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160 Unidade IV LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Unidade IV 7 LINGUAGEM CRIADORA A poesia, segundo Bosi (1991), foi a expressão mais pronta para mudanças radicais com o advento do Modernismo. A tríade Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Oswald de Andrade rompeu com os modelos acadêmicos e incorporou à poesia brasileira as formas livres com criações tão vigorosas e felizes que “aos poetas dos anos de 30 seria mister inventar ex nihilo uma nova linguagem” (BOSI, 1991, p. 491). Lembrete A expressão ex nihilo tem origem na língua latina e significa criação a partir do nada. Esses poetas que se firmaram depois da fase heroica do Modernismo, contudo, conquistaram novos temas: a política em Drummond e em Murilo Mendes; e a religião, em Murilo Mendes, Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt e Cecília Meireles. Eles também buscaram uma linguagem essencial, metafísica e hermética, como na primeira fase de Vinicius de Moraes, Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa e Emílio Moura. Além do cerne da preocupação com a linguagem, com a produção do maior poeta brasileiro – João Cabral de Melo Neto. A luta dos românticos, depois dos modernistas, pela autonomia da língua portuguesa no Brasil, pois a literatura ou encontrava um caminho autônomo ou permaneceria mera cópia do estrangeiro, encontrou respaldo com os primeiros poetas do Modernismo. Assim, os poetas posteriores praticaram um português mais próximo da realidade da vida brasileira e em alto nível estético. 7.1 Drummond, afirmação da poesia brasileira Carlos Drummond de Andrade foi o primeiro grande poeta a se afirmar depois das estreias do Modernismo. Ressalta-se que foram poucos os escritores que conseguiram atualizar suas obras, para que elas se tornassem veículo de invenção. No caso de Drummond, não restam dúvidas da originalidade e permanência estéticas de suas obras, que advêm da língua. O poeta ativa forças latentes da língua e acrescenta-lhe novas possibilidades expressivas, inventadas ou dinamizadas, em sentido de equilíbrio. Os principais historiadores do Modernismo brasileiro costumam incluir a poesia de Drummond na segunda fase do movimento, iniciada por volta de 1930. De fato, ele lançou seus primeiros livros nessa década, mas o conjunto de sua obra não está limitado às características dessa fase poética. Cada livro instaurou quase sempre novo processo poético, novas técnicas e novo processo de linguagem. Como 161 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia ressalva Teles (1989), o leitor pode notar o amadurecimento e a ampliação de tendências poéticas, profundamente criadoras. De 1930 a 1945, ocorre o primeiro estágio em sua produção poética, marcado pela objetividade e pela preocupação social. A objetividade é concernente à maior proximidade das coisas e à linguagem metonímica. Por isso está mais perto dos homens e dos acontecimentos com temas sociais e populares. Exemplificam-se dois poemas que mostram a objetividade e a linguagem popular, retirados do livro Alguma poesia: Cidadezinha qualquer Casas entre bananeiras mulheres entre laranjeiras pomar amor cantar. Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar. Um burro vai devagar. Devagar... as janelas olham. Eta vida besta, meu Deus (ANDRADE, 2003, p. 23). Vemos o processo metonímico na última estrofe do poema a seguir, quando a palavra mão (a parte) aparece em lugar do poeta (o todo): Poema que aconteceu Nenhum desejo neste domingo nenhum problema nesta vida o mundo parou de repente os homens ficaram calados domingo sem fim nem começo. A mão que escreve este poema não sabe o que está escrevendo mas é possível que se soubesse nem ligasse (ANDRADE, 2003, p. 17). Na obra A rosa do povo, os grandes temas sociais e populares atingem o auge literário desde Castro Alves. A preocupação com a palavra e com o poema, aliada ao pleno domínio da linguagem, faz do livro plataforma de seu novo estágio estilístico. A partir desse livro e de outros lançados posteriormente, percebemos uma linguagem poética cheia de inquietações e lançada na construção de um universalismo estético conseguido. Agora, a subjetividade apresenta-se mais, e a contiguidade é substituída fundamentalmente pela metáfora; por conseguinte, as imagens ganharam maior densidade. 162 Unidade IV LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 É, sobretudo, em Lição de coisas que o poeta realiza a plenitude da linguagem, com um mundo maravilhoso de relações e sugestões sutis, como na parte V de A palavra e a terra (TELES, 1989, p. 223): Tudo é teu, que enuncias. Toda forma Nasce uma segunda vez e torna Infinitamente o nascer. O pó das coisas Ainda é um nascer em que bailam mésons. E a palavra, um ser Esquecido de quem o criou: flutua, Reparte-se em signos – Pedro, Minas Gerais, beneditino – Para incluir-se no semblante do mundo, O nome é bem mais do que nome: o além-da-coisa, Coisa livre de coisa, circulando. E a terra, palavra espacial, tatuada de sonhos, Cálculos. A partir de Claro enigma, de 1948-1951, com o desencanto da experiência da poesia política, o autor apresenta dois modos principais de compor seus poemas. Segundo Bosi (1991), um deles é aprofundar a realidade mediante processo de interrogações e negações que revelam o vazio do homem na matéria e na História. Conclusão Os impactos de amor não são poesia (tentaram ser: aspiração noturna). A memória infantil e o outono pobre vazam no verso de nossa urna diurna. Que é poesia, o belo? Não é poesia, e o que não é poesia não tem fala. Nem o mistério em si nem velhos nomes poesia são: coxa, fúria, cabala. Então, desanimamos. Adeus, tudo! A mala pronta, o corpo desprendido, resta a alegria de estar só, e mudo. De que se formam nossos poemas? Onde? Que sonho envenenado lhes responde, se o poeta é um ressentido, e o mais são nuvens? (ANDRADE, 2003, p. 402). Nas páginas finais da obra, o momento da negatividade é traduzido pela dor do desgaste cósmico, como se a sina da queda não tivesse poupado nenhum ser vivo, condenando todo ser existente a regredir ao silêncio do reino animal: 163 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia A máquina do mundo As mais soberbas pontes e edifícios, o que nas oficinas se elabora, o que pensado foi e logo atinge distância superior ao pensamento, os recursos da terra dominados. e as paixões e os impulsos e os tormentos e tudo que define o ser terrestre ou se prolonga até nos animais e chega às plantas para se embeber no sono rancoroso dos minérios, dá volta ao mundo e torna a se engolfar na estranha ordem geométrica de tudo, e o absurdo original e seus enigmas, suas verdades altas mais que todos monumentos erguidos à verdade; E a memória dos deuses, e o solene sentimento da morte, que floresce no caule da existência mais gloriosa, tudo se apresentou nesse relance e me chamou para seu reino augusto, afinal submetido à vista humana. Mas, como eu relutasse em responder a tal apelo assim maravilhoso, pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio, a esperança mais mínima — esse anelo de ver desvanecida a treva espessa que entre os raios do sol inda se filtra; como defuntas crenças convocadas presto e fremente não se produzissem a de novo tingir a neutra faceque vou pelos caminhos demonstrando, e como se outro ser, não mais aquele habitante de mim há tantos anos, 164 Unidade IV LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 passasse a comandar minha vontade que, já de si volúvel, se cerrava semelhante a essas flores reticentes em si mesmas abertas e fechadas; como se um dom tardio já não fora apetecível, antes despiciendo, baixei os olhos, incurioso, lasso, desdenhando colher a coisa oferta que se abria gratuita a meu engenho. A treva mais estrita já pousara sobre a estrada de Minas, pedregosa, e a máquina do mundo, repelida, se foi miudamente recompondo, enquanto eu, avaliando o que perdera, seguia vagaroso, de mãos pensas. Fonte: Andrade (2003, p. 301). O segundo modo é fazer as coisas e as palavras caírem no vácuo a que a interrogação reduziu os reinos do ser. De forma coerente, o poeta passou a uma opção concreto-formalista e radicalizou a estrutura que sempre marcou seu modo de escrever. Segundo o próprio poeta: À medida que envelheço, vou me desfazendo dos adjetivos. Chego a ver que tudo pode se dizer sem eles, melhor que com eles. Por que “noite gélida”, “noite solitária”, “profunda noite”? Basta “a noite”. O frio, a solidão, a profundidade da noite estão latentes no leitor, prestes a envolvê-lo, à simples provocação dessa palavra “noite” (apud BOSI: 1991, p. 498). O rigor da fala madura aliado à contensão é trabalhado nos seus poemas. Agora é um homem reificado pela dificuldade de transcender a crise do sentido e de valor. O nome (nominalismo) torna-se extremo no poema Isso é aquilo (BOSI, 1991, p. 498): I O fácil o fóssil o míssil o físsil a arte o infarte o ocre o canopo a urna o farniente a foice o fascículo a lex o judex o maiô o avô a ave o mocotó o só o sambaqui 165 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia Segundo Bosi (1991), talvez a antilira seja a única forma de comunicação que o poeta pode oferecer a seu tempo. Ela corta os vínculos com expressões transparentes de afeto, não para negá-los, mas para pôr em evidência a condição absurda do mundo, que deu ao poeta A bomba: A bomba A bomba é uma flor de pânico apavorando os floricultores A bomba é o produto quintessente de um laboratório falido A bomba É miséria confederando milhões de misérias A bomba é estúpida é ferotriste é cheia de rocamboles A bomba é grotesca de tão metuenda e coça a perna [...] A bomba amanhã promete ser melhorzinha mas esquece A bomba não está no fundo do cofre, está principalmente onde não está A bomba mente e sorri sem dente [...] A bomba envenena as crianças antes que comece a nascer A bomba continua a envenená-las no curso da vida [...] A bomba não admite que ninguém se dê ao luxo de morrer de câncer A bomba é câncer [...] A bomba com ser uma besta confusa dá tempo ao homem para que se salve A bomba não destruirá a vida O homem (tenho esperança) liquidará a bomba (ANDRADE, 2003, p. 495). 