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TEXTO 07 - RELAÇÕES DE GÊNERO

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Texto para a disciplina “Ética e Legislação em Publicidade e Propaganda I” e
“Ética e Legislação em Jornalismo I” -Prof. Luiz Carlos Messias da Silva
[Capítulos 7 e 8 de “SUNG, Jung Mo e SILVA, Josué Cândido da. Conversando
sobre ética e sociedade. 12 ed. Petrópolis(RJ): Vozes, 2003.]
7. ÉTICA E RELAÇÕES DE GÊNERO
Gênero e sexo
"Ninguém nasce mulher: torna-se mulher". Esse famoso dito da filósofa
feminista francesa Simone de Beauvoir tocou no ponto nevrálgico de uma
situação de dominação que já perdura milhares de anos na história da
humanidade e que nas últimas décadas foi trazido à tona na nossa sociedade:
a opressão dos homens sobre as mulheres. Ou melhor dito, de varões sobre as
mulheres.
A nossa língua está tão marcada pela dominação masculina que
encontramos até dificuldades lingüísticas para falarmos sobre este assunto.
Estamos acostumados a utilizar o termo "homem" tanto para nos referirmos ao
varão quanto para o ser humano, no sentido universal. Todos aprendemos
desde cedo na escola que para nos referirmos a um grupo composto de um
homem (varão) e de muitas mulheres, o plural deve estar no masculino. Este é
um pequeno exemplo de como a nossa língua e a nossa cultura estão
marcadas por esta relação de dominação.
Dizer que não se nasce mulher ou homem-varão, mas que se torna mulher e
homem-varão é desmascarar a identificação feita entre o sexo (a identidade
natural) e o gênero. Como vimos nos dois primeiros capítulos deste livro, os
seres humanos constroem um mundo humano para poderem se relacionar
entre si e com a natureza. A identidade sexual, a sexualidade e as relações
entre sexos diferentes também são construídas socialmente e são
interpretadas a partir da cultura. Ninguém tem acesso à sua sexualidade e à
do(a) outro(a), nem aos seus instintos sexuais, de uma forma direta e "pura". É
sempre mediado pela cultura: são com os "óculos" de uma determinada cultura
que "vemos" a nossa identidade sexual, a nossa sexualidade e a de outros(as),
e tomamos contato com os nossos instintos.
0 gênero é o sexo socialmente construído. As relações de gênero, as
relações entre homens-varões e mulheres são socialmente construídas, e não
determinadas biologicamente.
A relação de gênero que vivemos hoje é uma relação de desigualdade social
e pessoal baseada na diferença entre os sexos e legitimada em -no -me de um
determinismo biológico da superioridade de um dos sexos, o masculino, e de
uma determinada forma de viver a sexualidade, a heterossexual. Como sempre
se busca legitimar a desigualdade socialmente construída em nome de ciências
da natureza, que, nesses casos, não são nada mais que ideologias travestidas
de pseudocientifícidade. Esta desigualdade social está articulada com outras
formas de desigualdades, distâncias e hierarquias sociais.
Patriarcalismo nas sociedades antigas
Nas sociedades da Antiguidade a família se preocupava, em primeiro lugar,
pela produção econômica para a qual as mulheres e escravos de ambos os
2
sexos eram a força de trabalho. 0 sistema patriarcal não se referia
simplesmente a um sistema de relações sociais, econômicas, culturais e legais
entre o varão - chefe de família - e outros grupos (mulheres, meninos e
meninas, escravos e escravas) e com a propriedade de terras e animais.
Nestes sistemas patriarcais da Antiguidade, como os de hoje, o status das
mulheres variava - segundo sua classe social. As mulheres de classes
dominantes desfrutavam de certos privilégios e comodidades que as servas e
escravas não possuíam. Entretanto, apesar dessas diferenças, todas
compartilhavam da situação de minoridade e opressão comum a todas as
mulheres.
0 primeiro papel das mulheres nestas sociedades era o trabalho doméstico.
Na economia pré-industrial, este papel era muito extenso. A mulher, mãe de
família, não somente procriava e cuidava das crianças, preparava comidas,
lavava roupas e limpava a casa, mas produzia também alimentos, cultivando a
horta, o pomar e remédios naturais. Além disso, fiava, tecia e costurava roupas,
fazia velas, sabão e muitos outros utensílios domésticos. Nas famílias ricas a
esposa, mãe de família, se dedicava principalmente a dirigir este trabalho, que
era realizado por serventes e escravos.
