagem contemporânea da filosofia e das ciências humanas; b) uma segunda fase, na qual ele aplica esse quadro de referência teórico-metodológico geral a uma análise histórico-sociológica dos traços institucionais e das tendências desenvolvimentais da modernidade tardia ou refle- xiva, bem como de alguns dos fenômenos característicos des- ta, como a construção da identidade pessoal como um projeto reflexivo (Giddens, 2002) ou os novos formatos assumidos pelos relacionamentoserótico-afetivos (Giddens, 1993a); c) por fim, uma teorização de cunho abertamente político acer- ca das possibilidades de sustentação de uma “terceira via” (Giddens, 2000c) entre esquerda e direita no mundo atual, relacionada, na Inglaterra, à sua associação com o “Novo Tra- balhismo” de Tony Blair. Diante disso, tenderei a me concen- trar com maior minúcia na primeira fase do seu trabalho – na qual Giddens formulou e defendeu os conceitos e teses subs- tantivas da teoria da estruturação em sucessivas publicações: Novas regras do método sociológico (1978 [1976]), Studies in social and political theory [1977], Central problems in so- cial theory (1979 [1979]), A contemporary critique of histo- rical materialism (1981 [1981]) e A constituição da socie- dade (2003 [1984])-, buscando pinçar, no entanto, exemplos de como ele operacionalizou empiricamente seu arcabouço analítico e conceitual mais geral em alguns dos estudos histó- ricos da segunda fase de sua carreira, como O estado-nação e a violência (2001a [1985]), As consequências da modernida- de (1991 [1990]), Modernidade e identidade (2002 [1991]) e Para além da esquerda e da direita (1992 [1992])1. A trajetória intelectual de Bourdieu, por sua vez, é signi- ficativamente diferenciada daquela de Giddens. Ao contrário do autor inglês, que construiu a teoria da estruturação a partir da “pura” exegese e crítica de diversas escolas de pensamento, Bourdieu formulou seus conceitos através de um embate conti- nuado com problemas de pesquisa, buscando refinar, por meio desse engajamento investigativo, as tradições de pensamento que orientavam seu arsenal conceitual e maquinaria explanató- ria. Isso não deve levar-nos, entretanto, a desconsiderar o fato de que o status epistemológico que Giddens confere à noção de “teoria” nas ciências sociais é algo similar àquele conferido por Bourdieu. Ambos os autores concebem suas formulações teóricas sob o molde de esquemas conceituais e analíticos fle- xivelmente adaptados às necessidades da pesquisa empírica e empregados, portanto, como instrumentos ou meios heurísticos de auxílio à investigação de situações ou contextos sócio-histó- ricos específicos2. 1. A rigor, A contemporary critique of historical materialism já constitui uma tentativa de mobilizar os instrumentos analíticos da teoria da estruturação na construção de uma sociologia histórica do complexo institucional da modernidade, ainda que inclua também o refinamento de certos aspectos da abordagem teórico-geral de Giddens, em particular no que toca à exploração das dimensões espaço-temporais de constituição da vida social (Giddens, 1981: cap.1). 2. Ainda que a teoria da estruturação tenha derivado da defrontação “escolástica” com 27gabriel peters 28 percursos na teoria das práticas sociais De toda forma, apesar de defender a firme ancoragem na pesquisa empírica como condição do desenvolvimento da ciên- cia social, Bourdieu não descartou a possibilidade de uma teoria geral, afirmando apenas que tal teoria deveria brotar não de uma confrontação “escolástica” entre argumentações abstratas sem referência a problemas empíricos particulares, mas da aplicação e subsequente refinamento de um conjunto limitado de noções e teses teóricas a uma variedade de domínios da realidade social. Isto é ilustrado pelas tentativas de sua própria obra, que investiga toda uma pletora de dimensões da vida societária3 a partir de um referencial teórico-metodológico calcado em um certo número de modelos explanatórios e categorias fundamentais. Tal modo de proceder deriva de sua crença na possibilidade de superação outras teorias, Giddens é bastante claro ao afirmar que o objetivo do esquema analítico delineado por ele é o de funcionar como um instrumento de ordenação da pesquisa empírica de situações ou fenômenos sociais concretos, como uma “ontologia de poten- ciais” (Cohen) sócio-históricos derivados das capacidades agenciais fundamentais dos atores humanos e de condições estruturais genéricas de constituição dos processos so- cietários, ontologia