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emmanuel mounier personalismo Livraria Martins Fontes Praça da Independência , 12 Santos-Brasil T ítu lo orig ina l L E P E R S O N N A U S M E (Presses Universita ires de France, 1950) Tradução de João Bénard da Costa Capa ãe Mendes de Oliveira 3.y ed ição Direitos para a língua portuguesa reservados por Moraes Editores Trav. Estêvão Pinto,6-A — Lisboa PREFACIO D A t.* EDIÇÃO Quando se ofereceu finálmente a possibilidade de revelar ao público português a admirável obra com que neste tempo nosso se cerrou a mensagem de Mounier, trabalhavamos já num volume de características diversas t, cujo fim primeiro outro não era do que servir de introdução a essa mesma mensagem. Nele procuramos encontrar o funda dor do Esprit na irredutível complexidade das diversas facetas de que se revestiu sua vocação, e para ele remetemos, pois, o leitor desejoso de mais largos contactos e dum mais vivido conhe cimento. Mas porque esta será a vez primeira que Mou nier nos fala em língua portuguesa, cumprem desde já algumas palavras e algumas considera ções que, embora com a brevidade e as lacunas a que um prefácio forçosamente exíguo normal- mente obriga, ajude a situar esta obra adentro do pensamento de Mounier, e este adentro do chamado personalismo. Cumprem também e ainda, 1 Emmanuel Mounier, textos escolhidos, traduzidos e apresentados por João Bénard da Costa, Colecção Circulo do Humanismo Cristão, Lavraria M orais Editora, 1960. 8 PREFÁCIO DA IS EDIÇÃO porque as diferentes facetas a que atrás nos re ferimos — o cristão, o filósofo, o educador, o homem de acção, o polemista— se encontram e interpenetram da forma mais radical e mais aca bada na súmula de todo o seu pensamento que é o pequeno volume da colecção Que sais-je? agora traduzido. Publicado no último trimestre de 191+9, a cerca de três meses da morte do seu autor, escapa Le Personnalisme ao carácter geral e vulgarizaãor das obras da colecção a que pertence. Nas páginas que se seguem, Mounier não nos vai dar o escla- recimento ou o resumo duma doutrina que dele não era passível, mas, muito antes, vai tentar, a partir de seus temas e dados fundamentais, apre sentar-nos em plena elaboração e em plena vida uma filosofia que escapa a todas as sistematiza- ções, exactamente porque assente na pessoa, que é livre e sempre imprevisível. S assim que o que aqui encontramos é sobretudo o acento doutriná rio, sem corpo de doutrina, a sistematização sem sistema, o encontro com temas que merecem e justificam existências, essa dimensão de testemu nho e de mensagem para que o seu pensamento mais normalmente ê compelido e que, tanto sua vida como sua obra, sempre quiseram assumir. Para lã, pois, de acordos ou desacordos a um nível mais — ou menos— especificamente filosófico, interessa o próprio e muito outro nível a que a P R E F Á C IO D A 1 « E D IÇ Ã O 9 obra se coloca, interessa aquilo que nela constitui a unívoca dimensão de Mounier — a entrega duma vida e dum exemplo, a entrega duma pessoa nos caminhos sem retorno duma opção e dum destino. O valor da filosofia de Emmanuel Mounier coloca-se para nós de forma não absolutizada nem peremptória, e julgamos situá-lo se dissermos que o seu maior motivo de interesse reside na tem- poraliâaãe da sua filosofia, ou seja, no vivo diá logo por ele estabelecido com o mundo em que viveu, mundo que assumiu as bem particulares coordenadas duma época e dum lugar, entre os quais e nos quais o seu pensamento se precisaria. Estamos perante um filósofo que não hesitou em sacrificar a filosofia ( tomado este termo agora nq sentido docente, no sentido do ensino da filosofia) a uma obra que na acção foi construída e na acção se perfez; estamos perante um homem que não hesitou em abandonar os caminhos que uma acção política normalmente implica, por uma lúcida e firme meditação que, fundamentando essa acção, a impediu de se contradizer ou decompor em opções cujo carácter concreto fosse contra o ver dadeiro compromisso em que se empenhava e se baseava. Neste sentido, o personalismo de Mou nier é por excelência o personalismo existencial de que fala Berdiaeff: a pessoa realizando-se nas coordenadas do facto, no pensamento que se com promete, na existência que radica e personaliza a própria pessoa. 10 P R E F Á V K i n.\ r ■ /- ' fUCAO Assim,, não encontramos em Mntum i. m nt o filósofo, nem o homem da praxbt, <>u en contramo-los, mas a nível difcrrnh jinninios, o que impede a dissociação e lha confere mu a outra fisionomia em que cremos ver rcv<l<nto algo da essencial missão do filósofo em noxxoa dias: o homem do engagement-dégagernrnl, <> lumiem que, parafraseando Péguy, não guarda as mãos puras simplesmente porque as não h mf <> pen sador que vai ao fundo da acção para vincular esta à meditação. Meditação que nos curgc ime- diatizaãa na e pela incarnação, coum to < slabe- lecimento de algo que era ainda teórico, r i vencia despida de toda a alienação, assunçuo jinne e plena dos outros homens, não como lema. duma filosofia, mas como base dum caminho e resposta ao mais pessoal dos apelos. Assim o seu personalismo, se em si mesmo e em comparação com o de outros filósofos não contém muito de novo, é ele mesmo algo de novo, e nesta fórmula não paradoxal vai muito do que julgamos mais válido em Mounier. Certamente podemos lamentar que ele não tenha aprofundado z mais este ou aquele pressuposto filosófico que sua obra implicava; certamente podemos lamentar que ele não tenha escrito sobre a pessoa, a comu nidade, a incarnação, o compromisso, o «ou tro », a grande obra que tudo parecia preparar. Mas, mais do que temos de obras, esses foram temas de vida, e mais do que um aprofundamento dou P R E F Á C IO D A 1* E D IÇ Ã O IX tros filósofos na sua filosofia, Mounier deixou-nos o material onde podemos recolher dados para essa imensa tarefa de conferir ao personalismo as bases doutrinárias, sem dúvida necessitantes, mas que o seu tempo (porque mais directamente o obrigou a outros compromissos) lhe não per mitiu fazer. «Matriz filosófica» é a expressão que Ricoeur2 usa para exprimir a colaboração que suas primeiras obras prestaram ãs da maturi dade., Cremos que} num sentido mais vasto> é pos sível englobar sob esse ponto de vista toda a sua obra e dela tomar ponto de partida inesgotável e fecundo para as mais válidas meditações. Mas cremos também, sinceramente que quem quiser compreender Mounier somente desse ponto de vista o não compreenderá. Porque a sua filosofia nunca foi um ponto de chegadamas um ponto de partida, e é no encontro com o homem ao longo das suas páginas9 na fidelidade à sua iniluãívél vocação de homem da praxis que o podemos com preender como tal e apreender a sua dimensão. Mounier, escreve Lacroix em fórmula que gos tamos de recordar, n’est pas allé du personnalisme à la personne, mais de la personne au personna- lisme, et le personnalisme n’a jamais été pour lui un système philosophique, mais le moyen de rap- * P au l R icoeur — zem bro de 1950. lounier philosophe, em Esprit> D e - 12 P R E F Á C IO D A l . a E D IÇ Ã O peler chacun à lui-même et à tous 3. Será pre ciso que o nosso caminho seja idêntico, para que possamos compreender o seu personalismo a par tir do homem Mounier e de nós próprios. Diziam-nos hã pouco que a publicação deste livro em língua portuguesa seria adequado barô metro dos muitos estados de muitas coisas: o maior ou menor acolhimento a esta obra feito serviría para aferir o menor ou maior grau de aãormecimento a que temos sido lançados e em que nos temos deixado lançar. Recusando-nos a sempre fáceis e cômodos optimismos ou pessi- mismos, confessamos no entanto uma muito es pecial expectativa em relação ao modo como esta obra será recebida. Porque, mais do que nunca, é para todos nós chegado o tempo dos exames de consciência, de má consciência, e porque esta é a obra que, inquietando e dividindo, a eles conduz, algo dela esperamos sobre a nossa já costumeira apatia e desinteresse. Sem querermos parecer demasiado enfáticos ou demasiado proféticos, julgamos mais do que nunca chegada a hora das opções. Por elas espera e a elas nos invoca cada uma das páginas deste livro. E terminamos fa- p ivendo nossas palavras de Mounier há mais de vinte e cinco anos escritas, e que, mais do que * Jeaxi Lacro ix — Mounier éãucateur, D ezem bro de 1950. P R E F A C IO D A l . a E D IÇ Ã O 13 quaisquer outras, respondem a tantas das nossas hesitações> a tantos dos nossos medos: «Quando já não tivermos possibilidades de sucesso, resta- -nos testemunhar. Não se perde a vida daqueles que souberam dar largo testemunho, Conhecemos a fragilidade de nossas forças e do sucesso, mas conhecemos também a grandeza do nosso teste munho. Eis porque conduzimos sem hesitação a nossa tarefa na certeza da nossa juventude». JO A O B É N A R D D A C O S T A INTRODUÇÃO FAMILIAR AO UNIVERSO PESSOAL O termo «personalismo» é relativaments re- í • cente. Renouvier empregou-o em 1903, para clas sificar a sua filosofia, caindo depois em de suso. Walt Whitman usou-o nas suas Democratic Vistas (1867), e depois dele encontramo-lo em vários autores americanos. Reaparece em França à roda de 1930 para designar, num contexto muito outro, os primeiros estudos a que a revista''Esprit e alguns grupos afins ( Ordre Nouveau, etc.) pro cederam, a quando da crise política e espiritual que então alastrava na Europa1. Na sua 5.a edi ção, em 1947, o Vocabulaire Philosophique de Lalande reconhecia-o oficialmente. Saindo total mente fora da sua significação habitual, o La- 1 1 Esprit foi fundado em 1932. Vide a sua colecção e de El. Mounier: Manifeste au Service du personnalisme (Aubier, 1936); Qu’e$t-ce que le personnalisme f (Ed. du Seuil,v 1947). Num aspecto mais restrito: Personnalisme Catholique (Esprit} Fevereiro-Março-Abril, 1940), mais tarde retomado em Liherté sous conditions (Ed. du Seull, 1947). 