Mesmo que as mulheres produzissem muitos dos produtos de consumo da
família, não tinham direito de usá-los como quisessem. Esses produtos, as
mulheres e escravos pertenciam ao varão - chefe de família. A mulher como
esposa ou filha não tinha o direito de -controlar seu próprio corpo ou sua
própria vida. Seu corpo era propriedade do marido para seu desfrute e
procriação de filhos.
Todas estas duras condições se aplicavam também às escravas, mas de
maneira mais intensa. Além da opressão no trabalho, elas não tinham direito
algum sobre seu corpo ou vida. Realizavam o duro trabalho doméstico sob a
direção da senhora da casa e além disso podiam ser violentadas, assassinadas
ou vendidas a qualquer momento pelo chefe de família ou seus filhos.
Essa realidade social tão chocante para nós era assimilada pelos seus
contemporâneos como "a" realidade” e legitimado pelos mitos religiosos e
pelas teorias filosóficas. 0 grande pensador Aristóteles, por exemplo, dizia que
havia pessoas destinadas por natureza a serem escravas e que a mulher
representava a passividade, enquanto que o homem, a força ativa. Na
reprodução, o sêmen de homem tinha a forma plena do filho, e a mulher só
tinha um papel passivo. Somente um filho varão era considerado como tendo a
forma perfeita do ser humano. Uma filha era vista como resultado de um
processo incompleto na formação do sêmen. Logo, a mulher era
essencialmente defeituosa, não possuindo a natureza completa do ser
humano. Sua mente, sua vontade e seu corpo são débeis e, portanto, ela não
podia ter autonomia, devia estar sujeita à soberania do varão.
Nas sociedades modernas
Esta situação das mulheres nas sociedades patriarcais pré-modernas foi
modificada nas sociedades industriais contemporãneas. Como resultado da
transferência dos meios de produção da família patriarcal aos donos da fábrica,
as mulheres e os escravos passaram a ser desnecessários para a produção
doméstica. Pouco a pouco a escravidão foi abolida, e as mulheres, com muita
luta, foram conquistando os direitos civis.
3
É importante destacar que os principais movimentos libertários e
emancipatórios dos séculos XIX e XX - sejam no campo capitalista ou no
socialista - sempre deram ênfase quase que exclusiva à transformação
econômica e política. Relegando para segundo plano, ou até mesmo negando,
a questão da mulher.
Os lideres da Revolução Russa de 1917, por exemplo, escreveram leis que
garantiam os mesmos direitos civis às mulheres e aos homens. Porém, ao
mesmo tempo, denunciaram os movimentos feministas como sendo somente
um movimento de mulheres da burguesia que buscavam os mesmos privilégios
dos homens de sua própria classe. Para estas lideranças comunistas, o
feminismo não era necessário para as mulheres operárias. Nenhuma crítica de
gênero seria necessária para a emancipação das mulheres operárias. A
igualdade no âmbito da produção seria suficiente para a plena emancipação
das mulheres trabalhadoras.
No mundo ocidental - mesmo nos países que se orgulham da sua defesa
dos direitos universais do homem e da democracia universal - as mulheres só
passaram a ter direito a voto, isto é, serem consideradas como cidadãs, depois
de muitos anos de luta. A luta pelo voto das mulheres começou na segunda
metade do século XIX, e só no final da década de 1910 e no início dos anos 20
começa a obter algumas vitórias. Nos Estados Unidos, por exemplo, a emenda
constitucional que proibiu a discriminação política com base no sexo só foi
introduzida em 1920. A partir dessa emenda as mulheres começaram a adquirir
o direito a voto. No Brasil, a Constituição de 1934 estabeleceu o sufrágio
universal para homens e mulheres alfabetizados a partir de 18anos. A
condição "alfabetizados", numa época em que o país tinha um alto índice de
analfabetismo principalmente entre as mulheres - mostra que o sufrágio
"universal" não era tão universal assim.
As mudanças nas sociedades modernas não significaram de maneira
alguma o fim do patriarcalismo ou da dominação de varões sobre as mulheres.