construída como referência interpretativa na investigação da inesgo- tável riqueza do empírico, “sensibilizando” os pesquisadores para as diversas facetas da “ação humana, das instituições sociais e das inter-relações entre ações e instituições” - fenômenos a respeito dos quais a teoria da estruturação fornece uma caracterização abstrata (Giddens, 1991b: 201): “Na ciência social, (...) os esquemas conceituais que ordenam e informam processos de investigação da vida social são, em grande parte, o que é e para que serve a teoria” (Giddens, 2003: IX). Um ponto de vista algo seme- lhante é defendido nas obras de Bourdieu, ainda que suas ferramentas analíticas sejam muitas vezes apresentadas e utilizadas não apenas como peças de um vocabulário con- ceitual, mas, mais ambiciosamente do que no caso do sociólogo inglês, como princípios explanatórios universais (por exemplo, a relação habitus/campo): “Diferente da teoria teórica – discurso profético ou programático que tem em si mesmo seu próprio fim e que nasce e vive da defrontação com outras teorias -, a teoria científica apresenta-se como um programa de percepção e de ação só revelado no trabalho empírico em que se realiza. Construção provisória elaborada para o trabalho empírico e por meio dele, ganha menos com a polêmica teórica e mais com a defrontação com novos objetos (...) Tratar da teoria como um modus operandi que orienta e organiza praticamente a pes- quisa científica é, evidentemente, romper com a complacência um pouco fetichista que os ‘teóricos’ costumam ter para com ela” (Bourdieu, 2001a: 58-59). 3. A impressionante lista inclui temas como trabalho, desemprego, experiência do tem- po, práticas educacionais e sistemas de ensino, relações de parentesco, usos da lingua- gem, filosofia, literatura, fotografia, frequência a museus, universidades, gênese do estado, campos jurídico e burocrático-administrativo, mercado imobiliário, religião, moda, esporte, gênero, ciência e meios de comunicação de massa. gabriel peters 29 da “alternativa mortal” entre o hiperideografismo monográfico e o formalismo teórico vazio por meio da busca sistemática de “equivalências estruturais entre domínios fenomênicos distintos” (1983: 131), em conformidade “com a hipótese da invariância formal na variação material” passível de ser observada em tal diversidade de domínios (2001: 44). Com efeito, em Lições da Aula, ele chega a afirmar que a Sociologia... “é a arte de pensar coisas fenomenicamente diferentes como seme- lhantes em sua estrutura e funcionamento, e de transferir o que foi estabelecido a propósito de um objeto construído, por exemplo o cam- po religioso, a toda uma série de novos objetos, o campo artístico, o campo político, e assim em diante” (1988:44) Ergo, as categorias que integram o cabedal de noções teóri- cas de Bourdieu são propostas com um alto grau de autonomia e formalização, justamente porque se aplicam a uma variedade de situações empíricas e não são, por isso mesmo, exclusivamente especificadas em relação a nenhuma dessas. Dessa forma, jus- tificam, a meu ver, uma exposição e uma análise em nível mais geral, na medida em que se posicionam quanto a problemas tra- dicionais da teoria social e, em particular, em relação à dicotomia ação/estrutura. Vandenberghe parece concordar comigo nesse ponto: “Campo, habitus, capital cultural e violência simbólica – essas não apenas ferramentas de um kit de instrumentos teóricos frouxamen- te integrados, mas genuínos conceitos-mestre que são de tal modo desenvolvidos e inter-relacionados que formam uma teoria total do mundo social (Vandenberghe, 2002:7). Ainda que alguns bourdieusianos de plantão possam ver tal procedimento como mais uma desagradável interpretação teo- ricista do pensamento sociológicode Bourdieu, a qual violaria o caráter empiricamente orientado do modo de fazer Sociologia que o autor francês sempre defendeu, a concentração maior de minha análise estará mais direcionada para os seus escritos des- 30 percursos na teoria das práticas sociais tinados a expor, em termos mais abstratos e formais, “a teoria total do mundo social” que informa suas investigações. Será ne- cessário, entretanto, acompanhar concomitantemente como essa lente teórico-referencial foi instrumentalizada e polida como fer- ramenta heurística na análise de situações sociais empíricas as mais diversificadas. O eixo central do trabalho consiste em um exame das obras teórico-sociológicas de Bourdieu e Giddens, centrado na expo- sição das inovações conceituais e dos