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O Personalismo Emmanuel Mounier

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emmanuel mounier
personalismo
Livraria Martins Fontes 
Praça da Independência , 12
Santos-Brasil
T ítu lo orig ina l
L E P E R S O N N A U S M E 
(Presses Universita ires de France, 1950)
Tradução de 
João Bénard da Costa
Capa ãe
Mendes de Oliveira
3.y ed ição
Direitos para a língua portuguesa 
reservados por Moraes Editores
Trav. Estêvão Pinto,6-A — Lisboa
PREFACIO D A t.* EDIÇÃO
Quando se ofereceu finálmente a possibilidade 
de revelar ao público português a admirável obra 
com que neste tempo nosso se cerrou a mensagem 
de Mounier, trabalhavamos já num volume de 
características diversas t, cujo fim primeiro outro 
não era do que servir de introdução a essa mesma 
mensagem. Nele procuramos encontrar o funda­
dor do Esprit na irredutível complexidade das 
diversas facetas de que se revestiu sua vocação, 
e para ele remetemos, pois, o leitor desejoso de 
mais largos contactos e dum mais vivido conhe­
cimento.
Mas porque esta será a vez primeira que Mou­
nier nos fala em língua portuguesa, cumprem
desde já algumas palavras e algumas considera­
ções que, embora com a brevidade e as lacunas 
a que um prefácio forçosamente exíguo normal- 
mente obriga, ajude a situar esta obra adentro 
do pensamento de Mounier, e este adentro do 
chamado personalismo. Cumprem também e ainda,
1 Emmanuel Mounier, textos escolhidos, traduzidos e 
apresentados por João Bénard da Costa, Colecção Circulo 
do Humanismo Cristão, Lavraria M orais Editora, 1960.
8 PREFÁCIO DA IS EDIÇÃO
porque as diferentes facetas a que atrás nos re­
ferimos — o cristão, o filósofo, o educador, o 
homem de acção, o polemista— se encontram e 
interpenetram da forma mais radical e mais aca­
bada na súmula de todo o seu pensamento que é 
o pequeno volume da colecção Que sais-je? agora 
traduzido.
Publicado no último trimestre de 191+9, a cerca 
de três meses da morte do seu autor, escapa Le 
Personnalisme ao carácter geral e vulgarizaãor 
das obras da colecção a que pertence. Nas páginas 
que se seguem, Mounier não nos vai dar o escla- 
recimento ou o resumo duma doutrina que dele 
não era passível, mas, muito antes, vai tentar, a 
partir de seus temas e dados fundamentais, apre­
sentar-nos em plena elaboração e em plena vida 
uma filosofia que escapa a todas as sistematiza- 
ções, exactamente porque assente na pessoa, que 
é livre e sempre imprevisível. S assim que o que 
aqui encontramos é sobretudo o acento doutriná­
rio, sem corpo de doutrina, a sistematização sem 
sistema, o encontro com temas que merecem e 
justificam existências, essa dimensão de testemu­
nho e de mensagem para que o seu pensamento 
mais normalmente ê compelido e que, tanto sua 
vida como sua obra, sempre quiseram assumir. 
Para lã, pois, de acordos ou desacordos a um nível 
mais — ou menos— especificamente filosófico, 
interessa o próprio e muito outro nível a que a
P R E F Á C IO D A 1 « E D IÇ Ã O 9
obra se coloca, interessa aquilo que nela constitui 
a unívoca dimensão de Mounier — a entrega duma 
vida e dum exemplo, a entrega duma pessoa nos 
caminhos sem retorno duma opção e dum destino.
O valor da filosofia de Emmanuel Mounier 
coloca-se para nós de forma não absolutizada nem 
peremptória, e julgamos situá-lo se dissermos que 
o seu maior motivo de interesse reside na tem- 
poraliâaãe da sua filosofia, ou seja, no vivo diá­
logo por ele estabelecido com o mundo em que 
viveu, mundo que assumiu as bem particulares 
coordenadas duma época e dum lugar, entre os 
quais e nos quais o seu pensamento se precisaria. 
Estamos perante um filósofo que não hesitou em 
sacrificar a filosofia ( tomado este termo agora nq 
sentido docente, no sentido do ensino da filosofia) 
a uma obra que na acção foi construída e na acção 
se perfez; estamos perante um homem que não 
hesitou em abandonar os caminhos que uma acção 
política normalmente implica, por uma lúcida e 
firme meditação que, fundamentando essa acção, 
a impediu de se contradizer ou decompor em 
opções cujo carácter concreto fosse contra o ver­
dadeiro compromisso em que se empenhava e se 
baseava. Neste sentido, o personalismo de Mou­
nier é por excelência o personalismo existencial 
de que fala Berdiaeff: a pessoa realizando-se nas 
coordenadas do facto, no pensamento que se com­
promete, na existência que radica e personaliza a 
própria pessoa.
10 P R E F Á V K i n.\ r ■ /- ' fUCAO
Assim,, não encontramos em Mntum i. m nt o 
filósofo, nem o homem da praxbt, <>u en­
contramo-los, mas a nível difcrrnh jinninios, o 
que impede a dissociação e lha confere mu a outra 
fisionomia em que cremos ver rcv<l<nto algo da 
essencial missão do filósofo em noxxoa dias: o 
homem do engagement-dégagernrnl, <> lumiem 
que, parafraseando Péguy, não guarda as mãos 
puras simplesmente porque as não h mf <> pen­
sador que vai ao fundo da acção para vincular 
esta à meditação. Meditação que nos curgc ime- 
diatizaãa na e pela incarnação, coum to < slabe- 
lecimento de algo que era ainda teórico, r i vencia 
despida de toda a alienação, assunçuo jinne e 
plena dos outros homens, não como lema. duma 
filosofia, mas como base dum caminho e resposta 
ao mais pessoal dos apelos.
Assim o seu personalismo, se em si mesmo 
e em comparação com o de outros filósofos não 
contém muito de novo, é ele mesmo algo de novo, 
e nesta fórmula não paradoxal vai muito do que 
julgamos mais válido em Mounier. Certamente 
podemos lamentar que ele não tenha aprofundado
z
mais este ou aquele pressuposto filosófico que sua 
obra implicava; certamente podemos lamentar 
que ele não tenha escrito sobre a pessoa, a comu­
nidade, a incarnação, o compromisso, o «ou tro », 
a grande obra que tudo parecia preparar. Mas, 
mais do que temos de obras, esses foram temas
de vida, e mais do que um aprofundamento dou­
P R E F Á C IO D A 1* E D IÇ Ã O IX
tros filósofos na sua filosofia, Mounier deixou-nos 
o material onde podemos recolher dados para 
essa imensa tarefa de conferir ao personalismo 
as bases doutrinárias, sem dúvida necessitantes, 
mas que o seu tempo (porque mais directamente 
o obrigou a outros compromissos) lhe não per­
mitiu fazer. «Matriz filosófica» é a expressão que 
Ricoeur2 usa para exprimir a colaboração que 
suas primeiras obras prestaram ãs da maturi­
dade., Cremos que} num sentido mais vasto> é pos­
sível englobar sob esse ponto de vista toda a sua 
obra e dela tomar ponto de partida inesgotável e 
fecundo para as mais válidas meditações. Mas 
cremos também, sinceramente que quem quiser 
compreender Mounier somente desse ponto de 
vista o não compreenderá. Porque a sua filosofia 
nunca foi um ponto de chegadamas um ponto de 
partida, e é no encontro com o homem ao longo 
das suas páginas9 na fidelidade à sua iniluãívél 
vocação de homem da praxis que o podemos com­
preender como tal e apreender a sua dimensão.
Mounier, escreve Lacroix em fórmula que gos­
tamos de recordar, n’est pas allé du personnalisme 
à la personne, mais de la personne au personna- 
lisme, et le personnalisme n’a jamais été pour lui 
un système philosophique, mais le moyen de rap-
* P au l R icoeur — 
zem bro de 1950.
lounier philosophe, em Esprit> D e -
12 P R E F Á C IO D A l . a E D IÇ Ã O
peler chacun à lui-même et à tous 3. Será pre­
ciso que o nosso caminho seja idêntico, para que 
possamos compreender o seu personalismo a par­
tir do homem Mounier e de nós próprios.
Diziam-nos hã pouco que a publicação deste 
livro em língua portuguesa seria adequado barô­
metro dos muitos estados de muitas coisas: o 
maior ou menor acolhimento a esta obra feito 
serviría para aferir o menor ou maior grau de 
aãormecimento a que temos sido lançados e em 
que nos temos deixado lançar. Recusando-nos a 
sempre fáceis e cômodos optimismos ou pessi- 
mismos, confessamos no entanto uma muito es­
pecial expectativa
em relação ao modo como esta 
obra será recebida. Porque, mais do que nunca, 
é para todos nós chegado o tempo dos exames de 
consciência, de má consciência, e porque esta é a 
obra que, inquietando e dividindo, a eles conduz, 
algo dela esperamos sobre a nossa já costumeira 
apatia e desinteresse. Sem querermos parecer 
demasiado enfáticos ou demasiado proféticos, 
julgamos mais do que nunca chegada a hora das 
opções. Por elas espera e a elas nos invoca cada 
uma das páginas deste livro. E terminamos fa-
p
ivendo nossas palavras de Mounier há mais de 
vinte e cinco anos escritas, e que, mais do que
* Jeaxi Lacro ix — Mounier éãucateur, D ezem bro de
1950.
P R E F A C IO D A l . a E D IÇ Ã O 13
quaisquer outras, respondem a tantas das nossas 
hesitações> a tantos dos nossos medos: «Quando 
já não tivermos possibilidades de sucesso, resta- 
-nos testemunhar. Não se perde a vida daqueles 
que souberam dar largo testemunho, Conhecemos 
a fragilidade de nossas forças e do sucesso, mas 
conhecemos também a grandeza do nosso teste­
munho. Eis porque conduzimos sem hesitação a 
nossa tarefa na certeza da nossa juventude».
JO A O B É N A R D D A C O S T A
INTRODUÇÃO FAMILIAR 
AO UNIVERSO PESSOAL
O termo «personalismo» é relativaments re-
í •
cente. Renouvier empregou-o em 1903, para clas­
sificar a sua filosofia, caindo depois em de­
suso. Walt Whitman usou-o nas suas Democratic 
Vistas (1867), e depois dele encontramo-lo em 
vários autores americanos. Reaparece em França 
à roda de 1930 para designar, num contexto muito 
outro, os primeiros estudos a que a revista''Esprit 
e alguns grupos afins ( Ordre Nouveau, etc.) pro­
cederam, a quando da crise política e espiritual 
que então alastrava na Europa1. Na sua 5.a edi­
ção, em 1947, o Vocabulaire Philosophique de 
Lalande reconhecia-o oficialmente. Saindo total­
mente fora da sua significação habitual, o La- 1
1 Esprit foi fundado em 1932. Vide a sua colecção e 
de El. Mounier: Manifeste au Service du personnalisme 
(Aubier, 1936); Qu’e$t-ce que le personnalisme f (Ed. du 
Seuil,v 1947). Num aspecto mais restrito: Personnalisme
Catholique (Esprit} Fevereiro-Março-Abril, 1940), mais
tarde retomado em Liherté sous conditions (Ed. du Seull,
1947).