Houve uma melhora, mas não uma mudança radical.
Diversas faces do patriarcalismo
A violência contra as mulheres por parte dos seus companheiros ou pais
infelizmente ainda é bastante comum, para acreditarmos que os problemas nas
relações de gênero foram resolvidos com a industrialização e a modernização
da economia. As recentes e poucas delegacias de mulheres mostram como o
machismo ainda impera em nossa sociedade, e o espancamento e estupro
continuam fazendo parte do cotidiano da nossa cultura machista.
Mesmo no campo da economia e da política percebemos a pouca presença
das mulheres nos postos de comando ou de decisão, além do fato de que elas
continuam, em geral, ganhando menos do que homens para fazer o mesmo
serviço. Sem contarmos a sobrecarga de trabalho de muitas dessas mulheres,
que ao voltarem às suas casas têm que dar conta dos serviços domésticos,
como lavar, cozinhar, cuidar das crianças etc., e, se for o caso, ainda dar
atenção ao seu companheiro. A dupla ou tripla jornada é a difícil realidade da
maioria das mulheres trabalhadoras pobres.
0 patriarcalismo prevalece também nas igrejas e nos movimentos religiosos,
onde as mulheres constituem a maior parte dos seus membros, e somente uma
pequena parcela delas tem acesso aos escalões médios ou superiores. São
4
poucas as Igrejas cristãs que ordenam mulheres para funções de pastora (ou
equivalentes). É conhecida a posição da Igreja católica que, em nome da
Tradição e de Deus, não permite o acesso das mulheres ao sacerdócio. Esta
situação de subordinação das mulheres não é muito diferente em outras
religiões.
A própria imagem de Deus está fortemente marcada pela figura masculina.
As religiões, que no início da humanidade adoravam deusas e deuses, com o
passar do tempo foram eliminando as figuras femininas e se concentrando na
figura masculina e patriarcal. Mesmo em religiões que se referem a Deus no
gênero neutro (o que não temos na gramática portuguesa), acaba
prevalecendo a visão patriarcal. Por isso, muitas teólogas, antropólogas,
sociólogas e historiadoras feministas estão resgatando os mitos e a história das
deusas e propondo uma imagem menos patriarcal, apresentando Deus como
Pai-Mãe ou como Mãe-Pai.
Essa "releitura" do passado não se esgota somente na área religiosa. A
própria história, como tantas outras ciências, está influenciada pelo
patriarcalismo. Há um dito famoso que expressa bem isso: "Atrás de todo
grande homem está uma grande mulher". Às mulheres sobrou a condição
subalterna e estereotipada de ficarem na retaguarda dos grandes homens. E
as grandes mulheres, que foram protagonistas no seu tempo, foram sendo
"esquecidas" pelas ciências oficiais e desaparecendo dos livros sagrados das
religiões ou dos livros de história.
A luta das mulheres e a ética
A questão do gênero está ligada, portanto, àquilo que se chamou de crítica
do patriarcado, ou seja, a crítica do predomínio da figura masculina como
princípio direcionador e orientador das grandes decisões econômicas, sociais,
políticas e culturais. Além da afirmação de que a identidade sexual não está
dissociada da identidade social, política, religiosa etc. Na compreensão dos
processos sociais acrescenta-se a variante do gênero à da situação de classe
e de raça. Afinal, uma mulher negra e pobre é muito mais oprimida e
marginalizada do que um homem branco e pobre.
0 declínio do patriarcalismo que vemos na nossa civilização, apesar de sua
persistência, é fruto das lutas das mulheres. Não é uma simples evolução da
natureza ou uma concessão dos homens. Essa luta e o conseqüente declínio
da nossa civilização patriarcal são sem dúvida uma das marcas do nosso
tempo.
0 movimento feminista não se restringe ao campo das relações sociais.
Questiona também todo o paradigma (modelo) de conhecimento ocidental
moderno baseado somente na razão quantitativa e que exclui outras
dimensões do conhecimento, como a memória, a intuição e imaginação. A
perspectiva do gênero introduz uma dimensão inclusiva também no campo do
conhecimento.