16 O P E R S O N A L IS M O rousse toma-o como sinônimo de egocentrismo. Assim, como se vê, este termo prossegue por caminhos indecisos e divergentes, caminhos duma inspiração que se procura e tenta seus rumos. E, no entanto, aquilo a que se chama hoje personalismo está longe de constituir novidade. O universo da pessoa é o universo do homem. Seria de espantar que se tivesse esperado pelo século XX para o explorar, mesmo com outros nomes. O mais actual personalismo insere-se, como veremos, numa longa tradição. O personalismo não ê um sistema. — O perso nalismo é uma filosofia, não é apenas uma ati tude. Ê uma filosofia, não é um sistema. Não foge à sistematização. Porquanto o pen samento necessita de ordem: conceitos, lógica, i esquemas unificantes, não servem apenas para fixar e comunicar um pensamento que sem eles se diluiria em intuições opacas e solitárias; ser vem também para perscrutar essas intuições em toda a sua profundidade; são simultaneamente instrumentos de descoberta e de exposição2. Porque define estruturas, o personalismo é uma filosofia, e não apenas uma atitude. Mas sendo a existência de pessoas livres e 4 criadoras a sua afirmação central, introduz no 2 J, Lacro ix : Système et existence ( Vie Intellectuelle, Junho de 1946). INTRODUÇÃO AO UNIVERSO PESSOAL 17 centro dessas estruturas um princípio de impre- visibilidade que afasta qualquer desejo de siste- matização definitiva. Nada lhe repugna tão pro fundamente como o gosto, hoje em dia tão enrai zado, por aparelhagens de pensamento e acção funcionando como automáticos distribuidores de soluções e instruções, obstáculo frente às investi gações, seguro contra a inquietação, a dificuldade, o risco. Para além de tudo isto, uma reflexão nova não deve ter demasiada pressa na reunião de toda a gama da sua problemática. Por isso, e embora por comodidade falemos do personalismo, prefeririamos falar dos personalis- mos, e respeitar seus diversos caminhos. Por l exemplo, um personalismo cristão e um persona lismo agnóstico diferem mesmo nas suas íntimas estruturas. Nada ganhariam em procurar meios termos. No entanto, inserem-se em determinados domínios do pensamento, em determinadas afir mações fundamentais e em determinadas condu tas de ordem prática, quer na ordem individual, quer na ordem colectiva: tanto basta para que um nome colectivo tenha razão de ser. Idéia, sumária acerca do universo pessoal. — Chegados aqui, esperavamos agora que o perso nalismo começasse por definir a pessoa. Mas só se definem os objectos exteriores ao homem, que se podem encontrar ao alcance da nossa vista. 18 O P E R S O N A L IS M O Mas a pessoa não é um objecto. Antes, é exac- tamente aquilo que em cada homem não é passí vel de ser tratado como objecto. Eis o meu vizi nho. Tem do seu corpo um sentimento único, de que não posso participar; mas posso observar de fora esse corpo, examinar as suas disposições, manifestações hereditárias, formas, doenças, numa palavra, tratá-lo como se tratam matérias b do saber fisiológico, médico, etc. Se é funcionário, terá um regulamento de funcionário, uma psico logia de funcionário, que podem ser estudados no seu caso, embora se não identifiquem com ele, com ele todo, na sua realidade compreensiva. Do mesmo modo, será ainda um francês, um burguês, um maníaco, um socialista, um católico, etc. Mas já não será um Bernard Chartier; é Bernard Chartier. As mil maneiras por que eu posso determiná-lo como um exemplar duma classe ajudam-me a compreendê-lo e sobretudo a utilizá-lo, a saber como me hei-de comportar quando estou com ele. Não são, no entanto, mais do que facetas fornecidas por cada um dos dife rentes aspectos da sua existência. Mil fotografias sobrepostas não nos dão um homem que anda, que pensa e que quer. Muitos pensam erradamente que o personalismo pretende somente que, em vez de se tratarem homens em série, se tomem sobre tudo em linha de conta as suas mais subtis dife renças. O «admirável mundo um mundo em aue exércitos i » Huxley IN T R O D U Ç Ã O A O U N IV E R S O P E S S O A L 19 cólogos tentam condicionar cada indivíduo de acordo com minuciosas instruções. Assim proce dendo, de fora e por meio da força, transfor mando-os em máquinas bem elaboradas e bem mundo entanto, a antítese dum universo nente porque tudo está regulado. nada corre aí o risco duma liberdade responsável. Faz da humanidade uma imensa e perfeita casa de bonecas. Portanto, não existem pedras, árvores, ani- 4 mais — e pessoas, sendo estas árvores que andam, ou animais mais astutos. A pessoa não é o mais » * aravilhoso objecto do mundo, objecto que conhe céssemos de fora, como todos os outros, fi a * % única realidade que conhecemos e que, simulta neamente, construímos de dentro. Sempre pre sente, nunca se nos oferece. Não nos precipitemos, contudo, arrumando-a no reino do indizível. Uma experiência rica, que no mundo se insere, exprime-se por incessante criação de situações, de regras, de instituições. Mas sendo os recursos da pessoa indefinidos, nada l do que a exprime a esgota, nada do que a condi ciona a escraviza. Não sendo um objecto visível, também não é resíduo interno, uma qualquer substância escondida por detrás dos nossos com portamentos, princípio abstracto de nossos con cretos gestos; se o fosse, seria ainda, por qual quer forma, um objecto ou um fantasma de 20 O P E R S O N A L IS M O objecío. Ê uma actividade vivida de auto-criação, de comunicação e de adesão, que em ac to, como movimento de personalização, alcançamos e co nhecemos. A uma tal experiência ninguém pode ser condicionado, nem constrangido. Aqueles que mais integralmente a realizam vão atraindo outros à sua roda, despertam os que dormem, e assim, de apelo em apelo, a humanidade vai-se libertando do pesado sono em que vegetava e que ainda a amortece. Quem se recusa a escutar esse apelo e a comprometer-se na experiência duma • • vida pessoal, perde o seu sentido como se perde a sensibilidade dum órgão que já não funciona. Julgará então que se trata duma complicação do espírito ou duma mania de seita. Há portanto duas maneiras de exprimir a ideia central do personalismo. Podemos partir do estudo do universo objec- tivo, demonstrar que o modo pessoal de existir é a mais ialta forma de existência, ou que toda a evolução da natureza anterior ao homem con verge no momento criador em que surge este acabamento do universo. Diremos que a realidade central do universo consiste num movimento de personalização, não sendo as realidades impes soais, ou mais ou menos largamente despersona- lizadas (a matéria, as espécies vivas, as idéias) mais do que perdas de velocidade ou demoras da natureza no caminho da personalização. O insecto INTRODUÇÃO AO UNIVERSO PESSOAL que se confunde com um ramo, para se fazer esquecer na imobilidade vegetal, prefigura o homem que se enterra no conformismo para não assumir as responsabilidades próprias, o que se entrega às idéias gerais ou às efusões sentimen tais para não ter que afrontar factos e homens. Na medida em que uma tal descrição permanece objectiva, limita-se a apresentar muito imperfei tamente uma realidade que não é sobretudo objec tiva. Por outro lado, pode viver-se püblicamente uma experiência de vida pessoal, esperando con quistar grande número dos que vivem como árvores, como animais ou como máquinas, son evocava o «apelo do herói ou do santo». Que estas palavras não iludam: o apelo pessoal nasce da mais humilde das vidas. Poderemos ver agora o paradoxo central da existência pessoal. Esta é o modo especificamente humano de existir. Deve ser, no entanto, inces santemente conquistada; só muito lentamente ê que a consciência se vai libertando do mineral, da planta ou do animal que em nós pesam. A his tória da pessoa será assim paralela à história do personalismo. Não se desenvolverá somente no plano da consciência, mas, em toda a sua gran deza, no plano do esforço humano para huma nizar a humanidade. 