7.2 João Cabral, o idioma pedra e as palavras-pedra João Cabral de Melo Neto (1920-1999) considerava escrever uma coisa infernal. Sua poesia é reconhecida como obra de um crítico, ou seja, é fruto de um poeta crítico, que escreve e pensa a própria escrita. Sua obra escreve-se em um processo de construção, falando ao leitor e comentando questões sobre o escrever, em forma incessante de atividade (auto)crítica. 166 Unidade IV LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Nos esclarecimentos de Maurice Blanchot (apud REBUZZI, 2010), alguns escritores confirmam que escrever tem para aquele que escreve um valor de experiência fundamental, pois, desde o momento em que um escritor se lança na página em branco e escreve, tem a intenção de aí experimentar algo além de seus pensamentos. Nesse sentido, a escrita é um processo que se desdobra, desdobrando-se, em movimento, em deslocamento perpétuo, indagando-se sobre sua razão de ser e sua possibilidade. A escrita de João Cabral constrói o idioma pedra, na expressão de Rebuzzi (2010), e o poeta defende uma escrita densa e seca, buscando escapar do lirismo intimista. Segundo o próprio poeta, ele tinha horror à poesia, porque, em época de colégio, estudava as antologias até a época do Parnasianismo. Ele lia poetas brasileiros e portugueses românticos, parnasianos, e essa leitura lhe dava nojo. Esse poeta só compreendeu que na poesia podia haver lógica depois de ler Carlos Drummond de Andrade, decidindo-se, a partir daí, ser um poeta. Em síntese, a base da poesia cabralina é a lucidez e a racionalidade. O poeta chegou a declarar-se antilírico, pois para ele a poesia se dirige à inteligência. Passou a ser – e continua a ser – considerado um dos maiores poetas da nossa língua. Sua consagração deve-se à lírica cortante que nega a inspiração e a escrita com rigor. Foi diplomata e viajou pelo mundo, aberto ao novo de outras línguas e outras culturas. Assim, a poesia de Cabral, declaradamente marcada pelo modernismo de Drummond, dialogou com muitas outras leituras e estudos. Apenas para exemplificar, João Cabral era um leitor fervoroso de Paul Valéry, cujos ensaios confirmavam a importância da formação ou fabricação das obras em si. O ritmo áspero da velha literatura espanhola também causava interesse em Cabral, em especial a de Berceo, o primeiro poeta conhecido de língua castelhana. Para encerrar nos exemplos, João Cabral repetiu em seu primeiro livro o verso “É preciso despoetizar o poema”, de Mallarmé. Observação João Cabral de Melo Neto tem rica publicação poética e a obra Psicologia da composição é apenas uma delas e uma das primeiras. Segue a lista de seus títulos: Pedra do sono (1942), O engenheiro (1945), Psicologia da composição (1947), O cão sem plumas (1950), O rio (1959), Dois parlamentos (1960), Quaderna (1960), A educação pela pedra (1966), Morte e vida severina (1966), Museu de tudo (1975), A escola das facas (1980), Auto do frade (1984), Agrestes (1985), Primeiros poemas (1990), Tecendo a manhã (1999). Na obra Psicologia da composição, publicação de 1947, os poemas são todos sobre poesia, com momentos de meditação sobre o fazer poético e seus limites racionais no ato da composição. O título carrega, porém, o termo psicologia, que talvez possa referir-se à depuração da linguagem desse poeta até neutralizar nela o eu. Esse livro exigiu muito de João Cabral, que ficou sem escrever durante três anos. Em entrevista, muitos anos depois, disse que escrevia seu último livro, porque não desejava escrever mais (REBUZZI, 2010). 167 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia O livro inclui o poema Fábula de Anfion, transcrito a seguir. Na mitologia grega, aparece Anfion, que é filho de Júpiter e Antípoda, rainha de Tebas. Ele era dotado para a música, criado entre pastores e recebeu uma lira de Apolo. Ao som dessa lira, construiu a muralha de Tebas, onde as pedras iam- se colocando umas sobre as outras sem qualquer esforço físico. Sensíveis à melodia de sua lira, elas acomodavam-se. Fábula de Anfion 1. O deserto. Anfion chega ao deserto No deserto, entre a paisagem de seu vocabulário, Anfion, ao ar mineral isento mesmo da alada vegetação, no deserto que fogem as nuvens trazendo no bojo as gordas estações Anfion, entre pedras como frutos esquecidos que nãoquiseram amadurecer, Anfion, como se preciso círculo estivesse riscando na areia, gesto puro de resíduos, respira o deserto, Anfion. * O deserto (Ali, é um tempo claro como a fonte e na fábula. Ali, nada sobrou da noite como ervas entre pedras. 168 Unidade IV LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Ali, é uma terra branca e ávida como a cal. Ali, não há como pôr vossa tristeza como a um livro na estante). * Sua flauta seca Ao sol do deserto e no silêncio atingido como a uma amêndoa, sua flauta seca: sem a terra doce de água e de sono; sem os grãos do amor trazidos na brisa, sua flauta seca: como alguma pedra ainda branda, ou lábios ao vento marinho. * O sol do deserto (O sol do deserto não intumesce a vida como a um pão. O sol do deserto não choca os velhos ovos do mistério. Mesmo os esguios, discretos trigais não resistem a o sol do deserto, lúcido, que preside a essa fome vazia) 169 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia * Anfion pensa ter encontrado a esterilidade que procurava. Sua mudez está assegurada se a flauta seca: será de mudo cimento, não será um búzio a concha que é o resto de dia de seu dia: exato, passará pelo relógio, como de uma faca o fio 2. O acaso O encontro com o acaso No deserto, entre os esqueletos do antigo vocabulário, Anfion, no deserto, cinza e areia como um lençol, há dez dias da última erva que ainda o tentou acompanhar, Anfion, no deserto, mais, no castiço linho do meio-dia, Anfion, agora que lavado de todo canto, em silêncio, silêncio desperto e ativo como uma lâmina, depara o acaso, Anfion. * o acaso ataca e faz soar a flauta. Ò acaso, raro animal, força 170 Unidade IV LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 de cavalo, cabeça que ninguém viu; ó acaso, vespa oculta nas vagas dobras da alva distração; inseto vencendo o silêncio como um camelo sobrevive à sede ó acaso! O acaso súbito condensou; em esfinge, na cachorra de esfinge que lhe mordia a mão escassa; que lhe roía o osso antigo logo florescido da flauta extinta: áridas do exercício puro do nada. * Tebas se faz Diz a mitologia (arejadas salas, de nítidos enigmas povoadas, mariscos ou simples nozes cuja noite guardada à luz e ao ar livre persiste, sem se dissolver diz, do aéreo parto daquele milagre: Quando a flauta soou um tempo se desdobrou do tempo, como uma caixa de dentro de outra caixa. Anfion em Tebas Anfion busca em Tebas o deserto perdido Entre tebas, entre 171 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia a injusta sintaxe que fundou, Anfion, entre Tebas, entre mãos frutíferas, entre a copada folhagem de gestos, no verão que, único, lhe resta e cujas rodas quisera fixar nas, ainda possíveis, secas planícies da alma, Anfion, ante Tebas, como a um tecido que buscasse adivinhar pelo avesso, procura o deserto, Anfion. * Lamento diante de sua obra. “Esta cidade, Tebas, não a quisera assim de tijolos plantada, que a terra e a flora procuram reaver a sua origem menor: com já distinguir onde começa a hera, a argila, ou a terra acaba? Desejei longamente liso muro, e branco, puro sol em si como qualquer laranja; leve laje sonhei largada no espaço. 