Uma das maneiras em que se pretende descaracterizar o movimento
feminista é transformar a causa feminista em uma disputa entre homens e
mulheres para ver quem tem mais poder, muito a gosto dos meios de
comunicação social. A luta das mulheres não é contra os homens, mas sim
contra as relações sociais patriarcais, das quais os homens também são
vítimas. É uma luta que inclui também homens insatisfeitos com a dominação
5
machista patriarcal. Pois, numa relação de gênero opressiva não são só as
mulheres que sofrem as conseqüências negativas, mas também os homens.
Se é verdade que as mulheres sofrem mais, também é verdade que os
homens não podem se realizar plenamente na sua humanidade mantendo-se
ou sendo coniventes com este tipo de relação. Pois, ele não consegue
encontrar companheira que o complemente, mas somente subalterna.
Companheirismo só pode ocorrer numa relação onde os diferentes se
reconhecem como diferentes, mas não estabelecem hierarquias. Em outras
palavras, companheirismo só é possível numa relação de igualdade entre os
diferentes.
Homens e mulheres buscam companheiros e companheiras porque querem
se realizar como seres humanos superando o solipsismo ou a solidão.
Infelizmente a interiorização de uma cultura machista e patriarcal impele muitos
a certa busca impossível de relação de companheirismo, que deve ser, ao
mesmo tempo, de subordinação ou de dominação.
A interiorização desse tipo de dominação é coerente com outras formas de
dominação em outros tipos de relações sociais que interiorizamos. Por isso,
fortalece a lógica da dominação e dificulta a transformação da nossa sociedade
capitalista. Não foi o capitalismo que criou a desigualdade na relação de
gênero, mas foi, sem dúvida, o capitalismo o que melhor proveito tirou disso. A
mulher, além de dominada, foi reduzida, junto com a sexualidade, a mercadoria
ou a objeto de desejo que promove outras mercadorias como carros, cigarros
etc.
0 patriarcalismo interiorizado impede também muitos varões de usufruírem
dos muitos aspectos humanizantes da vida, como a emotividade, a
sensibilidade, a expressão da afetividade, a intuição e o perdão.
Não se pode pretender acabar completamente, de uma hora para outra, com
um tipo de relação que já perdura milhares de anos. Porém, não se pode
aceitar e ser conivente com a sua manutenção, em nome destes mesmos
milhares de anos. A duração no tempo não transforma o que é no que deveria
ser.
A exigência de ética que vimos no campo da economia, da política e da
ecologia também se faz presente nas relações de gênero. 0 que significa que
as mudanças exigidas não se reduzem ao campo social e público, mas
também chegam ao âmbito privado das relações interpessoais e da família.
0 dilema entre mudanças pessoais ou estruturais não tem mais sentido. As
lutas das mulheres mostraram que a vida é um feixe de relações complexas,
onde as relações de dominação e lutas emancipatórias perpassam desde as
relações interpessoais até as macroestruturais. 0 que significa que devemos
atuar, ao mesmo tempo, nos dois campos. Buscando as revoluções
"moleculares" que se articulam com os grandes processos de mudanças
sociais.
0 grito abafado, silenciado e calado das mulheres oprimidas por serem
mulheres, e muitas delas oprimidas ainda mais por serem também negras ou
índias e pobres, começa a ser ouvido cada vez mais forte no nosso mundo.
"Minha mãe teve 19 filhos, eu já estou no quinto. Uma barriga atrás da outra, até a
gente agüentar ou até os homens se desinteressarem... Será que vai ser a mesma coisaquando minhas filhas forem mulheres? Só agora que participo do grupo de mulheres
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que começo a entender que o mundo tem que mudar por minha e por causa delas"
(Noemia, dona-de-casa, Camaragibe, PE).
"Meu nome é Tereza. Tenho 3 filhos. Sou aluna desta escola. Nem minha avó, nem
minha mãe aprenderam a ler. Eu comecei este ano. Ontem meu sogro foi em casa
reclamar porque soube que eu estava na escola. Disse: 'Onde já se viu mulher depois de
velha, depois de parideira inventar de estudar'. Eu disse: ´Seu Antonio, os tempos
mudaram. Hoje em dia as mulheres têm seus direitos. Acabou o tempo de só se viver no
fogão” (Tereza, 22 anos, dona-de-casa, Cabo, PE).