22 O PERSONALISM O Breve história ãa noção de pessoa e da condi ção pessoal 3 Se só nos cingirmos à Europa, verificaremos que na Antiguidade, e até aos alvo* * res do cristianismo, o sentido da pessoa se man tém embrionário. A cidade e a família absorvem 9 o homem antigo, homem submetido a um destino cego, sem nome, superior aos próprios deuses. A escravatura não choca, nem mesmo os mais elevados espíritos de então. Os filósofos apenas se preocupam com o pensamento impessoal e sua ordem imóvel que rege simultâneamente a natu reza e as idéias. A aparição do singular é, de certo modo, uma sombra na natureza e nas consciên cias, Platão tentou reduzir a alma individual ao nível duma participação na natureza e duma par ticipação na cidade: daí o seu «comunismo». De resto, tanto para ele como para Sócrates, a imor talidade individual não era mais do que bela e arrojada hipótese. Aristóteles insiste, com efeito, na ideia de que só o individual é real, mas o seu deus não pode querer com uma vontade parti cular, nem conhecer essências singulares, nem amar dum amor que escolhe. Para Plotino, na * Sobre esta h istória encontrarem os indicações em * J. P laquevent: Individu et personne, Esquisse des notions (Esprit, Janeiro de 1938). D u as Histoires du personnar lisme estão sendo preparadas, um a em F ran ça e outra nos E . U . A . INTRODUÇÃO AO UNIVERSO PESSOAL, 23 origem de qualquer individualidade existe algo como um pecado original, só havendo salvação num regresso total ao Uno e ao In temporal. No entanto, os Gregos tinham um agudo sen tido da dignidade do ser humano, que muitas ve zes introduzia na sua ordem impassível uma certa ambiguidade. Testemunho do que dizemos é por exemplo o seu gosto pela hospitalidade, o seu culto pelos mortos. Pelo menos uma vez, Sófocles (Êdipo em Colona) tenta substituir a ideia dum destino cego pela duma justiça divina de discer nimento dotada. Antígona é a afirmação e o pro- I testo dos que testemunham valores eternos, con tra o poder. As Troianas opõem à ideia da fatali dade da guerra a da responsabilidade dos homens. Aos discursos utilitários dos sofistas, opõe Só crates o aguilhão da ironia, que, perturbando o interlocutor, o põe em cheque e aos seus conheci mentos. O «conhece-te a ti próprio» é a primeira grande revolução personalista conhecida. Dadas as resistências do meio, só podia ter consequên cias limitadas., Finalmente, não poderemos esque cer o Sábio da Ética a Nicómaco, nem o emocio nante pressentimento que os estoicos tiveram da earitas generis humanL O cristianismo rompe de súbito por entre estas apalpadelas, para se tornar o arauto duma noção decisiva de pessoa. Nos nossos dias, mal nos pode mos aperceber do escândalo formidável que tal 24 O P E R S O N A L IS M O noção constituía para o pensamento e para a sen sibilidade dos gregos: 1. ° — Ao passo que a multiplicidade era para estes um mal inadmissível a qualquer espírito, para o cristianismo é um absoluto, afirmando ainda a criação ex niJúlo e o destino eterno de cada pessoa. O Ser supremo, que por amor os fez existir, não confere unidade ao mundo através da abstracção duma ideia, mas através duma infinita ^ .... ' ■ ■ ■ ■ ■ ■ capacidade para multiplicar indefinidamente esses actos de amor únicos. Não sendo, de forma al guma, uma imperfeição, essa multiplicidade, nas cida da superabundãncia, implica por si mesma a superabundãncia da infinita troca, no amor pro cessada. Durante muito tempo o escândalo desta multiplicidade das almas chocará contra vestí gios da sensibilidade antiga, e vemos um Averroes ter ainda! a necessidade de imaginar uma alma comum à espécie humana. 2. ° — O indivíduo humano deixa de ser o cru zamento de várias participações em mais gerais realidades (matéria, idéias, etc.), para ser um todo indissociável, cuja unidade, porque no abso luto assente, precede a multiplicidade.' 3. ° — Acima das pessoas já não reina a tirania abstracta dum Destino, duma constelação de idéias ou dum Pensamento Impessoal, indiferen tes a destinos individuais, mas um Deus que é ele próprio pessoal, embora dum modo eminente, um Deus que «entregou a sua pessoa» para assumir IN T R O D U Ç Ã O AO U N IV E R S O P E S S O A L 25 e transfigurar a condição humana, e que propõe a cada pessoa uma relação única em intimidade, uma participação na sua divindade; um Deus que se não afirma, como pensou o ateísmo moderno (Bakounine, Feuerbach), sobre coisas arrancadas ao homem, mas que antes_ lhe outorga uma liber dade análoga à sua, pagando-lhe em generosidade o que em generosidade for dado. 4. ° — O profundo movimento da existência humana não tende a assimilar-se à generalidade abstracta da Natureza ou das Idéias, mas a trans formar o «coração do próprio coração» ( meta- noia), para que nele se introduza e sobre o mundo irradie um Reino transfigurado. O segredo de nossos corações, onde se decide, por opção pessoal, essa transmutação do universo, é domínio inviolá vel, que ninguém pode julgar, e que não é conhe cido por ninguém, nem pelos anjos, mas somente por Deus. 5. ° — A esse movimento o homem é livremente chamado. A liberdade é constitutiva da existência : criada. Deus teria podido criar num momento uma criatura tão perfeita quanto o pudesse ser. Preferiu que fosse o homem o chamado a amadu recer livremente a humanidade e os efeitos da vida divina. O direito de pecar, ou seja, de recusar o seu destino, é essencial ao pleno uso da liber dade. Longe de ser um escândalo, antes seria a sua ausência que alienaria o homem. 26 O P E R S O N A L IS M O 6. Esse absoluto pessoal não isola o homem, nem do mundo, nem dos outros homens. A Incar- * \ nação confirma a unidade da terra e do céu, da carne e do espírito, confirma o valor redentor da obra humana logo que assumida pela graça. Pela primeira vez a unidade do gênero humano foi plenamente afirmada e duas vezes confirmada: cada pessoa é criada à imagem de Deus, cada pessoa é chamada para formar um imenso Corpo místico e carnal na Caridade de Cristo. Começa a tomar sentido uma história colectiva da huma nidade, de que os gregos não tinham sequer idéia. A própria concepção da Trindade, que alimentou dois séculos de debates, traz consigo a ideia sur preendente dum Ser Supremo no qual intima mente dialogam pessoas diferentes, dum Ser que \ é já, por Si próprio, negação da solidão. Esta visão era demasiado nova, demasiado radical, para produzir imediatamente todos os seus frutos. Fermento da história, aos olhos dos cristãos, desenrolar-se-á até ao fim da história. Durante toda a época medieval, uma longa •» obstinação lhes foi oposta pelas persistências so ciais e ideológicas da Antiguidade grega. Foram precisos vários séculos para se passar da reabili tação espiritual do escravo à sua efeetiva liberta- ção, da igualdade das almas ainda não extraímos a igualdade de possibilidades na vida social: nos fenômenos de massa o espírito não vai mais de INTRODUÇÃO A O UNIVERSO P E S S O A L 27 pressa do que o corpo; ora a condição pré-técnica da época feudal impede a humanidade medieval de se libertar do peso excessivo do trabalho e da fome, e de construir uma unidade cívica acima dos estados sociais. Embora e imediatamente o cristianismo tenha lutado enèrgicamente contra ela, a tentação dualista arrasta-se ainda hoje na sensibilidade comum. Alimentou na alta Idade Média uma demorada aberração platônica que o realismo albertino-tomista refreou, reafirmando a dignidade da matéria e a unidade da constituição humana. No entanto, a noção de pessoa foi-se pre- * cisando pouco a pouco através das controvérsias trinitárias e cristológicas, do sécufo I I ao sé culo VI, mais ricamente harmonizada pela sensi bilidade grega, encontrando maior resistência de fundo do juridismo romano que, no entanto, lhe ia emprestando o rigor de suas fórmulas. Cada grande pensamento lhe acrescentava algo de novo. Mas o aparelho lógico e conceptual herdado dos gregos, centrado sobre a classe e a generalidade, não facilitava a sua expressão. Ê costume relacionar com Descartes o raciona-% lismo e o idealismo modernos, que dissolvem na ideia a existência concreta. Esquece-se assim o carácter decisivo e a cpmplexa riqueza do Cogito. Acto dum sujeito, tanto como intuição duma inte ligência, é afirmação dum ser que rompe com os intermináveis cursos da ideia e se assume com autoridade na existência. O voluntarismo, de 23 O PERSONALISMO Ockam a Lutero, tinha preparado esses caminhos. Daí para diante a filosofia deixa de ser uma lição que se aprende, como era costume na escolástica decadente* para ser uma meditação pessoal, e a cada um é pedido que, por sua conta, a refaça. Começa, como o pensamento socrático, por uma conversão, uma conversão à existência (4). No mesmo momento, a jovem burguesia sacode as formas insuportáveis da estrutura feudal. Mas, em reacção a uma sociedade demasiado pesada, a bur- c guesia exalta o indivíduo isolado e lança as bases desse individualismo econômico e espiritual, de que ainda hoje sofremos os desgastes. Da mesma forma, Descartes consente ainda no seu Cogito germes do idealismo e solipsismo metafísicos que minarão profundamente o personalismo clássico, de Leibniz aos kantianos, apesar das abundantes riquezas de que foi portador através do seu caminho. Hegel fica-nos sobretudo como o arquitecto im ponente e monstruoso do imperialismo da ideia impessoal, Todas as coisas, todos os seres, se vão dissolvendo na sua representação; não foi por acaso que ele veio a defender a total submissão do indivíduo ao Estado. Mas não devemos esque cer, por isso, tudo o que o personalismo deve a Leibniz e a Kant, e a dialéctica da pessoa a todo * Maxime Chastaing: Descartes, introãucteur à la vie p&rsonnelle (Esprit, Julho de 1937). INTRODUÇÃO AO UNIVERSO PESSOAL 29 o esforço de reflexão do pensamento idealista. Pai da dialéctica e da consciência existencial moderna, Pascal teria sido o maior dos seus antecessores, se o pensamento jansenista o não afastasse para « uma religião isolada e altiva a que Kierkegaard igualmente aderirá, Muito episòdicamente, cite mos Malebranche e o seu Traité de Morale; Rous- seau, restituindo ao seu século* através do empo- * \ brecido racionalismo das Luzes, que o individua lismo arrastava, o sentido da solidão, ao mesmo tempo que lançava as bases duma educação do ser pessoal. E assinalemos a aetuaiidade de Goe- the, que procurou na acção a unidade dinâmica do espírito e da matéria. Já para o século X IX é preciso sublinhar três nomes que só alcançariam a glória no século seguinte, de tal forma estavam longe do clima ideológico da sua época. Maine de Biran é o moderno precursor do per sonalismo francês. Denunciou a mecânica mental dos ideólogos que dissolviam a existência concreta nos pseudo «elementos» do pensamento, pro curando o eu no esforço motor pelo qual nos afir mamos no mundo. Unindo uma iniciativa interior e uma iniciativa muscular, esta experiência revela no centro de toda a consciência uma relação de exterioridade e de objectividade: é preciso não opor consciência e espaço; toda a consciência é espacializante, afirmasse no espaço. O pensamento de Maine de Biran iluminou, por forma notável, as raízes da pessoa e a sua zona.de emergência. 