argumentos ontológicos e metodológicos avançados por cada um com vistas à superação da dicotomia objetivismo/subjetivismo que marca o pensamen- to social hodierno. Tal exame é precedido de uma tentativa de formulação precisa do problema da relação agência/estrutura tal como este se apresentou como uma questão central na teoria so- cial das últimas décadas do século passado, formulação que se pretenderá fundamentalmente analítica mais do que histórica, na medida em que não se aproximará de qualquer reconstrução in- telectual exaustiva dos diferentes tratamentos da questão no de- senvolvimento das ciências sociais. O objetivo dessa discussão preliminar é simplesmente o de apresentar o status quaestiones, o estado da problemática, no momento e contexto em que entraram em cena as contribuições dos nossos heróis. Por fim, as conside- rações conclusivas são dedicadas ao fornecimento de algumas sugestões para uma reavaliação crítica do problema socioteórico da relação entre ação e estrutura em face dos quadros de análi- se “praxiológico-culturalistas” legados por Anthony Giddens e Pierre Bourdieu. i. o problema da relação agência/estrutura na teoria social Seria impossível, nos limites deste trabalho, proceder a uma reconstrução minimamente abrangente de todo o itinerário histó- rico do tema da relação ator/estrutura (ou indivíduo/sociedade) na reflexão sociológica moderna e contemporânea. Tal reconstru- ção teria de localizar as origens e reverberações hodiernas dessa problemática na “pré-história” da disciplina (por exemplo, no in- dividualismo utilitarista da economia neoclássica ou da filosofia política contratualista, em contraposição ao culturalismo “comu- nitarista” esposado pelo romantismo alemão do século XIX), ve- rificando posteriormente as diferentes formas pelas quais ela foi enfrentada, de forma explícita ou sub-reptícia, pelos clássicos do campo e acompanhando, por fim, o seu desenvolvimento no con- texto intelectual contemporâneo. É óbvio, no entanto, que uma formulação precisa de tal problema - isto é, do significado e das implicações da dicotomia agência/estrutura para a teoria social, bem como das dificuldades estratégicas envolvidas no seu en- frentamento – constituirá uma etapa fundamental do meu estudo. Segundo Margaret Archer (1988: X), a centralidade das concepções de “agência” e “estrutura” deve-se ao fato de que simplesmente não é possível produzir qualquer análise da vida social sem se formular ou empregar, implícita ou explicitamente, alguma concepção acerca da natureza e dos atributos dessas ins- tâncias, sejam as mesmas consideradas como parte efetiva do do- mínio do fenomênico ou apenas como construtos analíticos úteis à sua compreensão. Com efeito, trata-se de categorias que são 32 percursos na teoria das práticas sociais formuladas e mobilizadas, explícita ou tacitamente, no plano do que Alexander (1987a: 13) conceitua como os pressupostos mais gerais da ciência social, pressupostos que orientam e organizam a investigação e compreensão de quaisquer fenômenos ou reali- dades societárias por um dado pesquisador, esteja este visando à construção de um arcabouço teórico com pretensões generali- zantes ou o exame de um objeto empiricamente circunscrito4. O mesmo autor afirma que tais pressupostos podem ser formulados e justificados explicitamente, ou permanecer, ao contrário, em estado de inconsciência ou semiconsciência. É inevitável, no en- tanto, que qualquer sociólogo envolvido em um estudo teórico e/ ou empírico trabalhe a partir de certas pressuposições gerais den- tre as quais certamente se encontram: a) supostos acerca da na- tureza da ação e de seus motores subjetivos; b) supostos acerca do caráter socialmente padronizado e organizado da atividade humana, isto é, dos complexos modos pelos quais uma multi- plicidade de ações individuais é arranjada de maneira a formar estruturas e instituições coletivas - o chamado “problema da or- dem”, que tanto preocupou Hobbes, Durkheim, Parsons e vários outros, mas cuja enunciação clássica proveio da pena de Simmel quando este, ao parafrasear uma interrogação kantiana acerca da natureza presente na Crítica da Razão Pura, colocou-se a ques- tão: “como é possível a sociedade?”5 (Simmel, 1983). 