16 O P E R S O N A L IS M O
rousse toma-o como sinônimo de egocentrismo. 
Assim, como se vê, este termo prossegue por 
caminhos indecisos e divergentes, caminhos duma 
inspiração que se procura e tenta seus rumos.
E, no entanto, aquilo a que se chama hoje 
personalismo está longe de constituir novidade. 
O universo da pessoa é o universo do homem. 
Seria de espantar que se tivesse esperado pelo 
século XX para o explorar, mesmo com outros 
nomes. O mais actual personalismo insere-se, 
como veremos, numa longa tradição.
O personalismo não ê um sistema. — O perso­
nalismo é uma filosofia, não é apenas uma ati­
tude. Ê uma filosofia, não é um sistema.
Não foge à sistematização. Porquanto o pen­
samento necessita de ordem: conceitos, lógica,
i
esquemas unificantes, não servem apenas para 
fixar e comunicar um pensamento que sem eles 
se diluiria em intuições opacas e solitárias; ser­
vem também para perscrutar essas intuições em 
toda a sua profundidade; são simultaneamente 
instrumentos de descoberta e de exposição2. 
Porque define estruturas, o personalismo é uma 
filosofia, e não apenas uma atitude.
Mas sendo a existência de pessoas livres e
4
criadoras a sua afirmação central, introduz no
2 J, Lacro ix : Système et existence ( Vie Intellectuelle, 
Junho de 1946).
INTRODUÇÃO AO UNIVERSO PESSOAL 17
centro dessas estruturas um princípio de impre- 
visibilidade que afasta qualquer desejo de siste- 
matização definitiva. Nada lhe repugna tão pro­
fundamente como o gosto, hoje em dia tão enrai­
zado, por aparelhagens de pensamento e acção 
funcionando como automáticos distribuidores de 
soluções e instruções, obstáculo frente às investi­
gações, seguro contra a inquietação, a dificuldade, 
o risco. Para além de tudo isto, uma reflexão 
nova não deve ter demasiada pressa na reunião 
de toda a gama da sua problemática.
Por isso, e embora por comodidade falemos do 
personalismo, prefeririamos falar dos personalis- 
mos, e respeitar seus diversos caminhos. Por
l
exemplo, um personalismo cristão e um persona­
lismo agnóstico diferem mesmo nas suas íntimas 
estruturas. Nada ganhariam em procurar meios 
termos. No entanto, inserem-se em determinados 
domínios do pensamento, em determinadas afir­
mações fundamentais e em determinadas condu­
tas de ordem prática, quer na ordem individual, 
quer na ordem colectiva: tanto basta para que 
um nome colectivo tenha razão de ser.
Idéia, sumária acerca do universo pessoal. — 
Chegados aqui, esperavamos agora que o perso­
nalismo começasse por definir a pessoa. Mas só 
se definem os objectos exteriores ao homem, que 
se podem encontrar ao alcance da nossa vista.
18 O P E R S O N A L IS M O
Mas a pessoa não é um objecto. Antes, é exac- 
tamente aquilo que em cada homem não é passí­
vel de ser tratado como objecto. Eis o meu vizi­
nho. Tem do seu corpo um sentimento único, de 
que não posso participar; mas posso observar de 
fora esse corpo, examinar as suas disposições, 
manifestações hereditárias, formas, doenças, 
numa palavra, tratá-lo como se tratam matérias
b
do saber fisiológico, médico, etc. Se é funcionário, 
terá um regulamento de funcionário, uma psico­
logia de funcionário, que podem ser estudados 
no seu caso, embora se não identifiquem com ele, 
com ele todo, na sua realidade compreensiva. 
Do mesmo modo, será ainda um francês, um 
burguês, um maníaco, um socialista, um católico, 
etc. Mas já não será um Bernard Chartier; é 
Bernard Chartier. As mil maneiras por que eu 
posso determiná-lo como um exemplar duma 
classe ajudam-me a compreendê-lo e sobretudo a 
utilizá-lo, a saber como me hei-de comportar 
quando estou com ele. Não são, no entanto, mais 
do que facetas fornecidas por cada um dos dife­
rentes aspectos da sua existência. Mil fotografias 
sobrepostas não nos dão um homem que anda, que 
pensa e que quer. Muitos pensam erradamente 
que o personalismo pretende somente que, em vez 
de se tratarem homens em série, se tomem sobre­
tudo em linha de conta as suas mais subtis dife­
renças. O «admirável mundo 
um mundo em aue exércitos i
» Huxley
IN T R O D U Ç Ã O A O U N IV E R S O P E S S O A L 19
cólogos tentam condicionar cada indivíduo de 
acordo com minuciosas instruções. Assim proce­
dendo, de fora e por meio da força, transfor­
mando-os em máquinas bem elaboradas e bem
mundo
entanto, a antítese dum universo 
nente porque tudo está regulado.
nada corre aí o risco duma liberdade responsável. 
Faz da humanidade uma imensa e perfeita casa 
de bonecas.
Portanto, não existem pedras, árvores, ani-
4
mais — e pessoas, sendo estas árvores que andam,
ou animais mais astutos. A pessoa não é o mais
» *
aravilhoso objecto do mundo, objecto que conhe­
céssemos de fora, como todos os outros, fi a
* %
única realidade que conhecemos e que, simulta­
neamente, construímos de dentro. Sempre pre­
sente, nunca se nos oferece.
Não nos precipitemos, contudo, arrumando-a 
no reino do indizível. Uma experiência rica, que 
no mundo se insere, exprime-se por incessante 
criação de situações, de regras, de instituições. 
Mas sendo os recursos da pessoa indefinidos, nada
l
do que a exprime a esgota, nada do que a condi­
ciona a escraviza. Não sendo um objecto visível, 
também não é resíduo interno, uma qualquer 
substância escondida por detrás dos nossos com­
portamentos, princípio abstracto de nossos con­
cretos gestos; se o fosse, seria ainda, por qual­
quer forma, um objecto ou um fantasma de
20 O P E R S O N A L IS M O
objecío. Ê uma actividade vivida de auto-criação, 
de comunicação
e de adesão, que em ac to, como 
movimento de personalização, alcançamos e co­
nhecemos. A uma tal experiência ninguém pode 
ser condicionado, nem constrangido. Aqueles que 
mais integralmente a realizam vão atraindo 
outros à sua roda, despertam os que dormem, e 
assim, de apelo em apelo, a humanidade vai-se 
libertando do pesado sono em que vegetava e que 
ainda a amortece. Quem se recusa a escutar esse
apelo e a comprometer-se na experiência duma
• •
vida pessoal, perde o seu sentido como se perde 
a sensibilidade dum órgão que já não funciona. 
Julgará então que se trata duma complicação do 
espírito ou duma mania de seita.
Há portanto duas maneiras de exprimir a ideia 
central do personalismo.
Podemos partir do estudo do universo objec- 
tivo, demonstrar que o modo pessoal de existir 
é a mais ialta forma de existência, ou que toda 
a evolução da natureza anterior ao homem con­
verge no momento criador em que surge este 
acabamento do universo. Diremos que a realidade 
central do universo consiste num movimento de 
personalização, não sendo as realidades impes­
soais, ou mais ou menos largamente despersona- 
lizadas (a matéria, as espécies vivas, as idéias) 
mais do que perdas de velocidade ou demoras da 
natureza no caminho da personalização. O insecto
INTRODUÇÃO AO UNIVERSO PESSOAL
que se confunde com um ramo, para se fazer 
esquecer na imobilidade vegetal, prefigura o 
homem que se enterra no conformismo para não 
assumir as responsabilidades próprias, o que se 
entrega às idéias gerais ou às efusões sentimen­
tais para não ter que afrontar factos e homens. 
Na medida em que uma tal descrição permanece 
objectiva, limita-se a apresentar muito imperfei­
tamente uma realidade que não é sobretudo objec­
tiva.
Por outro lado, pode viver-se püblicamente 
uma experiência de vida pessoal, esperando con­
quistar grande número dos que vivem como 
árvores, como animais ou como máquinas, 
son evocava o «apelo do herói ou do santo». Que 
estas palavras não iludam: o apelo pessoal nasce 
da mais humilde das vidas.
Poderemos ver agora o paradoxo central da 
existência pessoal. Esta é o modo especificamente 
humano de existir. Deve ser, no entanto, inces­
santemente conquistada; só muito lentamente ê 
que a consciência se vai libertando do mineral, 
da planta ou do animal que em nós pesam. A his­
tória da pessoa será assim paralela à história do 
personalismo. Não se desenvolverá somente no 
plano da consciência, mas, em toda a sua gran­
deza, no plano do esforço humano para huma­
nizar a humanidade.
22 O PERSONALISM O
Breve história ãa noção de pessoa e da condi­
ção pessoal 3 Se só nos cingirmos à Europa,
verificaremos que na Antiguidade, e até aos alvo* * 
res do cristianismo, o sentido da pessoa se man­
tém embrionário. A cidade e a família absorvem
9
o homem antigo, homem submetido a um destino 
cego, sem nome, superior aos próprios deuses. 
A escravatura não choca, nem mesmo os mais 
elevados espíritos de então. Os filósofos apenas 
se preocupam com o pensamento impessoal e sua 
ordem imóvel que rege simultâneamente a natu­
reza e as idéias. A aparição do singular é, de certo 
modo, uma sombra na natureza e nas consciên­
cias, Platão tentou reduzir a alma individual ao 
nível duma participação na natureza e duma par­
ticipação na cidade: daí o seu «comunismo». De 
resto, tanto para ele como para Sócrates, a imor­
talidade individual não era mais do que bela e 
arrojada hipótese. Aristóteles insiste, com efeito, 
na ideia de que só o individual é real, mas o seu 
deus não pode querer com uma vontade parti­
cular, nem conhecer essências singulares, nem 
amar dum amor que escolhe. Para Plotino, na
* Sobre esta h istória encontrarem os indicações em
*
J. P laquevent: Individu et personne, Esquisse des notions 
(Esprit, Janeiro de 1938). D u as Histoires du personnar 
lisme estão sendo preparadas, um a em F ran ça e outra 
nos E . U . A .