Abrir os olhos é deixar a luz penetrar no corpo todo, é transfigurá-lo situando-o
diferentemente. As mulheres de olhos abertos começam a ir contra o 'destino' de mulher
para entrar na 'história' da mulher, pessoa de direitos e deveres sociais reconhecidos".
Ivone Gebara. Levanta-te e
anda . São Paulo, Paulinas,
1989, p. 14.
Sugestões de leitura
A Editora Rosa dos Tempos tem uma coletânea de artigos organizada por
Cristina Bruschini e 0. Albertina, Uma questão do gênero, e uma outra
organizada por Seyla Benhabib e Drucilla Cornell, Feminismo como crítica da
modernidade. Recomendamos também um artigo da Maria Rita Kehl, "A mulher
e a lei", que faz parte do livro Ética, Ed. Companhia das Letras, organizado por
Adauto Novaes.
8. POR UMA ÉTICA DE RESPONSABILIDADE SOLIDARIA
Durante as nossas "conversas" tentamos ir tornando mais claro o que é ética
e as implicações éticas da vida em sociedade. Cremos que já temos
informações suficientes para tirarmos algumas conclusões.
Como vimos, na modernidade tentou-se substituir a moral essencialista da
Idade Média, que regulava todas as esferas da vida social, pela moral
individualista, onde cada um é, ao mesmo tempo, o seu próprio legislador e
juiz. E aquele que cria as regras de conduta pessoal e as aplica de acordo com
critérios racionais e seus interesses pessoais. Assim, a moral se tornou um
assunto estritamente privado, separado da vida pública.
Do mesmo modo como cada indivíduo se tornou autônomo para julgar o que
é melhor para si, cada esfera da vida (economia, política, direito, arte etc.),
também criou suas regras internas e autônomas de funcionamento. Por
exemplo, a economia passou a ser gerida pelos princípios do sistema de
mercado, e a política pelas regras do jogo do poder.
A separação das esferas da vida sociocultural sei-viu para o grande avanço
de cada uma delas. É inegável, por exemplo, que a ciência, ao se libertar do
caráter meramente especulativo que tinha na Idade Média, produziu grandes
avanços. Mas ao lado dos avanços alcançados na era moderna encontram-se
também aspectos perversos nascidos dos seus excessos, como as terríveis
7
armas nucleares capazes de destruir a humanidade inteira a qualquer
momento.
Assim como a moral individualista levou ao consumismo, que passou a ser o
próprio espírito do capitalismo, a fragmentação das esferas da vida social levou
a uma desarmonia entre a ação de cada uma delas e o conjunto da sociedade.
Com o atual estágio do desenvolvimento tecnológico, já seria possível fornecer
educação, saúde e alimentação para toda humanidade. Mas, dois terços da
população mundial vivem na pobreza e mais de um bilhão passa fome em todo
mundo. Sem falarmos na crise ecológica provocada pelo nosso modelo de
desenvolvimento industrial. 0 pior é que esta situação está se agravando.
Alguma coisa deu errado no percurso da locomotiva do progresso. Parece que
o progresso técnico gerado pela racionalização capitalista não funciona bem
para os pobres e para o meio ambiente.
Tamanhas foram as distorções da modernidade que as discussões sobre a
ética voltaram a ocupar um lugar central. Como pudemos ver no caminho que
fizemos até aqui, a reflexão sobre a ética pode nos ajudar a compreender a
crise que atravessam as sociedades hoje e a propor alternativas para elas.
Uma das causas deste "paradoxo" da miséria convivendo com a abundância
está na contradição no campo da ética do sistema capitalista. Como vimos
acima, com a racionalização das sociedades modernas, a ética ficou reduzida à
esfera privada e dissociada das esferas públicas que se apresentam como
"eticamente neutras". Mas na verdade as instituições modernas escondem uma
moral interna que se corporifica num conjunto de normas e princípios. Isso
porque nenhuma instituição ou grupo social funcionam sem este conjunto,
queiram ou não, aceitem teoricamente ou não.
Estas normas das instituições modernas funcionam na lógica da moral de
princípios ou moral essencialista. Elas valem em si, independente do contexto
e das conseqüências sobre os seres humanos.