4. A asserção de Alexander está intimamente relacionada ao seu uso particular da noção kuhniana de paradigma, que indicaria “o forte efeito que pressuposições não-empíri- cas possuem sobre a percepção mesma de variáveis empíricas” (1984: 5). Com efeito, a investigação científica não está alicerçada apenas no ver para crer, mas também no crer para ver. Entretanto, ainda que a influência de Kuhn seja de fato crucial, ainda que não-intencionada pelo autor, para o recente impulso à teorização nas ciências sociais, calcado no molde epistemológico do que se convencionou chamar de filosofia “pós-positivista” ou “pós-empiricista” da ciência (Cohen, 1999:398-403), a ênfase no “forte efeito que pressuposições não-empíricas possuem sobre a percepção mesma de variáveis empíricas”, no fato de que não há observação (ou linguagem de obser- vação) do real que independa de categorias e pressupostos gerais presentes na mente do sujeito cognoscente, já havia sido proposta anteriormente por diversos autores no âmbito da filosofia da ciência, como Duhem, Quine, Popper e Bachelard (sem contar os esforços anteriores na gnoseologia mais geral de Kant e Husserl). 5. Transpondo ao campo socioteórico o argumento de Aristóteles acerca da filosofia, poder-se-ia arriscar a hipótese de que alguma espécie de espanto curioso diante do No sentido mais rasteiro, o “problema da ordem” refere-se ao fato de que os contextos sociais humanos implicam probabi- lidades desiguais de modos de conduta individual. Em outros termos, a relativa persistência histórica de qualquer instituição social só ocorre porque as ocorrências de certas espécies de ação são, em determinadas constelações sócio-históricas, rotineira- mente mais prováveis do que as ocorrências de outras, sendo ta- refa central da teoria social analisar como formações societais variadas engendram ou contribuem para engendrar tais proba- bilidades desiguais de comportamento individual asseveradas pela observação de regularidades empíricas de conduta (Bau- man, 1991: 37; Calhoun: 26). A noção de “ordem social”, des- sa forma, relaciona a referida desigualdade probabilística com a qualidade socialmente organizada das ações e relações humanas, com o fato de que o mundo societário constitui “um arranjo de entidades no qual cada uma tem um lugar e significado”, “um arranjo de pessoas no qual elas realizam ações inter-referidas, estão envolvidas em relações particulares e possuem identidades específicas” (Schatzki, 1996: 15). Nesse sentido, é importante observar que a acepção de “or- dem social” implicada no argumento supradelineado não se re- fere simplesmente à organização ou estruturação de situações de coexistência cooperativa e harmoniosa, mas também a contextos sociais que podem comportar situações mais ou menos intensasde conflito e exercício esporádico ou sistemático de poder e vio- lência entre os indivíduos e grupos que os integram6. Além disso, nem é preciso dizer que as respostas ao problema da gênese e da mantença da ordem social são bastante diversificadas, sendo esta datum da ordem e da inteligibilidade no mundo societário é uma conditio sine qua non motivacional para um engajamento sério com a teoria social, ainda que tal espanto possa ser ético-politicamente colorido de modos diversos, trazendo à baila reações viscerais que podem ir do amor ao horror e ser ideologicamente expressas em posturas que vão da celebração à denúncia. 6. Discussões mais detalhadas dessa questão encontram-se na defesa de um alargamento conceitual da noção de “integração social” avançado por Elias (2001: 190-193) para superar a antinomia entre retratos da vida societal unilateralmente baseados no con- senso ou no conflito, bem como na clássica reflexão de Simmel a respeito da relação entre conflito e coesão social (1983: caps. 8, 9 e 10). 33gabriel peters 34 percursos na teoria das práticas sociais variadamente concebida como uma resultante ora da agregação contingente de ações individuais guiadas pelo auto-interesse, ora de um conjunto de normas coletivamente compartilhadas e insti- ladas como orientações de conduta na personalidade de agentes “bem” socializados, ou ainda como fruto da posse comum de es- quemas simbólico-cognitivos de geração de práticas e represen- tações as quais terminam, em virtude mesmo da comunalidade de suas gramáticas gerativas, por ser “coletivamente orquestra- das” mesmo na ausência da “ação orquestradora de um maestro” (Bourdieu, 1977: 72). De toda forma, no palco da teoria social mais recente, é pro- vável que nenhum outro personagem tenha insistido tanto no ca- ráter pressuposicional ou fundacional de concepções gerais acer- ca da ação individual subjetivamente propelida e das estruturas/ instituições coletivas quanto o neoparsoniano Jeffrey Alexander: “...os pressupostos mais fundamentais que informam qualquer teoria sociocientífica referem-se à natureza da ação e da ordem. Toda teoria da sociedade assume uma imagem do homem como ator, assume uma resposta para a questão “o que é a ação?”