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See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/285176047 A COGNIÇÃO EM AÇÃO: Proposta de um modelo de treinamento tático-técnico da tomada de decisão nos jogos desportivos coletivos Chapter · November 2015 CITATIONS 0 READS 1,343 4 authors: Some of the authors of this publication are also working on these related projects: CONHECIMENTO TÁTICO PROCESSUAL E DECLARATIVO NO FUTSAL: AVALIAÇÃO DE ESCOLARES DE DIFERENTES CATEGORIAS. View project Methodology of collective sports teaching View project Pablo Greco Federal University of Minas Gerais 229 PUBLICATIONS 662 CITATIONS SEE PROFILE Juan carlos pérez morales Federal University of Minas Gerais 44 PUBLICATIONS 91 CITATIONS SEE PROFILE Henrique De Oliveira Castro Federal University of Minas Gerais 62 PUBLICATIONS 11 CITATIONS SEE PROFILE Gibson Praça Federal University of Minas Gerais 70 PUBLICATIONS 26 CITATIONS SEE PROFILE All content following this page was uploaded by Henrique De Oliveira Castro on 30 November 2015. The user has requested enhancement of the downloaded file. KÁTIA LUCIA MOREIRA LEMOS PABLO JUAN GRECO JUAN CARLOS PÉREZ MORALES 5º CONGRESSO INTERNACIONAL DOS JOGOS DESPORTIVOS UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS 5º Congresso Internacional dos Jogos Desportivos Copyright 2015 Instituto Casa da Educação Física Proibida a reprodução total ou parcial deste livro, por qualquer meio ou sistema, sem o prévio consentimento de seus editores. Instituto Casa da Educação Física Rua Bernanrdo Guimarães, 2786 - Santo Agostinho - CEP 30.140-082 - Belo Horizonte - MG - Tel.: (31) 3275-1234 - www.casaef.org.br Capa: Criação e Finalização: Instituto Casa da Educação Física Editoração Eletrônica e Projeto Gráfico: Leonardo Senhorini Revisão: Os autores Impressão: Davi Pires de Oliveira - ME Rua Espinosa, 64 - Carlos Prates - CEP 31.210-525 Belo Horizonte - Minas Gerais - Tel.: (31) 3411-6149 E-mail: sanagraf@yahoo.com.br - www.sanagraf.com.br Para dúvidas, críticas e sugestões sobre este livro, entre em contato: Universidade Federal de Minas Gerais - Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional - Av. Presidente Antônio Carlos, 6627 - CEP: 31.270-901 - BH / MG C749a Congresso Internacional dos Jogos Desportivos (5. : 2015 : Belo Horizonte, MG) 2015 5. Congresso Internacional dos Jogos Desportivos /organizadores Kátia Lucia Moreira Lemos, Pablo Juan Greco, Juan Carlos Pérez Morales. Belo Horizonte : EEFFTO/UFMG, 2015. 436p. ISBN: 978-85-98612-33-1 Inclui bibliografia. 1. Esportes - Congressos 2. Esportes – Estudos e ensino - Congressos 3. Educação física - Congressos. I. Lemos, Kátia Lucia Moreira. II.Greco, Pablo Juan. III. Pérez Morales, Juan Carlos. IV. Título. CDU:796 Ficha catalográfica elaborada pela equipe de bibliotecários da Biblioteca da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Minas Gerais. PREFÁCIO Os jogos desportivos fazem parte da cultura popular, estão enraizados e imbricados na nossa história, resultam indissociáveis das nossas características, formas de pensar, de nos integrar socialmente. Quem quando criança, não ouviu um amiguinho contar, ou vivenciou pessoalmente, ir a dormir abraçado a bola, o dia antes de aquele jogo tão importante? Porém, ou mesmo por causa disso, sua temática tão rica e diversificada solicita permanentemente de novas ideias, novos impulsos. Os jogos desportivos inerentes da nossa cultura, praticados na rua, na escola, no clube, no tempo livre, no rendimento etc. configuram-se de longa data como conteúdos do ensino, da pesquisa e da práxis. A construção das pontes, o estabelecimento de interações entre estes fatores se constitui no desafio presente para cada um dos que militam nessas áreas, o professor no seu dia a dia frente a turma, o pesquisador, na sua investigação que permita elucidar cada vez mais os componentes e as interações desse vasto mundo de modalidades e perguntas sobre as mesmas. Mas também na práxis daquele que pratica, que joga, que deseja consolidar suas motivações, suas expectativas, sua integração social. Para eles este texto oferece apoio cientifico de renomeados pesquisadores na área dos Jogos desportivos. Os capítulos aqui apresentados na sua versão original alinham-se dentro das diferentes áreas temáticas do 5° Congresso Internacional dos Jogos Desportivos, realizado em belo Horizonte, na Universidade Federal de Minas Gerais, com a coordenação do Centro de Estudos em Cognição e Ação. Todos os autores colaboraram de forma voluntária, assumindo os esforços de uma tarefa singular: descrever um tema de forma profunda, porém acessível, para que o leitor se identifique com a temática, descubra novas intencionalidades, opções e alternativas que o auxiliem no seu cotidiano, que ampliem seus horizontes. A obra apresentada reúne textos de especialistas de diferentes universidades, de distintos países, com díspares formações sob o elo comum da temática dos jogos desportivos. Como no jogo, a colaboração deles foi peça mestre na realização da obra. Como no jogo, as contribuições concatenam-se para conformar o ponto de partida que se integra espontaneamente numa adequada finalização, num chute a gol, um chute que tem todas as características de obter sucesso! Ser um bonito Gol. Não foi solicitado aos especialistas escreverem sobre um tema, foi deixado a estes a escolha. Fulcral, os jogos esportivos coletivos. E cada um