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Unidade IV LITERATURA BRASILEIRA: POESIA Profa. Ana Lúcia Machado Linguagem criadora Carlos Drummond de Andrade Primeiro grande poeta a se afirmar depois das estreias do Modernismo. Conseguiu atualizar suas obras para que elas se tornassem invenção: originalidade, forças latentes da língua e novas possibilidades expressivas, inventadas ou dinamizadas. De 1930 a 1945: 1ª fase da produção poética – objetividade (maior proximidade das coisas e linguagem metonímica) e preocupação social (mais perto dos homens e dos acontecimentos, com temas sociais e populares). “Cidadezinha qualquer”, de Carlos Drummond de Andrade Casas entre bananeiras mulheres entre laranjeiras pomar amor cantar. Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar. Um burro vai devagar. Devagar... as janelas olham. Eta vida besta, meu Deus. (ANDRADE, 2003, p. 23) “A palavra e a terra”, de Carlos Drummond de Andrade Em “Lição de coisas”, o poeta realiza a plenitude da linguagem, com um mundo maravilhoso de relações e sugestões sutis, como na parte V de “A palavra e a terra”: Tudo é teu, que enuncias. Toda forma Nasce uma segunda vez e torna Infinitamente o nascer. O pó das coisas Ainda é um nascer em que bailam mésons. “A palavra e a terra”, de Carlos Drummond de Andrade E a palavra, um ser Esquecido de quem o criou: flutua, Reparte-se em signos – Pedro, Minas Gerais, beneditino – Para incluir-se no semblante do mundo, O nome é bem mais do que nome: o além-da-coisa, Coisa livre de coisa, circulando. E a terra, palavra espacial, tatuada de sonhos, Cálculos. Linguagem criadora João Cabral de Melo Neto (1920-1999) considerava escrever uma coisa infernal. Sua poesia é reconhecida como obra de um crítico, ou seja, é fruto de um poeta crítico, que escreve e pensa a própria escrita. Sua obra escreve-se em um processo de construção, falando ao leitor e comentando questões sobre o escrever, em forma incessante de atividade (auto)crítica. João Cabral de Melo Neto A escrita constrói o idioma pedra. Escrita densa e seca, buscando escapar do lirismo intimista (tinha horror à poesia estudada no colégio; lia os poetas brasileiros e portugueses românticos, parnasianos, e essa leitura lhe dava nojo). Só compreendeu que na poesia podia haver lógica depois de ler Carlos Drummond de Andrade, decidindo ser um poeta. Em síntese, a base da poesia é a lucidez e a racionalidade. O poeta chegou a declarar-se antilírico, pois para ele a poesia se dirige à inteligência. “Fábula de Anfion”, de João Cabral de Melo Neto 1. O deserto Anfion chega ao deserto No deserto, entre a paisagem de seu vocabulário, Anfion, ao ar mineral isento mesmo da alada vegetação, no deserto que fogem as nuvens trazendo no bojo as gordas estações “Fábula de Anfion”, de João Cabral de Melo Neto Anfion, entre pedras como frutos esquecidos que não quiseram amadurecer, Anfion, como se preciso círculo estivesse riscando na areia, gesto puro de resíduos, respira o deserto, Anfion. (MELO NETO, 1997, p. 53) “Fábula de Anfion”, de João Cabral de Melo Neto Esse poema pode ser uma paródia do “Amphion”, de Paul Valéry. João Cabral desconstrói um ideal de poesia pura e associa a palavra à pedra. Anfion está “entre pedras” com a “flauta seca”, ou seja, a sonoridade desaparece e dá lugar ao silêncio. Parece-nos que o poeta constrói, devagar, uma passagem que atravessa “a paisagem do seu vocabulário” até encontrar a mudez; o “mudo cimento” é o próprio objeto de construção dessa poética, sendo algo duro e sólido em sua materialidade. Interatividade No poema “Cidadezinha qualquer”, Drummond: a) denuncia com uma linguagem sintética a monotonia e o tédio da cidade. b) mostra com sentimento piedoso o desajuste existencial do homem diante da vida. c) retrata de modo triste e melancólico a desventura amorosa do poeta na cidade. d) escreve com linguagem muito simples e pouco elaborada esteticamente. e) demonstra preocupação de ordem social. Linguagem criadora Tradução de poesia: conservar a mensagem e preservar a poeticidade dela. No Brasil, o exercício regular da tradução poética foi iniciado no