. Toda teoria contém uma compreensão implícita da motivação (...) Nenhuma tradição intelec- tual, entretanto, pode estar fundada apenas em concepções sobre a ação. Estamos aqui preocupados com teorias sociais e toda teoria social também precisa estar preocupada com o problema da ordem. Como a ação é arranjada de maneira a formar os padrões e institui- ções da vida cotidiana? (Alexander, 1984: 7). A formulação de tais pressupostos é, portanto, obrigatória para os representantes de ambos os lados do abismo que separa enfoques subjetivistas e objetivistas da vida social. No que tange ao plano da ação, mesmo os representantes de qualquer vertente da macrossociologia estrutural são obrigados a reconhecer que as propriedades ou atributos específicos de qualquer coletividade dependem, em última instância, de condutas individuais. A afir- mação óbvia de que só existem sociedades humanas porque exis- tem pessoas é suficiente para subscrever a tese de que qualquer teoria ou caracterização histórica macrossociológica refere-se a fenômenos (instituições e processos coletivos) que envolvem necessariamente a ação de indivíduos, ainda que se suponha, em um caso-limite de objetivismo, que o comportamento destes seja completamente determinado por causas coletivas que eles não compreendem ou controlam. O problema fundamental, nes- te caso, é como vincular as dimensões agêntica e estrutural da vida social em um quadro analítico integrado, podendo a ação individual ser concebida nesse quadro como subjetivamente mo- tivada de diferentes maneiras: racional-utilitária (os indivíduos buscariam selecionar, pelo cálculo instrumental, os meios mais adequados à consecução de seus fins), normativamente orienta- da, governada por impulsos inconscientes, por um habitus inter- nalizado através da experiência, dentre outras formas. A clássica tipologia weberiana quatripartite das modalidades de ação social (2000: cap.1) constitui, naturalmente, um exemplo bastante co- nhecido de referencial teórico-metodológico “ontologicamente flexível”, isto é, aberto para a potencial variabilidade empírica das motivações subjetivas da conduta individual1. Não obstan- te, os diferentes autores e tradições do pensamento filosófico e sociológico moderno sempre tenderam a se concentrar analitica- mente em certas modalidades específicas de motivação, tomadas 1. Ainda que o mesmo Weber aponte para a maior conveniência metodológica do mode- lo de ação racional referente a fins como um “tipo conceitual puro” de conduta a partir do qual o papel causal de influências irracionais nas ações históricas empiricamente observadas por um pesquisador poderia ser determinado, por meio da análise de seu desvio mais ou menos significativo em relação àquela caracterização idealizada. Nas palavras do autor: “Em virtude de sua compreensibilidade evidente e de sua inequi- vocabilidade – ligada à racionalidade -, a construção de uma ação orientada pelo fim de maneira estritamente racional serve, nesses casos, à Sociologia como tipo (‘tipo ideal’). Permite compreender a ação real, influenciada por irracionalidades de toda espécie (afetos, erros), como ´desvio’ do desenrolar a ser esperado no caso de um comportamento puramente racional. Nessa medida, e somente por motivo de conveniência metodológica, o método da Sociologia Compreensiva é ‘ racionalista’. No entanto, é claro que esse procedimento não deve ser interpretado como preconcei- to racionalista da Sociologia, mas apenas como recurso metodológico. Não se pode portanto, imputar-lhe a crença em uma predominância efetiva do racional sobre a vida. Pois nada pretende dizer sobre a medida em que, na realidade, ponderações racionais da relação entre meios e fins determinam ou não as ações efetivas. (Não se pode negar, de modo algum, o perigo de interpretações racionalistas no lugar errado. Toda experiência confirma, infelizmente, sua existência)” ( Weber, 2000: 5). 