172 Unidade IV LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Onde a cidade volante, a nuvem civil sonhada?” * Anfion e a flauta. “Uma flauta: como dominá-la, cavalo solto, que é louco? Como antecipar a árvore de som de tal semente? Daquele grão de vento recebido no açude a flauta cana ainda? Uma flauta: como prever suas modulações, cavalo solto e louco? Como traçar suas ondas antecipadamente, como faz, no tempo, o mar? A flauta, eu a joguei aos peixes surdo- mudos do mar. Fonte: Melo Neto (1997, p. 53-56). Esse poema pode ser lido como uma paródia do Amphion de Valéry. João Cabral desconstrói um ideal de poesia pura e associa a palavra à pedra. No primeiro momento, Anfion está “entre pedras” com a “flauta seca”, ou seja, a sonoridade desaparece e dá lugar ao silêncio. Parece-nos que o poeta constrói, devagar, uma passagem que atravessa “a paisagem do seu vocabulário” até encontrar a mudez; o “mudo cimento” é o próprio objeto de construção dessa poética, sendo algo duro e sólido em sua materialidade. No segundo momento do poema, o encontro é com o acaso, e o deserto se mostra entre os “esqueletos do antigo / vocabulário, Anfion,” apertado “de todo canto, / em silêncio, silêncio” e “lavado de todo canto”. É justo aí que o acaso surpreende. É o acaso que faz soar a flauta. Esse acaso é nomeado como animal, cavalo, vespa ou inseto, e é aquele que, na verdade, “ataca” a mão que escreve. A mesma mão que causa incômodo e se move a escrever faz soar a flauta do verso nas dobras da distração. 173 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia Na trajetória dessa fábula, a personagem encontra o avesso da cidade construída: o deserto. Há um deslocamento da escrita do poeta, na forma de espiral. No poema, há um vaivém que atravessa o texto, fazendo valer o vocabulário (esqueleto) com as palavras-pedras (deserto, pedra, cimento, osso, tijolo, muro, laje), que fixam pontos de silêncio, opostos aos vocabulários musicais e líricos (flauta, som, vento, ondas, conchas). De acordo com Rebuzzi (2010), a busca é secar a linguagem, tensionando a linguagem poético-musical. O poeta considera silenciar a música das palavras nos versos e construir, assim, segundo princípios antilíricos e antimusicais. Ao final, como não encontra saída, atira a flauta aos peixes “surdos-mudos do mar”. Enfim, escapar da escrita e ficar em silêncio não se mostra uma solução; o poeta propõe, então, o abandono do lirismo para afirmar a poética árida. No Amphion de Valéry, a trajetória o leva a ficar com a lira até a morte, e, no de João Cabral, o poeta lança a flauta ao mar, despedindo-se, dessa forma, do modelo poético sacralizado. 7.3 Henriqueta Lisboa, um caso de transcodificação Um tópico sobre a poesia brasileira para o qual não poder faltar referência é a tradução de poesia. Muitos textos poéticos foram traduzidos para a língua portuguesa para o leitor brasileiro e muitos poemas nossos também foram traduzidos para outras línguas. As versões transcendem limites nacionais e ensinam “o homem a melhor conhecer o mundo e a si mesmo, construindo sobre o que é propriamente humano: a linguagem” (BOSI, 1991, p. 545). No Brasil, o exercício regular da tradução poética foi iniciado no Romantismo. Segundo Bueno (2007), boa parte dos poetas românticos praticaram a tradução, mas raramente com a plena manutenção da forma original. Gonçalves Dias também traduziu vários poemas, sendo a mais notável tradução A camisa encantada, de autoria de Uhland. No século XX, uma grande escola de tradução poética se firmou no país, em especial na segunda metade. Destaca-se a atuação dos concretistas Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, além de José LinoGrünewald e de José Paulo Paes. Traduziram poemas da língua inglesa, francesa, grega e italiana. O mais notável das traduções é o respeito à forma original, fonte de todo o desafio de análise combinatória, de substituição de recursos, que implica a tradução poética. O diálogo entre línguas maternas diferentes é complexo, principalmente no caso da tradução poética, na qual não se trata apenas de conservar a mensagem, mas também preservar a poeticidade dela. Segundo José Paulo Paes (apud LEÃO, 2004), poeta e tradutor, a poeticidade é função organizadora da língua. 174 Unidade IV LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Saiba mais São vários os estudos sobre tradução de textos diversos (técnicos, científicos etc.) e de textos literários. Os autores apontam dificuldades na tradução advindas das diferenças, por exemplo, culturais das línguas (de partida e de chegada), estratégias para tradução eficiente, entre outros aspectos. Entre as obras sobre tradução, o leitor tem a sua disposição: ALVES, F.; MAGALHÃES, C.; PAGANO, A. Traduzir com autonomia: estratégias para o tradutor em formação. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2011. A organização linguística do texto depende, de um lado, das potencialidades da língua e, de outro, da capacidade do autor de jogar com essas potencialidades, explorando-as de forma criativa. Quem cria o texto poético sofre as coerções da sua língua, do gênero escolhido, da tradição literária, das exigências próprias discursivas e poéticas. Quem traduz igualmente é submetido a essas mesmas restrições, sofre outras, como as do estilo particular do autor. Na poesia a ser traduzida, somam-se, também, a semântica do significado e a do significante, ambas objeto de tradução. Essa dificuldade torna-se maior se a linguagem poética de partida tiver mais condensação. É o caso da poesia de Henriqueta Lisboa, cuja concisão é deliberada e retrata o recolhimento da autora. Sua obra é feita quase só de implícito, de palavras contidas, levando o leitor a adivinhar. Podemos exemplificar com o poema Na morte: Na morte Na morte nos encontraremos. Sim, na morte. Tempo de consórcio e de vínculo. Depois de caminhos extremos. Quer pelo sul ou pelo norte. Ao término de circunstâncias: Passos certeiros ou perdidos. Sem palavras nem sentimentos, com simplicidade suprema. Na morte nos encontraremos (LISBOA, 1958, p. 48). 175 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia Nos dez versos, aparece apenas um verbo – encontraremos –, sendo os substantivos os núcleos dos sintagmas tanto dos advérbios ou apostos e são modificados por poucos adjetivos. Essa linguagem econômica, densa e contida causa dificuldades para o tradutor; mas, apesar disso, o livro do qual o poema faz parte foi traduzido em línguas como húngaro e búlgaro, além das românicas (francês, espanhol) e germânicas (inglês, alemão). Segundo Leão (2004), existe uma tradução magnífica para o latim; na verdade, única tradução de um livro completo, Montanha viva: Caraça. Em latim, o título ficou Mons vivus seu Mons Caracensis. A tradução foi iniciada pelo padre Pedro Sarneel, que traduziu os 40 poemas, mas desistiu de sua empreitada, continuada pelo professor José Lourenço de Oliveira. Este complementa o trabalho do padre, fazendo cuidadosa revisão. Por isso, o título da primeira tradução dado por Sarneel, Mons Vitae, foi mudado, porque o padre empregou um substantivo no genitivo para substituir o adjetivo, alterando, assim, o sentido metafórico. Observação Caraça é nome tanto da serra mineira quanto do santuário, localizado no local, da ordem religiosa São Vicente. A dificuldade para o padre aumentou porque a língua de chegada é o latim, que ninguém fala, poucos a estudam e muitos a ignoram completamente. A intenção dele era traduzir para o latim clássicos de Horácio, Ovídio, Virgílio (grandes poetas da Roma Antiga), mas o poema não se encaixava nessa língua vernácula. Assim, passou a traduzir para a língua latina da Idade Média, dos poetas cristãos da época. O professor Lourenço reforça essa dificuldade em traduzir um poema moderno, com ritmos recentes, ora mais denso, ora mais leve, para uma língua antiga, tão distante de uso no tempo. Ele também deixou de lado os metros clássicos e adotou o ritmo pós-românico. Como dão a entender os tradutores, segundo Leão (2004, p. 71), “tratava-se de encontrar correspondência para uma sensibilidade moderna em outra língua, que, fazendo parte de uma cultura antiga, também era (numa contradição aparente) a sua síntese”. Vemos, então, parte do resultado da tradução, recortando dele apenas as duas primeiras estrofes (um dístico e uma quadra): A flor de São Vicente Do caule esguio em pendor, três pétalas – uma flor. Humildade. Simplicidade. Caridade. Ó penhor! De que maneira se há de aproximar dessa flor? (LISBOA, 1959, p. 108). 