INTRODUÇÃO AO UNIVERSO PESSOAL, 23
origem de qualquer individualidade existe algo 
como um pecado original, só havendo salvação 
num regresso total ao Uno e ao In temporal.
No entanto, os Gregos tinham um agudo sen­
tido da dignidade do ser humano, que muitas ve­
zes introduzia na sua ordem impassível uma certa 
ambiguidade. Testemunho do que dizemos é por 
exemplo o seu gosto pela hospitalidade, o seu 
culto pelos mortos. Pelo menos uma vez, Sófocles 
(Êdipo em Colona) tenta substituir a ideia dum 
destino cego pela duma justiça divina de discer­
nimento dotada. Antígona é a afirmação e o pro-
I
testo dos que testemunham valores eternos, con­
tra o poder. As Troianas opõem à ideia da fatali­
dade da guerra a da responsabilidade dos homens. 
Aos discursos utilitários dos sofistas, opõe Só­
crates o aguilhão da ironia, que, perturbando o 
interlocutor, o põe em cheque e aos seus conheci­
mentos. O «conhece-te a ti próprio» é a primeira 
grande revolução personalista conhecida. Dadas 
as resistências do meio, só podia ter consequên­
cias limitadas., Finalmente, não poderemos esque­
cer o Sábio da Ética a Nicómaco, nem o emocio­
nante pressentimento que os estoicos tiveram da 
earitas generis humanL
O cristianismo rompe de súbito por entre estas 
apalpadelas, para se tornar o arauto duma noção 
decisiva de pessoa. Nos nossos dias, mal nos pode­
mos aperceber do escândalo formidável que tal
24 O P E R S O N A L IS M O
noção constituía para o pensamento e para a sen­
sibilidade dos gregos:
1. ° — Ao passo que a multiplicidade era para 
estes um mal inadmissível a qualquer espírito, 
para o cristianismo é um absoluto, afirmando 
ainda a criação ex niJúlo e o destino eterno de 
cada pessoa. O Ser supremo, que por amor os fez 
existir, não confere unidade ao mundo através da
abstracção duma ideia, mas através duma infinita
^ .... ' ■ ■ ■ ■ ■ ■
capacidade para multiplicar indefinidamente esses 
actos de amor únicos. Não sendo, de forma al­
guma, uma imperfeição, essa multiplicidade, nas­
cida da superabundãncia, implica por si mesma 
a superabundãncia da infinita troca, no amor pro­
cessada. Durante muito tempo o escândalo desta 
multiplicidade das almas chocará contra vestí­
gios da sensibilidade antiga, e vemos um Averroes 
ter ainda! a necessidade de imaginar uma alma 
comum à espécie humana.
2. ° — O indivíduo humano deixa de ser o cru­
zamento de várias participações em mais gerais 
realidades (matéria, idéias, etc.), para ser um 
todo indissociável, cuja unidade, porque no abso­
luto assente, precede a multiplicidade.'
3. ° — Acima das pessoas já não reina a tirania 
abstracta dum Destino, duma constelação de 
idéias ou dum Pensamento Impessoal, indiferen­
tes a destinos individuais, mas um Deus que é ele 
próprio pessoal, embora dum modo eminente, um 
Deus que «entregou a sua pessoa» para assumir
IN T R O D U Ç Ã O AO U N IV E R S O P E S S O A L 25
e transfigurar a condição humana, e que propõe 
a cada pessoa uma relação única em intimidade, 
uma participação na sua divindade; um Deus que 
se não afirma, como pensou o ateísmo moderno 
(Bakounine, Feuerbach), sobre coisas arrancadas 
ao homem, mas que antes_ lhe outorga uma liber­
dade análoga à sua, pagando-lhe em generosidade 
o que em generosidade for dado.
4. ° — O profundo movimento da existência 
humana não tende a assimilar-se à generalidade 
abstracta da Natureza ou das Idéias, mas a trans­
formar o «coração do próprio coração» ( meta- 
noia), para que nele se introduza e sobre o mundo 
irradie um Reino transfigurado. O segredo de 
nossos corações, onde se decide, por opção pessoal, 
essa transmutação do universo, é domínio inviolá­
vel, que ninguém pode julgar, e que não é conhe­
cido por ninguém, nem pelos anjos, mas somente 
por Deus.
5. ° — A esse movimento o homem é livremente
chamado. A liberdade é constitutiva da existência
:
criada.
Deus teria podido criar num momento 
uma criatura tão perfeita quanto o pudesse ser. 
Preferiu que fosse o homem o chamado a amadu­
recer livremente a humanidade e os efeitos da 
vida divina. O direito de pecar, ou seja, de recusar 
o seu destino, é essencial ao pleno uso da liber­
dade. Longe de ser um escândalo, antes seria a 
sua ausência que alienaria o homem.
26 O P E R S O N A L IS M O
6. Esse absoluto pessoal não isola o homem,
nem do mundo, nem dos outros homens. A Incar-
* \
nação confirma a unidade da terra e do céu, da 
carne e do espírito, confirma o valor redentor da 
obra humana logo que assumida pela graça. Pela 
primeira vez a unidade do gênero humano foi 
plenamente afirmada e duas vezes confirmada: 
cada pessoa é criada à imagem de Deus, cada 
pessoa é chamada para formar um imenso Corpo 
místico e carnal na Caridade de Cristo. Começa 
a tomar sentido uma história colectiva da huma­
nidade, de que os gregos não tinham sequer idéia. 
A própria concepção da Trindade, que alimentou 
dois séculos de debates, traz consigo a ideia sur­
preendente dum Ser Supremo no qual intima­
mente dialogam pessoas diferentes, dum Ser que
\
é já, por Si próprio, negação da solidão.
Esta visão era demasiado nova, demasiado 
radical, para produzir imediatamente todos os 
seus frutos. Fermento da história, aos olhos dos
cristãos, desenrolar-se-á até ao fim da história.
Durante toda a época medieval, uma longa
•»
obstinação lhes foi oposta pelas persistências so­
ciais e ideológicas da Antiguidade grega. Foram 
precisos vários séculos para se passar da reabili­
tação espiritual do escravo à sua efeetiva liberta- 
ção, da igualdade das almas ainda não extraímos 
a igualdade de possibilidades na vida social: nos 
fenômenos de massa o espírito não vai mais de­
INTRODUÇÃO A O UNIVERSO P E S S O A L 27
pressa do que o corpo; ora a condição pré-técnica
da época feudal impede a humanidade medieval
de se libertar do peso excessivo do trabalho e da
fome, e de construir uma unidade cívica acima
dos estados sociais. Embora e imediatamente o
cristianismo tenha lutado enèrgicamente contra
ela, a tentação dualista arrasta-se ainda hoje na
sensibilidade comum. Alimentou na alta Idade
Média uma demorada aberração platônica que o
realismo albertino-tomista refreou, reafirmando a
dignidade da matéria e a unidade da constituição
humana. No entanto, a noção de pessoa foi-se pre- *
cisando pouco a pouco através das controvérsias 
trinitárias e cristológicas, do sécufo I I ao sé­
culo VI, mais ricamente harmonizada pela sensi­
bilidade grega, encontrando maior resistência de 
fundo do juridismo romano que, no entanto, lhe 
ia emprestando o rigor de suas fórmulas. Cada 
grande pensamento lhe acrescentava algo de novo. 
Mas o aparelho lógico e conceptual herdado dos 
gregos, centrado sobre a classe e a generalidade, 
não facilitava a sua expressão.
Ê costume relacionar com Descartes o raciona-%
lismo e o idealismo modernos, que dissolvem na 
ideia a existência concreta. Esquece-se assim o 
carácter decisivo e a cpmplexa riqueza do Cogito. 
Acto dum sujeito, tanto como intuição duma inte­
ligência, é afirmação dum ser que rompe com os 
intermináveis cursos da ideia e se assume com 
autoridade na existência. O voluntarismo, de
23 O PERSONALISMO
Ockam a Lutero, tinha preparado esses caminhos. 
Daí para diante a filosofia deixa de ser uma lição 
que se aprende, como era costume na escolástica 
decadente* para ser uma meditação pessoal, e 
a cada um é pedido que, por sua conta, a refaça. 
Começa, como o pensamento socrático, por uma 
conversão, uma conversão à existência (4). No 
mesmo momento, a jovem burguesia sacode as 
formas insuportáveis da estrutura feudal. Mas, em 
reacção a uma sociedade demasiado pesada, a bur-
c
guesia exalta o indivíduo isolado e lança as bases 
desse individualismo econômico e espiritual, de 
que ainda hoje sofremos os desgastes. Da mesma 
forma, Descartes consente ainda no seu Cogito 
germes do idealismo e solipsismo metafísicos que 
minarão profundamente o personalismo clássico, 
de Leibniz aos kantianos, apesar das abundantes 
riquezas de que foi portador através do seu 
caminho.
Hegel fica-nos sobretudo como o arquitecto im­
ponente e monstruoso do imperialismo da ideia 
impessoal, Todas as coisas, todos os seres, se vão 
dissolvendo na sua representação; não foi por 
acaso que ele veio a defender a total submissão
do indivíduo ao Estado. Mas não devemos esque­
cer, por isso, tudo o que o personalismo deve a 
Leibniz e a Kant, e a dialéctica da pessoa a todo
* Maxime Chastaing: Descartes, introãucteur à la vie 
p&rsonnelle (Esprit, Julho de 1937).
INTRODUÇÃO AO UNIVERSO PESSOAL 29
o esforço de reflexão do pensamento idealista. Pai
da dialéctica e da consciência existencial moderna,
Pascal teria sido o maior dos seus antecessores,
se o pensamento jansenista o não afastasse para
«
uma religião isolada e altiva a que Kierkegaard 
igualmente aderirá, Muito episòdicamente, cite­
mos Malebranche e o seu Traité de Morale; Rous-
seau, restituindo ao seu século* através do empo- * \
brecido racionalismo das Luzes, que o individua­
lismo arrastava, o sentido da solidão, ao mesmo 
tempo que lançava as bases duma educação do 
ser pessoal. E assinalemos a aetuaiidade de Goe- 
the, que procurou na acção a unidade dinâmica 
do espírito e da matéria. Já para o século X IX é 
preciso sublinhar três nomes que só alcançariam 
a glória no século seguinte, de tal forma estavam 
longe do clima ideológico da sua época.