30 O PERSONALISMO Por sua vez, Kierkegaard, face ao «sistema» simbolizado por Hegele seu degradado espiritua- lismo, afirma o irredutível surto da liberdade. « Profeta da grandeza paradoxal e dramática do homem, levanta-se contra o optimismo do con forto burguês e da razão fácil, sofrendo, no en tanto, infelizmente, a influência dos desvarios do romantismo, não conseguindo chegar a sair da sua abrupta solidão para se unir ao mundo e aos homens. Mas inserido numa época pronta para todas as servidões em troca duma qualquer feli cidade vegetativa, levou ao paroxismo o sentido da liberdade na sua ligação radical com o sentido do absoluto. Paralelamente a Kierkegaard, Marx acusou Hegel de fazer do espírito abstracto, e não do homem concreto, o sujeito da história, reduzindo à Ideia a realidade viva dos homens. Esta aliena ção transcreve aos seus olhos a do mundo capita lista, que trata o homem trabalhador e produtor como objecto da história e que, ao mesmo tempo que o expulsa de si próprio, o expulsa do seu reino natural. Parece, pois, que aquilo a que se podia chamar a revolução socrátíca do século XIX, ou seja, o assalto contra todas as forças modernas de despersonalização do homem, se separou em s dois ramos: um deles, através de Kierkegaard, chama o homem moderno, deslumbrado pela des coberta e exploração do mundo, à consciência da sua subjectividade e da sua liberdade; o outro, INTRODUÇÃO AO UNIVERSO PESSOAL 31 através de Marx, denuncia as mistificações a que o conduzem estruturas sociais enxertadas na sua é condição material, e lembra-lhe que o seu destino não depende somente do seu coração, mas das suas * • s mãos. Lamentável separação! Com o correr dos tempos, a separação entre as duas linhas mais se acentuou, e a missão da nossa época é, talvez, não a de as reunir naquilo em que elas não poderão jamais encontrar-se, mas sim de ultrapassar suas divergências para uma unidade de que se exi laram. Para além destes vultos que assinalam as gran des linhas do século, seria preciso seguir o lento desenvolvimento sociológico da condição humana. Por mais reservas que se possam fazer à Revolu ção Francesa, não há dúvida de que ela marca uma fase importante da libertação política e so cial, embora limitada pélo seu contexto individua lista. Desde essa ocasião, um quase fatalismo se desenvolve. Por um lado, o individualismo, encon trando terreno favorável na fase conquistadora do capitalismo, desenvolve-se rapidamente. O Estado liberal cristaliza-o nos seus códigos e nas suas instituições e, embora professando um persona lismo moral (de raiz kantiana) e político (ao gosto burguês), lança a condição concreta das massas urbanas na escravidão social, econômica e, bem depressa, política. O romantismo desenvolve as paixões do indivíduo, percorre todas as gamas da afectividade, mas, arrastando-o para o isolamento, O P E R S O N A L IS M O82 não lhe permite a escolha senão entre a solidão desesperada e a dispersão do desejo. Recuando perante essas novas angústias, e temendo as im prudências do desejo, o mundo do pequeno burguês recalca-o por detrás de uma aparência de medíocres satisfações: instaura o reino do indivi dualismo cauteloso. Na mesma época, o brusco e repentino surto da técnica rompe as fronteiras do indivíduo e os seus espaços fechados, e instala em todos os campos os grandes espaços e as relações colectivas. Acossado, o individualismo começa a recear, quer a anarquia em que sossobra, quer o colectivismo que o ameaça. A sua tendência é para cobrir com o nome de «defesa da pessoa» as suas manobras de bastidores. Já Renouvier denunciava como igualmente perigosas a paixão metafísica e a procura política da unidade. A pessoa, para ele, é antes de mais o não, a recusa de aderir, a possibilidade de se opor, de duvidar, de resistir à vertigem mental e correlativamente a todas as formas de afirmação colectiva, quer sejam teoló gicas, quer sejam socialistas; Reacção sã, infini tamente sã, contra certos perigos, mas que se vai enredar em tentações anárquicas. Foram estas que esterilizaram parcialmente a grande obra de Proudhon. O anarquismo apaixonado que vem de Nietzche dramatiza o lance, mas encoraja a mesma forçada atitude negadora de que tanto se aproximam algumas correntes do existencialismo. IN T R O D U Ç Ã O A O U N IV E R S O P E S S O A L 33 No entanto, a escolha não recai entre um cego impersonalismo, enorme cancro que prolifera e destrói, e o soberbo desespero dos que preferem apenas morrer de pé. Homens houve que come çaram já a desmistificar o medo dos mitos, desen volvendo, ao mesmo tempo, uma mais rica noção do homem pessoal, das suas relações com o mundo e suas obras. Depois de Lotze, as primeiras tradu ções de Max Scheler e de Buber são contemporâ neas dos primeiros livros de JBerãiaeff? que pre tende não sacrificar, nem a liberdade de espírito, nem a técnica, tal como pouco antes Bergson não quisera abandonar, nem o surto da liberdade, nem o rigor da ciência. Depois de Laherthonnière, Maurice Blonãel define uma dialéctica do espírito e da acção que arruina profundamente os contor nos do espiritualismo. Enquanto Pêguy fazia bro tar do seu lirismo todos os temas que temos vindo a abordar, J. Maritain aplica aos mais actuais pro blemas o realismo desmistificador que lhe vem de S. Tomás., Gabriel Marcei e Jaspers, um cristão, o outro agnóstico, contribuem fundamentalmente para a descrição das estruturas do universo pes soal. Muito próximo deles, na sua interrompida obra, P. L. Lanãsberg. Sobre estas tentativas, mais especificamente personalistas, às quais, depois de 1932, a revista Esprit dá continuidade, o movi mento de renovação existencialista e o movimento de renovação marxista exercem duas pressões la terais. O primeiro contribuiu em larga escala para 34 O PERSONALISMO renovar problemas personalistas: a liberdade, a interioridade, a comunicação, o sentido da histó ria. O segundo incita todo o pensamento contem porâneo a libertar-se das mistificações idealistas,, a partir da comum condição dos homens, e a ligar a mais alta filosofia aos problemas da cidade mo- derna; Poderiamos assim indicar uma tangente existencialista do personalismo (onde veriamos nomes como os de Berdiaeff, Landsberg, Ricoeur, • i Nédoncelle), uma tangente marxista, muitas ve zes concorrente à primeira, e uma tangente mais clássica, na tradição do pensamento francês (La- chièze-Rey, Nabert, Le Senne, Madinier, J. La- croix). Fora da França, encontramos, formando-se em várias direcções, algumas correntes que se recla mam do personalismo. Outras, embora não o invo quem, dele estão próximas. Na Inglaterra o nome é reivindicado por uma ou duas revistas e pelo Personnalist Group de J. B. Coates. Inspiraram-se. sobretudo em John Macmurray, John Middleton Murry, N. Berdiaeff e Buber; e não podemos esquecer Newman. Um contexto formado por subjectivismo religioso, liberalismo político e an- titecnicismo ruskiniano (R Read) leva-os, por vezes, para muito longe das vias percorridas pelo personalismo francês, mas o diálogo mantém-se. Na Holanda, nascido num campo de concentração em 1941, o movimento personalista desenvolveu-se apenas no plano político e tentou realizar um novo INTRODUÇÃO AO UNIVERSO PESSOAL 35 socialismo através do «Movimento Popular Neer- landês», que ocupou o poder a quando da liber tação, antes da fusão com o partido socialista. Nos Estados Unidos, de Royce e Howinson a Bownes, Brightman e Flewelling, desenvolveu-se uma im portante corrente. Na Suíça, onde Secrétan não foi esquecido, publicam-se os Cahiers Suisse Esprit. Nos países que se libertaram do fascismo, for- mam-se grupos de inspiração semelhante. Visto que a pessoa não é um objecto que se separe c se observe, mas um centro de reorienta- ção do universo objectivo, resta-nos orientar agora a nossa análise para o universo por ela edificado, a fim de iluminar nos seus diversos planos as estruturas, sendo preciso não esquecer que esses planos não são mais do que incidências diferentes sobre uma mesma realidade. A verdade de cada um só existe quando em união com todos os outros. PRIMEIRA PARTE AS ESTRUTURAS DO UNIVERSO PESSOAL C A P IT U L O I A EXISTÊNCIA INCORPORADA Os modernos espiritualismos dividem o mundo e o homem em duas substâncias independentes, a matéria e o espírito. Umas vezes aceitam como facto consumado a independência das duas subs- tâncias (paralelismo psico-fisiológico) e, deixando a matéria entregue às suas fatalidades próprias, reclamam, no entanto, o direito de legislar em absoluto no reino do espírito: a junção dos dois mundos é então inexplicável. Outras vezes, negam qualquer realidade ao mundo material, que con sideram simples aparência do espírito: a impor tância dessa aparência assume, então, foros de paradoxo. Desde o início que um tal esquema é desfeito pelo realismo personalista. A pessoa está mergulhada na natureza.