deles realizou um aporte que se “encaixa” de forma interessante, pontos de vista complementares, nas áreas do conhecimento inerentes aos Jogos desportivos. Assim, da formação de recursos humanos, da formação de treinadores, um dos grandes problemas a ser superado nos dias de hoje no Brasil, carente de uma sólida estrutura de formação de treinadores (com exceções claro, como as do Voleibol, o que também mostra-se uma das características de ter chegado e mantido o sucesso ao longo dos anos!). passando pela área da análise da performance nos Jogos Desportivos, apresentam-se novidades importantes para os que desejam investigar e trabalhar na mesma. Também a área do ensino-aprendizagem e metodologia dos jogos desportivos são diferentes capítulos que abordam o tema, com ideias originais, e muitas propostas para reflexão e ação, e portanto á área da cognição e ação também se desenvolve com aportes direcionados a práxis, de utilidade para o quotidiano. Cientes que a abrangência da temática dos jogos desportivos não se esgota em uma obra, em um congresso, este livro texto visa provocar a reflexão, as pontes entre a teoria e a práxis, aliás o lema, ou tema central do congresso. Certamente a leitura trará novos desafios, incitará a geração de propostas, novas ideias, novos caminhos, abrirá fronteiras e despertará o desejo de continuar a crescer, marcar um constante “aprender a aprender”. Fecham-se as cortinas do presente aporte, porem abrem-se novamente as mesmas para o futuro. Quais os objetivos alcançados no evento? Quais as impressões que cada um conseguirá apreender após esses dias de convívio e como a leitura desta obra poderá indicar caminhos a percorrer. Como diz o poeta espanhol Antonio Machado, nos seus versos que descrevem o mediterrâneo, sua terra natal. “Caminante son tus huellas del camino y nada más caminante no hay camino, se hace caminho al andar, al andar se hace el camino y al volver la vista atrás se ve la senda que nunca se ha de volver a pisar, caminante no hay camino sino estelas en la mar.“ O futuro depende de cada um de nos, ele será construído, com as pontes entre a pesquisa e a práxis que cada um se anime a desenvolver. Obrigado pelaleitura, que esta obra seja apenas uma pequena semente que contribui para o desenvolvimento de cada um de vocês, e contribui para a área que nos agrada, o fascinante mundo dos Jogos desportivos. Um mundo de aleatoriedade, de inovação, criatividade, colaboração, oposição, mas sempre fascinante. Os organizadores deste livro lhes desejam boa leitura. SUMÁRIO DESPORTO E UNIVERSIDADE: URGÊNCIA DE REVISÃO COM OS OLHOS DA FILOSOFIA E DA ARTE Jorge Olímpio Bento ............................................................................... 15 PROCESSO ORGANIZACIONAL SISTÊMICO, A PEDAGOGIA DO JOGO E A COMPLEXIDADE ESTRUTURAL DOS JOGOS ESPORTIVOS COLETIVOS: UMA REVISÃO CONCEITUAL Alcides José Scaglia; Riller Silva Reverdito; Marcos Vinícius Russo dos Santos; Larissa Rafaela Galatti ............................................................... 43 RELAÇÃO PEDAGÓGICA E EXPERIÊNCIA DOS ALUNOS NO ENSINO E APRENDIZAGEM DOS JOGOS DESPORTIVOS Amândio Graça ....................................................................................... 63 RUGBY NO BRASIL: NA ESCOLA! É POSSÍVEL? Eraldo dos Santos Pinheiro; Mario Renato Azevedo Júnior; Mauricio Migliano; Gabriel Gustavo Bergmann .................................................... 87 A PERCEPÇÃO DOS EXPERTS ACERCA DOS FATORES RELEVANTES PARA O DESENVOLVIMENTO DO JOGADOR DE BASQUETEBOL Fernando Tavares; Américo Santos; Luís Gonçalves ........................... 101 TOMADA DE DECISÃO: DO ESPORTE AOS ASPECTOS NEUROFISIOLÓGICOS Gustavo De Conti Teixeira Costa; Pablo Juan Greco ........................... 123 FORMAÇÃO DE TREINADORES: COMO ALOCAR UM DISCURSO TEÓRICO À PRÁTICA? Isabel Mesquita ..................................................................................... 143 IMPORTÂNCIA DA COGNIÇÃO PARA O JOGAR DE QUALIDADE NO FUTEBOL Israel Teoldo; José Guilherme; Júlio Garganta ..................................... 169 O ENSINO DOS ESPORTES DE RAQUETE: UMA ATUAÇÃO PEDAGÓGICA DIVERSIFICADA Layla Maria Campos Aburachid ........................................................... 217 ANÁLISE DA PERFORMANCE ESPORTIVA COM FOCO NAS CARACTERÍSTICAS PSICOSSOCIAIS: EM BUSCA DE UM MODELO TEÓRICO Lenamar Fiorese Vieira; José Roberto Andrade do Nascimento Junior; Andressa Contreira; William Fernando Garcia; Marcus Vinicius Mizoguchi ............................................................................................. 237 A INICIAÇÃO AO ANDEBOL (HANDEBOL) – UMA ABORDAGEM CENTRADA NO DESENVOLVIMENTO DAS COMPETÊNCIAS DE JOGO Luísa Estriga ......................................................................................... 255 TRAINING ATHLETES’ CHOICES USING A SIMPLE HEURISTIC APPROACH Markus Raab; Sylvain Laborde; Mariana Lopes; Pablo Greco ........... 271 FORMAÇÃO DE TREINADORES ESPORTIVOS: REALIDADE E PERSPECTIVAS Michel Milistetd; William das Neves Salles; Vinicius Zeilmann Brasil; Michél Angillo Saad; Juarez Vieira do Nascimento ............................. 285 A COGNIÇÃO EM AÇÃO: PROPOSTA DE UM MODELO DE TREINAMENTO TÁTICO-TÉCNICO DA TOMADA DE DECISÃO NOS JOGOS DESPORTIVOS COLETIVOS Pablo Juan Greco; Juan Carlos Perez Morales; Henrique de Oliveira Castro; Gibson Moreira Praça ............................................................... 