Maine de Biran é o moderno precursor do per­
sonalismo francês. Denunciou a mecânica mental 
dos ideólogos que dissolviam a existência concreta 
nos pseudo «elementos» do pensamento, pro­
curando o eu no esforço motor pelo qual nos afir­
mamos no mundo. Unindo uma iniciativa interior 
e uma iniciativa muscular, esta experiência revela 
no centro de toda a consciência uma relação de 
exterioridade e de objectividade: é preciso não 
opor consciência e espaço; toda a consciência é 
espacializante, afirmasse no espaço. O pensamento 
de Maine de Biran iluminou, por forma notável, 
as raízes da pessoa e a sua zona.de emergência.
30 O PERSONALISMO
Por sua vez, Kierkegaard, face ao «sistema» 
simbolizado por Hegele seu degradado espiritua-
lismo, afirma o irredutível surto da liberdade.
«
Profeta da grandeza paradoxal e dramática do 
homem, levanta-se contra o optimismo do con­
forto burguês e da razão fácil, sofrendo, no en­
tanto, infelizmente, a influência dos desvarios do 
romantismo, não conseguindo chegar a sair da 
sua abrupta solidão para se unir ao mundo e aos 
homens. Mas inserido numa época pronta para 
todas as servidões em troca duma qualquer feli­
cidade vegetativa, levou ao paroxismo o sentido 
da liberdade na sua ligação radical com o sentido 
do absoluto.
Paralelamente a Kierkegaard, Marx acusou 
Hegel de fazer do espírito abstracto, e não do
homem concreto, o sujeito da história, reduzindo 
à Ideia a realidade viva dos homens. Esta aliena­
ção transcreve aos seus olhos a do mundo capita­
lista, que trata o homem trabalhador e produtor 
como objecto da história e que, ao mesmo tempo 
que o expulsa de si próprio, o expulsa do seu 
reino natural. Parece, pois, que aquilo a que se 
podia chamar a revolução socrátíca do século XIX, 
ou seja, o assalto contra todas as forças modernas 
de despersonalização do homem, se separou em
s
dois ramos: um deles, através de Kierkegaard, 
chama o homem moderno, deslumbrado pela des­
coberta e exploração do mundo, à consciência da 
sua subjectividade e da sua liberdade; o outro,
INTRODUÇÃO AO UNIVERSO PESSOAL 31
através de Marx, denuncia as mistificações a que 
o conduzem estruturas sociais enxertadas na sua
é
condição material, e lembra-lhe que o seu destino 
não depende somente do seu coração, mas
das suas
* • s
mãos. Lamentável separação! Com o correr dos 
tempos, a separação entre as duas linhas mais se
acentuou, e a missão da nossa época é, talvez, não 
a de as reunir naquilo em que elas não poderão
jamais encontrar-se, mas sim de ultrapassar suas 
divergências para uma unidade de que se exi­
laram.
Para além destes vultos que assinalam as gran­
des linhas do século, seria preciso seguir o lento 
desenvolvimento sociológico da condição humana. 
Por mais reservas que se possam fazer à Revolu­
ção Francesa, não há dúvida de que ela marca 
uma fase importante da libertação política e so­
cial, embora limitada pélo seu contexto individua­
lista. Desde essa ocasião, um quase fatalismo se 
desenvolve. Por um lado, o individualismo, encon­
trando terreno favorável na fase conquistadora do 
capitalismo, desenvolve-se rapidamente. O Estado 
liberal cristaliza-o nos seus códigos e nas suas 
instituições e, embora professando um persona­
lismo moral (de raiz kantiana) e político (ao gosto 
burguês), lança a condição concreta das massas 
urbanas na escravidão social, econômica e, bem 
depressa, política. O romantismo desenvolve as 
paixões do indivíduo, percorre todas as gamas da 
afectividade, mas, arrastando-o para o isolamento,
O P E R S O N A L IS M O82
não lhe permite a escolha senão entre a solidão 
desesperada e a dispersão do desejo. Recuando 
perante essas novas angústias, e temendo as im­
prudências do desejo, o mundo do pequeno 
burguês recalca-o por detrás de uma aparência de 
medíocres satisfações: instaura o reino do indivi­
dualismo cauteloso. Na mesma época, o brusco e 
repentino surto da técnica rompe as fronteiras do 
indivíduo e os seus espaços fechados, e instala em 
todos os campos os grandes espaços e as relações 
colectivas. Acossado, o individualismo começa a 
recear, quer a anarquia em que sossobra, quer o 
colectivismo que o ameaça. A sua tendência é para 
cobrir com o nome de «defesa da pessoa» as suas 
manobras de bastidores. Já Renouvier denunciava 
como igualmente perigosas a paixão metafísica 
e a procura política da unidade. A pessoa, para 
ele, é antes de mais o não, a recusa de aderir, a 
possibilidade de se opor, de duvidar, de resistir 
à vertigem mental e correlativamente a todas as 
formas de afirmação colectiva, quer sejam teoló­
gicas, quer sejam socialistas; Reacção sã, infini­
tamente sã, contra certos perigos, mas que se vai 
enredar em tentações anárquicas. Foram estas 
que esterilizaram parcialmente a grande obra de 
Proudhon. O anarquismo apaixonado que vem de 
Nietzche dramatiza o lance, mas encoraja a 
mesma forçada atitude negadora de que tanto se 
aproximam algumas correntes do existencialismo.
IN T R O D U Ç Ã O A O U N IV E R S O P E S S O A L 33
No entanto, a escolha não recai entre um cego 
impersonalismo, enorme cancro que prolifera e 
destrói, e o soberbo desespero dos que preferem 
apenas morrer de pé. Homens houve que come­
çaram já a desmistificar o medo dos mitos, desen­
volvendo, ao mesmo tempo, uma mais rica noção 
do homem pessoal, das suas relações com o mundo
e suas obras. Depois de Lotze, as primeiras tradu­
ções de Max Scheler e de Buber são contemporâ­
neas dos primeiros livros de JBerãiaeff? que pre­
tende não sacrificar, nem a liberdade de espírito, 
nem a técnica, tal como pouco antes Bergson não 
quisera abandonar, nem o surto da liberdade, nem 
o rigor da ciência. Depois de Laherthonnière, 
Maurice Blonãel define uma dialéctica do espírito 
e da acção que arruina profundamente os contor­
nos do espiritualismo. Enquanto Pêguy fazia bro­
tar do seu lirismo todos os temas que temos vindo 
a abordar, J. Maritain aplica aos mais actuais pro­
blemas o realismo desmistificador que lhe vem de
S. Tomás., Gabriel Marcei e Jaspers, um cristão, 
o outro agnóstico, contribuem fundamentalmente
para a descrição das estruturas do universo pes­
soal. Muito próximo deles, na sua interrompida 
obra, P. L. Lanãsberg. Sobre estas tentativas, mais 
especificamente personalistas, às quais, depois de 
1932, a revista Esprit dá continuidade, o movi­
mento de renovação existencialista e o movimento 
de renovação marxista exercem duas pressões la­
terais. O primeiro contribuiu em larga escala para
34 O PERSONALISMO
renovar problemas personalistas: a liberdade, a 
interioridade, a comunicação, o sentido da histó­
ria. O segundo incita todo o pensamento contem­
porâneo a libertar-se das mistificações idealistas,, 
a partir da comum condição dos homens, e a ligar 
a mais alta filosofia aos problemas da cidade mo- 
derna; Poderiamos assim indicar uma tangente 
existencialista do personalismo (onde veriamos 
nomes como os de Berdiaeff, Landsberg, Ricoeur,
• i
Nédoncelle), uma tangente marxista, muitas ve­
zes concorrente à primeira, e uma tangente mais 
clássica, na tradição do pensamento francês (La- 
chièze-Rey, Nabert, Le Senne, Madinier, J. La- 
croix).
Fora da França, encontramos, formando-se em 
várias direcções, algumas correntes que se recla­
mam do personalismo. Outras, embora não o invo­
quem, dele estão próximas. Na Inglaterra o nome
é reivindicado por uma ou duas revistas e pelo 
Personnalist Group de J. B. Coates. Inspiraram-se. 
sobretudo em John Macmurray, John Middleton 
Murry, N. Berdiaeff e Buber; e não podemos 
esquecer Newman. Um contexto formado por 
subjectivismo religioso, liberalismo político e an- 
titecnicismo ruskiniano (R Read) leva-os, por 
vezes, para muito longe das vias percorridas pelo 
personalismo francês, mas o diálogo mantém-se. 
Na Holanda, nascido num campo de concentração 
em 1941, o movimento personalista desenvolveu-se 
apenas no plano político e tentou realizar um novo
INTRODUÇÃO AO UNIVERSO PESSOAL 35
socialismo através do «Movimento Popular Neer- 
landês», que ocupou o poder a quando da liber­
tação, antes da fusão com o partido socialista. Nos 
Estados Unidos, de Royce e Howinson a Bownes, 
Brightman e Flewelling, desenvolveu-se uma im­
portante corrente. Na Suíça, onde Secrétan não foi 
esquecido, publicam-se os Cahiers Suisse Esprit. 
Nos países que se libertaram do fascismo, for- 
mam-se grupos de inspiração semelhante.
Visto que a pessoa não é um objecto que se 
separe c se observe, mas um centro de reorienta- 
ção do universo objectivo, resta-nos orientar agora 
a nossa análise para o universo por ela edificado, 
a fim de iluminar nos seus diversos planos as 
estruturas, sendo preciso não esquecer que esses 
planos não são mais do que incidências diferentes 
sobre uma mesma realidade. A verdade de cada 
um só existe quando em união com todos os 
outros.
PRIMEIRA PARTE
AS ESTRUTURAS DO UNIVERSO PESSOAL
C A P IT U L O I
A EXISTÊNCIA INCORPORADA
Os modernos espiritualismos dividem o mundo 
e o homem em duas substâncias independentes, a 
matéria e o espírito. Umas vezes aceitam como 
facto consumado a independência das duas subs-
tâncias (paralelismo psico-fisiológico) e, deixando 
a matéria entregue às suas fatalidades próprias, 
reclamam, no entanto, o direito de legislar em 
absoluto no reino do espírito: a junção dos dois 
mundos é então inexplicável. Outras vezes, negam 
qualquer realidade ao mundo material, que con­
sideram simples aparência do espírito: a impor­
tância dessa aparência assume, então, foros de 
paradoxo.
Desde o início que um tal esquema é desfeito 
pelo realismo personalista.
A pessoa está mergulhada na natureza.— O ho­
mem é corpo exaetamente como é espírito, é inte­
gralmente «corpo» e é integralmente «espírito». 
Dos seus mais primários instintos, comer, repro- 
duzir-se, é capaz de passar a artes subtis: a culi-
40 O PERSONALISMO
nária, a arte de amar. Uma dor de cabeça, no 
entanto, detém o grande filósofo e, no meio dos 
seus êxtases, S. João da Cruz vomitava.
