Buscar

Um_ensaio_sobre_ensaios

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 3 páginas

Prévia do material em texto

Um ensaio sobre ensaios 
(Peter Burke ) 
 Quando o nobre francês Michel de Montaigne (1533-1592) publicou um 
livro intitulado "Ensaios", em 1580, estava iniciando uma longa e rica tradição, 
fundando um gênero literário e explorando uma mina intelectual que, se não 
inesgotável, de qualquer modo ainda permanece inesgotada. A idéia de publicar 
um volume de pequenas composições sobre uma variedade de assuntos, de 
canibais a carruagens e dos versos de Virgílio à educação das crianças, não era 
nova, embora a escolha dos tópicos por Montaigne, e sobretudo dos títulos, 
fosse altamente individual e idiossincrática. Pelo século 16 era perfeitamente 
normal para os autores publicarem coleções de pequenos estudos, quer os 
descrevessem como "miscelânea", como "discursos", ou seja, falas mais ou 
menos informais, ou mesmo como "florestas", nas quais o leitor pudesse vagar 
à vontade. O que era novo no caso de Montaigne era seu título. Na época, os 
escritores levaram algum tempo para seguir seu exemplo, embora Francis 
Bacon (1561-1626) tenha publicado um volume de "Ensaios" em 1597. Foi 
quase um século após Montaigne que livros com esse título começaram a se 
multiplicar, primeiro em inglês e francês e depois em italiano, espanhol, alemão 
e português. 
 Os italianos escolheram o termo "saggio", os espanhóis, por fim, "ensayo", 
enquanto os alemães hesitaram entre "Versuch" e "Beitrag" (e hoje preferem às 
vezes o vocábulo inglês "essay"). O auge da moda dos ensaios foi 
provavelmente no século 19 e no início do século 20. Intelectuais da estatura 
de John Stuart Mill, Hippolyte Taine, William James, Sigmund Freud e Pío 
Baroja contribuíram todos para o gênero. No caso do Brasil, pensa-se nos 
"Ensaios de Crítica Parlamentar" (1883), de Sílvio Romero, no "Ensaio sobre a 
Música Brasileira" (1928), de Mário de Andrade, e sobretudo nas obras de 
Gilberto Freyre. Freyre foi desde a adolescência, como mostrou recentemente 
Maria Lúcia Pallares-Burke, grande admirador do ensaio inglês, de Bacon e 
Hume a Walter Pater e G.K. Chesterton. Além de publicar várias coleções de 
pequenos estudos, Freyre insistia em descrever "Casa Grande & Senzala", 
"Sobrados e Mucambos" e "Ordem e Progresso" (apesar do tamanho deles) 
como "ensaios". O que se queria dizer com esse termo? Montaigne escolheu-o 
em parte por modéstia ou uma afetação de modéstia, alegando que o que 
publicara eram simples "tentativas" literárias (o sentido original do termo 
francês "essai"). Elas eram o equivalente literário dos esboços de um artista. 
Eram informais, informes mesmo, próximas à língua falada, mais para exemplos 
de conversa do que produtos literários acabados. Não espanta, assim, que o 
primeiro tradutor de Montaigne para o italiano tenha preferido o título 
tradicional "Discursos" ("Discorsi"). Mas, ao escolher esse título, Montaigne 
estava pensando tanto no conteúdo quanto na forma de seu livro. Ele 
apresentava-se como quem simplesmente pensa em voz alta, talvez para ser 
capaz de referir aos censores católicos -que de fato expurgaram seu livro e 
mesmo o baniram da Espanha- que não se comprometia seriamente com tudo 
o que dizia no livro. Ou talvez porque quisesse arrancar seus leitores de suas 
confortáveis conjeturas sobre o mundo, porque pensava que a certeza era 
impossível e que todos nós, filósofos inclusive, somos incapazes de alcançar 
qualquer conclusão firme. 
 Convicções provisórias Assim, todas as nossas convicções são provisórias, 
todos os nossos escritos são uma forma de pensar em voz alta, todas as nossas 
figuras mentais são esboços carentes de infinita modificação. Montaigne, que 
escolheu como mote pessoal a pergunta "o que sei?", encontrara a forma 
perfeita não somente para levar a melhor sobre os censores, mas também para 
expressar sua particular visão de mundo. 
 Porém essa própria forma pessoal transformou-se gradualmente num 
gênero literário, e, como ocorre tantas vezes na história das idéias, de Cristo a 