311 INICIAÇÃO ESPORTIVA UNIVERSAL: O JOGO DO “ABC” NA ALFABETIZAÇÃO ESPORTIVA Pablo Juan Greco; Juan Carlos Pérez Morales; Layla Campos Aburachid; Mariana Calábria Lópes; Schelyne Ribas da Silva; Rodolfo Novellino Benda .................................................................................................... 335 ACTUACIÓN DOCENTE DEL ENTRENADOR PARA EL DESARROLLO DE LA TOMA DE DECISIONES DE JUGADORES DE VOLEIBOL EN ETAPAS DE FORMACIÓN Perla Moreno Arroyo ............................................................................ 261 LA INTERVENCIÓN DEL ENTRENADOR A TRAVÉS DEL ANÁLISIS DE LAS TAREAS DE ENTRENAMIENTO Sergio J. Ibáñez; Sebastián Feu; María Cañadas; Javier García ........... 381 TALENTO ESPORTIVO: TEORIA E PRÁTICA Adroaldo Gaya; Vinícius Denardin Cardoso; Anelise Reis Gaya; Alberto Reinaldo Reppold Filho ........................................................................ 411 SOBRE OS ORGANIZADORES Profa. Dra. Kátia Lúcia Moreira Lemos Professora da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional (UFMG) Coordenadora do Grupo de Estudos em Sociologia e Pedagogia do Esporte (GESPE) Prof. Dr. Pablo Juan Greco Professor da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional (UFMG) Coordenador do Centro de Estudos em Cognição e Ação (CECA) Prof. Dr. Juan Carlos Pérez Morales Professor da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional (UFMG) Membro do Centro de Estudos em Cognição e Ação (CECA) COLABORADORES Prof. Ms. Gibson Moreira Praça Professor do Departamento de Educação Física (UFVJM) Membro do Centro de Estudos em Cognição e Ação Prof. Ms. Gustavo de Conti Teixeira Costa Professor da Faculdade Estácio de Sá Membro do Centro de Estudos em Cognição e Ação Prof. Ms. Henrique de Oliveira Castro Membro do Centro de Estudos em Cognição e Ação UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Reitor Prof. Dr. Jaime Arturo Ramírez Vice-Reitora Profa. Dra. Sandra Regina Goulart Almeida Diretor da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional Prof. Dr. Sérgio Teixeira da Fonseca Vice-diretor da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional Prof. Dr. Herbert Ugrinowitsch Chefe do Departamento de Esportes Prof. Dr. Fernando Vitor Lima EQUIPE EDITORIAL ORGANIZADORES Profa. Dra. Kátia Lúcia Moreira Lemos EEFFTO/UFMG Prof. Dr. Pablo Juan Greco EEFFTO/UFMG Prof. Dr. Juan Carlos Pérez Morales EEFFTO/UFMG REVISORES Prof. Dr. Pablo Juan Greco EEFFTO/UFMG Prof. Ms. Gibson Moreira Praça DEFI/UFVJM Prof. Ms. Gustavo Conti Teixeira Costa EEFFTO/UFMG Prof. Ms. Henrique de Castro EEFFTO/UFMG CONSULTORA DE NORMALIZAÇÃO BIBLIOGRÁFICA Íris da Silva – Bibliotecária CRB6 2283 – EEFFTO/UFMG 15 DESPORTO E UNIVERSIDADE: URGÊNCIA DE REVISÃO COM OS OLHOS DA FILOSOFIA E DA ARTE Jorge Olímpio Bento1 Os homens não desejam aquilo que fazem, mas os objetivos que os levam a fazer aquilo que fazem. Platão, 427-347 a.C. Começo com um aviso que deve merecer atenção da parte dos leitores: tenham muito cuidado comigo, porquanto ando na contramão, apostado em atrapalhar o tráfego! Na contramão do quê? Eu digo prontamente, sem delongas ou entretantos ou falinhas mansas: na contramão de uma era de cores e contornos medievais, dominada pela banalidade, insânia e trivialidade, pelo desprezo do património utópico, pelo ‘império do efémero’, do superficial, do vazio asfixiante e da mesquinhez aviltante, pelo pragmatismo e utilitarismo de vistas curtas e exíguas, pela categorização e envernizamento do homo festivus como homo aestheticus, pelo entretenimento e hedonismo compulsivos e desenfreados, pelo egocentrismo e hiperindividualismo chocantes e desumanizantes, pelo pensamento (?) binário, de polaridade simplória e dicotomias primárias, simplista e reprodutor do ‘mainstream’ e do senso-comum.2 Procuro objetivamente transitar, como peão avisado, desperto e perscrutador, na capciosa e traiçoeira faixa do alastramento e consentimento da barbárie, do canibalismo subtil, mas brutal e cruel, do desfortúnio cotidiano e da regressão civilizacional, do crescimento da ignorância arrogante e das certezas miseráveis, das mentalidades modeladas pelo estilo ‘bunker’, da ditadura e do endeusamento das métricas, dos números e dos gráficos, do apagão da lucidez, do desincentivo e da desmoralização da capacidade de pensar crítica e livremente, da ‘funcionalização’ da educaçãoe formação e da ação dos professores, da ascensão dos padrões 1 Professor Catedrático e Diretor da FADEUP-Faculdade de Desporto da Universidade do Porto. 2 SAFATLE, Vladimir. Pensamento binário, Folha de S. Paulo, p. A2, 28.07.2015. 