— O ho mem é corpo exaetamente como é espírito, é inte gralmente «corpo» e é integralmente «espírito». Dos seus mais primários instintos, comer, repro- duzir-se, é capaz de passar a artes subtis: a culi- 40 O PERSONALISMO nária, a arte de amar. Uma dor de cabeça, no entanto, detém o grande filósofo e, no meio dos seus êxtases, S. João da Cruz vomitava. O meu feitio e a minha maneira de pensar são amoldados pelo clima, a geografia, a minha situa ção à face do globo, a minha hereditariedade, e, talvez, até, pela acção maciça dos raios cósmicos. Para além destas influências, temos ainda poste riores determinações psicológicas e colectivas. Nada há em mim que não esteja imbuído de terra e de sangue. E estudos vários demonstraram que as grandes religiões seguem os mesmos caminhos das grandes epidemias. Porque razão nos haveria mos de chocar? Também os pastores têm pernas que os guiam através dos declives do caminho. Eis o que contêm de verdadeiro as análises materialistas. Mas nada trouxeram de inédito. A indissolúvel união da alma e do corpo é o centro do pensamento Cristão, Nunca opôs «espírito» a «corpo» ou a «matéria», na acepção moderna deste termo. Para ele, o «espírito», no sentido compósito em que o espiritualismo moderno emprega esse termo, ou seja designando ao mesmo tempo o pen samento (nous), a alma (psyché), e a própria respiração, funde-se com o corpo na nossa exis tência. Quando o todo assim formado segue num sentido inverso ao da sobrenatural vocação do homem, o cristianismo dá a esse movimento o nome de carne, designando assim, a um tempo, o peso da alma e o dos sentidos; quando, ao con A EXISTÊNCIA INCORPORADA 41 trário, tudo nos leva a Deus, corpo e alma con juntamente colaboram no reino do espiritual ( pneuma), reino sólido de Deus e não reino etéreo do Espírito. Se a natureza humana foi ferida pelo pecado original, foi o composto humano na sua totalidade que foi atingido; e já nos Evangelhos a malícia e as perversões do espírito provocaram 9 mais maldições do que as da «carne», no sentido restrito da palavra. O cristão que fala com des prezo do corpo e da matéria, fá-lo contra a sua mais central tradição. A teologia medieval consi derava que, vulgarmente, só podemos aceder às 1 mais altas realidades espirituais, e até a Deus, através da matéria e do peso que sobre ela, exerce mos. Foi antes o desprezo dos gregos pela matéria que se transmitiu de século em século até aos nossos- dias, cobrindo-se de falsas justificações cristãs. Impõe-se-nos hoje acabar com esse pernicioso dualismo, tanto na nossa maneira de viver, como no nosso pensamento. O homem é um ser natural; através do seu corpo faz parte da natureza, e o seu corpo segue-o por toda a parte. Saibamos tirar daqui as consequências. A natureza — natureza exterior, anterior ao homem, inconsciente psicológico, participações so ciais não personalizadas— em nada contribui para o mal do homem: a incamação não é uma queda. Mas exactamente porque é a situação do impes soal e do objectivo, é permanente ocasião de alie- 42 O PERSONALISMO nação. A miséria, tal como a abundância, esmaga- -nos. O homem está como que cercado por uma e outra. O marxismo pensa bem quando diz que o fim da miséria material é o fim duma alienação, e etapa necessária para o desenvolvimento da humanidade,, Mas não é aí que terminam todas as alienações, nem mesmo num plano natural. A pessoa transcende a natureza. — O homem é um ser natural. Será somente um ser natural? Será, inteiramente, um joguete da natureza ? Inse rido na natureza, transcendê-la-á quando dela emerge ? A dificuldade está em colocarmos correcta mente esta noção de transcendência. O nosso es pírito resiste à representação duma realidade que esteja inteiramente inserida numa outra, na sua existência concreta, e que, no entanto, lhe seja superior em nível de existência. Não se pode morar ao mesmo tempo no rés-do-chão e no 6.° andar, dizia Léon Brunschvig, o que apenas con segue ridicularizar, numa imagem espacial, uma experiência que o espaço não pode transcrever. O universo está cheio de homens que fazem os mesmos gestos nos mesmos sítios, mas que trazem consigo e à sua volta suscitam universos mais remotos do que constelações. Examinemos, pois, a natureza. Abandonemos o mito materialista da Natureza, Pessoa impes- é soai de ilimitados poderes. Abandonemos o mito A E X I S T Ê N C I A IN C O R P O R A D A 43 romântico da Mãe afável, sagrada, imutável, de que não nos podemos afastar sob pena de sacrilé gio ou de catástrofe; tanto um como outro subme tem o homem pessoal e activo a um fictício im pessoal. Na realidade, a natureza nada mais nos dá, nada mais entrega ao nosso conhecimento ra cional do que um feixe infinitamente complicado de determinações, das quais não chegamos mesmo a saber se, para além dos sistemas que formulamos para assegurar a nossa marcha, serão redutíveis a uma unidade lógica. Em nome de que autoridade nos limitamos a esses indícios ? Por exemplo, com Pavlov, às cadeias de reflexos condicionados? Se quisermos ter uma noção da humanidade, precisamos de a captar no seu vivo exercício e na sua actividade global. As experiências de Pavlov são criações artificiais de laboratório: os seus resultados têm um aspecto mecanicista,, porque o sujeito se encontra aí colocado em condições per- feitamente mecânicas* O homem escapa-lhe: «O homem é um ser natural, mas é um ser natural humano»x., E, exactamente, o homem singula- riza-se por uma dupla capacidade de romper com a natureza. Só ele conhece esse universo que o absorve e só ele o pode transformar, ele, o menos armado e o menos poderoso dos grandes animais. 4 E, o que é infinitamente mais, é capaz de amar. 1 1 Marx: É con om ie politique et ph ilosoph ie, Ed. Coste, p. 78. 44 O PERSONALISMO Um cristão acrescentará: foi capacitado para ser cooperador de Deus. É preciso não esquecer os reflexos salivares, mas é preciso também que não sejam eles a obcecar-nos. Os determinismos de que tanto se fala não são uma figura de retórica. Mas a noção de determi nismo, embora não expulsa da ciência, como por vezes se diz, foi localizada ao nível dos fenôme nos materiais de grande projecção. Os fenômenos infra-atómicos alteram-na. Os fenômenos biológi cos ultrapassam-na. Ã escala vulgar, existe hoje, apenas, para o físico, uma «causalidade fraca», de modo que «uma mesma causa pode produzir um ou outro de vários efeitos possíveis, somente com uma certa probabilidade de obter um efeito e não outro» (L. de Broglie). O homem não é encerrado no seu destino pelo determinismo. Se nos man temos concretamente ligados a numerosos e estrei tos determinismos, cada novo determinismo que os sábios descobrem é mais uma nota na gama da nossa liberdade. Enquanto se desconheceram as leis da aerodinâmica, os homens sonhavam voar; quando o seu sonho se inseriu num feixe de neces sidades, voaram. Sete notas são pequeno registo: no entanto, foi com estas sete notas que vários séculos de invenção musical se estabeleceram. Aquele que invoca fatalidades naturais para negar as possibilidades do homem, abandona-se a um mito ou tenta justificar uma demissão. A E X I S T Ê N C I A IN C O R P O R A D A 45 Esta ascensão da pessoa criadora pode seguir- »se na história do mundo. Aparece-nos como uma luta entre duas tendências de sentido oposto: — uma é uma permanente tendência para a « ãespersonalização. Não atinge somente essa maté ria que é impersonalidade, dispersão, indiferença, que tende para o nivelamento (degradação de energia), identidade ou repetição, como se esses « fossem seus fins. Atinge a própria vida, abate os seus impulsos, desdobra-a em espécies de exem plares indefinidamente repetidos, degenera as des cobertas em automatismos, esconde a audácia vital em formações de segurança donde a própria in venção se retira, continua por inércia movimen tos que em seguida se voltam contra o seu fim. /Ycaba por aniquilar a vida social e a vida do espí rito através do afrouxamento do hábito, da rotina, das idéias gerais e da tagarelice de todos os dias; — a outra é um movimento de personalização r « que, em rigor, só começa com o homem, mas cuja I (reparação se anuncia ao longo de toda a história do universo2., Os fenômenos radioactivos já fazem prever uma primeira ruptura nas fatalida des monótonas da matéria. A vida aparece segui damente como uma acumulação de energia cada vez mais organizada em feixes de indeterminação cada vez mais complexos; abre assim a gama de 2 Sobre esta p repararão ver os textos do P . Teilhard de Chardin. 46 O P E R S O N A L IS M O possibilidades que os dispositivos biológicos ofere cem ao livre arbítrio do indivíduo e prepara a for mação de centros pessoais. Destituída de qualida des, a partícula atômica não é individualizável, nem mesmo pela sua posição no espaço, uma vez que as teorias quânticas já não permitem que lhe seja atribuída uma localização precisa e constante. Como o átomo, estrutura de partículas, principia um embrião de individualidade. A individualidade animal é mais segura; no entanto, a natureza não lhe presta grande atenção, multiplica-a prodiga mente, para a desbaratar maciçamente: em dois milhões de ovos de mosca, somente dois atingem a idade adulta. O animal ignora a consciência reflexiva e a reciprocidadè de consciências. Quando se dão conflitos, a sorte do indivíduo está sempre subordinada à da espécie. Com a pessoa humana todo este movimento encontra, se não a sua explicação, pelo menos o seu sentido. A aparição do universo pessoal não vem deter a história da natureza, antes a compromete na his- tória do homem sem inteiramente a submeter. Por vezes falamos do «homem primitivo» como se este tivesse desaparecido no fundo dos tempos. Quando tivermos tomado viva e perturbante consciência da realidade pessoal, as nossas origens parecer- -nos-ão bem mais próximas. Representamos uma comédia mundana e moral que é surdamente diri gida pelos instintos, pelas paixões e pelos interes- \ • ses; o que chamamos a «vida do espírito» desen A E X IS T Ê N C IA IN C O R P O R A D A 47 volve grande parte da sua actividade a levantar, sobre tão obscuros actores, uma cortina de justifi cações e prestígios. O materialismo, quando histó rico e localizado, tem ‘parcialmente razão; na etapa em que estamos da evolução da humani dade, e não no absoluto dos valores, na maioria, e salvo individuais conversões, sempre possíveis, (juntemos, pois, três condições restritivas), o nosso comportamento é maciçamente dominado pela nossa situação biológica e econômica. Há muito tempo, sem dúvida desde que o homem é homem, que numerosos indivíduos © vastos movi mentos tentam quebrar essa escravidão; só ou em grupo, o homem atinge num só lance os cumes da humanidade, antes de retomar lentamente as suas tentativas de aproximação. Mas o universo pessoal não existe ainda senão em ilhas individuais e colectívas, como promessa a realizar. A sua pro gressiva conquista é a história do homem. Consequências desta condição. — Da condição que acabamos de definir resultam consequências importantes: 1/ Não interessa encher a ciência da «matéria» ou a ciência do «espírito» com desprezo e exalta ções que ao nível da realidade não têm qualquer valor. 