Calvino, Marx e além, muitos discípulos divergiram de seu mestre quando 
acreditavam seguir seu exemplo. O termo "ensaio" passou a significar não 
somente um escrito de dimensões reduzidas, mas também um escrito ligeiro e 
possivelmente superficial, uma expressão de opinião que não se baseia em 
pensamento rigoroso nem pesquisa extensiva, uma discussão de um tópico que 
pode parecer trivial, um estudo fácil de ler e também fácil de escrever, 
produzido para uma determinada ocasião, como uma coluna de jornal, sem 
muita esperança de ser lembrado uma semana mais tarde. 
Montaigne, cujo mote era "o que sei?", encontrara a forma perfeita não 
somente para levar a melhor sobre os censores, mas também para 
expressar sua particular visão de mundo 
 Para alguns ensaístas, entretanto, o apelo do ensaio é mais profundo por 
acreditarem, a exemplo de Montaigne -se não interpretei mal suas intenções-, 
que poucas convicções se baseiam em fundamentos tão firmes que não tenham 
de ser modificadas ao longo do tempo. Um campo no qual o termo "ensaio" 
não perdeu seu poder original de chocar é o da história. 
 Em meados do século 19, não muito após Leopold von Ranke (1795-1886) 
proclamar o ideal da história profissional, a história objetiva baseada em 
documentos oficiais preservados em arquivos, Jacob Burckhardt publicou seu 
livro sobre "A Civilização do Renascimento na Itália". O subtítulo do livro era 
curto, mas expressivo: "Um Ensaio" ("ein Versuch"). 
 Ele deixou bem claras as razões para escolher esse subtítulo na introdução 
do livro, que começa com a frase: "Essa obra leva o título de mero ensaio no 
sentido estrito da palavra", e prossegue sustentando que "a cada olho, talvez, 
os contornos de uma dada civilização apresentam uma figura diversa" e que "os 
mesmos estudos que serviram a esse trabalho podem facilmente, em outras 
mãos (...), conduzir a conclusões essencialmente diversas". 
 Tal como para Freyre, há inúmeras razões para sua insistência em 
descrever suas obras históricas como "ensaios". Era um meio de distanciá-lo 
dos historiadores profissionais e afirmar sua identidade como um homem de 
letras. Era um modo de justificar sua escolha de tópicos aparentemente triviais 
como a história do mobiliário e da comida, bem como sua decisão de expressar 
suas opiniões pessoais em estudos sobre seu amado Pernambuco em vez de 
fingir ser objetivo. Era também um meio de chamar a atenção para aquilo que, 
com uma característica metáfora visual, Freyre gostava de chamar seu 
"impressionismo", seu foco em vivos detalhes concretos da vida cotidiana. 
 Hoje esse impressionismo pode parecer aos leitores como "pós-moderno". 
A harmonia entre seu modo de escrever e algumas tendências culturais 
correntes é sem dúvida uma das razões pelo renovado interesse atual em 
Freyre. Por razões análogas, pode-se prever um ressurgimento do ensaio. Que 
aliás já teve início, não tanto na literatura quanto na história e no que 
costumava ser conhecido como "ciências sociais". Clifford Geertz na 
antropologia, Richard Rorty na filosofia e Carlo Ginzburg na história 
demonstraram todos tanto o apelo quanto o valor do ensaio. 
 O estadista francês Georges Clemenceau disse certa feita que a guerra era 
importante demais para ser deixada aos generais. Talvez se possa sustentar 
que o ensaio é importante demais para ser deixado aos ensaístas profissionais. 
É um gênero associado tanto a uma forma de ler quanto a uma forma de 
escrever. O modo ensaístico de ler, que pode ser praticado numa vasta gama 
de livros, desconfia de afirmações grandiosas ou aparentemente objetivas, 
buscando o caso individual por trás da generalização ou o preconceito por trás 
da máscara da imparcialidade. Pode-se resumi-lo numa pergunta: o que 
sabemos? 
 Peter Burke é historiador inglês, autor de "Variedades de História 
Cultural" (ed. CivilizaçãoBrasileira) e "O Renascimento Italiano" (ed. 
Nova Alexandria), entre outros. Ele escreve mensalmente na seção 
"Autores", do "Mais!". 
 Tradução de José Marcos Macedo.

Outros materiais