Romantismo. No século XX, a escola de tradução poética se firmou no país. Destaca-se a atuação dos concretistas Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, além de José Lino Grünewald e José Paulo Paes. Traduziram poemas da língua inglesa, francesa, grega e italiana. Tradução de poesia Quem cria o texto poético sofre as coerções da sua língua, do gênero escolhido, da tradição literária, das exigências próprias discursivas e poéticas. Quem traduz é também submetido a essas mesmas restrições e sofre outras, como as do estilo particular do autor. Na poesia a ser traduzida, somam-se também a semântica do significado e a do significante, ambas objeto de tradução. Essa dificuldade torna-se maior se a linguagem poética de partida tiver mais condensação. Tradução de poesia É o caso da poesia de Henriqueta Lisboa, cuja concisão é deliberada e retrata o recolhimento da autora. Sua obra é feita quase só de implícito, de palavras contidas, levando o leitor a adivinhar. “Na morte” Na morte nos encontraremos. Sim, na morte. Tempo de consórcio e de vínculo. Depois de caminhos extremos. Quer pelo sul ou pelo norte. “Na morte”, de Henriqueta Lisboa Ao término de circunstâncias: Passos certeiros ou perdidos. Sem palavras nem sentimentos, com simplicidade suprema. Na morte nos encontraremos (LISBOA, 1958, p. 48) Tradução de “Na morte”, de Henriqueta Lisboa Nos dez versos, aparece apenas um verbo – “encontraremos” –, sendo os substantivos os núcleos dos sintagmas tanto dos advérbios ou apostos e são modificados por poucos adjetivos. Essa linguagem econômica, densa e contida causa dificuldades para o tradutor. Apesar disso, o livro do qual o poema faz parte foi traduzido em línguas como húngaro e búlgaro, além das românicas (francês, espanhol) e germânicas (inglês, alemão). Tradução poética Existe uma tradução magnífica para o latim; na verdade, a única tradução de um livro completo, Montanha viva: Caraça, de Henriqueta Lisboa. A tradução foi iniciada pelo padre Pedro Sarneel, que traduziu os 40 poemas, mas desistiu de sua empreitada, continuada pelo professor José Lourenço de Oliveira. Este complementa o trabalho do padre, fazendo cuidadosa revisão. A dificuldade para o padre aumentou porque a língua de chegada é o latim, que ninguém fala e poucos a estudam. Tradução poética O professor Lourenço reforça essa dificuldade em traduzir um poema moderno, com ritmos recentes, ora mais denso, ora mais leve, para uma língua antiga, tão distante de uso no tempo. Ele deixou de lado os metros clássicos e adotou o ritmo pós-românico. A tradução tratava-se de encontrar correspondência para uma sensibilidade moderna em outra língua, que, fazendo parte de uma cultura antiga, também era (numa contradição aparente) a sua síntese. Exemplo de tradução “A flor de São Vicente” Do caule esguio em pendor, três pétalas – uma flor. Humildade. Simplicidade. Caridade. Ó penhor! De que maneira se há de aproximardessa flor? (LISBOA, 1959, p. 108) “A flor de São Vicente”, de Henriqueta Lisboa A flor do poema sintetiza as virtudes vicentinas, simbolizadas pelas pétalas – humildade, simplicidade e caridade. Tais virtudes são estendidas, de forma metonímica, ao fundador do santuário Caraça (MG) e ao próprio Colégio. Este é evocado pelo substantivo “flor”, que em latim – flos – faz parte do gênero masculino, assim como o substantivo “colégio” em português. “A flor de São Vicente”, de Henriqueta Lisboa “Flos Vicentius” Tenui de caule flos unus pendet, trifolium. Humilitas Simplicitas et Caritas. Ó pignus! Ad florem Quomodo accedere? (LISBOA, 1959, p. 109) A tradução reestrutura as estrofes: os dois primeiros versos da quadra formam um dístico final, resultando em estrofe diversa da do original. Interatividade Sobre a tradução póetica: I. os termos polissêmicos exigem interpretação correta e proteção diante de possíveis manipulações do tradutor. II. valoriza-se a não interferência do tradutor na construção semântica. III. o tradutor sempre se baseia em sua visão de mundo ou interpretação. Está correta a afirmação ou as afirmações: a) I. b) II. c) III. d) I e II. e) I e III. Suporte e recepção