176 Unidade IV LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 A flor do poema sintetiza as virtudes vicentinas, simbolizadas pelas pétalas, humildade, simplicidade e caridade. Tais virtudes são estendidas, de forma metonímica, ao fundador do Caraça e ao próprio Colégio. Este é evocado pelo substantivo “flor”, que em latim – flos – faz parte do gênero masculino, assim como o substantivo “colégio” em português. A tradução reestrutura as estrofes: os dois primeiros versos da quadra formam um dístico final, resultando estrofe diversa da do original: Flos Vicentius Tenui de caule flos unus pendet, trifolium. Humilitas Simplicitas et Caritas. Ó pignus! Ad florem Quomodo accedere? (LISBOA, 1959, p. 109). As ideias apresentam-se coesas com o original. O indefinido “uma”, em “uma flor”, no sentido de flor qualquer, torna-se numeral em latim flos unus, uma vez que a língua latina não possuía artigo. Assim, o tradutor inverte a ordem dos elementos do sintagma original, dando à expressão o sentido de “flor única”. A expressão ganha, então, maior densidade graças à condensação do oposto “três pétalas”, que foi traduzido em uma só palavra, trifolium. As pétalas simbolizam as virtudes principais vicentinas e o conjunto das pétalas – a flor – simboliza o Colégio e seu fundador. Na tradução, as três virtudes – Humilitas Simplicitas et Caritas – passam a completar o dístico, agora sem o ponto final, que as integrava, logo em seguida da descrição da flor, dando coesão e coerência ao poema. Os dois últimos versos originais passam a ser, na tradução, um dístico separado: Ad florem / quomodo accedere? Essa interrogação é retórica, reflexiva, do tipo “Como alcançar essa flor?”, sobre a qual o poeta dirige a si próprio, sem esperar resposta do interlocutor. A tradução desses versos é exemplar caso de sintetismo latino em oposição ao analitismo românico. Com apenas quatro palavras da língua latina, o pensamento contido em nove palavras do original português foi traduzido. Nesse caso, como ficaria a tradução para o português desses versos? Original português: De que maneira se há de Aproximar dessa flor? Tradução latina: Ad florem quomodo accedere? Retroversão portuguesa: A essa flor como chegar? 177 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia Temos a confirmação do sintetismo latino. Independentementedisso, o que fica evidente é a necessidade de trabalhar para a manutenção dos sentidos na tradução, não os recursos utilizados para produzi-los. Exemplos de Aplicação I. A poética de Carlos Drummond de Andrade é vasta e muitos de seus poemas são consagrados, conhecidos e recitados pelos brasileiros. O que você acha dos poemas a seguir? • Poema de sete faces • Confidência do itabirano • A flor e a náusea • José Eles podem ser encontrados na indicação bibliográfica no final deste livro-texto e na internet. II. Além dos títulos poéticos na atividade I, indique outros conhecidos e/ou prediletos de Drummond no seu acervo de leitura. III. Relacione o poema de Drummond com a construção poética de João Cabral de Melo Neto. No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra. Fonte: Andrade (2003, p. 16). IV. Canção do exílio, de Gonçalves Dias (1997), é o texto poético mais parodiado na nossa história literária. Faça a tradução do poema para língua inglesa ou espanhola. Compartilhe com colegas de turma, por meio de fórum, solicite opinião sobre a melhor forma de seleção de palavras ou expressão de uma ideia. Divulgue. 178 Unidade IV LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 8 SUPORTE E RECEPÇÃO DA POESIA E SUAS TENDÊNCIAS O mundo da poesia atual conta com autores poéticos, que lançam seus textos por meio de editora, em feiras do livro, pela internet (blog, por exemplo). Hoje contamos com grande número, ou melhor, inumeráveis poetas contemporâneos, bem como diversidade na forma, na temática, no suporte etc. Lembrete Suporte é um meio físico ou virtual que dá sustentação ao gênero textual e auxilia na sua divulgação. O suporte pode, também, determinar o gênero do texto. Entre os suportes, há jornal, revista, livro, computador, celular, televisão, outdoor, parede. Torna-se, no mínimo, extremamente difícil fazer um panorama dos poetas e de suas obras (impressas, virtuais). Muitos críticos literários limitam seus estudos até a década de 1960, 70. Bosi (1997), por exemplo, estrutura seu livro dividindo-o em períodos estilísticos da nossa literatura e, no final, em uma lista apenas, enumera poetas contemporâneos que publicaram nas décadas de 1950 e 1960. Candido (2000), por sua vez, encerra seu livro no Romantismo. Não se podem desconsiderar vários artigos, teses, capítulos de livros atuais que exploram a obra de um poeta atual; porém, trata-se do estudo de uma obra/um poeta, sem dar um panorama da poesia atual. Assim, como tratar do número crescente de novos poetas? Onde encaixá-los na historiografia literária? Formam um estilo único? A dificuldade é imensa e você, caro aluno, poderá contribuir (e muito) nessa pesquisa sobre os poetas e as poesias surgidos depois dos anos 2000 e traçar as tendências atuais. Saiba mais Bueno (2007), em um dos capítulos finais de seu livro, intitulado “No agora e aqui pouco sabido”, dá um panorama de poetas/obras atuais. BUENO, A. Uma história da poesia brasileira. Rio de Janeiro: G. Ermakoff, 2007. Além disso, esse mundo poético, hoje, é marcado pela diversidade de suportes e de linguagens, possibilitando a interação entre a poesia e os recursos virtuais, bem como o hibridismo na forma e nos suportes. Sempre associada à sociedade, a poesia acompanha as mudanças ocorridas naquela ao aceitar ou discordar dela. No caso atual, a sociedade estabeleceu velocidade diferente para o ritmo de vida dos indivíduos, para a informação e os meios de comunicação, inclusive para a poesia. 179 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia Nesse novo contexto, como fica a poesia em relação aos suportes, à recepção dos leitores? Destacam-se, então, apenas três aspectos da poesia pós-modernista: 1. O hibridismo da poesia: exemplo de aproximação entre literatura e música, com os textos de Caetano Veloso; e de hibridismo na relação literatura – internet – música, com texto de Luiz Tatit. 2. A brevidade na poesia: a brevidade sempre existiu na poesia e é indicada como tendência menos poética e mais do leitor atual. No caso, há apresentação da obra de Olga Savary, considerada a grande cultora do poema curto. 3. O diálogo da poesia com a história: a visão atual do passado também é recorrente nas produções. Exemplifica-se a obra do poeta Milton Torres. 8.1 O hibridismo na poética pós-moderna A cultura moderna, ou cultura de massa, iniciou-se como o processo de mercantilização no século XVI e, agora, é de caráter global. O termo massa passou a ter concepção pejorativa, mas tal expressão significa abrangência e acessibilidade pelas indústrias da mídia. Sem tomar o termo apenas quantitativamente, ele serve para disponibilizar as mensagens para uma pluralidade de receptores (CYNTRÃO, 2004). Esses receptores não podem ser tomados como amontoado indiferenciado; ao contrário, são indivíduos em contextos particulares que interagem na recepção e dão às mensagens um sentido subjetivo. Várias características positivas pesam sobre a comunicação mediada por meios e suportes diversos, mas há o fato de que governos autoritários valeram-se, em muitos momentos da história recente, do caráter intrinsecamente público da mídia para exercer o controle sobre as instituições da comunicação de massa, pela via da censura e da coerção econômica. Basta lembrar o regime militar que se instaurou no Brasil após o golpe de 1964. A política de submissão cultural propunha a integração nacional, a segurança nacional e o desenvolvimento nacional, controlando, sobretudo, a arte que mais mobilizava a sociedade: a canção popular. Embora a cultura brasileira tenha tomado novos rumos com o fim do governo ditatorial, ainda é um setor social que sofre muitas exigências do mercado econômico, das novas tecnologias e da avaliação dos padrões culturais. Em consonância aos desejos da sociedade de consumo, os produtos culturais têm valor de troca, aproximando-se do mercado, e este, da cultura. No entanto, a obra pode continuar a ter uma dimensão universal ou valor estético, literário. Assim, não podemos ler, na era contemporânea, poesia sem considerar novos paradigmas. A base do novo paradigma é o relativismo cultural, cuja premissa é de que a realidade é sempre culturalmente constituída. O que era considerado imutável passa a ser encarado como uma construção cultural sujeita a variações no tempo e no espaço. 180 Unidade IV LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Outra base é a mentalidade coletiva e a chamada minoria, não mais somente o discurso dominante ou dos documentos oficiais. Dessa forma, a história da cultura popular vem alargando nossa compreensão sobre nossa própria época, bem como busca a interação, por exemplo, na literatura. Marca-se, então, outra característica do pós-modernismo, que é o ecletismo advindo da desreferencialização e da dessubstancialização do sujeito. Esse ecletismo propicia abertura para o universo textual e cultural dos textos poéticos canônicos e não canônicos. Na contemporaneidade, temos, então, aproximações instigantes, tal como a canção popular e o cânone literário. Em termos históricos, o discurso poético liga-se à música, ocorrendo cisão no Renascimento, em que a literaturaconfigurou-se de forma autônoma. Para Otávio Paz, “nossa poesia é consciência da separação e tentativa de reunir o que foi separado [...]