16 e ‘valores’ tecnocráticos, da involução mental, da diminuição da visão complexa e eclética do mundo, da realidade e da vida, do ressurgimento e da proliferação do fanatismo e das verdades apodíticas, baseadas na economia e estatística e, quiçá, em disciplinas estranhas e ocultas, da imposição de uma ‘ciência e pesquisa de eunucos’, ao serviço do sultão ou mandarim e dos seus beneficiários e financiadores. Não se estranhem: eu trafego propositadamente nestas pistas, porém em sentido contrário, para ocasionar o embate e o choque, para provocar estilhaços incómodos e atear, com labaredas acesas, discussões assanhadas! É com este circunstancialismo que venho falar da Universidade e do Desporto como ‘artefactos’ e ‘artífices’, como instituições e fatores de construção da ‘artificialidade’, franqueadora da passagem dos ‘hominianos’ a humanos. Não venho desamparado. Trago comigo uma declaração de apoio, escrita por Friedrich Schiller (1759-1805): “A Arte é a mão direita da Natureza. Esta última deu-nos apenas o ser, a primeira fez de nós homens.” Uma outra firmada pelo punho de Fernando Pessoa (1888-1935): “É de meu natural ser artificial.” E ainda estoutra, assinada por Vinicius de Moraes (1913-1980) em A Garota de Ipanema: “A beleza é fundamental.” Sim, a beleza dos sentimentos, das atitudes, das palavras e gestos é o alicerce e o pilar que suportam a humanidade levantada sobre a animalidade. Valho-me, não por último, do amparo de Karl Marx (1818-1883), sabendo quão perigoso é socorrer-me dele. O barbudo e façanhudo, facundo e provocador analista e pensador, hodiernamente amaldiçoado e proscrito dos círculos do diletantismo e da masturbação do ‘politicamente correto’, seguindo a esteira dos antigos, inseminadores e percursores filósofos e mitólogos helenos, fundamentou a tese da impossibilidade do mundo humano-social se distinguir do mundo animal, sem ser modelado segundo “as leis da beleza”, sempre e em toda a parte, desde a sociedade primitiva até ao presente. Quer dizer, a ‘artealização’, a ‘estetização’ e ‘estilização’ do mundo humano, das celebrações e rituais, dos contextos, corpos, objetos e utensílios são pressupostos antropológicos, contínuos e trans-históricos da sociedade. As diversas e extremamente distintas formas do labor estético constituem a marca singular de uma dada época, 17 humanizando e socializando as emoções, os paladares e os sentidos.3 Para não deixar, por mãos alheias, os meus créditos de guerreiro de má e terrível fama, abro as hostilidades, atirando esta pedrada pesada e pontiaguda: O papel de oficina de ‘artesanato’, de ‘artesão’, de ‘ourives’ ou ‘tecelão’ de peças de retoque fino, de critério elegante e de gosto apurado, atribuído à Universidade e ao desporto, está abandonado ou subalternizado nas reflexões e nas linhas de investigação, tal como a sua vinculação ao Humanismo e Iluminismo. Como se fosse absolutamente normal e não houvesse nada a perturbar o nosso olhar. Ainda poderemos chamar desporto a muitas das suas manifestações na atualidade? Mais, sendo o desporto uma expressão do que é o indivíduo humano, um ‘ser excessivo’ e ‘transfronteiriço’, propenso a exceder e quebrar os limites e as amarras instintivas e naturais, a afastar-se e distinguir-se do animal, mas igualmente a regredir para o ponto de partida, para a fronteira da animalidade, como está a tematização deste afastamento e recuo? Suscita aplauso e louvor a elaboração das vias e balizas para esta apreciação? Ou será que ela é infundada e não tem carácter de urgência?4 O empreendimento de edificação da cidade humana é obra da filosofia, da cultura, da arte, da ciência e, claro, também do desporto. A obra é muito difícil, porque a floresta da animalidade é densa, cresce e avança sem esforço. O Código de Hamurábi (escrito pelo rei com o mesmo nome, na Mesopotâmia, aproximadamente em 1700 a. C.) e os ‘libertadores’ 3 LIPOVETSKY, Gilles & SERROY, Jean. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista, p. 16. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. (Oferece-se chamar a atenção para a extraordinária multiplicação das tecnologias e usos do corpo, assim como para a expansão registada pelo desporto na segunda metade do século passado, a ponto de ‘desportificar’ a sociedade, as linguagens, os estilos de vida, o vestuário, etc. Não por acaso, há intelectuais, uns movidos pelo preconceito e ressabiamento e outros pela constatação factual, que rotulam o século XX como “esse estranho século do desporto”). 4 Como é sabido, o limiar de tolerância à violência altera-se e é um dos indicadores da civilização. Ora o desporto é confabulação de uma violência simbólica, não podendo descambar para o combate de vida e de morte, alicerçado na violência meramente física, inerente à animalidade e bestialidade. Mais, ao longo da história, o código de regras do desporto sofreu alterações e várias modalidades desportivas foram banidas, devido exatamente ao facto de não se compaginarem com o limiar de tolerância à violência. O que é que vemos hoje? A emergência de formas brutais e grotescas de prática desportiva! Não está na hora de levantar a voz contra esta involução? Ou será que a cegueira ética impede de ver semelhantes aberrações? 18 Mandamentos de Moisés (redigidos, no Monte Horebe, cerca de 1512 a. C.) caíram, paulatinamente, no esquecimento; deixaram de ser ensinados, aprendidos, observados e praticados. Está bem assim? Batemos palmas de contentamento? II Desde os primórdios da civilização, a sabedoria humana tem consistido em estabelecer a prevalência do espiritual, moral e sagrado sobre o material, o animalesco, mundano e profano, e em criar instituições que encarnam, difundem e consolidam essa primazia. Nessas instituições repousa a incumbência de indicar as metas e sentidos do processo civilizacional, de fornecer as referências, energias e estímulos que animam os nossos passos, as pernas que permitem avançar, os braços que ajudam a subir, os olhos que possibilitam discernir, os ideais que permitem sorrir. Elas concebem as artes, os artefactos, os instrumentos e os métodos que nos facultam e intimam a tornar possível o impossível, próximo o distante, realizável o idealizável, factual o virtual, familiar o estranho, a