2.a O personalismo está longe de ser um espiri- tualismo. Pertence-lhe, em toda a latitude da humanidade concreta, qualquer problema hu- 48 O P E R S O N A L IS M O mano, desde a mais humilde condição material, às mais elevadas possibilidades espirituais. As cru zadas são, em diferentes graus para cada uma delas, produtos simultaneamente do sentimento religioso e dos movimentos econômicos dum deca dente feudalismo. Ê pois verdadeiro serem a ex plicação pelo instinto (Freud) e a explicação pela economia (Marx) caminhos de acesso a todos os fenômenos humanos, até aos mais altos. Mas, em compensação, nenhum, nem mesmo os mais ele mentares, se compreende sem os valores, as estru turas e as vicissitudes do universo pessoal, ima- nente como um fim a qualquer espírito humano e ao trabalho na natureza. O espiritualismo e o moralismo são impotentes porque desprezam o jugo do biológico e do econômico. Mas o materia- lismo, embora pela razão inversa, não o é menos, Como disse o próprio Marx, «materialismo abstracto» e «espiritualismo abstracto» tocam-se, e não se trata de escolher um ou outro, mas «a verdade que une os dois» para aquém da sua sepa ração 3. Cada vez mais a ciência e a reflexão nos revelam um mundo que não pode passar sem o homem e um homem que não pode passar sem o mundo. 8 ü ritiqu e à ía philosophie ãu ã ro it de JSegel (O eu - vres, Coste, IV, 183); Êconom ie po litique e t philosophie (id., VI, 76). A E X I S T Ê N C I A IN C O R P O R A D A 49 3.a Ê preciso repetir no plano da acção o que acabamos de dizer no plano da explicação. Em qualquer problema prático é preciso assegurar a solução no plano das infra-estruturas biológica e econômica, se quisermos que sejam viáveis as medidas tomadas em outros planos. Uma criança é anormalmente preguiçosa ou indolente: exami- nem-se-lhe as glândulas, antes de nos zangarmos com ela. Um país revolta-se: pense-se nos salários, antes de falar em materialismo. E se o quisermos mais perfeito, demos-lhe primeiro essa segurança material, a qual, e disto muitas vezes nos esque cemos, se for faltando de geração em geração, perturbará, talvez, a desejada moderação social. Mas, reciprocamente, a solução biológica ou econômica dum problema humano, por mais perto que esteja das nossas necessidades ^ementares, é incompleta e frágil, se não forem tomadas em linha de conta as mais profundas dimensões do » homem. O espiritual também é uma infra-estru tura. As desordens psicológicas e espirituais, liga das a uma desordem econômica, podem minar durante muito tempo as soluções adquiridas no campo da economia. E mesmo a mais racional estrutura econômica, se estabelecida com desprezo das exigências fundamentais da pessoa, trás den tro de si a própria ruína. A existência incarnada. — O personalismo opõe-se, pois, ao idealismo, quando o idealismo: 50 O P E R S O N A L IS M O l.o — Reduz a matéria (e o corpo) a aparência do espírito humano, nele se inserindo através duma actividade puramente ideal; 2.° — Dissolve o su jeito pessoal num amontoado de relações geomé tricas ou inteligíveis, donde a sua presença é expulsa, ou redu-lo a um simples posto receptor de resultados objectivos. Para o personalismo, pelo contrário: l.° Por mais abundante e subtil que seja a iuz que o espírito humano leva até às mais pequenas articulações do universo, a materialidade existe duma existência irredutível, autônoma, hostil à consciência. Só se pode resolver numa relação in terior da consciência. É esta afirmação que Marx- -Engels chamam materialista. Mas é conforme ao mais tradicional realismo, a um realismo que se não coíbe de integrar os elementos válidos da crí tica idealista. O que é radicalmente estranho à consciência não é mais do que dispersão pura, cega e opaca. Não podemos falar dum objecto e, por maioria de razão, não podemos falar dum mundo, senão em relação com a consciência que o apercebe. Ou seja, tudo o que temos vindo a dizer demonstra bem que a matéria é um feixe de relações. Que aconteceria a relações que não fossem descortinadas? A relação dialéctica da matéria à consciência é tão irredutível como a existência, quer de uma, quer de outra. 2: Até nas formas mais elementares da minha existência me afirmo como pessoa, e, nunca sendo A E X I S T Ê N C I A IN C O R P O R A D A 51 factor de despersonalização, muito pelo contrário, a minha existência incarnada é factor essencial da minha situação pessoal. O meu corpo não é um objecto entre muitos outros, não é sequer o meu objecto mais próximo: como, sendo assim, se po dería unir à minha experiência de sujeito ? E f ecti- vamente, as duas experiências não são separáveis: existir subjectivamente, existir corporalmente são uma única e mesma experiência.4. Não posso pensar sem ser, nem ser sem o meu corpo: através dele, exponho-me a mim próprio, ao mundo, aos outros, através dele escapo à solidão dum pensa mento que mais não seria do que pensamento do meu pensamento. Recusando-se a entregar-me a mim próprio, inteiramente transparente, lança-me sem cessar para fora de mim, na problemática do mundo e nas lutas do homem. Através das solici tações dos sentidos lança-me no espaço, através do seu envelhecimento ensina-me o tempo, atra vés da sua morte lança-me na eternidade. A sua servidão pesa-nos, mas ao mesmo tempo é base para qualquer consciência e para toda a vida espi ritual. Ê mediador omnipresente da vida do espí rito. Ê neste sentido que podemos dizer com Marx que «um ser que não- é objectivo não é um ser» 5, 4 Tema essencial das obras de Gabriel Marcei e Maine de Biran. Ver, também, G. Madinier: C on sc ien ce et m o u - vem en t. 5 Ê con om ie politique et ph ilosoph ie , Coste, VI, 77. 52 O P E R S O N A L I S M O se, no entanto, acrescentarmos a seguir que um ser que só fosse objectivo nunca atingiría esse acabamento do ser que é a vida pessoal. A personalização da natureza. —■ A pessoa não se contenta com sofrer a acção da natureza, donde veio, ou com mover-se conforme suas provoca ções. Volta-se para ela para a transformar e progressivamente lhe impor a soberania dum uni verso pessoal. Numa primeira fase, a consciência pessoal afirma-se assumindo o meio natural. A aceitação do real é a primeira tentativa de toda a vida cria dora. Aquele que a recusa delira, e a sua acção perde-se. Mas esta aceitação não é mais do que um pri meiro passo. Se me adaptar demasiadamente, en trego-me ao peso das coisas. O homem do conforto é o animal doméstico, dos objectos do seu con forto, o homem reduzido à sua função produtora ou social é uma peça numa engrenagem. A explo ração da natureza não tem por fim articular sobre 9 um feixe de determinismos um feixe de reflexos condicionados, mas sim abrir, perante a liberdade criadora dum número crescente de homens, as mais altas possibilidades de humanização. Ê a força da afirmação pessoal que destrói os obstá culos e rasga novos caminhos. Ê por isso que devemos negar a natureza como dado, para a afir mar como obra, como obra pessoal, suporte de A E X I S T Ê N C I A I N C O R P O R A D A 53 toda a personalização. Então a dependência da natureza torna-se domínio da natureza, o mundo insere-se na carne do homem e no seu destino. E ainda é preciso dar um sentido a esta acção sobre a natureza. Ela não pode, sem risco de catástrofe, entre- gar-se ao delírio da sua própria aceleração, delírio que Ford manifestava quando, a uma pessoa que lhe perguntava por que desenvolvia ele incessan temente as suas empresas, respondeu: «Porque não posso parar». Essa acção não consiste na imposição às coisas duma relação de senhor a escravo. A pessoa só se liberta, libertando. E é chamada tanto para liber tar a humanidade, como as coisas. Marx dizia que o capitalismo degrada as coisas em mercadorias, em mecanismos de lucro, causando assim a degra dação da própria dignidade das coisas, a digni dade que o poeta atinge. Operamos esta degrada ção cada vez que consideramos as coisas somente como obstáculos a afastar, matéria para possuir e dominar. O poder descricionário que passamos,, então, a exercer sobre elas, não tarda a comuni- car-se às relações humanas, a segregar a tirania que vem sempre do homem e não das coisas. O movimento marxista que pensa que, pelo con trário, a missão do homem é elevar a dignidade das coisas humanizando a natureza,, é neste ponto próximo do cristianismo que confere à humani dade a vocação de resgatar pelo