35gabriel peters 36 percursos na teoria das práticas sociais como mais influentes ou recorrentes do que outras na produção e no desempenho prático da ação (Alexander, 1984: 7; Cohen, 1996: 112). De toda forma, há um núcleo truístico na asserção, sustenta- da pelos representantes do individualismo metodológico, de que qualquer fenômeno coletivo é, em última instância, resultante de um agregado, composição ou combinação de uma multiplicidade de ações individuais subjetivamente propelidas de alguma ma- neira. Como lembra Lukes (1977: 78), a afirmação de que toda sociedade é formada por indivíduos é, kantianamente falando, analiticamente verdadeira, no sentido de que pode ser validada pela simples inspeção dos significados das palavras, sem a ne- cessidade de recurso à experiência. Não obstante, essa espécie de “atomismo social” (Lukes) mais raso e banal não implica ne- cessariamente a tese de que as propriedades de relações ou ins- tituições sociais possam ser descritas ou explicadas em termos de propriedades dos indivíduos considerados isoladamente. De modo similar, o acento sobre o fato de que as propriedades de relações sociais são irredutíveis às propriedades das suas par- tes tomadas solitariamente também não precisa desembocar na concepção segundo a qual as totalidades sociais possuiriam leis sistêmicas de funcionamento e evolução que operariam indepen- dentemente da consciência e da volição dos indivíduos, tornando desnecessária a referência às suas intenções, motivações e habi- lidades subjetivas na explicação de fenômenos e processos so- cietários. Dessa forma, se é preciso levar em consideração a centrali- dade dessas motivaçõespara a análise da vida social, urge ressal- tar também que tais motores subjetivos da conduta humana não podem jamais ser tidos como dados ou tomados, por exemplo, como propriedades invariantes inscritas na constituição biológi- ca da mente ou do corpo humanos (ainda que certas capacidades e limites fisiológicos e neurológicos destes sejam obviamente universais e tacitamente pressupostos por qualquer análise mo- tivacional). Com efeito, poucas hipóteses são tão comuns na pai- sagem teórica múltipla das ciências humanas quanto aquela se- gundo a qual as estruturas de personalidade de quaisquer agentes gabriel peters 37 individuais são substancialmente moldadas pela trajetória expe- riencial percorrida por estes no interior de contextos sócio-his- tóricos específicos. Isto implica que o modo de “ser-no-mundo” (Heidegger/Merleau-Ponty/Bourdieu) de qualquer ator traz ne- cessariamente consigo as marcas das circunstâncias estruturais, institucionais e culturais no interior das quais se desenrola sua biografia. Tal moldagem socializativa da subjetividade indivi- dual (obviamente dependente de certos impulsos emocionais e capacidades de aprendizado inatas) encompassa tanto os seus as- pectos motivacionais – as intenções e desejos explícitos, tácitos ou inconscientes que os atores perseguem no curso de suas vidas – quanto recursivos – as habilidades cognitivas, expressivas e práticas que capacitam tais agentes a intervir causalmente sobre os rumos históricos do mundo social2. Foi sobretudo para dar conta de tais processos de consti- tuição e sustentação socialmente coagida da personalidade indi- vidual - ainda que tais coações possam não ser subjetivamente reconhecidas pelos atores como tais - que surgiram no âmbito da teoria sociológica os conceitos de papel e identidade social, fundamentais a qualquer tentativa de compreensão do caráter não-randômico da atividade humana em sociedade. Tais noções designam basicamente uma constelação particular de formas de comportamento individual tipicamente associadas a uma “po- sição-de-sujeito” (Hall, 2003: 120) ocupada por um agente em uma dada situação social. Isto permite compreender a configura- ção de uma personalidade específica ou, pelo menos, a dimensão socialmente constituída de tal personalidade, como uma espécie de caleidoscópio resultante do desempenho de papéis ou identi- dades sociais múltiplas, associadas a diferentes situações e insti- 2. No que diz respeito à teoria da escolha racional, Barry Hindess afirma pertinente- mente que a suposição da racionalidade “nos leva a esperar certa consistência no comportamento dos indivíduos, mas nada diz com respeito às suas motivações”, de forma que “as explicações de aspectos significativos da vida social como resultantes das ações racionais de indivíduos dependem de suposições auxiliares com respeito ao conteúdo de suas explicações – outro aspecto em que o individualismo patente da teoria da escolha racional em geral implica uma referência disfarçada a condições culturais e sociais supra-individuais” (Hindess, 1996: 254). 