perseguir o infinito e a apresentar mais compreensíveis, leves, palpáveis e tangíveis os trágicos, profundos e indecifráveis mistérios da vida. A história da Humanidade é contada e interpretada pelo papel e trajeto das suas instituições ao longo dos tempos, pela sobrevivência e transformação de algumas, pelo desaparecimento e substituição da maioria delas, em sintonia com os arcanos e anseios, as contradições e os problemas de cada época. Elas são uma representação do entorno em que surgem os poetas e vates, os filósofos e pensadores e toda a sorte de artífices e pontífices que constroem e abatem mitos, causas, paradigmas, utopias e distopias, educam os povos e lançam pontes entre o passado, o presente e o futuro. A Universidade e o desporto incluem-se nesse escol de instituições e estruturas. E têm muito em comum: são um produto da Modernidade, do Humanismo e Iluminismo, recebem destes a base da sua fundação e a bússola da sua missão. Isto é, o clarão da filosofia e da cultura ilumina a Universidade e o desporto, com o fulgor dos axiomas gregos da ‘arété’, da perfectibilidade e transcendência. Ambos almejam prosseguir na senda 19 do Homem Novo, dono e senhor da natureza, um ser de liberdade e dos possíveis, fora de escala, sem especificidade, essência natural e identidade a priori,fiado na logodiceia e descrente da teodiceia. Visam tornar os humanos sujeitos da sua vida, aptos a superar a inumanidade de que somos parte, sob a luz da razão, da ética e da estética, dar-lhes uma arquitetura e ‘forma’ interiores e exteriores, conformes às grandezas idealizadas. Wilhelm von Humboldt (1767-1835) bebeu nessa fonte a inspiração para, na peugada de Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494), de Voltaire (1694-1778), de Rousseau (1712-1778), de Kant (1724-1804), de Pestalozzi (1746-1827) e Goethe (1749-1832), entre tantos outros, formular, em 1810, a ‘ideia’ da Universidade Moderna e coligir, para a respetiva concretização, os elementos do conceito de formação (Bildung). Antes dele, Guts Muths (1759-1839) tinha projetado o Homo Gymnasticus, como versão do Homem Novo e da sua busca, na obra Gymnastik für die Jugend (Ginástica para a juventude), escrita em 1793. Pestalozzi segue na mesma via ao fundamentar, em 1807, os atos corporais como autênticos exercícios ‘anímicos, volitivos e morais’; e ao prescrever o mandamento do ‘desenvolvimento’ do corpo, de não o abandonar à espontaneidade natural. O Homo Olympicus, de Pierre de Coubertin (1863-1937) incorpora essas bitolas. Com elas, o barão e os seus seguidores recriaram o desporto como expressão da relação de ‘natura’ e ‘cultura’ na configuração do homem e do seu corpo, da submissão da natureza originária e primeira aos fins da segunda. Apresentaram-no como metáfora, paradigma e versão de uma ‘filosofia da transcendência’ e da ‘exaltação da vida’, com ‘pretensão de totalidade’ e de aplicação em todos os campos: enlaçando o bem (ética), o belo (estética), o respeito por si e pelos outros (fair-play), a consciência de valores (moral) e a elevação da existência ao plano da excelência (arte, arété, virtude). Deste jeito no desporto encontram repercussão, guarida e observância as exortações e prescrições do Humanismo e Iluminismo, erigindo-o em ‘fator de regeneração ética’ da sociedade, modelando-o com uma ‘moral em ação’. Em suma, a Universidade, o olimpismo e o desporto provêm da 20 mesma fonte matricial. Temos que os revisitar, munidos da mesma noção e visão, com o intuito de sopesar o abandono da mensagem original, sacrificada no altar do utilitarismo demencial. Com lentes conceitualmente aprimoradas, não será difícil verificar e reparar a medida da sua insana afetação pela loucura da contemporaneidade. III Como é sabido, os nossos ancestrais gregos definiram-nos como entes ‘artísticos’ e ‘simbólicos’. A definição contém um requisito para sermos humanos. Por conseguinte, somos criadores e consumidores de símbolos que ritualizam a vida e associam as ações e objetos a significados que transcendem os seus efeitos palpáveis. Isto está bem expresso na citação de Platão, que inaugura este texto. Vivemos num universo simbólico. Somos protagonistas de símbolos práticos, de ‘atos intencionados’, interpretativos e instituidores de finalidades e sentidos, codificando, organizando e regulando, com significantes e significados, a nossa conduta. Este congresso é, portanto, um ato simbólico, como o são todos os praticados na instituição eminentemente simbólica que é a Universidade. Ele consagra o regresso à Grécia Antiga, ao contexto onde melhor coabitaram a academia e o desporto. Por isso é um ensejo para evocações, elogios e renovações, que acordem a inquietação perante os desvarios e descaminhos das circunstâncias. É nesta conformidade que aqui venho, de corda ao pescoço. O fio de inquietude, que me leva a pensar e questionar a Universidade e o desporto, é o mesmo; é tecido com as mesmas equações, inquietações, intenções e preocupações. Contudo, não basta apresentar a substância e textura do novelo. Estamos aqui para dele tirar ilações. Venho aqui aguilhoado pela advertência de Teixeira de Pascoaes, e amedrontado pela probabilidade de ser atingido pelo seu ferrão pontiagudo: “Sempre que o homem hesita na sua humanidade, aparece o macaco.” E também para corresponder ao seu ajuizamento: “A verdadeira liberdade consiste em obrarmos em nosso próprio nome, em sermos nós em nossas 