da poesia e suas tendências O mundo da poesia atual conta com autores poéticos, que lançam seus textos por meio de editoras, em feiras do livro, pela internet. Hoje contamos com inumeráveis poetas contemporâneos e diversidade na forma, na temática, no suporte etc. Torna-se extremamente difícil fazer um panorama dos poetas e de suas obras (impressas, virtuais). Assim, como tratar do número crescente de novos poetas? Onde encaixá-los na historiografia literária? Formam um estilo único? Suporte e recepção da poesia e suas tendências Destacamos apenas três aspectos da poesia pós-modernista: 1. o hibridismo da poesia (ex.: de aproximação entre literatura e música; de relação literatura – internet – música); 2. a brevidade na poesia – é indicada como tendência menos poética e mais do leitor atual; 3. o diálogo da poesia com a história – a visão atual do passado também é recorrente nas produções. Hibridismo na poética pós-moderna Não podemos ler, na era contemporânea, poesia sem considerar novos paradigmas. A base do novo paradigma é o relativismo cultural. Outra base é a mentalidade coletiva e a chamada minoria, não mais somente o discurso dominante ou dos documentos oficiais. Dessa forma, a história da cultura popular vem alargando nossa compreensão sobre nossa própria época. Característica do pós-modernismo: ecletismo advindo da desreferencialização e da dessubstancialização do sujeito. Hibridismo na poética pós-moderna beba coca cola babe cola beba coca babe cola caco caco cola c l o a c a (PIGNATARI ,1991, p. 534) “Beba Coca-Cola”, de Décio Pignatari Na poesia, o verbo “babar” interfere no texto publicitário “Beba Coca-Cola” e critica negativamente um produto pop da época da produção poética. Além da antítese beber X babar, temos “cloaca” e “aça”, que caracterizam o refrigerante como mau cheiro. Uma das críticas negativas contra o Concretismo é o desvínculo com a sociedade, sendo considerado alienado / alienante. No entanto, nessa poesia, vemos um texto não só inserido no mundo (mundo da cultura pop), mas também satírico, ao criticar um produto tão popular. “Capitu”, de Luiz Tatit De um lado vem você com seu jeitinho Hábil, hábil, hábil E pronto! Me conquista com seu dom De outro esse seu site petulante “Capitu”, de Luiz Tatit www Ponto Poderosa ponto com É esse o seu modo de ser ambíguo Sábio, sábio E todo encanto (TATIT, 2000) “Capitu”, de Luiz Tatit Dialoga com outra criação: a personagem Capitu do romance Dom Casmurro (1889), de Machado de Assis. Tatit constrói a dimensão de um feminino forte, imaginário, sobre a mulher, que, vindo do século XIX literário, chega ao século XXI via internet. Na 1ª estrofe, a expressão “De um lado” inicia a face Capitu machadiana com alguns traços marcantes da personagem, como o verbo “vir” no presente, que funciona como uma ponte entre o mundo do romance e o da canção. “Capitu”, de Luiz Tatit O diminutivo “jeitinho” torna familiar e juvenil a relação entre o poeta e sua musa. A repetição do termo “hábil” reitera uma maneira de ser e dialoga com o capítulo 18 da obra Dom Casmurro, no qual lemos: “Capitu, aos quatorze anos já tinha ideias atrevidas [...] mas não eram só atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis” (ASSIS, 1991, p. 16). “Capitu”, de Luiz Tatit Com a expressão “De outro”, verso inicial da 2ª estrofe, temos a face da Capitu internauta. Se a anterior é caracterizada como hábil, sutilmente astuta, essa é mais agressiva, ágil, identificada com a linguagem da internet e com o petulante endereço: <www.poderosa.ponto.com>. A sequência “modo de ser ambíguo”, que admite diversas e até contrárias interpretações, estabelece a síntese entre as faces da personagem, assinalando a mais marcante das características de Capitu e do romance que lhe dá vida. Interatividade No hibridismo cultural, é falso dizer que na música e literatura: a) os compositores misturam elementos culturais de diversas camadas sociais. b) há sincretismo entre a cultura letrada e elementos oriundos de manifestações das camadas populares. c) a música popular é um fato eminentemente estético. d) o caráter lúdico, por ser traço