. Poesia, momentânea reconciliação: ontem, hoje, amanhã; aqui, ali; tu, eu, ele, nós” (apud CYNTRÃO, 2004, p. 56). Se nós, do terceiro milênio, buscamos resgatar a fragmentação e os caminhos para a integração e a integridade, é compreensível que o fenômeno plurivocal da música popular seja focalizado sob o prisma de uma significação cultural. A expressão música popular provoca controvérsia, pois engloba a música folclórica e a música urbana. A primeira manifesta-se nas classes populares, e a segunda contempla a produção da classe média. No Brasil, foi criada até mesmo uma sigla – MPB. A música popular urbana, “provavelmente, mais do que qualquer outra manifestação cultural, por sua penetração indubitável na camada média urbana da população, tem tido papel fundamental na formação de uma identidade nacional” (SILVA, apud CYNTRÃO, 2004, p. 57). Ela torna-se porta-voz de anseios e memórias que circulam na sociedade. Seu marco histórico foi na década de 1960, quando confrontou com violentas ações impostas pelo regime militar pós-1964. A música popular, na década de 1970, foi o bem cultural mais consumido pela população urbana, por meio do rádio e da televisão. Os compositores, para burlar a censura, utilizaram argúcia poético- linguística, resultando em valor artístico-literário. No Festival da MPB, em 1967, surgiu uma canção diferente da linearidade da canção e da poesia sociopoliticamente orientada: Alegria, alegria, de Caetano Veloso: Alegria, alegria Caminhando contra o vento Sem lenço sem documento No sol de quase dezembro Eu vou. O sol se reparte em crimes Espaçonaves guerrilhas Em cardinales bonitas Eu vou. Em caras de presidentes 181 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia Em grandes beijos de amor Em dentes pernas bandeiras Bomba e Brigitte Bardot. O sol nas bancas de revista Me enche de alegria e preguiça Quem lê tanta notícia? Eu vou. Por entre fotos e nomes Os olhos cheios de cores O peito cheio de amores vãos Eu vou. Por que não, por que não... Ela pensa em casamento E eu nunca mais fui à escola Sem lenço sem documento, Eu vou... Eu tomo uma coca-cola Ela pensa em casamento E uma canção me consola Eu vou. Por entre fotos e nomes Sem livros e sem fuzil Sem fome, sem telefone No coração do Brasil. Ela nem sabe até pensei Em cantar na televisão O sol é tão bonito Eu vou. Sem lenço sem documento Nada no bolso ou nas mãos Eu quero seguir vivendo amor Eu vou. Por que não? Por que não? (VELOSO, 1968). Essa canção apresenta uma montagem diversificada de imagens, em associações inusitadas, tal como “Bomba e Brigitte Bardot”. O vocábulo “bomba” remete à bomba atômica, às bombas de moralização (jogadas contra estudantes e outros manifestantes), como símbolo da realidade da época. Em contrapartida à realidade, temos a cultura importada e alienante, representada pelo termo Brigitte Bardot. Essa alienação aparece também nos versos “Em cardinales bonitas”, em referência ao cinema americano simbolizado pela atriz ítalo-americana Claudia Cardinale e “coca-cola”, maior símbolo do império norte-americano, que financiava os exércitos em toda a América Latina. Na década anterior, aliás, no movimento concretista da poesia, encontram-se duas poesias concretas, que já faziam remissão tanto à bomba quanto à coca-cola: 182 Unidade IV LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Poema-bomba Fonte: Campos (2002, p. 9). Os significantes /b/, /o/, /m/, /b/ e /a/, juntamente com /p/, /o/, /e/, /m/ e /a/, formam uma explosão com as letras se expandindo a partir de um centro. A disposição das letras, então, produz a impressão de bomba explodindo em estilhaços. Passa a existir a relação entre os significantes e o significado da palavra “bomba” e “poema”. Essa fragmentação e inter-relação significado/significante fazem parte das canções da década 1960 e, em especial, de Alegria, alegria. O texto traz o ambiente urbano, múltiplo e fragmentário, captado por uma linguagem nova, também fragmentária, com predominância nos substantivos estilhaços, crimes, espaçonaves, guerrilhas, cardinales, caras de presidentes, beijos, dentes, bombas... É o mundo das bancas de revistas, com tantas notícias, isto é, o mundo da comunicação rápida, do mosaico informativo. A outra poesia concreta é coca-cola: beba coca cola babe cola beba coca babe cola caco caco cola c l o a c a Fonte: Pignatari (apud BOSI, 1991, p. 534). 183 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia Na poesia de Décio Pignatari, o verbo babar interfere no texto publicitário “Beba Coca-Cola” e critica negativamente um produto pop da época da produção poética. Além da antítese beber x babar, temos cloaca e aça, que caracterizam o refrigerante como mau cheiro. Uma das críticas negativas contra o Concretismo é o desvínculo com a sociedade, sendo considerado alienado/alienante. No entanto, nessa poesia, vemos o contrário: é um texto não só inserido no mundo (mundo da cultura pop), mas principalmente um texto satírico ao criticar um produto tão popular. Esse posicionamento crítico constitui igualmente Alegria, alegria. Essa canção faz parte do disco Tropicália, lançado em 1968. Outra canção do mesmo disco é Tropicália: Tropicália Sobre a cabeça os aviões Sob os meus pés os caminhões Aponta contra os chapadões Meu nariz Eu organizo o movimento Eu oriento o carnaval Eu inauguro o monumento No planalto central do país Viva a Bossa, sa, sa Viva a Palhoça, ça, ça, ça, ça Viva a Bossa, sa, sa Viva a Palhoça, ça, ça, ça, ça O monumento É de papel crepom e prata Os olhos verdes da mulata A cabeleira esconde Atrás da verde mata O luar do sertão O monumento não tem porta A entrada é uma rua antiga Estreita e torta E no joelho uma criança Sorridente, feia e morta Estende a mão Viva a mata, ta, ta Viva a mulata, ta, ta, ta, ta Viva a mata, ta, ta Viva a mulata, ta, ta, ta, ta No pátio interno há uma piscina Com água azul de Amaralina Coqueiro, brisa e fala nordestina E faróis 184 Unidade IV LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Na mão direita tem uma roseira Autenticando eterna primavera E no jardim os urubus passeiam A tarde inteira entre os girassóis Viva Maria, ia, ia Viva a Bahia, ia, ia, ia, ia Viva Maria, ia, ia Viva a Bahia, ia, ia, ia, ia No pulso esquerdo o bang-bang Em suas veias corre Muito pouco sangue Mas seu coração Balança um samba de tamborim Emite acordes dissonantes Pelos cinco mil alto-falantes Senhoras e senhores Ele põe os olhos grandes Sobre mim Viva Iracema, ma, ma Viva Ipanema, ma, ma, ma, ma Viva Iracema, ma, ma Viva Ipanema, ma, ma, ma, ma Domingo é o fino-da-bossa Segunda-feira está na fossa Terça-feira vai à roça Porém... O monumento é bem moderno Não disse nada do modelo Do meu terno Que tudo mais vá pro inferno Meu bem Viva a banda, da, da Carmem Miranda, da, da, da, da Viva a banda, da, da Carmem Miranda, da, da, da, da Fonte: Veloso (1968). O texto compõe um mosaico nacional do momento histórico, bem datado, ao fazer referência ao atual, por contraposição ao passado: “viva Iracema / vivaIpanema”; “eu oriento o carnaval / eu inauguro o monumento / no planalto central / do país” etc. O termo Iracema, que é anagrama de América, é personagem de José de Alencar, escritor do século XIX, o qual ajudou a criar o indianismo, ou seja, a idealização da figura indígena; no caso, da figura feminina. Ipanema é uma palavra tupi (com significado de água ruim) e, no caso, remete à garota da canção de Vinícius de Moraes e Tom Jobim, século XX. 185 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia Enquanto Alegria, alegria se constrói sobre o fragmentário e a dispersão da realidade urbana, em Tropicália os termos combinados são contraditórios entre si: “papel crepom”, que é objeto de consumo ordinário, e “prata, mata e sertão”. Na entrada, há “uma criança / sorridente feia e morta” e no “pátio interno há uma piscina”. Segundo Augusto de Campos (apud CYNTRÃO, 2004, p. 80): Tropicália, a primeira faixa do LP, é também a nossa primeira música Pau- Brasil, homenagem inconsciente a Oswald de Andrade, de quem Caetano ainda não tinha conhecimento, quando a escreveu. Pau-brasil: contra a argúcia naturalista, a síntese contra a cópia, a invenção e a surpresa [...]