No campo da economia, por exemplo, é uma norma fundamental o
cumprimento dos contratos e o pagamento das dividas. Mesmo que este
pagamento coloque em risco a sobrevivência do devedor, seja ele um indivíduo
ou um país pobre do Terceiro Mundo. A famosa frase protesto de Tancredo
Neves, "não se deve pagar a dívida externa com a fome do povo" (idéia que
nunca passou de retórica na boca da maioria dos governantes dos países
endividados do Terceiro Mundo), revela a lógica cruel da economia capitalista:
a cobrança da dívida externa através da imposição de mais fome aos pobres.
Não importam as conseqüências nem o contexto e a origem da divida, é
preciso pagar!
Não estamos aqui defendendo que as dívidas não devem ser pagas,
estamos apenas ilustrando como uma ética de princípios a priori como a do
capitalismo, pode funcionar em uma situação e ser desastrosa em outra. Levar
em conta somente aquilo que é certo dentro de uma esfera particular sem levar
em conta o conjunto pode transformar uma ação aparentemente racional em
irracional de um ponto de vista mais amplo.
A moral individualista, da defesa do interesse pessoal, articulada com a
moral essencialista das instituições modernas, produz progressos técnicos que
geram injustiças sociais e aplicações cínicas de normas e princípios que
pioram ainda mais a situação dos pobres e dos mais fracos.
Como podemos observar, a moral do sistema capitalista se opõe a uma ética
da responsabilidade por não considerar os efeitos de suas ações sobre outros
8
seres humanos, ou só levar em conta o seu mundo e interesse particular,
desconsiderando a maioria dos que estão fora dele.
Nós mesmos dificilmente enxergamos claramente onde estão as causas dos
problemas sociais. Ficamos indignados quando vemos as pessoas sofrendo
nas filas dos hospitais ou quando vemos pela TV milhares de pessoas
morrendo de fome num recanto qualquer do mundo. Mas geralmente nossa
indignação não se transforma em ação concreta. No meio do caminho entre
nossa indignação ética e nossa ação está a pergunta: "0 que posso fazer?"
Este tipo de questionamento já é um bom sinal. Demonstra que não fomos
totalmente domesticados pelo sistema e nem plenamente engolidos pela moral
individualista da sociedade de consumo. Mas é preciso avançar mais um
passo. Ter boas intenções apenas não basta. É somente através da ação que
as nossas intenções se materializam e demonstramos realmente quem somos,
construímos o nosso ser e expressamos nossa indignação numa prática capaz
de influenciar a sociedade.
Toda ação é guiada por princípios. Mas ficar somente nos princípios pode
levar a conseqüências muito distantes daquilo que pretendemos realizar. Por
isso, defendemos uma postura ética que esteja atenta às situações concretas
em que elas se desenvolvem e aos efeitos das ações. A este tipo de ética
chamamos ética de responsabilidade. Foi a partir desta ética que avaliamos os
diversos problemas da sociedade atual, alertando para a necessidade de se
superar a ética de princípios, a individualista e a razão fragmentada da
sociedade moderna.
Mas ainda assim ficamos no âmbito pessoal. Cada um pode avaliar quais
serão os efeitos de sua ação em relaçãoàs pessoas com quem convive e à
sociedade como um todo. Isto já seria um grande avanço, pois estas pessoas
estariam criando novas formas de convivência que é uma forma de contestar
os valores vigentes na sociedade. Porém, no caso das mudanças que vão ao
encontro da solução dos grandes problemas sociais, este tipo de ação ainda é
limitado.
Além de responsável, a ética precisa romper os limites do individualismo da
sociedade moderna; ela deve ser uma ética da responsabilidade solidária.
Ser solidário significa se colocar no lugar do outro, daqueles que são as
maiores vítimas dos processos sociais de exclusão, as minorias étnicas, as
mulheres, os pobres, as gerações futuras e a natureza, que também é vítima
da ação humana. Colocando-se no lugar dos mais fracos e lutando pela
garantia de seus direitos estamos, ao mesmo tempo, denunciando a moral do
sistema capitalista percebida como sendo "a" realidade e demonstrando na
prática que é possível construir sociedades melhores que esta.
Uma ação solidária é necessariamente uma ação coletiva que se expressa
atualmente nos movimentos sociais em defesa dos mais fracos -- movimento
pelos direitos humanos, ecológico, de mulheres, índios, de combate à fome e
tantos outros que se baseiam numa nova ética social, a ética solidária.