38 percursos na teoria das práticas sociais tuições societárias e requisitadas em distintos momentos de um certo percurso biográfico (Berger, 1972: 120). De modo próximo à metáfora da “sutura” utilizada por Stuart Hall (2003: 112), e pa- rafraseando a famosa sentença de morte ao ser humano bradada por Nietzsche diante do sonho da emergência do Ubermensch, poderíamos afirmar que o papel social é uma espécie de corda atada entre o indivíduo e a sociedade, entre ação e estrutura. Nesse sentido, no que tange ao plano das estruturas sociais, toda investigação sociológica, inclusive microssociológica, in- corpora o reconhecimento da existência de padrões extra-indi- viduais de comportamento, padrões cujas propriedades podem ser tipicamente descritas independentemente das propriedades de qualquer indivíduo empírico particular. O consenso acerca da existência de formas socialmente padronizadas de conduta não impede que haja, no entanto, um desacordo considerável a respei- to de como elas são constituídas, reproduzidas e/ou modificadas. As estruturas sociais podem ser concebidas, por exemplo, como criações ontologicamente contingentes dos indivíduos, negociá- veis e transformáveis a cada momento sucessivo no tempo e em cada situação localizada de interação ou, de modo bem distinto, como suportes funcionalmente necessários à auto-regulação dos sistemas sociais, sendo objetivamente impostas aos indivíduos em vez de criativamente constituídas por estes. A inter-relação entre agência e estrutura é ainda mais desta- cada se levarmos em consideração a historicidade da vida social humana. Conhecemos a famosíssima tese de Marx segundo a qual os seres humanos “fazem sua própria história, mas não a fa- zem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas do passado”3 3. Giddens descreve A constituição da sociedade, a formulação mais acabada da teoria da estruturação, como uma extensa reflexão acerca das implicações dessa frase de Marx (2003: XXIII). Mais recentemente, uma argumentação semelhante foi desenvol- vida por Percy Cohen: “Em todo inquérito sociológico, é assumida a perspectiva de que alguns traços da estrutura social e da cultura são estrategicamente importantes e duradouros e que estes proporcionam os limites no interior dos quais situações so- ciais particulares podem ocorrer. É a partir dessa pressuposição que a abordagem da ação pode ajudar a explicar a natureza das situações e como elas afetam a conduta. gabriel peters 39 (Marx, 1974: 17). Tal reconhecimento da prioridade “biográfi- ca” da sociedade sobre o indivíduo também era fundamental na caracterização durkheimiana da exterioridade como propriedade essencial dos fatos sociais (Durkheim, 1999: 1-13), caracteriza- ção baseada no fato de que todo indivíduo nasce no interior de uma sociedade já constituída, com uma estrutura historicamente cristalizada de relações, bem como com um repositório acumula- do de símbolos, crenças, valores morais e formas de organização das interações entre os sujeitos individuais, de sorte que tal am- biente societário condiciona de maneira decisiva a personalidade de cada pessoa que cresce e atua no seu interior. A referência à influência do meio social circundante na formação dos aspectos cognitivos, normativos e emocionais da personalidade do agente também abre caminho para destacarmos que as circunstâncias societárias de atuação não-escolhidas po- rém “legadas e transmitidas do passado” às quais Marx se referiu são tanto externas como internas aos atores individuais; isto é, constituem fatores condicionantes da ação existentes tanto sob a forma de coações exteriores que compõem os diversos loci so- cietais e institucionais estruturados previamente à intervenção do ator, como também sob a forma “interior” de tudo aquilo que as motivações subjetivas e os desempenhos práticos presentes dos atores devem às suas múltiplas experiências passadas, uma vez que as experiências sociais do passado retornam, por assim dizer, continuamente no presente como inclinações adquiridas de com- portamento. As marcas relativamente duráveis que os ambien- tes sociais imprimem no corpo (mais precisamente, nos modos de sua condução pelo agente, o que é evidenciado por exemplos prosaicos como a incapacidade de se falar uma língua estrangeira sem sotaque) e na mente (sob a forma de orientações normativas e afetivas, bem como de esquemas categoriais e linguísticos de interpretação do mundo) constituem os meios pelos quais o pas- Ela não explica a estrutura social e a cultura como tais, exceto por meio de um even- tual inquérito desenvolvimental que deve começar de algum ponto anterior no qual alguns elementos estruturais e culturais são tidos
Compartilhar