. Em Tropicália, há uma presentificação da realidade brasileira – não a sua cópia – através da colagem criativa de eventos, citações, rótulos e insígnias do contexto. É uma operação típica daquilo que Lévy-Strauss denomina de bricolage intelectual. As grandes obras falam do mundo e dos homens de forma inusitada e têm a qualidade de dialogar com outras criações, reaparecendo de diversas formas, em diferentes momentos, como diz Beth Brait (2010). Esse é o caso da personagem Capitu do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Considerando a primeira edição da obra, Capitu está entre nós desde 1889, não nos deixando e não deixando de causar polêmica e provocar admiração. Graças às dúvidas que pairam sobre um possível adultério e a sua maneira intrigante de ser, muitas reaparições já foram e continuam ocorrendo. Entre releituras, recriações, diálogos, há a coletânea de contos de Dalton Trevisan Capitu sou eu; a adaptação literária de Fernando Sabino Amor de Capitu; o roteiro cinematográfico feito por Ligia Fagundes Telles Capitu, sem contar sites e blogs que são intitulados Capitu ou existem para discutir essa personagem. A música popular brasileira também foi seduzida por essa personagem, como comprovamos na canção Capitu, de Luiz Tatit: Capitu De um lado vem você com seu jeitinho Hábil, hábil, hábil E pronto! Me conquista com seu dom De outro esse seu site petulante 186 Unidade IV LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 www Ponto Poderosa ponto com É esse o seu modo de ser ambíguo Sábio, sábio E todo encanto Canto, canto Raposa e sereia da terra e do mar Na tela e no ar Você é virtualmente amada amante Você real é ainda mais tocante Não há quem não se encante Um método de agir que é tão astuto Com jeitinho alcança tudo, tudo, tudo É só se entregar, e não resistir, é capitular Capitu A ressaca dos mares A sereia do sul Captando os olhares Nosso totem tabu A mulher em milhares Capitu No site o seu poder provoca o ócio, o ócio Um passo para o vício, vício, vício É só navegar, é só te seguir, e então naufragar 187 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia Capitu Feminino com arte A traição atraente Um capítulo à parte Quase vírus ardente Imperando no site Capitu Fonte: Tatit (2000). O autor constrói a dimensão de um feminino forte, imaginário, sobre a mulher, que, vindo do século XIX literário, chega ao século XXI via internet. Entre as qualidades do texto para reviver Capitu, está o trabalho com a linguagem, com as riquezas da língua portuguesa, criando forte e vivo diálogo entre ficção literária, canção e internet. Na primeira estrofe, a expressão “De um lado” inicia a face Capitu machadiana com alguns traços marcantes da personagem, como o verbo “vir” no presente, que funciona como uma ponte entre o mundo do romance e o da canção; o diminutivo “jeitinho”, que torna familiar e juvenil a relação entre o poeta e sua musa; a repetição do termo “hábil“, que reitera uma maneira de ser e dialoga com o capítulo 18 da obra Dom Casmurro, no qual lemos: “Capitu, aos quatorze anos já tinha ideias atrevidas [...] mas não eram só atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis” (ASSIS, 1991, p. 16). A ideia da conquista associa-se ao dom, que é uma qualidade inata, a um poder, e também à forma de tratamento que aparece no título do romance Dom Casmurro, entabulando forte intertextualidade canção/romance. Com a expressão “De outro”, verso inicial da segunda estrofe, tem início a Capitu internauta. Se a anterior é caracterizada como hábil, sutilmente astuta, essa é mais agressiva, ágil, identificada com a linguagem da internet e com o petulante endereço: <www.poderosa.ponto.com>. A sequência “modo de ser ambíguo”, que admite diversas e até contrárias interpretações, estabelece a síntese entre as faces da personagem, assinalando a mais marcante das características de Capitu e do romance que lhe dá vida. Observamos a exploração do termo encanto, qualificando o “modo de ser ambíguo”, em que canto é rima, é repetição, é eco, criando ambiguidade entre quem canta e quem é cantado. Em magnífico jogo entre a personagem, sua existência na e pela canção e sua dimensão mítica, explicitado no verso seguinte, por meio do termo “sereia”: a que encanta cantando. Esse jogo reaparece em outros versos, por meio dos termos “tocante” e “se encante”. O autor traz para dentro da canção símbolos, mitos, lendas, personificações que nos levam à compreensão da ambiguidade da personagem. É o caso da “raposa e sereia”, que recupera a personagem imortalizada na fábula de La Fontaine; a raposa designa pessoa matreira, astuta. É o caso do mito da sereia que vem da Antiguidade clássica, presente na Odisseia, de Homero, e cuja característica é atrair para a morte todos os que deixam levar por seu canto e pelos encantos. 188 Unidade IV LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Além das referências literárias que presentificam Capitu, temos, da canção de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, a “amada amante”, e de Freud o “totem tabu”. Todas as referências agregam-se a elementos que redimensionam e expandem a personagem. “Você é virtualmente / Amada amante” é diferente de “E você, amada amante / Faz da vida um instante / Ser demais para nós dois”. O pronome possessivo e as minúsculas em “Nosso totem tabu” trazem a discussão psicanalítica para um cotidiano em que Capitu se torna um símbolo sagrado, uma divindade, um emblema, algo proibido, tudo ao mesmo tempo. O verbo “capitular” significa render-se, entregar-se, como anunciam dois versos na quarta estrofe, e traz em si o nome Capitu, englobando ação e designação. A partir desse verso, pela primeira vez, o poeta, seduzido, evoca Capitu e se deixa capturar. A quinta estrofe inicia e termina com o nome Capitu; os versos parecem literalmente capturados, sem saída. O segundo verso, “a ressaca dos mares”, reinventa a famosa designação dada para Capitu por Bentinho, no capítulo 32: “traziam não sei que fluxo misterioso e energético, uma força que arrastava para dentro, como a vagaque se retira da praia, nos dias de ressaca” (ASSIS, 1991, p. 98). O verbo “naufragar” faz parte da penúltima estrofe, refere-se à Capitu internauta, mas sintetiza as palavras e as ações que, no romance, se referem aos “olhos de ressaca”. Não podemos deixar de perceber que ele está muito próximo de “navegar”, que antecede e metaforiza a ação dos que são capturados pelo poderoso olhar (tela do computador?), pergunta-nos Brait (2010). A canção reitera a articulação entre a criatura machadiana, definida como “um capítulo à parte”, e o termo vírus, aquilo que contagia e pertence tanto à linguagem da internet como à da patologia. Sendo um vírus ardente, sintoniza invasão, paixão, dominância. Como no capítulo 115 “Dúvidas sobre dúvidas”, diz o narrador de Dom Casmurro: “Pois aqui mesmo valeu a arte fina de Capitu” (ASSIS, 1991, p. 111). 8.2 No ritmo da atualidade Na narrativa, hoje, foi criado o microconto, constituído não por palavras ou ideias ou enredo, mas por um termo bem contemporâneo, caracteres, remetendo ao mundo da internet, do computador. Em torno de 170 caracteres, incluindo nessa conta, os espaços entre as palavras, a pessoa cria uma história. As pessoas não têm tempo ou disposição para leituras mais prolongadas e densas. Ao abarcar com apenas um olhar, o leitor já consegue fazer a leitura do microconto. Leitura veloz, vida veloz, bem típicas da sociedade do início do século XXI. Correspondente à extensão extremamente curta do microconto, a poesia possui dísticos, quadras, haicai, entre outras formas poéticas que, na verdade, existem há séculos. Entre os poetas brasileiros que dedicaram, ao menos, uma obra para o haicai, encontra-se Olga Savary (1933-), cuja preocupação em criar haicai não era a exigência com o ritmo veloz da sociedade, mas para atender ao seu amor à sobriedade e à concisão dessa forma poética. Segundo Marcondes e Toledo (2009), é a poesia da essência, a simplicidade, o equilíbrio, a harmonia e a sobriedade. 189 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia Observação Olga Savary tem rica e variada produção poética. Ela é conhecida pelos poemas eróticos e de diversas temáticas, em que emprega a língua tupi, e por um título que causou admiração entre os poetas, Berço esplêndido. Pode-se considerá-la a síntese da discussão sobre a literatura nacional: não somente valoriza nossa nação, incutida de literatura nacional, como é descendente da mistura de povos (português e indígena). Na disposição oriental, o haicai é colocado verticalmente em uma única linha, tornando arbitrária a apresentação ocidental em terceto. Outro ponto é a contagem de sílaba poética, tão arbitrária quanto a disposição. No Ocidente, o haicai é engessado ao esquema 5/7/5. Essa arbitrariedade legitima, então, na forma ocidental, qualquer estrutura que o poeta considere mais adequada. Na obra de Savary, o haicai tem conotação específica, sem limitar-se a esquemas fixados pelo Ocidente, inovando ao acrescentar a alguns haicais um quarto verso: Percepção A vida tem olhos terríveis. Nada termina tudo se renova E o sol é um grande pássaro de fogo Alerta entre as árvores (SAVARY, 1986, p. 18). Apesar de fugir de esquema 5/7/5, em alguns haicais, a poeta concede-se à rigidez ocidental: Amor Deve é ser comido Qual fruto – verde ou maduro – Mesmo sem vontade? (SAVARY, 1986, p. 18). Nessa poesia, o título condensa a (in)evitabilidade do amor. Em outro haicai, Vinheta, encaixa-se à temática tradicional (oriental) ao falar da fragilidade dos sonhos, comparada à evanescência das asas da libélula: Vinheta Minha pequena libélula, Leva no sonho de tuas asas frágeis. A fragilidade das asas dos meus sonhos (SAVARY, 1986, p. 33). 