poético, só é encontrado na literatura. e) Há elementos não verbais na canção e na poesia. No ritmo da atualidade As pessoas não têm tempo ou disposição para leituras mais prolongadas e densas. Olga Savary (1933-): a preocupação em criar haicais não era a exigência com o ritmo veloz da sociedade, mas para atender ao seu amor à sobriedade e à concisão dessa forma poética. É a poesia da essência, a simplicidade, o equilíbrio, a harmonia e a sobriedade. Haicai “Vinheta” Minha pequena libélula, Leva no sonho de tuas asas frágeis. A fragilidade das asas dos meus sonhos. (SAVARY, 1986, p. 33) Encaixa-se à temática tradicional (oriental) ao falar da fragilidade dos sonhos, comparada à evanescência das asas da libélula. Diálogo com a história: a poesia de Milton Torres Uma das obras respeitadas da geração 2000 é No fim das terras, de Milton Torres, publicada em 2004. A obra, que alguns críticos chamam de luso-brasileira, é constituída por duas partes: “Portugueses” e “Novo Mundo”, sendo cada parte subdividida em outras. Por exemplo: Portugueses – Hispania, da memória, do império, do pensar e do fazer. Diálogo com a história: a poesia de Milton Torres Apenas pela apresentação dos títulos dos poemas, o leitor já verifica que: a) o livro de Torres resgata a história da América, mas não inicia por ela. O autor volta à Europa, vem à América – uma América tanto hispânica quanto portuguesa; b) o poeta resgata a própria história da língua – os primeiros poemas foram escritos em língua espanhola e portuguesa em sua fase arcaica, da época medieval e da época dos descobrimentos das terras do Novo Mundo. Diálogo com a história: a poesia de Milton Torres Achei achém (achegas) ou os benefícios marginaisSenhor, dinheyro amoedado han tanto, polla Prouidencia a Uos guardado, pera os heresiarcas destruyr, e seus secazes: refazer, & os reynos reformar patrimoniaes, Diálogo com a história: a poesia de Milton Torres sostentar os ganhados; desbaratar, exterminar, e desterrar o Turco, a Sancta Hierusalem tomar, & Affrica, & Asia, & America pera exalçar-se o Sancto nome de Christo pollo auenturoso braço Uosso (TORRES, 2004, p. 63) Diálogo com a história: a poesia de Milton Torres No poema, que trata da descoberta da América, o poeta criou seu texto com língua portuguesa e a ortografia vigente de então. O fonema / i / era escrito tanto pela letra i quanto pela letra y (dinheyro, destruyr); o fonema / v / era registrado como / u / (Prouidencia, Uos, Uosso). São exemplos de registro arcaico empregados pelo poeta, que torna esse arcaísmo em estética. Diálogo com a história: a poesia de Milton Torres O poema é híbrido em sua estrutura, pois, ao remeter-se ao rei de Portugal (“Senhor”), converte-se em carta, talvez aquela, primeira, de Pero Vaz de Caminha. O conteúdo do texto corrobora o contexto histórico. Em tom irônico e de gradação, o eu que escreve a carta esclarece que há riqueza para destruir os hereges e, assim, reformar os reinos. A ação para a destruição é: desbaratar, exterminar e desterrar. Em nome do “Sancto nome de Christo”, tomar Jerusalém, África, Ásia, América. Diálogo com a história: a poesia de Milton Torres De cena em cena, o livro No fim das terras chega à Independência do Brasil, à industrialização e aos tempos republicanos. Nessa lenta operação de escolha, escavação e arqueologia verbal, ocorrem verdadeiros momentos de significação artística e cultural, bem como da própria língua. No mundo pós-moderno, o poeta será, antes de tudo, um artista do idioma, devendo saber incorporar vocábulos nacionais, internacionais, correntes, arcaicos, sublimes, baixos, gíria, ciência. Interatividade Em relação ao livro No fim das terras, de Milton Torres: I. é uma grande sequência de poemas sobre as raízes históricas de nossa formação. II. os poemas do ciclo lusitano são escritos em português medieval. III. traz a sensação de que nos movemos com desenvoltura entre um século e outro, entre um e outro universo cultural. Está correta a afirmação ou as afirmações: a) I. b) I e II. c) III. d) II e III. e) I, II e III. ATÉ A PRÓXIMA!
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