Estes movimentos atendem não só a uma exigência de pôr em prática nossa
indignação ética, mas também a uma necessidade existencial do ser
humano de construção do seu ser. Nós nos humanizamos quando
humanizamos o mundo.
0 mundo moderno levou ao predomínio da técnica em todas as esferas da
nossa vida através de uma racionalidade fria, impessoal, fragmentada e
desumanizadora. Nos tornamos escravos do tempo e nos comportamos como
9
se fôssemos "robôs". Solidarizando-se uns com os outros nos tornamos mais
humanos e sensíveis e libertamos a nossa razão dos limites de uma
racionalidade instrumental, para viver uma racionalidade que é a um só tempo
emoção, razão, criatividade, num todo harmônico.
Através da organização de movimentos em defesa das vítimas do sistema
capitalista podemos construir novos valores e relações sociais, mas as maiores
mudanças ocorrerão em nós mesmos. Ao rompermos com a moral
individualista recobramos a capacidade de conviver uns com os outros e de
nos descobrirmos à medida em que criamos espaços livres das amarras da
coerção e das convenções sociais.
Estes pequenos espaços de convivência solidária podem implodir a lógica
do sistema como um todo. Pode parecer absurdo acreditar que milhares de
movimentos sociais pulverizados pelo mundo todo possam construir uma nova
sociedade baseada numa ética da responsabilidade solidária. Também era
absurda para os gregos antigos a idéia de uma sociedade sem escravos.
Quem sabe os nossos netos ficarão chocados ao saberem que houve um
tempo em que crianças morriam de fome.
Os nossos problemas sociais não são impossíveis de serem solucionados.
Sabemos que somos capazes de sonhar e de ter utopias que estão mais além
da nossa condição humana. Mas, sabemos também que a solução destes
problemas sociais faz parte de sonhos factíveis. E são estes sonhos que nos
abrem horizontes para pensar novas formas de organização social.
Sem este tipo de sonhos e utopias a vida seria um simples caminhar para a
morte.
"Ouvi na Alemanha, nos meus tempos de estudante, uma pequena história que não é
uma fábula, mas um fato verdadeiro. ( ... ) Certa feita, um camponês capturou um
filhote de águia. Criou-o em casa com as galinhas. A águia se transformou
aparentemente numa galinha. Um dia o camponês recebeu a visita de um naturalista que
conhecia os hábitos das águias. Este disse: - A águia não cisca o chão como as galinhas.
Ela é chamada a voar alto e estar acima das montanhas.
0 camponês retrucou: - Mas ela virou galinha. Já não voa mais.
Disse-lhe o naturalista: - Ela não voa agora, mas ela tem dentro do peito e nos olhos
a direção do sol e o chamado das alturas. Ela vai voar.
Certa manhã os dois foram bem cedo ao alto da montanha. 0 sol nascia. 0 naturalista
segurou a águia firme, com os olhos voltados para o sol. E então lançou-a para o alto. E
a águia, transformada em galinha, despertou em seu ser de águia. Ergueu vôo.
Ziguezagueante no começo, depois firme, sempre mais alto e mais alto, até desaparecer
no infinito do céu matinal.
Companheiros e companheiras de sonho e de esperança: dentro de cada um de nós
vive uma águia. Nossa cultura e os sistemas de domesticação nos transformaram em
galinhas que ciscam o chão. Mas nós temos a vocação para o alto, para o infinito.
Libertemos a águia que se esconde em nós. Não
permitamos que nos condenem à mediocridade. Façamos o vôo da libertação. E
arrastemos outros conosco, porque todos escondemos uma águia em nós. Todos somos
águias".
Leonardo Boff. Nova era: a civilização
planetária. São Paulo, Ática. 1994, p.
82.
10
Sugestões de leitura
Sobre a ambigüidade da modernidade e as implicações éticas, indicamos o
livro de Enrique Dussel, 1492: 0 encobrimento do outro - A origem do mito da
modernidade, Editora Vozes. Sobre o papel contraditório da utopia na
modernidade recomendamos o livro de Franz Hinkelammert, Crítica da razão
moderna, Edições Paulinas.

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