190 Unidade IV LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 A escrita está bem comportada, mas a poesia causa estranheza no ritmo, que se esperaria fluido e fugidio, e não é. No primeiro verso, heptassílabo, a acentuação é ainda tênue e a fluidez dos sons acompanha o intangível do conteúdo, a pequena libélula. Porém, os dois últimos versos, apesar do conteúdo etéreo – sonhos, asas, fragilidade –, têm ritmo marcado para a recitação, porque o primeiro tem decassílabo sáfico e o terceiro, um alexandrino. Há clara, proposital e inesperada incursão parnasiana. De forma geral, os haicais de Olga Savary atingem o leitor pelo tom filosófico e, em razão disso, têm significação especial à maneira de viver. O zen está presente tanto na forma equilibrada do haicai quanto na ideia trabalhada nele. Entre as obras poéticas de Savary, o leitor depara-se com o poema Morte de Moema, que não é haicai, mas continua na esfera de poemas com versos curtos. Em nota de rodapé da obra, a poeta diz: Morte de Moema narra a história da paixão da índia pelo branco português Diogo Álvares, alcunhado “Caramuru”. Em 1510, naufragando nas costas da Bahia, Diogo caiu prisioneiro dos tupinambás. Alvejando pássaros com um mosquete, espécie de espingarda pesada, foi denominado pelos índios, que desconheciam armas de fogo de “Caramuru”, cujo significado é “homem de fogo” ou “filho do trovão”. Vivendo anos entre os gentios, após preterir a heroína deste poema por Paraguaçu (filha do cacique, portanto mais poderosa), leva-a para Paris, onde lá ela toma o nome de Catarina. Desesperada, Moema nada atrás do navio que leva o amado até perder as forças nas águas do mar. As ondas trazem-na morta às areias da praia. A elegia é um pretexto para declaração de amor da poeta ao Brasil, que procurou dar uma pincelada de humor à elegia, em proposital animismo para dramatizar e, ao mesmo tempo, amenizar ainda mais a morte (SAVARY, 1998, p. 24). O poema Morte de Moema é semelhante à história épica Caramuru, de Frei José de Santa Rita Durão; mas a autora, quando escreveu seu texto, desconhecia o poema de Durão, segundo declarou em entrevista posterior. Morte de Moema A tempestade serenara mas um cruel manitó sobre o cortejo do vento cravara a sombra da Morte. Nem bem o raio da aurora rasgara o luto do céu um anhangá ou anhanguera de luto os ares empanam dando ao litoral o corpo da índia que o amor 191 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia a vida entrega a Tupã. Ainda paira a lembrança dos olhos molhados, dos seios emersos e os lábios da jovem – pelo branco apaixonada, que enfastiado se vai – soluçante a implorar ao indiferente amado: “Preciso de ti. Chamei da manhã à noite, o Sol ouviu-me chamar-te, a Lua ouviu o teu nome mas nem assim entendeste, não atendeste ao chamado, não pudeste me escutar.” O barco a afastar-se, pior que curare, levou o ingrato que breve a esqueceu. Atrás dele nada a índia até já não ter mais fôlego e desalentar. E ouvia-se ainda num vago murmúrio: “Eu não te esqueci.” Sua fala em voz baixa o mar bravo devora. Digo-lhe eu, a Autora: Este amor te mata. Tudo bem, o amor é mais forte que o fogo mais forte que a água, o homem não destrói nem pode apagar, mas este amor te mata. Repetiam ondas às conchas de seus ouvidos: “Te mata, te mata.” 192 Unidade IV LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Nadar assim que nem louca desafia-lhe o limite e eis os cabelos grossos. igual crina de cavalo,nem branca nem negra, não sorri mais encantada pra nossos guizos, miçangas, facas, espelhinhos, a pele toda pintada de tinta preta e vermelha (urucum e jenipapo). Lentamente e rápido o Brasil pra trás, sua pátria agora é o mar. Carrasca consigo, mouca, não ouve a ressaca das grandes massas de água: está vestida de sonho. Uma onda mais brava pode lhe ser colar ou forca. De primazia terrestre, desmancha-se na água do Mar-Oceano, Os olhos mortiços da bela aimoré (ou tupinambá) abandonam o sonho no sonho das águas, fechando-se ao enleio de um sono fatal. Aquela que era moça no mar vira peixe mas peixe sem mexer, peixe que não nada. Nada. Do mar alto, altas ondas a tomaram das águas, espumas a arrebatam do remoinho das vagas, 193 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia dedos ávidos erguiam este âmbar encharcado dos cabelos enluarados, dedos se erguiam de espumas, espumas cheias de dedos tal gravura oriental. Rolando nas ondas da viva procela por fim chega à praia o corpo trigueiro da índia já morta. Maré negra veio dar à praia, fera com ela. E a praia a recebeu com toda a fina pompa das garras brancas. Agarra-se à índia a salsugem da praia, cravando-a na areia. E ali ela ficou parada como a sonhar. A vaga que a trouxe, sem querer deixá-la, a nudez lhe afaga gemendo espumas. As aves da mata, crescidas com ela, emudecem o canto, chorando-lhe a sorte. O orvalho da madrugada alerta vira lágrima de esperança na face da jovem afogada. Do flanco delgado descera o enduape, da fronte resvala o acangatara e desfazem-se as penas num rito de dor. 194 Unidade IV LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Os cabelos de âmbar colados à rocha o rosto da índia inda tornam mais pálido. Os braços inertes, fatal abandono, suplicam ainda: “Preciso de ti.” E eu a Autora, crítica, lhe digo: Este amor te mata. No ar consternado da praia deserta agora é só sombra a natureza antes em festa e adeja a gaivota na orgia da morte. – Tupã, tu que a amaste, revive-lhe o riso que já te prendeu E vós, ó irmãos, cessai o festim! Refreai os golpes da ivirapema e o canitar rompei num rasgo de dor. Tomai da cauaba e ao chão atirai o ardente cauím. É finda a alegria e aos pés de Tupã jaz a taça partida: sem mais vista, olfato, audição ou tato, esplendor da paixão, Moema está morta Fonte: Savary (1986, p. 25-26). Com a leitura realizada, caro aluno, podemos dizer que o poema nos surpreende tal a força e a paisagem apresentadas no texto. O texto passa de Abraxas a Tupã, do selvagem ao místico, da margem ao centro, da tribo ao texto. 195 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia Morte de Moema é a cena final de uma história de amor entre um branco e uma índia e, logo no início do poema, há o anúncio da morte trazido pelos ventos: dando ao litoral o corpo da índia que o amor a vida entrega a Tupã. As manchas do luto “rasgam o céu” e “tingem as águas”. De acordo com Marcondes e Toledo (2009), água é um signo essencial dos poemas de Olga Savary, bem como os contrastes. No poema, a água é o local onde morre Moema (afogada) e a oposição é encontrada entre Sol x Lua, estes como forma de expressão da contagem do tempo em sua forma mais primitiva. O mar, que tudo consome, engole também o último sussurro de amor: E ouvia-se ainda num vago murmúrio: “Eu não te esqueci.” Sua fala em voz baixa o mar bravo devora. A voz da autora intervém, em meio à melancólica cena, como se sua voz fossem as ondas aconselhando a índia: Este amor te mata. Tudo bem, o amor é mais forte que o fogo mais forte que a água, o homem não destrói nem pode apagar, mas este amor te mata. Surge, nesse momento, o elemento fogo. O amor, ao ultrapassar a força das chamas, é queimado e reduzido a cinzas. “Vestida de sonho”, Moema sai da vida com um “sono fatal”. A bela aimoré troca de pátria; sua alma deixa as terras do Brasil e passa a habitar o mar. Quando seu corpo chega à praia, a natureza silencia: As aves da mata, crescidas com ela, emudecem o canto, chorando-lhe a sorte. Até as penas de enduape – rodela de penas que os tupinambás usavam nas nádegas – desfazem- se num rito de dor. A morte de Moema faz a natureza chorar. A gaivota, antes em festa, percorre as sombras, na orgia da morte. É chegada a hora de os irmãos índios refrearem os “golpes da ivirapema” – 196 Unidade IV LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 arma ofensiva, espécie de maça –, tomarem da “cauaba” – vaso em que os indígenas preparam o cauim – e ao chão atirarem o ardente “cauim” – bebida preparada com a mandioca cozida e fermentada, com caju ou outras frutas. É o fim da alegria, Moema perdera os cinco sentidos. Foi levada a Tupã pelos braços do mar. 8.3 Diálogo com a história: a poesia de Milton Torres Uma das obras respeitadas da geração 2000 é No fim das terras, de Milton Torres, publicada em 2004. A obra, que alguns críticos chamam de luso-brasileira, é constituída por duas partes: Portugueses e Novo Mundo, sendo cada parte subdividida em outras. Por exemplo: Portugueses: Hispania, da memória, do império, do pensar e do fazer. Em Hispania, há expansão para os poemas: • O tempo e a Lusitânia • Mediterráneo, aguas de paradoja • Ao fim das terras depus teus ossos • De los altos de Finisterra • O sino de Compostela • ¡adelante adelante! • Sevilla • Setóbriga, o teu esqueleto aquático