trabalho, rcsga- 54 O P E R S O N A L IS M O tando-se, a natureza que arrastou na sua queda. O valor central que assume em Marx a actividade prática do homem (praxis) é uma espécie de laicização do valor central que o trabalho assume na tradição cristã As relações entre a pessoa e a natureza não são pois relações de pura exteriorização, mas rela ções dialécticas de permuta e ascensão. O homem pesa sobre a natureza, para vencer a natureza, como o avião sobre o peso, para do peso se arran car. Desde o seu primeiro gesto — colocado sobre a terra para «trabalhar a terra» ( Gênesis, II, 15) e dar nome a todas as coisas — contribui para que desapareça uma natureza pura, que vai dar lugar a uma natureza que se começa a humanizar. A chamada natureza foi urdida com nossos arti- fícios. E desde o princípio dos séculos que mais não fazemos do que participar e imperfeitamente conservar o mundo. Começamos agora a abordar os seus segredos: o da matéria, o da vida, os do mundo psíquico. É uma viragem que pode ser decisiva. Como anunciam triunfalmente as «Teses sobre Feuerbach» iremos agora transformar e escplicar. A ciência irá anexar a indústria. A in dústria levará a loucuras; levará a mais do que aquelas a que o pensamento nos conduziu ? Neste * * Esprit, núm ero especial: Le travail et Vhomme, Julho de 1933. A E X IS T Ê N C IA IN C O R P O R A D A 55 sentido, produzir é uma actividade essencial da pessoa, desde que demos à produção essa total perspectiva que faz com que ela arraste as mais humildes tarefas no sopro divino que impele a humanidade. Entregue, primeiramente, à satisfa ção a curto prazo das necessidades elementares, seguidamente desviada por interesses parasitas ou entregue à sua própria embriaguês, a produção deve tornar-se uma actividade libertante e liber- # tadora, desde que modelada a todas as exigências da pessoa. Ressalvada esta condição, podemos dizer que, onde houver primado do econômico, há já primado do humano. A produção não tem valor senão quando visa o seu mais alto fim: a instau ração dum mundo de pessoas. Não o vai buscar, nem à organização das técnicas, nem à acumula ção dos produtos, nem à instalação pura e sim ples da prpsperidade. A esta luz podemos já alcançar o sentido pro fundo do desenvolvimento técnico. Só o homem inventa instrumentos e é depois capaz de os unir num sistema de máquinas que prepara um corpo colectivo à humanidade. Os homens do século X X enlouqueceram com este novo e omnipotente corpo que constituíram. É verdade quê o poder de abstracção da máquina é assustador: rompendo os contactos humanos, pode fazer esquecer, mais dc que nenhuma outra força, os homens que com promete, que por vezes esmaga; perfeitamente objectiva, inteiramente explicável, faz perder o 56 O P E R S O N A L IS M O hábito da intimidade, do segredo, do inexprimí vel; dá aos imbecis meios inesperados; e, acima disto, diverte-nos, fazendo-nos esquecer as suas crueldades. Entregue ao seu peso cego, é uma poderosa força de despersonalização. Mas não o é senão desligada do movimento que a suscita, como instrumento de libertação do homem das servi dões naturais e de reconquista da natureza. Uma atitude puramente negativa perante o desenvol vimento técnico provém, ou duma insuficiente análise, ou duma concepção idealista dum destino que só forjamos em colaboração com todas as forças da terra. A era da técnica fará correr os maiores perigos ao movimento de personalização, tal como o brusco crescimento do seu corpo põe em perigo o equilíbrio do adolescente. Mas não está; sob o signo de nenhuma maldição especial. Em vez de ser um erro funesto destes recantos da Europa, é antes, talvez, o meio que permitirá que, um dia, o homem invada o universo, desenvolva aí o seu reino, e mesmo, deixando ir mais longe a imaginação, deixe de ser um paradoxo perdido no espaço 7. Obstáculos à personalização da natureza. Um optimismo trágico. — Se vamos traçando, com uma espécie de amplitude triunfal, os vastos des 7 A cerca destes problem as, ver E. M ounier: La Petite Peur du XX siècle (E d . du Seuil, 1948). A E X I S T Ê N C I A IN C O R P O R A D A 57 tinos que se abrem à obra de personalização, estamos, no entanto, muito longe de esquecer que esse futuro não é automático. É posto em causa a cada momento, diante de novas dificuldades, em face da escolha pessoal de cada um de nós, e cada um de nós o abandona e o compromete. A matéria é rebelde e não somente passiva; ofen siva e não somente inerte. O personalismo não é, segundo uma expressão de Maurice Nédoncelle, «uma filosofia de domingo à tarde». Em toda a parte aonde a pessoa leva a sua luz, a natureza, corpo ou matéria, insinua a sua opacidade: de baixo das fórmulas do sábio, debaixo da claridade da razão, debaixo da transparência do amor. Sem pre que a liberdade tenta seus voos, a natureza prende-a com mil laços. Sempre que a intimidade se adivinha, a natureza exterioriza, exibe, gene raliza: as qualidades sensíveis não são mais do que enfraquecimento das sensações, tal como as espécies são uma queda de vida, os hábitos, para gens de invenção, as regras, arrefecimento do amor 8. Invadida pelo universo pessoal, a natureza ameaça, sem cessar, investir também contra ele. Não há nada nas relações do homem pessoal com 8 P a ra o tem a da objeetividade, vide sobretudo B e r- diaeff, especialmente: Esprit et Liberté (Je S e rs ); La destination de Vhomme (Je S e rs ); Cinq méditations sur Vexistence (A u b ie r ). 58 O P E R S O N A L IS M O o mundo que evoque uma harmonia à Leibniz. A insegurança e as preocupações são nosso lote. Nada há que deixe prever o final, num curto espaço de tempo, desta luta9, nada nos permite duvidar de que ela seja constitutiva da nossa condição. A perfeição do universo pessoal incar- nado não é, pois, a perfeição duma ordem, como pretendem todas as filosofias (e todas as polí ticas) que pensam que o homem poderá um dia submeter totalmente o mundo. Ê perfeição duma liberdade que combate, e que combate duramente. Por isso, subsiste até mesmo nas suas derrotas. Entre o optimismo impaciente da ilusão liberal ou revolucionária e o pessimismo impaciente dos fascismos, o caminho próprio do homem está % nesse optimismo trágico onde encontra a sua justa medida num clima de grandeza e de luta. * * Étienne de G ree f, nas suas im portantes obras Notre destinée et nos instincts (P lo n ) e Les instincts de défense et de sympathie (P resses U n iversita ires), d á a este res peito um a nota pessimista. C A P IT U L O I I A COMUNICAÇÃO Assim, rapidamente, trouxemos a pessoa para mais livres espaços. Interessa agora procurar a sua experiência fundamental. Ao contrário do que pretende uma opinião demasiado espalhada, esta não reside, nem na originalidade, nem na auto-suficiência, nem na afirmação solitária; não reside na separação, mas na comunicação. Auto-ãefesa do indivíduo. Personalismo contra individualismo. — Para quem observar o espectá culo dos homens, para quem não for cego perante as próprias reacções, esta verdade não é evidente. Desde o princípio da história que são mais os dias consagrados à guerra do que os consagrados à paz. A vida de sociedade é uma permanente guer rilha. E onde a hostilidade cessa, começa a indi ferença. Os caminhos da camaradagem, da ami zade ou do amor parecem perdidos nos imensos revezes da fraternidade humana. Heidegger e Sartre fizeram deles tema de filosofia. A comu- 60 O P E R S O N A L IS M O nicação, para eles, está envolvida pelo desejo de possuir e de submeter. Cada um de nós é, neces sariamente, ou um tirano, ou um escravo. O oihar dos outros rouba-me o meu universo, a presença dos outros detém a minha liberdade, a sua escolha paralisa-me. O amor é uma infecção mútua, um inferno. Ê inútil indignar-mo-nos contra um tal qua dro. E difícil negar que ele não evoque um impor tante aspecto das relações humanas. O mundo dos outros não é um jardim de delícias. É permanente provocação à luta, à adaptação, incita-nos a ir mais além. Constantemente reintroduz o risco e o sofrimento, exactamente quando nos parecia con duzir à paz. Por isso, o instinto de auto-defesa reage recusando-o. Uns esquecem-no, suprimindo toda a possibilidade de contacto. Outros querem fazer das pessoas objectos manejáveis e utili záveis, quer sejam, para o filantropo, os pobres, quer, para o político, os eleitores; para este, os filhos, para aquele, os operários; o egocentrismo perde-se em altruístas ilusões. Outro tenta redu zir os que o rodeiam a simples espelho. Como que uma espécie de instinto vai permanentemente tentando negar e empobrecer a humanidade que nos rodeia1. 