O meu feitio e a minha maneira de pensar são 
amoldados pelo clima, a
geografia, a minha situa­
ção à face do globo, a minha hereditariedade, e, 
talvez, até, pela acção maciça dos raios cósmicos. 
Para além destas influências, temos ainda poste­
riores determinações psicológicas e colectivas.
Nada há em mim que não esteja imbuído de terra 
e de sangue. E estudos vários demonstraram que 
as grandes religiões seguem os mesmos caminhos 
das grandes epidemias. Porque razão nos haveria­
mos de chocar? Também os pastores têm pernas 
que os guiam através dos declives do caminho.
Eis o que contêm de verdadeiro as análises 
materialistas. Mas nada trouxeram de inédito. 
A indissolúvel união da alma e do corpo é o centro 
do pensamento Cristão, Nunca opôs «espírito» a 
«corpo» ou a «matéria», na acepção moderna deste 
termo. Para ele, o «espírito», no sentido compósito 
em que o espiritualismo moderno emprega esse 
termo, ou seja designando ao mesmo tempo o pen­
samento (nous), a alma (psyché), e a própria 
respiração, funde-se com o corpo na nossa exis­
tência. Quando o todo assim formado segue num 
sentido inverso ao da sobrenatural vocação do 
homem, o cristianismo dá a esse movimento o 
nome de carne, designando assim, a um tempo, 
o peso da alma e o dos sentidos; quando, ao con­
A EXISTÊNCIA INCORPORADA 41
trário, tudo nos leva a Deus, corpo e alma con­
juntamente colaboram no reino do espiritual 
( pneuma), reino sólido de Deus e não reino etéreo 
do Espírito. Se a natureza humana foi ferida pelo 
pecado original, foi o composto humano na sua 
totalidade que foi atingido; e já nos Evangelhos 
a malícia e as perversões do espírito provocaram
9
mais maldições do que as da «carne», no sentido 
restrito da palavra. O cristão que fala com des­
prezo do corpo e da matéria, fá-lo contra a sua 
mais central tradição. A teologia medieval consi­
derava que, vulgarmente, só podemos aceder às
1
mais altas realidades espirituais, e até a Deus, 
através da matéria e do peso que sobre ela, exerce­
mos. Foi antes o desprezo dos gregos pela matéria 
que se transmitiu de século em século até aos 
nossos- dias, cobrindo-se de falsas justificações 
cristãs.
Impõe-se-nos hoje acabar com esse pernicioso 
dualismo, tanto na nossa maneira de viver, como 
no nosso pensamento. O homem é um ser natural; 
através do seu corpo faz parte da natureza, e o 
seu corpo segue-o por toda a parte. Saibamos 
tirar daqui as consequências.
A natureza — natureza exterior, anterior ao 
homem, inconsciente psicológico, participações so­
ciais não personalizadas— em nada contribui para 
o mal do homem: a incamação não é uma queda.
Mas exactamente porque é a situação do impes­
soal e do objectivo, é permanente ocasião de alie-
42 O PERSONALISMO
nação. A miséria, tal como a abundância, esmaga- 
-nos. O homem está como que cercado por uma 
e outra. O marxismo pensa bem quando diz que 
o fim da miséria material é o fim duma alienação, 
e etapa necessária para o desenvolvimento da
humanidade,, Mas não é aí que terminam todas 
as alienações, nem mesmo num plano natural.
A pessoa transcende a natureza. — O homem 
é um ser natural. Será somente um ser natural? 
Será, inteiramente, um joguete da natureza ? Inse­
rido na natureza, transcendê-la-á quando dela 
emerge ?
A dificuldade está em colocarmos correcta­
mente esta noção de transcendência. O nosso es­
pírito resiste à representação duma realidade que 
esteja inteiramente inserida numa outra, na sua 
existência concreta, e que, no entanto, lhe seja 
superior em nível de existência. Não se pode
morar ao mesmo tempo no rés-do-chão e no 6.° 
andar, dizia Léon Brunschvig, o que apenas con­
segue ridicularizar, numa imagem espacial, uma 
experiência que o espaço não pode transcrever. 
O universo está cheio de homens que fazem os 
mesmos gestos nos mesmos sítios, mas que trazem 
consigo e à sua volta suscitam universos mais 
remotos do que constelações.
Examinemos, pois, a natureza. Abandonemos 
o mito materialista da Natureza, Pessoa impes-
é
soai de ilimitados poderes. Abandonemos o mito
A E X I S T Ê N C I A IN C O R P O R A D A 43
romântico da Mãe afável, sagrada, imutável, de 
que não nos podemos afastar sob pena de sacrilé­
gio ou de catástrofe; tanto um como outro subme­
tem o homem pessoal e activo a um fictício im­
pessoal. Na realidade, a natureza nada mais nos 
dá, nada mais entrega ao nosso conhecimento ra­
cional do que um feixe infinitamente complicado 
de determinações, das quais não chegamos mesmo 
a saber se, para além dos sistemas que formulamos 
para assegurar a nossa marcha, serão redutíveis a 
uma unidade lógica. Em nome de que autoridade 
nos limitamos a esses indícios ? Por exemplo, com 
Pavlov, às cadeias de reflexos condicionados?
Se quisermos ter uma noção da humanidade, 
precisamos de a captar no seu vivo exercício e na 
sua actividade global. As experiências de Pavlov 
são criações artificiais de laboratório: os seus
resultados têm um aspecto mecanicista,, porque o 
sujeito se encontra aí colocado em condições per-
feitamente mecânicas* O homem escapa-lhe: «O 
homem é um ser natural, mas é um ser natural
humano»x., E, exactamente, o homem singula- 
riza-se por uma dupla capacidade de romper com 
a natureza. Só ele conhece esse universo que o 
absorve e só ele o pode transformar, ele, o menos 
armado e o menos poderoso dos grandes animais.
4
E, o que é infinitamente mais, é capaz de amar. 1
1 Marx: É con om ie politique et ph ilosoph ie, Ed. Coste, 
p. 78.
44 O PERSONALISMO
Um cristão acrescentará: foi capacitado para ser 
cooperador de Deus. É preciso não esquecer os 
reflexos salivares, mas é preciso também que não 
sejam eles a obcecar-nos.
Os determinismos de que tanto se fala não são 
uma figura de retórica. Mas a noção de determi­
nismo, embora não expulsa da ciência, como por 
vezes se diz, foi localizada ao nível dos fenôme­
nos materiais de grande projecção. Os fenômenos 
infra-atómicos alteram-na. Os fenômenos biológi­
cos ultrapassam-na. Ã escala vulgar, existe hoje, 
apenas, para o físico, uma «causalidade fraca», de 
modo que «uma mesma causa pode produzir um
ou outro de vários efeitos possíveis, somente com 
uma certa probabilidade de obter um efeito e não 
outro» (L. de Broglie). O homem não é encerrado 
no seu destino pelo determinismo. Se nos man­
temos concretamente ligados a numerosos e estrei­
tos determinismos, cada novo determinismo que 
os sábios descobrem é mais uma nota na gama da 
nossa liberdade. Enquanto se desconheceram as 
leis da aerodinâmica, os homens sonhavam voar;
quando o seu sonho se inseriu num feixe de neces­
sidades, voaram. Sete notas são pequeno registo: 
no entanto, foi com estas sete notas que vários 
séculos de invenção musical se estabeleceram. 
Aquele que invoca fatalidades naturais para negar 
as possibilidades do homem, abandona-se a um 
mito ou tenta justificar uma demissão.
A E X I S T Ê N C I A IN C O R P O R A D A 45
Esta ascensão da pessoa criadora pode seguir- 
»se na história do mundo. Aparece-nos como uma 
luta entre duas tendências de sentido oposto:
— uma é uma permanente tendência para a
«
ãespersonalização. Não atinge somente essa maté­
ria que é impersonalidade, dispersão, indiferença, 
que tende para o nivelamento (degradação de
energia), identidade ou repetição, como se esses
«
fossem seus fins. Atinge a própria vida, abate os 
seus impulsos, desdobra-a em espécies de exem­
plares indefinidamente repetidos, degenera as des­
cobertas em automatismos, esconde a audácia vital 
em formações de segurança donde a própria in­
venção se retira, continua por inércia movimen­
tos que em seguida se voltam contra o seu fim. 
/Ycaba por aniquilar a vida social e a vida do espí­
rito através do afrouxamento do hábito, da rotina, 
das idéias gerais e da tagarelice de todos os dias;
— a outra é um movimento de personalização
r
«
que, em rigor, só começa com o homem, mas cuja 
I (reparação se anuncia ao longo de toda a história 
do universo2., Os fenômenos radioactivos já 
fazem prever uma primeira ruptura nas fatalida­
des monótonas da matéria. A vida aparece segui­
damente como uma acumulação de energia cada 
vez mais organizada em feixes de indeterminação 
cada vez mais complexos; abre assim a gama de
2 Sobre esta p repararão ver os textos do P . Teilhard 
de Chardin.
46 O P E R S O N A L IS M O
possibilidades que os dispositivos biológicos ofere­
cem ao livre arbítrio do indivíduo e prepara a for­
mação de centros pessoais. Destituída de qualida­
des, a partícula atômica não é individualizável, 
nem mesmo pela sua posição no espaço, uma vez 
que as teorias quânticas já não permitem que lhe 
seja atribuída uma localização precisa e constante. 
Como o átomo, estrutura de partículas, principia 
um embrião de individualidade. A individualidade 
animal é mais segura; no entanto, a natureza não 
lhe presta grande atenção, multiplica-a prodiga­
mente, para a desbaratar maciçamente: em dois 
milhões de ovos de mosca, somente dois atingem 
a idade adulta. O animal ignora a consciência 
reflexiva e a reciprocidadè de consciências. 
Quando se dão conflitos, a sorte do indivíduo está 
sempre subordinada à da espécie. Com a pessoa 
humana todo este movimento encontra, se não a 
sua explicação, pelo menos o seu sentido.