21 obras e pensamentos.”5 Não olvido este juízo, bem como o do Padre António Vieira (1608- 1697): “Cada um é as suas ações e não outra coisa (…) A verdadeira fidalguia é a ação.” Este carrego não é maior do que a esperançosa convicção de encontrar companheiros de eleição em todos quantos trazem às páginas deste livro e às sessões do congresso o seu labor e reflexão. “Sem vontade nada feito”, proclamou Aristóteles (384-322 a.C.), lembrando que, só através da ação, podemos converter em realidade as irrealidades e inexistências que idealizamos e pensamos. A atitude passiva e demissionária aliena e tolhe os nossos passos. A acrasia, a desídia, gravidade, indolência, preguiça e obesidade nos olhos e sentimentos, no coração e na alma puxam para o chão e para a inércia, afundam no pasmo e na falsidade, no nível zero de humanização; e atiram para fora da órbita da dignidade. A fé, sem obras, é morta, postula o credo cristão. O lema do desporto e da vida - Citius, Altius, Fortius! - apela a sonhar e realizar. A não cair na tentação de converter a reflexão em lamúria inibidora da ação; e na ingénua espera de ver, de maneira espontânea, ultrapassados os males denunciados e realizados os sonhos idealizados, sem o empenho correspondente. Assumamos a necessidade e o dever de voltar a elaborar, divulgar e lutar por utopias e não ficar à espera de que se concretizem. Como disse Eurípedes (ca. 480-406 a.C.), “o tempo não se ocupa em realizar as nossas esperanças; faz o seu trabalho e voa.” Somos nós que temos de apontar os ideais e utopias, indicadores dos roteiros por onde nos cumpre caminhar, no dizer de Eduardo Galeano (1940-2015). IV A minha participação nesta douta congregação, dedicada ao estudo da nossa área de atuação académica e profissional, suscita-me um estado de alma pintado de gratidão e de regozijo. Sinto-me grato pela oportunidade, que me é oferecida, de discorrer sobre o que me pica e fere as entranhas e a pele. É verdade que faz escuro na Universidade e no desporto; vejo-os 5 PASCOAES, Teixeira de. Arte de ser português. Lisboa: Assírio & Alvim, 1998. 22 envoltos em densa neblina, pedindo um foco de iluminação. Não é menos verdade que venho apontando e conclamando, nos últimos anos, para a necessidade de urgente revisão. Porém, não obstante a aliciante moldura de intenções, assola- me a dúvida de não conseguir este panegírico de abertura do congresso com a “imaginação, fecunda e santa”, com “a vida e a luz de tudo”, que Teixeira de Pascoaes vislumbra na Senhora da Noite. Ela, sob a forma de “erma donzela”, sobe, no lusco-fusco, aos cerros do Marão (a serra mais alta do reino maravilhoso de Trás-Os-Montes, meu berço alimentício e inspirador), para durante a noite se metamorfosear em aurora e irradiar um lume que rompe “a sombra indefinida, o espectro mudo”; e desce lá do alto, carregada de “noturnos sonhos”, para inundar de sol as encostas, os vales, outeiros e pinheirais da negra solidão, convertendo-os em faceiras de sorrisos e searas de trigo. Não logrando abeirar-me da concretização de tal intento, sobra esta gratificação: “Eu vos abençoo, malucos, lunáticos, mágicos (…), poetas e os que saem para a rua, sem chapéu, por divino esquecimento e os que vão a falar só, pelos caminhos (...) e os que olham a lua, latindo intimamente (...) e os que se não conformam, os que não seguem a lei nem o costume, todas as criaturas onde o anjo da infância sobrevive.”6 Saúdo os organizadores deste congresso. Saúdo o desporto e todos quantos justificam o seu ideário. Saúdo a vida! Saúdo todos os congressistas pela generosidade e pelo simbolismo da decisão da sua presençae empenho, por afrontarem o conformismo dos hábitos e costumes. Ao homenageá-los, nesta hora em que as palavras perderam fiabilidade, estou igualmente a enaltecer todos quantos honram o desporto e a Universidade, fazem jus à altura do ritual do casamento entre os dois, pela conduta exemplar, por cultuarem a elegância e fulgurância da palavra subida, límpida e culminante e, assim, erguerem bem alto o legado que nos veio de tão longe. Importa que se diga algo mais. A tocha olímpica representa o fogo de Prometeu. E o estádio é, nem mais nem menos, o templo onde esse fogo arde para nos mostrar o céu da admiração e encantamento. Uma ‘lux indeficiens’, que nunca se extingue e apaga, por mais densa que seja a 6 PASCOAES, Teixeira de. Senhora da Noite. Verbo Escuro. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999. 23 escuridão em nosso redor. Quando o atleta sobe as escadas, que levam à pira olímpica, e a ateia com a chama que transporta nas mãos e dentro de si, está a devolver aos deuses, aumentado e multiplicado, o fogo que Prometeu lhes roubou para o entregar às criaturas de Epitemeu. É essa luz das estrelas acima de nós da nossa baixeza, do nosso espírito, das artes, das técnicas, das habilidades, das nossas escolhas e opções éticas e morais, do nosso Humanismo e Iluminismo, da nossa racionalidade e maioridade humanas, do aprimoramento da nossa imperfeição, da busca incessante da nossa imperfeita perfeição, do controlo, domínio, superação e transcendência da nossa pequenez e figura grotescas, sim, é tudo isso que vimos aqui celebrar e proclamar. Ao efetuarmos este ato e avocarmos estes compromissos no claustro da Universidade, local de consagração e meditação, destinado a abrigar, fecundar, fomentar e irradiar a erudição e a espiritualidade, estamos a optar por