Apenas pela apresentação dos títulos dos poemas, o leitor já verifica que: a) o livro de Torres resgata a história da América, mas não se inicia por ela. O autor volta à Europa, vem à América, uma América tanto hispânica quanto portuguesa; b) o poeta resgata a própria história da língua. Os primeiros poemas foram escritos em língua espanhola e portuguesa em sua fase arcaica, da época medieval e da época dos descobrimentos das terras do Novo Mundo. Na fusão literatura e língua, a história de ambas é retomada em poemas como Achei achém (achegas) ou os benefícios marginais. Tal poema é precedido por um intitulado Encoberto descoberto, em referência à descoberta da América. Achei achém (achegas) ou os benefícios marginais Senhor, dinheyro amoedado han tanto, polla Prouidencia a Uos guardado, pera os heresiarcas destruyr, e seus secazes: refazer, & os reynos reformar patrimoniaes, 197 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia sostentar os ganhados; desbaratar, exterminar, e desterrar o Turco, a Sancta Hierusalem tomar, & Affrica, & Asia, & America pera exalçar-se o Sancto nome de Christo pollo auenturoso braço Uosso (TORRES, 2004, p. 63). Embora a língua portuguesa tenha sido oficializada no século XI, até o momento da descoberta da América, a ortografia da língua não era sistematizada. A primeira gramática só surgiu em 1536, e o primeiro livro de ortografia, em 1576. Mesmo depois da sistematização ortográfica, os textos (cartas,crônicas etc.) foram redigidos sem seguir uma rigidez ortográfica, apresentando, muitas vezes, duas grafias diferentes da mesma palavra no mesmo texto. No poema, o poeta (brasileiro, contemporâneo) criou seu texto com língua portuguesa e a ortografia vigente de então. O fonema /i/ era escrito tanto pela letra i quanto pela letra y (dinheyro, destruyr); o fonema /v/ era registrado como /u/ (Prouidencia, Uos, Uosso). São exemplos de registro arcaico empregados pelo poeta, que torna esse arcaísmo em estética. O poema, por sua vez, é híbrido em sua estrutura, pois, ao remeter-se ao rei de Portugal (“Senhor”), converte-se em carta, talvez aquela, primeira, de Pero Vaz de Caminha. O conteúdo do texto corrobora o contexto histórico. Em tom irônico e de gradação, o eu que escreve a carta esclarece que há riqueza para destruir os hereges e, assim, reformar os reinos. A ação para a destruição é: desbaratar, exterminar e desterrar. E, em nome do “Sancto nome de Christo”, tomar Jerusalém, África, Ásia e América. Como todo poema épico, há uma viagem No fim das terras e no centro (do livro, da viagem) aporta- se na apropriação contemporânea do passado distante. No centro do livro, aporta-se às brasílicas terras da América, onde sobrevém a vida com os idiomas francês e inglês. Na segunda parte, Novo Mundo, na subdivisão poemas brasileiros, não por acaso, o primeiro poema da série funda-se na reiteração cumulativa de fórmulas do escolástico dos jesuítas, empenhados na ocupação do solo e das almas: Clivagem Solutio argumentorum: - Ad primum argumentum - Ad secundum argumentum - Ad tertium argumentum - Ad quartum argumentum - Ad quintum argumentum 198 Unidade IV LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 - Ad sextum argumentum - Ad septimum argumentum Obiectio verbosistarum Responsio - Ad octavum argumentum - Ad nonum argumentum - Ad decimum argumentum - Ad undecimum argumentum - Ad duodecimum argumentum - Ad decimum tercium argumentum - Ad decimum quartum argumentum - Ad decimum quintum argumentum - Ad decimum sextum argumentum - Ad decimum septimum argumentum - Ad vultima <tria argument> verbositatis strepitum continentia Epilogus Conclusion aqui del-Rei! aqui del-Rei! só compro o negro da canela fina! (TORRES, 2004, p. 135). Na língua latina, oficial dos padres católicos, o poema é construído, cuja voz é dos jesuítas, padres que aqui vieram no início da colonização portuguesa, e eles visavam à catequização indígena. O poema encerra-se com duas surpresas para o leitor. Primeiro, a língua latina não é mantida, sendo substituída pela língua portuguesa, não da época, mas a atual, com tom informal. Segundo, o povo a ser conquistado é o negro. Há deslocamento da figura indígena para o povo africano, que se tornou escravo no Novo Mundo. O final do texto leva a entender o motivo da existência de argumentos: a escravidão (nesse ponto, tanto dos ameríndios quanto dos africanos). Nessa restauração da vida econômica da Colônia, em que a voz poética atinge tom de humor perverso e amargo, o sopro épico do poema é revigorado pelas transformações literárias ocorridas depois do Renascimento. Sete povos partiram os padres partiram todos a ferros alastra o fogo na jeira na resteva assoleada na língua do faxinal – que tudo é sopapo barro socado no vão da madeira seca arde Miguel arde do fogo aceso arde da ardência do arcanjo. da linda os padrões apaga tisna de fumo as quinas distrata a tratada raia (TORRES, 2004, p. 139). 199 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia O título remete à luta entre o governo português e espanhol nas Sete Missões, contra os jesuítas e os indígenas, que se tornou tema da epopeia O Uraguai, de Basílio da Gama, como já apresentado e discutido neste livro-texto. A estratégia mais impressionante dos indígenas foi provocar o incêndio dos acampamentos dos exércitos europeus como forma de impedir o ataque destes. O poema de Basílio da Gama mostra-se, em vários momentos, no conteúdo e na estrutura, um texto que rompeu com o modelo tradicional da epopeia. Milton Torres, assim como Basílio, mostra-se sensível à mutação das formas e à alteração dos gêneros. Assim, o poema Sete povos mantém o espírito dos grandes poemas, mas sem preservar a inteira configuração tradicional destes. Poemas depois, ainda na série poemas brasileiros e já em um Brasil moderno, encontra-se o: a bota geometriza o chão a cada passo tatuando-lhe a estrela do projeto imprime o ethos a natureza de quem a calça, trata da práxis, não fala range apenas, marcando inequivocamente a sua presença, legitima-se no próprio estar o pé descalço é flexível democrático, recoberto da pele protege-se das asperezas da terra e guarda um resíduo moral num tanto de umidade. um pé com o outro faz par, bípede o usuário. bípede, enfrenta sem descanso sutis questões de equilíbrio (TORRES, 2004, p. 192). O poema poderia estar falando do encontro entre os nativos ameríndios e os portugueses (europeus, de forma geral), em que a bota seria símbolo de dominação portuguesa e o pé descalço, símbolo dos povos nativos, isto é, pela obviedade, os portugueses usavam roupas e calçados, ao contrário dos indígenas, que se apresentaram nus aos olhos portugueses. No entanto, o primeiro verso “a bota geometriza o chão a cada passo” ultrapassa os limites de sua breve geografia. Sobreleva o processo metonímico, em que bota e pé descalço contribuem com nuanças de outros contrastes. Eles simbolizam a condição social e existencial do homem no presente. Tanto pode ser a significação de riqueza e pobreza, de opressão e submissão, quanto a de vilania e heroísmo, de aprisionamento à própria condição (cultura do domínio) e de invenção da liberdade (natureza sem domínio). De cena em cena, a parte poemas brasileiros, seguida das duas últimas partes do livro, quadras do sul e poemas do Rio, chega à Independência do Brasil, à industrialização e aos tempos republicanos. Nessa lenta operação de escolha, escavação e de arqueologia verbal, 200 Unidade IV LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 ocorrem verdadeiros momentos de significação artística e cultural, bem como da própria língua. No mundo pós-moderno, o poeta será, antes de tudo, um artista do idioma, devendo saber incorporar vocábulos nacionais, vocábulos internacionais, vocábulos correntes, vocábulos arcaicos, vocábulos sublimes, vocábulos baixos, gíria, ciência, sexo, arte e esculhambação. O tipo de poesia apresentada na obra de Milton Torres não assume voz denunciatória; ao contrário, os poemas tornam-se cada vez mais metafóricos, quanto mais intensificam a crítica social. Exemplo de Aplicação Configurado no signo poético, emergindo do imaginário coletivo, Renato Russo compôs e fez uma geração inteira de jovens gritar com ele: Que país é este? Essa antológica pergunta – uma das mais célebres – retoma o poema de Affonso Romano de Sant’Anna de mesmo nome. Ambos os textos fazem parte da geração de 1980, década de anos nebulosos. Leia os textos a seguir, verifique a proximidade poesia e música (e como ela ocorre nesses textos) e discuta o que esses textos contextualizam, o país de fim de 1970 e início de 1980. Para ajudar na discussão, indico o texto Que país é este? (memória, política e cultura), de Leticia Malard, disponível no site: <www.letras.ufmg.br/poslit/08>. Que país é este? 1 Uma coisa é um país, outra um ajuntamento. Uma coisa é um país, outra um regimento.
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