A aparição do universo pessoal não vem deter 
a história da natureza, antes a compromete na his- 
tória do homem sem inteiramente a submeter. Por 
vezes falamos do «homem primitivo» como se este 
tivesse desaparecido no fundo dos tempos. Quando 
tivermos tomado viva e perturbante consciência 
da realidade pessoal, as nossas origens parecer- 
-nos-ão bem mais próximas. Representamos uma 
comédia mundana e moral que é surdamente diri­
gida pelos instintos, pelas paixões e pelos interes-
\ •
ses; o que chamamos a «vida do espírito» desen­
A E X IS T Ê N C IA IN C O R P O R A D A 47
volve grande parte da sua actividade a levantar, 
sobre tão obscuros actores, uma cortina de justifi­
cações e prestígios. O materialismo, quando histó­
rico e localizado, tem ‘parcialmente razão; na 
etapa em que estamos da evolução da humani­
dade, e não no absoluto dos valores, na maioria, e 
salvo individuais conversões, sempre possíveis, 
(juntemos, pois, três condições restritivas), o 
nosso comportamento é maciçamente dominado 
pela nossa situação biológica e econômica. Há 
muito tempo, sem dúvida desde que o homem é 
homem, que numerosos indivíduos © vastos movi­
mentos tentam quebrar essa escravidão; só ou em 
grupo, o homem atinge num só lance os cumes da 
humanidade, antes de retomar lentamente as suas 
tentativas de aproximação. Mas o universo pessoal 
não existe ainda senão em ilhas individuais e 
colectívas, como promessa a realizar. A sua pro­
gressiva conquista é a história do homem.
Consequências desta condição. — Da condição 
que acabamos de definir resultam consequências 
importantes:
1/ Não interessa encher a ciência da «matéria» 
ou a ciência do «espírito» com desprezo e exalta­
ções que ao nível da realidade não têm qualquer 
valor.
2.a O personalismo está longe de ser um espiri- 
tualismo. Pertence-lhe, em toda a latitude da 
humanidade concreta, qualquer problema hu-
48 O P E R S O N A L IS M O
mano, desde a mais humilde condição material, às 
mais elevadas possibilidades espirituais. As cru­
zadas são, em diferentes graus para cada uma 
delas, produtos simultaneamente do sentimento 
religioso e dos movimentos econômicos dum deca­
dente feudalismo. Ê pois verdadeiro serem a ex­
plicação pelo instinto (Freud) e a explicação pela 
economia (Marx) caminhos de acesso a todos os 
fenômenos humanos, até aos mais altos. Mas, em 
compensação, nenhum, nem mesmo os mais ele­
mentares, se compreende sem os valores, as estru­
turas e as vicissitudes do universo pessoal, ima- 
nente como um fim a qualquer espírito humano 
e ao trabalho na natureza. O espiritualismo e o 
moralismo são impotentes porque desprezam o 
jugo do biológico e do econômico. Mas o materia- 
lismo, embora pela razão inversa, não o é menos, 
Como disse o próprio Marx, «materialismo 
abstracto» e «espiritualismo abstracto» tocam-se, 
e não se trata de escolher um ou outro, mas «a 
verdade que une os dois» para aquém da sua sepa­
ração 3. Cada vez mais a ciência e a reflexão nos 
revelam um mundo que não pode passar sem o 
homem e um homem que não pode passar sem o 
mundo.
8 ü ritiqu e à ía philosophie ãu ã ro it de JSegel (O eu - 
vres, Coste, IV, 183); Êconom ie po litique e t philosophie 
(id., VI, 76).
A E X I S T Ê N C I A IN C O R P O R A D A 49
3.a Ê preciso repetir no plano da acção o que 
acabamos de dizer no plano da explicação. Em 
qualquer problema prático é preciso assegurar a 
solução no plano das infra-estruturas biológica e 
econômica, se quisermos que sejam viáveis as 
medidas tomadas em outros planos. Uma criança 
é anormalmente preguiçosa ou indolente: exami- 
nem-se-lhe as glândulas, antes de nos zangarmos 
com ela. Um país revolta-se: pense-se nos salários, 
antes de falar em materialismo. E se o quisermos 
mais perfeito, demos-lhe primeiro essa segurança 
material, a qual, e disto muitas vezes nos esque­
cemos, se for faltando de geração em geração, 
perturbará, talvez, a desejada moderação social.
Mas, reciprocamente, a solução biológica ou 
econômica dum problema humano, por mais perto 
que esteja das nossas necessidades ^ementares, é 
incompleta e frágil, se não forem tomadas em
linha de conta as mais profundas dimensões do
»
homem. O espiritual também é uma infra-estru­
tura. As desordens psicológicas e espirituais, liga­
das a uma desordem econômica, podem minar 
durante muito tempo as soluções adquiridas no 
campo da economia. E mesmo a mais racional 
estrutura econômica, se estabelecida com desprezo 
das exigências fundamentais da pessoa, trás den­
tro de si a própria ruína.
A existência incarnada. — O personalismo 
opõe-se, pois, ao idealismo, quando o idealismo:
50 O P E R S O N A L IS M O
l.o — Reduz a matéria (e o corpo) a aparência do 
espírito humano, nele se inserindo através duma
actividade puramente ideal; 2.° — Dissolve o su­
jeito pessoal num amontoado de relações geomé­
tricas ou inteligíveis, donde a sua presença é 
expulsa, ou redu-lo a um simples posto receptor 
de resultados objectivos.
Para o personalismo, pelo contrário:
l.° Por mais abundante e subtil que seja a iuz 
que o espírito humano leva até às mais pequenas 
articulações do universo, a materialidade existe 
duma existência irredutível, autônoma, hostil à 
consciência. Só se pode resolver numa relação in­
terior da consciência. É esta afirmação que Marx- 
-Engels chamam materialista. Mas é conforme ao 
mais tradicional realismo, a um realismo que se 
não coíbe de integrar os elementos válidos da crí­
tica idealista. O que é radicalmente estranho à 
consciência não é mais do que dispersão pura, 
cega e opaca. Não podemos falar dum objecto e, 
por maioria de razão, não podemos falar dum 
mundo, senão em relação com a consciência que 
o apercebe. Ou seja, tudo o que temos vindo a 
dizer demonstra bem que a matéria é um feixe 
de relações. Que aconteceria a relações que não 
fossem descortinadas? A relação dialéctica da 
matéria à consciência é tão irredutível como a 
existência, quer de uma, quer de outra.
2: Até nas formas mais elementares da minha 
existência me afirmo como pessoa, e, nunca sendo
A E X I S T Ê N C I A IN C O R P O R A D A 51
factor de despersonalização, muito pelo contrário, 
a minha existência incarnada é factor essencial da 
minha situação pessoal. O meu corpo não é um 
objecto entre muitos outros, não é sequer o meu 
objecto mais próximo: como, sendo assim, se po­
dería unir
à minha experiência de sujeito ? E f ecti- 
vamente, as duas experiências não são separáveis: 
existir subjectivamente, existir corporalmente são 
uma única e mesma experiência.4. Não posso 
pensar sem ser, nem ser sem o meu corpo: através 
dele, exponho-me a mim próprio, ao mundo, aos 
outros, através dele escapo à solidão dum pensa­
mento que mais não seria do que pensamento do 
meu pensamento. Recusando-se a entregar-me a 
mim próprio, inteiramente transparente, lança-me 
sem cessar para fora de mim, na problemática do 
mundo e nas lutas do homem. Através das solici­
tações dos sentidos lança-me no espaço, através 
do seu envelhecimento ensina-me o tempo, atra­
vés da sua morte lança-me na eternidade. A sua 
servidão pesa-nos, mas ao mesmo tempo é base 
para qualquer consciência e para toda a vida espi­
ritual. Ê mediador omnipresente da vida do espí­
rito. Ê neste sentido que podemos dizer com Marx 
que «um ser que não- é objectivo não é um ser» 5,
4 Tema essencial das obras de Gabriel Marcei e Maine 
de Biran. Ver, também, G. Madinier: C on sc ien ce et m o u - 
vem en t.
5 Ê con om ie politique et ph ilosoph ie , Coste, VI, 77.
52 O P E R S O N A L I S M O
se, no entanto, acrescentarmos a seguir que um 
ser que só fosse objectivo nunca atingiría esse 
acabamento do ser que é a vida pessoal.
A personalização da natureza. —■ A pessoa não 
se contenta com sofrer a acção da natureza, donde 
veio, ou com mover-se conforme suas provoca­
ções. Volta-se para ela para a transformar e 
progressivamente lhe impor a soberania dum uni­
verso pessoal.
Numa primeira fase, a consciência pessoal 
afirma-se assumindo o meio natural. A aceitação 
do real é a primeira tentativa de toda a vida cria­
dora. Aquele que a recusa delira, e a sua acção 
perde-se.
Mas esta aceitação não é mais do que um pri­
meiro passo. Se me adaptar demasiadamente, en­
trego-me ao peso das coisas. O homem do conforto 
é o animal doméstico, dos objectos do seu con­
forto, o homem reduzido à sua função produtora 
ou social é uma peça numa engrenagem. A explo­
ração da natureza não tem por fim articular sobre
9
um feixe de determinismos um feixe de reflexos 
condicionados, mas sim abrir, perante a liberdade 
criadora dum número crescente de homens, as 
mais altas possibilidades de humanização. Ê a 
força da afirmação pessoal que destrói os obstá­
culos e rasga novos caminhos. Ê por isso que 
devemos negar a natureza como dado, para a afir­
mar como obra, como obra pessoal, suporte de
A E X I S T Ê N C I A I N C O R P O R A D A 53
toda a personalização. Então a dependência da 
natureza torna-se domínio da natureza, o mundo 
insere-se na carne do homem e no seu destino.
E ainda é preciso dar um sentido a esta acção 
sobre a natureza.
Ela não pode, sem risco de catástrofe, entre- 
gar-se ao delírio da sua própria aceleração, delírio 
que Ford manifestava quando, a uma pessoa que 
lhe perguntava por que desenvolvia ele incessan­
temente as suas empresas, respondeu: «Porque 
não posso parar».
Essa acção não consiste na imposição às coisas 
duma relação de senhor a escravo. A pessoa só se 
liberta, libertando. E é chamada tanto para liber­
tar a humanidade, como as coisas. Marx dizia que 
o capitalismo degrada as coisas em mercadorias, 
em mecanismos de lucro, causando assim a degra­
dação da própria dignidade das coisas, a digni­
dade que o poeta atinge. Operamos esta degrada­
ção cada vez que consideramos as coisas somente 
como obstáculos a afastar, matéria para possuir
e dominar. O poder descricionário que passamos,, 
então, a exercer sobre elas, não tarda a comuni- 
car-se às relações humanas, a segregar a tirania 
que vem sempre do homem e não das coisas. 
O movimento marxista que pensa que, pelo con­
trário, a missão do homem é elevar a dignidade 
das coisas humanizando a natureza,, é neste ponto 
próximo do cristianismo que confere à humani­
dade a vocação de resgatar pelo trabalho, rcsga-
54 O P E R S O N A L IS M O
tando-se, a natureza que arrastou na sua queda. 