uma estrada de largo alcance. Esta vai para além de nós e deste lugar; leva-nos ao palco de comprovação das obrigações e responsabilidades cívicas e intelectuais que, na qualidade de académicos, nos atam à polis com laços indestrutíveis. Com isso emitimos sinais de que nos sentimos obrigados a uma remissão discursiva e prática dos fins e das orientações da Universidade e do desporto, da sociedade e da vida. Enfim, comprometemo- nos a questionar o idioma e a vulgata do ‘utilitês’, hoje em alta, secando e sufocando tudo à sua volta. V Por isso mesmo, a motivação, que aqui nos congrega, não é ingénua. Constitui um preito de reconhecimento e juramento de passagem do verbo à ação. Visamos edificar uma ponte para ultrapassar o enorme fosso entre a importância que o desporto usufrui na sociedade e o desdém que lhe é votado pela elite da alta cultura. Assim como apelamos a pôr termo à indiferença face ao crime de perversão e apoucamento da sua vocação humanista, perpetrado pelos donos desta hora e pelos seus avençados e súbditos nos órgãos mediáticos. Inclusive na Universidade o desporto é encarado como assunto periférico, com condescendência arrogante e sobranceira, cuidadosa de agir dentro das fronteiras do politicamente correto. 24 Seria estultice da nossa parte, se nos limitássemos a chorar lágrimas de crocodilo ou a vomitar impropérios contra esta situação, em vez de cuidarmos das causas que a provocam, bem como dos argumentos e remédios para a debelar. Píndaro (518-438 a. C.), nas suas odes, concita para a celebração religiosa dos atletas. Nele é notório o esforço e o engenho para valorizar as proezas atléticas, para as situar no pináculo da cultura, e criar delas uma imagem de sublimidade: “Olímpia, mãe dos jogos de áureas coroas, senhora da verdade!” Salvo raras exceções, a disposição para louvar o desporto não se prolongou na nossa tradição cultural. Muitos intelectuais diminuem e descartam a sua função. Não é raro que vejam a popularidade do desporto como indício de decadência ou afastamento de uma suposta ‘autenticidade’ cultural, “que jamais é definida com clareza.”7 Mesmo muitos dos que gostam dele não logram captar o seu fundamento essencial, a sua função primordial. Faltam-lhes olhos para perceber que o desporto pode não mudar a nossa natureza, mas transforma-a, mudando o que escolhemos ser; pode ser uma centelha para soltar as consciências das cadeias da alienação e manipulação à solta. E porquê? Porque a paixão pelo desporto não implica que o indivíduo se enrede nele. Do útero, que gera a turba desregrada e virulenta, também nascem desígnios límpidos e floridos. Em regra, vigoram a depreciação e o menoscabo, que identificam o desporto com uma atribuição secundária, sem elevados fins intrínsecos, restando-lhe servir apenas para a satisfação de externalidades, ser instrumentalizado para interesses, mais ou menos escuros, de duvidosa credibilidade. A dificuldade de elogiar o desporto demonstra que continua vigente um tipo de racionalidade inibidora da descoberta e interpretação da metafísica nos movimentos e atos corpóreos, de que os corpos e os feitos dos atletas são signos e vias para algo espiritual e transcendental. Porventura contaminada por um veneno idêntico ao que se inoculou no tresloucado 7 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Elogio da beleza atlética, p. 28. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 25 ‘publish or perish’ da ‘papermania’ e dos ‘salami papers’, aquela visão não concebe a competição desportiva em cooperação e cumplicidade com a arété grega, com a harmonia e unidade de técnica, performance, ética, estética, excelência, magnificência, excelsitude e virtude. Essa racionalidade desabitada de sensibilidade impede de ver nos gestos e prestações corporais transfigurações eivadas de espiritualidade. Ignora a recomendação de Aristóteles (384-322 a.C.) para atribuirmos importância às coisas que nos cercam, laborarmos no aperfeiçoamento do relacionamento com elas, se queremos realmente melhorar-nos a nós, ver além do material e aceder ao imaterial. Tal como olvida a valoração extraordinária que Homero (séc. IX a.C.) concedeu às obras difíceis e bem conseguidas, entre elas os feitos desportivos, realizadas com os pés e as mãos. Eis algo que é bonito afirmar, mas não é bastante. Exige-se que não fiquemos por isso; a coerência aconselha a extrair ilações e consequências para as linhas de pesquisa, para a elaboração e formulação dos argumentos de legitimação e para a definição das instrumentalizações do desporto, nesta época ensandecida pela loucura e pelo viés do pragmatismo e utilitarismo mais extremados e do negócio e lucro mais obscenos. Pelo predomínio absoluto do animal laborans e do homo eficiens e faber sobre o homo ludens. VI Ora nós estamos aqui para afirmar o desporto e as suas instituições como desejáveis e indispensáveis à justificação e salvação da nossa precária existência. Certamente, o desporto e os atletas não ganham muito com o facto de lhes prestarmos este tributo. Somos nós que ganhamos; ao enaltecermos o fascínio e a paixão que o desporto nos causa, o prazer que os seus espetáculos nos proporcionam, exercitamos o dever e a pulsão da gratidão sem destinatário específico. É uma gratidão à vida que amamos. Uma recusa do registo hiper-racional de linguagens e modos de pensar esquecidos da necessidade de incluir as emoções nas avaliações e decisões.8 8 Se a racionalidade de não poucos decisores políticos e afins incluísse o sensível, ser- lhes-ia mais difícil tomar medidas que empurram as pessoas para o desvão da indignidade e desumanidade. 