1 V ide E. M ounier: Traxté du Oaractère, cap. IX ; Introduction aux existentialismes, cap. V . A C O M U N IC A Ç Ã O 61 Mesmo nos seus melhores momentos, o indi víduo, apenas com a sua presença, dificulta a comunicação. Onde quer que se instale, uma espé cie de opacidade se desenvolve. O meu corpo dá-me a mais evidente imagem dessa opacidade, introduzindo c mal-estar em meio duma qualquer confidência. Mas esse mal-estar tem raízes mais profundas do que o meu corpo. Uma virtude de masiado vincada faz-nos detestá-la, a intenção de seduzir empobrece o amor, a de converter irrita o que não crê. A mais ligeira presença parece, por vezes, segregar um veneno mortal nas rela ções de homem a homem. Para além desta profunda separação, a cul tura vai desenvolvendo máscaras que pouco a pouco se incrustam até não mais se distinguirem do próprio rosto do indivíduo. São um duplo e único meio de nos enganarmos a nós próprios e de enganar os outros, de nos instalarmos nos refú gios da impostura para evitar essa zona de ver dade que nasce ao encontro do olhar dos outros e do nosso próprio olhar. O individualismo é um sistema de costumes, dc sentimentos, de idéias e de instituições que • * n . < >rganiza o indivíduo partindo de atitudes de iso lamento e dè defesa. Foi a ideologia e a estrutura dominante da sociedade burguesa ocidental entre o século XVIII e o século XIX. Homem abstracto, 'w wm vínculos nem comunidades naturais, deus supremo no centro duma liberdade sem direegão 62 O P E R S O N A L IS M O nem medida, sempre pronto a olhar os outros com desconfiança, cálculo ou reivindicações; institui ções reduzidas a assegurar a instalação de todos estes egoísmos, ou o seu melhor rendimento pelas associações viradas para o lucro; eis a forma de civilização que vemos agonizar, sem dúvida uma das mais pobres que a história jamais conheceu. Ê a própria antítese do personalismo e o seu mais directo adversário. Para os distinguir, opõe-se muitas vezes pes soa e indivíduo. Corremos então o risco de desli gar a pessoa das suas concretas amarras. O mo vimento de interiorização constituído pelo «indi víduo» contribui para assegurar a nossa forma. No entanto, a pessoa só cresce na medida em que sem cessar se purifica do indivíduo que nela está. Não o conseguirá virando toda a atenção sobre si própria, mas, pelo contrário, tornando-se dis ponível (G. Marcei), e por isso mesmo mais tran- parente a si própria e aos outros. Tudo se passa como se nos tornássemos então, quando já não estamos «ocupados connosco», «cheios de nós», então, e então somente, prontos para os outros, entrados em graça. A comunicação como facto primitivo.— Assim, a primeira preocupação do individualismo é cen trar o indivíduo sobre si mesmo, e a primeira preocupação do personalismo é descentrá-lo para A C O M U N IC A Ç Ã O 63 o colocar nas largas perspectivas abertas pela pessoa. Estas cedo se afirmam. O primeiro movimento que, na primeira infância, revela o ser humano é um movimento para outrem; a criança de seis a doze meses, saindo da vida vegetativa, desco- bre-se nos outros, aprende nas atitudes que a visão dos outros lhe ensina. Só mais tarde, à roda do terceiro ano, virá a primeira vaga de egocen trismo reflexo. Quando pensamos na pessoa somos influenciados pela imagem duma silhueta. Colo camo-nos então diante da pessoa como diante dum objecto. Mas o meu corpo é também esse olhar vazio perscrutando o mundo, é também eu pró- « prio, esquecido. Pela experiência interior2 a pes soa surge-nos como uma presença voltada para o mundo e para as outras pessoas, sem limites, mis turada com elas numa perspectiva de universali dade. As outras pessoas não a limitam, fazem-na ser e crescer. Não existe senão para os outros, não se conhece senão pelos outros, não se encontra serião nos outros. A experiência primitiva da pes soa é a experiência da segunda pessoa. O tu e, 2 Cf. M aurice Nédoncelle: La réciprocité des cons- ciences (A u b ie r ) ; B uber: Je et tu (A u b ie r ); M adin ier: Conscience et amour (P resses U n iversita ires ). O s alem ães dizem : O m eu ser é ser com, Mitsein, ou ser para, Zusein. Cf. o latim : adsum, para dizer (a outrem ) «e is -m e» (p a ra ti, à tua disposição). 64 O P E R S O N A L IS M O adentro dele, o nós, precede o eu, ou pelo menos acompanha-o. Ê na natureza material (e a ela estamos parcialmente submetidos) que a exclusão reina, porque um espaço não pode ser ocupado duas vezes ao mesmo tempo. Mas a pessoa, no mesmo movimento que a faz ser, ex-põe-se. Por isso, é por natureza comunicável e até mesmo só ela o é. É preciso partir deste facto primitivo. Do mesmo modo que o filósofo que começa por se encerrar no pensamento nunca encontrará uma saída para o ser, assim aquele que começa por se encerrar no eu nunca encontrará o caminho para os outros. Quando a comunicação se enfraquece ou se corrompe perco-me profundamente eu pró prio: todas as loucuras são uma falha nas rela ções com os outros — o alter torna-se alienus, torno-me também estranho a mim próprio, alie nado. Quase se poderia dizer que só existo na medida em que existo para os outros, ou numa frase-limite: ser é amar. Estas verdades são o próprio personalismo, a ponto de podermos dizer que há pleonasmo quando se designa a civilização que ele visa por perso- nalista e comunitária8. Exprimem, frente a per- 8 Fórm u la em pregada pela revista Esprit (Inverno, 32-33) nos núm eros especiais Révolution personnaMste, Révolution communautaire, e em E . M ounier, Révolution personnaMste et communautaire (A u b ie r, 1934), tantas vezes depois retom ada. A COMUNICAÇÃO 65 sistentes idealismos e individualismos, a ídeia da que o sujeito não se nutre autònomamente* que só possuímos aquilo que damos ou aquilo a que nos damos, que não nos salvamos sozinhos, nem 4 social, nem espiritualmente. O primeiro acto da pessoa deve ser, pois, a criação com outros duma sociedade de pessoas, cujas estruturas, costumes, sentimentos e até ins tituições estejam marcados pela sua natureza de pessoas: sociedade de que apenas começamos a entrever e a esboçar os costumes. Funda-se numa série de actos originais que nenhuma universo: 1. Sair para fora de nós próprios. A pessoa é uma existência capaz de se libertar de si pró- pria, de se desapossar, de se descentrar para se tornar disponível aos outros. Para a tradição per sonalista (principalmente para a cristã), a ascese do despojamento é a ascese central da vida pes soal; só liberta o mundo e os homens aquele que primeiramente se libertou a si próprio. Os antigos falavam da luta contra o amor-próprio; nós cha mamos-lhe hoje egocentrismo, narcisismo, indivi dualismo. 2.° — Compreender. Deixar de me colocar sem pre no meu. próprio ponto de vista, para me situar no ponto de vista dos outros. Não me procurar numa pessoa escolhida e igual a mim, não conhe cer os outros apenas com um conhecimento geral 66 O P E R S O N A L IS M O (o gosto pela psicologia não é interesse pelos outros), mas captar com a minha singularidade a sua singularidade, numa atitude de acolhimento e num esforço de recolhimento. Ser todo para todos sem deixar de ser e de ser eu; porquanto há uma maneira de tudo compreender que corres ponde a nada amar e a nada ser; dissolução nos outros, não já compreensão dos outros 4. 3. ° — Tomar sobre nós, assumir o destino, os desgostos, as alegrias, as tarefas dos outros, «sofrer na nossa própria carne». 4. ° — Dar. A força viva do ímpeto pessoal não está, nem na reivindicação (individualismo pe- queno-burguês), nem na luta de morte (existen- cialismo), mas na generosidade e no acto gra tuito, ou seja, numa palavra, na dádiva sem me dida e sem esperança de recompensa. A economia da pessoa é uma economia de dádiva, não de com pensação ou de cálculo. A generosidade dissolve a opacidade e anula a solidão da pessoa, mesmo quando esta nada recebo em troca: contra a fileira cerrada dos instintos, dos interesses, dos raciocí nios, ela é, em todo o sentido da palavra, pertur- bante. Desarma as recusas, oferecendo aos outros um valor a seus próprios olhos elevado, exacta- mente no momento em que eles-esperariam ser expulsos como coisa indesejável, e assim os 4 V ide J. L#acroix: Le Bens du réalisme (Ed . Ia Baccm- nière). A C O M U N IC A Ç Ã O 67 prende à sua comunicação; daí o valor libertador do perdão, da confiança. Só nada consegue contra certos ódios mais misteriosos do que o interesse, e que parecem dirigidos contra o próprio desin teresse. 5.° — Ser fiel. A aventura da .pessoa é uma aventura constante desde o nascimento à morte. , .As dedicações pessoais, amor, amizade, só podem ser perfeitas na continuidade. Essa continuidade não é uma exibição, uma repetição uniforme, como sucede na matéria ou nas generalizações lógicas, mas um contínuo renovamento. A fideli- s dade pesssoal é uma fidelidade criadora 5. Esta dialéctica das relações pessoais aumenta e confirma o ser de cada um de nós. Trato o outro como um objecto quando o trato como ausente, como um repertório de informa ções que me podem ser úteis (Gs, Marcei) ou como instrumento à minha disposição ; quando o classi fico definitivamente, isto é, para empregarmos exacta expressão, quando desespero dele. Tratá-lo 4 como sujeito, como ser presente, é reconhecer que não o posso definir, nem classificar, que ele é inesgotável, pleno de esperanças, esperanças de que só ele dispõe; é acreditar. Desesperar de alguém é desesperá-lo. Ao contrário, a crença que a generosidade permite é infinitamente fecunda. * Sobre o tema da fidelidade, ver G. Marcei: E tre et avoir, jOu refus à Vinvocation. ® apelo, «invocação» (Jaspers), e esse apelo con forta. Por vezes, também se diz, e erradamente, que o amor identifica. Esta afirmação só é verda deira no caso da simpatia6, das afinidades elec- tivas, onde ainda procuramos algo de bom para assimilarmos, uma ressonância de nós próprios numa pessoa a nós semelhante. O amor plena mente realizado é criador de distinções, é reco nhecimento e afirmação do outro enquanto outro. Á simpatia é ainda afinidade da natureza, o amor é uma nova forma de ser. Dirige-se ao sujeito para além da sua natureza; quer a sua realização como pessoa, como liberdade, quaisquer que sejam seus dons ou defeitos, que não são essenciais a seus olhos; o amor é cego, mas duma cegueira extra- -lúcida. Libertando aquele que é chamado, a comu nhão liberta e confirma aquele que chama. O acto de amor é a mais forte certeza do homem, o r «cogito» existencial irrefutável: amo, logo o ser
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