O valor central que assume em Marx a actividade 
prática do homem (praxis) é uma espécie de 
laicização do valor central que o trabalho assume 
na tradição cristã
As relações entre a pessoa e a natureza não 
são pois relações de pura exteriorização, mas rela­
ções dialécticas de permuta e ascensão. O homem 
pesa sobre a natureza, para vencer a natureza, 
como o avião sobre o peso, para do peso se arran­
car. Desde o seu primeiro gesto — colocado sobre 
a terra para «trabalhar a terra» ( Gênesis, II, 15) 
e dar nome a todas as coisas — contribui para que 
desapareça uma natureza pura, que vai dar lugar 
a uma natureza que se começa a humanizar. 
A chamada natureza foi urdida com nossos arti- 
fícios. E desde o princípio dos séculos que mais 
não fazemos do que participar e imperfeitamente 
conservar o mundo. Começamos agora a abordar 
os seus segredos: o da matéria, o da vida, os do 
mundo psíquico. É uma viragem que pode ser 
decisiva. Como anunciam triunfalmente as «Teses 
sobre Feuerbach» iremos agora transformar e 
escplicar. A ciência irá anexar a indústria. A in­
dústria levará a loucuras; levará a mais do que 
aquelas a que o pensamento nos conduziu ? Neste *
* Esprit, núm ero especial: Le travail et Vhomme, 
Julho de 1933.
A E X IS T Ê N C IA IN C O R P O R A D A 55
sentido, produzir é uma actividade essencial da 
pessoa, desde que demos à produção essa total 
perspectiva que faz com que ela arraste as mais 
humildes tarefas no sopro divino que impele a 
humanidade. Entregue, primeiramente, à satisfa­
ção a curto prazo das necessidades elementares, 
seguidamente desviada por interesses parasitas 
ou entregue à sua própria embriaguês, a produção
deve tornar-se uma actividade libertante e liber-
#
tadora, desde que modelada a todas as exigências 
da pessoa. Ressalvada esta condição, podemos 
dizer que, onde houver primado do econômico, há 
já primado do humano. A produção não tem valor 
senão quando visa o seu mais alto fim: a instau­
ração dum mundo de pessoas. Não o vai buscar, 
nem à organização das técnicas, nem à acumula­
ção dos produtos, nem à instalação pura e sim­
ples da prpsperidade.
A esta luz podemos já alcançar o sentido pro­
fundo do desenvolvimento técnico. Só o homem 
inventa instrumentos e é depois capaz de os unir 
num sistema de máquinas que prepara um corpo 
colectivo à humanidade. Os homens do século X X 
enlouqueceram com este novo e omnipotente 
corpo que constituíram. É verdade quê o poder 
de abstracção da máquina é assustador: rompendo 
os contactos humanos, pode fazer esquecer, mais 
dc que nenhuma outra força, os homens que com­
promete, que por vezes esmaga; perfeitamente 
objectiva, inteiramente explicável, faz perder o
56 O P E R S O N A L IS M O
hábito da intimidade, do segredo, do inexprimí­
vel; dá aos imbecis meios inesperados; e, acima 
disto, diverte-nos, fazendo-nos esquecer as suas 
crueldades. Entregue ao seu peso cego, é uma 
poderosa força de despersonalização. Mas não o é 
senão desligada do movimento que a suscita, como 
instrumento de libertação do homem das servi­
dões naturais e de reconquista da natureza. Uma 
atitude puramente negativa perante o desenvol­
vimento técnico provém, ou duma insuficiente 
análise, ou duma concepção idealista dum destino 
que só forjamos em colaboração com todas as 
forças da terra. A era da técnica fará correr os 
maiores perigos ao movimento de personalização, 
tal como o brusco crescimento do seu corpo põe 
em perigo o equilíbrio do adolescente. Mas não 
está; sob o signo de nenhuma maldição especial. 
Em vez de ser um erro funesto destes recantos da 
Europa, é antes, talvez, o meio que permitirá que, 
um dia, o homem invada o universo, desenvolva 
aí o seu reino, e mesmo, deixando ir mais longe 
a imaginação, deixe de ser um paradoxo
perdido 
no espaço 7.
Obstáculos à personalização da natureza. Um 
optimismo trágico. — Se vamos traçando, com 
uma espécie de amplitude triunfal, os vastos des­
7 A cerca destes problem as, ver E. M ounier: La Petite 
Peur du XX siècle (E d . du Seuil, 1948).
A E X I S T Ê N C I A IN C O R P O R A D A 57
tinos que se abrem à obra de personalização, 
estamos, no entanto, muito longe de esquecer que 
esse futuro não é automático. É posto em causa 
a cada momento, diante de novas dificuldades, 
em face da escolha pessoal de cada um de nós, 
e cada um de nós o abandona e o compromete. 
A matéria é rebelde e não somente passiva; ofen­
siva e não somente inerte. O personalismo não é, 
segundo uma expressão de Maurice Nédoncelle, 
«uma filosofia de domingo à tarde». Em toda a 
parte aonde a pessoa leva a sua luz, a natureza, 
corpo ou matéria, insinua a sua opacidade: de­
baixo das fórmulas do sábio, debaixo da claridade 
da razão, debaixo da transparência do amor. Sem­
pre que a liberdade tenta seus voos, a natureza 
prende-a com mil laços. Sempre que a intimidade 
se adivinha, a natureza exterioriza, exibe, gene­
raliza: as qualidades sensíveis não são mais do 
que enfraquecimento das sensações, tal como as 
espécies são uma queda de vida, os hábitos, para­
gens de invenção, as regras, arrefecimento do 
amor 8. Invadida pelo universo pessoal, a natureza 
ameaça, sem cessar, investir também contra ele. 
Não há nada nas relações do homem pessoal com
8 P a ra o tem a da objeetividade, vide sobretudo B e r- 
diaeff, especialmente: Esprit et Liberté (Je S e rs ); La 
destination de Vhomme (Je S e rs ); Cinq méditations sur 
Vexistence (A u b ie r ).
58 O P E R S O N A L IS M O
o mundo que evoque uma harmonia à Leibniz. 
A insegurança e as preocupações são nosso lote. 
Nada há que deixe prever o final, num curto 
espaço de tempo, desta luta9, nada nos permite 
duvidar de que ela seja constitutiva da nossa 
condição. A perfeição do universo pessoal incar- 
nado não é, pois, a perfeição duma ordem, como 
pretendem todas as filosofias (e todas as polí­
ticas) que pensam que o homem poderá um dia 
submeter totalmente o mundo. Ê perfeição duma 
liberdade que combate, e que combate duramente. 
Por isso, subsiste até mesmo nas suas derrotas. 
Entre o optimismo impaciente da ilusão liberal 
ou revolucionária e o pessimismo impaciente dos
fascismos, o caminho próprio do homem está
%
nesse optimismo trágico onde encontra a sua 
justa medida num clima de grandeza e de luta. *
* Étienne de G ree f, nas suas im portantes obras Notre 
destinée et nos instincts (P lo n ) e Les instincts de défense 
et de sympathie (P resses U n iversita ires), d á a este res­
peito um a nota pessimista.
C A P IT U L O I I
A COMUNICAÇÃO
Assim, rapidamente, trouxemos a pessoa para 
mais livres espaços. Interessa agora procurar a 
sua experiência fundamental. Ao contrário do 
que pretende uma opinião demasiado espalhada, 
esta não reside, nem na originalidade, nem na 
auto-suficiência, nem na afirmação solitária; não 
reside na separação, mas na comunicação.
Auto-ãefesa do indivíduo. Personalismo contra 
individualismo. — Para quem observar o espectá­
culo dos homens, para quem não for cego perante 
as próprias reacções, esta verdade não é evidente. 
Desde o princípio da história que são mais os dias 
consagrados à guerra do que os consagrados à 
paz. A vida de sociedade é uma permanente guer­
rilha. E onde a hostilidade cessa, começa a indi­
ferença. Os caminhos da camaradagem, da ami­
zade ou do amor parecem perdidos nos imensos 
revezes da fraternidade humana. Heidegger e 
Sartre fizeram deles tema de filosofia. A comu-
60 O P E R S O N A L IS M O
nicação, para eles, está envolvida pelo desejo de 
possuir e de submeter. Cada um de nós é, neces­
sariamente, ou um tirano, ou um escravo. O oihar 
dos outros rouba-me o meu universo, a presença 
dos outros detém a minha liberdade, a sua escolha 
paralisa-me. O amor é uma infecção mútua, um 
inferno.
Ê inútil indignar-mo-nos contra um tal qua­
dro. E difícil negar que ele não evoque um impor­
tante aspecto das relações humanas. O mundo dos 
outros não é um jardim de delícias. É permanente 
provocação à luta, à adaptação, incita-nos a ir 
mais além. Constantemente reintroduz o risco e o 
sofrimento, exactamente quando nos parecia con­
duzir à paz. Por isso, o instinto de auto-defesa 
reage recusando-o. Uns esquecem-no, suprimindo 
toda a possibilidade de contacto. Outros querem 
fazer das pessoas objectos manejáveis e utili­
záveis, quer sejam, para o filantropo, os pobres, 
quer, para o político, os eleitores; para este, os 
filhos, para aquele, os operários; o egocentrismo 
perde-se em altruístas ilusões. Outro tenta redu­
zir os que o rodeiam a simples espelho. Como que 
uma espécie de instinto vai permanentemente 
tentando negar e empobrecer a humanidade que 
nos rodeia1.
1 V ide E. M ounier: Traxté du Oaractère, cap. IX ; 
Introduction aux existentialismes, cap. V .
A C O M U N IC A Ç Ã O 61
Mesmo nos seus melhores momentos, o indi­
víduo, apenas com a sua presença, dificulta a 
comunicação. Onde quer que se instale, uma espé­
cie de opacidade se desenvolve. O meu corpo 
dá-me a mais evidente imagem dessa opacidade, 
introduzindo c mal-estar em meio duma qualquer 
confidência. Mas esse mal-estar tem raízes mais 
profundas do que o meu corpo. Uma virtude de­
masiado vincada faz-nos detestá-la, a intenção de 
seduzir empobrece o amor, a de converter irrita 
o que não crê. A mais ligeira presença parece, 
por vezes, segregar um veneno mortal nas rela­
ções de homem a homem.
Para além desta profunda separação, a cul­
tura vai desenvolvendo máscaras que pouco a 
pouco se incrustam até não mais se distinguirem 
do próprio rosto do indivíduo. São um duplo e 
único meio de nos enganarmos a nós próprios e de 
enganar os outros, de nos instalarmos nos refú­
gios da impostura para evitar essa zona de ver­
dade que nasce ao encontro do olhar dos outros e 
do nosso próprio olhar.
O individualismo é um sistema de costumes, 
dc sentimentos, de idéias e de instituições que
• * n .
< >rganiza o indivíduo partindo de atitudes de iso­
lamento e dè defesa. Foi a ideologia e a estrutura 
dominante da sociedade burguesa ocidental entre 
o século XVIII e o século XIX. Homem abstracto,
'w
wm vínculos nem comunidades naturais, deus 
supremo no centro duma liberdade sem direegão
62 O P E R S O N A L IS M O
nem medida, sempre pronto a olhar os outros com 
desconfiança, cálculo ou reivindicações; institui­
ções reduzidas a assegurar a instalação de todos 
estes egoísmos, ou o seu melhor rendimento pelas 
associações viradas para o lucro; eis a forma de 
civilização que vemos agonizar, sem dúvida uma 
das mais pobres que a história jamais conheceu. 
Ê a própria antítese do personalismo e o seu 
mais directo adversário.
Para os distinguir, opõe-se muitas vezes pes­
soa e indivíduo. Corremos então o risco de desli­
gar a pessoa das suas concretas amarras. O mo­
vimento de interiorização constituído pelo «indi­
víduo» contribui para assegurar a nossa forma. 
No entanto, a pessoa só cresce na medida em que 
sem cessar se purifica do indivíduo que nela está. 
Não o conseguirá virando toda a atenção sobre 
si própria, mas, pelo contrário, tornando-se dis­
ponível (G. Marcei), e por isso mesmo mais tran- 
parente a si própria e aos outros. Tudo se passa 
como se nos tornássemos então, quando já não 
estamos «ocupados connosco», «cheios de nós», 
então, e então somente, prontos para os outros, 
entrados em graça.
A comunicação como facto primitivo.— Assim, 
a primeira preocupação do individualismo é cen­
trar o indivíduo sobre si mesmo, e a primeira 
preocupação do personalismo é descentrá-lo para
A C O M U N IC A Ç Ã O 63
o colocar nas largas perspectivas
abertas pela 
pessoa.
Estas cedo se afirmam. O primeiro movimento 
que, na primeira infância, revela o ser humano 
é um movimento para outrem; a criança de seis 
a doze meses, saindo da vida vegetativa, desco- 
bre-se nos outros, aprende nas atitudes que a 
visão dos outros lhe ensina. Só mais tarde, à roda 
do terceiro ano, virá a primeira vaga de egocen­
trismo reflexo. Quando pensamos na pessoa somos 
influenciados pela imagem duma silhueta. Colo­
camo-nos então diante da pessoa como diante dum 
objecto. Mas o meu corpo é também esse olhar
vazio perscrutando o mundo, é também eu pró-
«
prio, esquecido. Pela experiência interior2 a pes­
soa surge-nos como uma presença voltada para o 
mundo e para as outras pessoas, sem limites, mis­
turada com elas numa perspectiva de universali­
dade. As outras pessoas não a limitam, fazem-na 
ser e crescer. Não existe senão para os outros, não 
se conhece senão pelos outros, não se encontra 
serião nos outros. A experiência primitiva da pes­
soa é a experiência da segunda pessoa. O tu e,
2 Cf. M aurice Nédoncelle: La réciprocité des cons- 
ciences (A u b ie r ) ; B uber: Je et tu (A u b ie r ); M adin ier: 
Conscience et amour (P resses U n iversita ires ). O s alem ães 
dizem : O m eu ser é ser com, Mitsein, ou ser para, Zusein. 
Cf. o latim : adsum, para dizer (a outrem ) «e is -m e» (p a ra 
ti, à tua disposição).
64 O P E R S O N A L IS M O
adentro dele, o nós, precede o eu, ou pelo menos 
acompanha-o. Ê na natureza material (e a ela 
estamos parcialmente submetidos) que a exclusão 
reina, porque um espaço não pode ser ocupado 
duas vezes ao mesmo tempo. Mas a pessoa, no 
mesmo movimento que a faz ser, ex-põe-se. Por 
isso, é por natureza comunicável e até mesmo só 
ela o é. É preciso partir deste facto primitivo. Do 
mesmo modo que o filósofo que começa por se 
encerrar no pensamento nunca encontrará uma 
saída para o ser, assim aquele que começa por se 
encerrar no eu nunca encontrará o caminho para 
os outros. Quando a comunicação se enfraquece 
ou se corrompe perco-me profundamente eu pró­
prio: todas as loucuras são uma falha nas rela­
ções com os outros — o alter torna-se alienus, 
torno-me também estranho a mim próprio, alie­
nado. Quase se poderia dizer que só existo na 
medida em que existo para os outros, ou numa 
frase-limite: ser é amar.
Estas verdades são o próprio personalismo, a 
ponto de podermos dizer que há pleonasmo quando 
se designa a civilização que ele visa por perso- 
nalista e comunitária8. Exprimem, frente a per-
8 Fórm u la em pregada pela revista Esprit (Inverno, 
32-33) nos núm eros especiais Révolution personnaMste, 
Révolution communautaire, e em E . M ounier, Révolution 
personnaMste et communautaire (A u b ie r, 1934), tantas 
vezes depois retom ada.
A COMUNICAÇÃO 65
sistentes idealismos e individualismos, a ídeia da 
que o sujeito não se nutre autònomamente* que 
só possuímos aquilo que damos ou aquilo a que 
nos damos, que não nos salvamos sozinhos, nem
4
social, nem espiritualmente.
O primeiro acto da pessoa deve ser, pois, a 
criação com outros duma sociedade de pessoas, 
cujas estruturas, costumes, sentimentos e até ins­
tituições estejam marcados pela sua natureza de 
pessoas: sociedade de que apenas começamos a 
entrever e a esboçar os costumes.
Funda-se numa série de actos originais que
nenhuma
universo:
1. Sair para fora de nós próprios. A pessoa 
é uma existência capaz de se libertar de si pró- 
pria, de se desapossar, de se descentrar para se 
tornar disponível aos outros. Para a tradição per­
sonalista (principalmente para a cristã), a ascese 
do despojamento é a ascese central da vida pes­
soal; só liberta o mundo e os homens aquele que 
primeiramente se libertou a si próprio. Os antigos 
falavam da luta contra o amor-próprio; nós cha­
mamos-lhe hoje egocentrismo, narcisismo, indivi­
dualismo.
2.° — Compreender. Deixar de me colocar sem­
pre no meu. próprio ponto de vista, para me situar 
no ponto de vista dos outros. Não me procurar 
numa pessoa escolhida e igual a mim, não conhe­
cer os outros apenas com um conhecimento geral
66 O P E R S O N A L IS M O
(o gosto pela psicologia não é interesse pelos 
outros), mas captar com a minha singularidade a 
sua singularidade, numa atitude de acolhimento 
e num esforço de recolhimento. Ser todo para 
todos sem deixar de ser e de ser eu; porquanto 
há uma maneira de tudo compreender que corres­
ponde a nada amar e a nada ser; dissolução nos 
outros, não já compreensão dos outros 4.
3. ° — Tomar sobre nós, assumir o destino, os 
desgostos, as alegrias, as tarefas dos outros, 
«sofrer na nossa própria carne».
4. ° — Dar. A força viva do ímpeto pessoal não 
está, nem na reivindicação (individualismo pe- 
queno-burguês), nem na luta de morte (existen- 
cialismo), mas na generosidade e no acto gra­
tuito, ou seja, numa palavra, na dádiva sem me­
dida e sem esperança de recompensa. A economia 
da pessoa é uma economia de dádiva, não de com­
pensação ou de cálculo. A generosidade dissolve 
a opacidade e anula a solidão da pessoa, mesmo 
quando esta nada recebo em troca: contra a fileira 
cerrada dos instintos, dos interesses, dos raciocí­
nios, ela é, em todo o sentido da palavra, pertur- 
bante. Desarma as recusas, oferecendo aos outros 
um valor a seus próprios olhos elevado, exacta- 
mente no momento em que eles-esperariam ser 
expulsos como coisa indesejável, e assim os
4 V ide J. L#acroix: Le Bens du réalisme (Ed . Ia Baccm- 
nière).
A C O M U N IC A Ç Ã O 67
prende à sua comunicação; daí o valor libertador 
do perdão, da confiança. Só nada consegue contra 
certos ódios mais misteriosos do que o interesse, 
e que parecem dirigidos contra o próprio desin­
teresse.
5.° — Ser fiel. A aventura da .pessoa é uma 
aventura constante desde o nascimento à morte.
, .As dedicações pessoais, amor, amizade, só podem 
ser perfeitas na continuidade. Essa continuidade 
não é uma exibição, uma repetição uniforme, 
como sucede na matéria ou nas generalizações 
lógicas, mas um contínuo renovamento. A fideli-
s
dade pesssoal é uma fidelidade criadora 5.
Esta dialéctica das relações pessoais aumenta 
e confirma o ser de cada um de nós.
Trato o outro como um objecto quando o trato 
como ausente, como um repertório de informa­
ções que me podem ser úteis (Gs, Marcei) ou como 
instrumento à minha disposição ; quando o classi­
fico definitivamente, isto é, para empregarmos 
exacta expressão, quando desespero dele. Tratá-lo
4
como sujeito, como ser presente, é reconhecer que 
não o posso definir, nem classificar, que ele é 
inesgotável, pleno de esperanças, esperanças de 
que só ele dispõe; é acreditar. Desesperar de
alguém é desesperá-lo. Ao contrário, a crença que 
a generosidade permite é infinitamente fecunda.
* Sobre o tema da fidelidade, ver G. Marcei: E tre et 
avoir, jOu refus à Vinvocation.
® apelo, «invocação» (Jaspers), e esse apelo con­
forta. Por vezes, também se diz, e erradamente, 
que o amor identifica. Esta afirmação só é verda­
deira no caso da simpatia6, das afinidades elec- 
tivas, onde ainda procuramos algo de bom para 
assimilarmos, uma ressonância de nós próprios 
numa pessoa a nós semelhante. O amor plena­
mente realizado é criador de distinções, é reco­
nhecimento e afirmação do outro enquanto outro. 
Á simpatia é ainda afinidade da natureza, o amor 
é uma nova forma de ser. Dirige-se ao sujeito para 
além da sua natureza; quer a sua realização como 
pessoa, como liberdade, quaisquer que sejam seus 
dons ou defeitos, que não são essenciais a seus 
olhos; o amor é cego, mas duma cegueira extra- 
-lúcida.
Libertando aquele que é chamado, a comu­
nhão liberta e confirma aquele que chama. O acto 
de amor é a mais forte certeza do homem, o
r
«cogito» existencial irrefutável: amo, logo o ser

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