26 Concedamos que é deveras difícil elogiar o desporto, por não ser fácil descrever a inigualável beleza e imagética que o perfazem e nos oferecem momentos de contacto intermitente com o fascínio e esplendor das utopias da felicidade e verdade. Por ser evidente que ele atrai para condutas e reações ruins e pouco saudáveis. Mas isso não nos pode desviar da explicação central e fundamental do seuapelo: a insularidade e a autonomia da experiência estética em relação ao trama do quotidiano, driblado e posto de lado durante a execução desportiva. Esta somente é realidade exterior na aparência, porquanto tem o singular poder de evocar e inundar a nossa alma de todos os sentimentos possíveis e de todos os conteúdos vitais. Nisto reside algo muito valioso que confere ao desporto “o poder por excelência da arte”, apontado por Hegel (1770-1831) nas suas reflexões sobre estética. Kant formulou que a arte é bela, quando parece ser natureza. Esta asserção aplica-se inteiramente ao desporto. Uma jogada ou um gesto são belos por nos parecerem atitudes naturais dos seus autores. Mais, o desporto congrega o belo e o feérico, a qualidade e a grandeza, a forma que limita o objeto e a ilimitabilidade que nele se expressa, aquilo que, ao mesmo tempo, nos aprimora e sobrepuja. Poderá contrapor-se que isto se descortina e experiencia noutros objetos. Mas não com a intensidade e concentração torrenciais, registadas no desporto. Não há nada mais intenso do que assistir a um espetáculo desportivo, suportar a incerteza, esperar o que pode acontecer, sem ter a garantia de que aconteça, por ficar acima dos limites de previsão da prestação humana. O mesmo é dizer que a vivência estética no desporto, sejamos praticantes ou expectadores, sendo idêntica à da experiência estética em geral, distingue-se pelo facto de a nossa condição atuar perto do limite máximo. Oscilamos entre o aparecimento e a dissolução rápida e irreversível de formas belas e magníficas de transfiguração corporal, entre a percepção da beleza na sua aparência física e a obrigação de a interpretar consoante as regras em presença. É isto que torna viciante o efeito estético do desporto e o torna palco de epifanias e artes dramáticas. Tudo nele é real e fecundo, nada é mera atuação ou fingimento. Ele enleia-nos com o encanto das adaptações dos corpos a uma multiplicidade de formas, figuras e funções, resultantes da 27 conjugação do sacrifício e sofrimento com a dinâmica e o ritmo, o rigor apolíneo e o excesso dionisíaco. Repare-se, por favor, na volta triunfal do atleta, de braços erguidos, que acaba de ganhar uma prova no estádio olímpico! Ele concita aplauso e respeito por ser a imagem delicada e exuberante de um sábio que dobrou o destino com a administração harmoniosa e inteligente das suas forças. Nem toda a gente é capaz de ver estas ‘coisas’ subidas que ele contém. É certo que a beleza e a magnificência estão latentes em qualquer parcela da realidade, por mais pequena que seja. Porém elas são invisíveis aos que não possuem a sensibilidade para as captar. Mais, todos os indivíduos creem na existência do belo, muitos pressentem e lobrigam a sua presença aqui e ali, mas poucos sabem defini-lo. A arte e a cultura não moram só em museus, bibliotecas, livrarias e salas de orquestra. Também se encontram nas festas e romarias, nas missas e procissões, nas confraternizações e feiras, nos estádios e nos sentimentos de alegria, angústia, choro, drama, dor e tristeza que aí afloram, nas identificações, expressões e estados de forma que se revelam em tais instâncias, lugares e situações. Zygmunt Bauman vai ao âmago da função da cultura: “Codificações de mecanismos engenhosos calculados para tornar suportável a vida com a consciência da morte.” Está tudo dito, mas ele concretiza e precisa: a genialidade e “inventividade das culturas (consiste em) tornar possível conviver com a inevitabilidade da morte.”9 Noutra obra o magno analista da contemporaneidade aborda, com a sua fina lupa, a noção de cultura: “um fermento que evita que a realidade social fique parada e que obriga a uma eterna autotranscendência.” 10 As manifestações culturais e artísticas podem comportar uma saudável dimensão ou função recreativa e até catártica ou escapista; mas não podem ser reduzidas a isso. São obra e expressão do imaterial, da roupa que nos veste por dentro e não se pode despir, sob pena de cairmos numa concepção enviesada da cultura e da arte, feita só de banalizações, 9 BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. 10 BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007. 28 frivolidades, superfícies, vernizes, ruídos, de promoção do bacoco, soez e grotesco, de perversão da estesia. Não se esqueça: a arte interpreta e inspira a vida; a sua função suprema é a de convidar a vida a imitá-la e segui-la. A grandeza da arte mede-se pela sua capacidade de nos levar à ‘intuição do inexprimível’ e até ‘do não representável’, mesmo que estes não possam ser descritos. O verdadeiro artista é aquele que encontra a expressão simbólica da experiência transcendente. VII Como já apontado atrás, o indivíduo ‘hominiano’ é um sujeito da inclinação para o ‘excessivo’, o único dos animais com tendência para cometer excessos, para atingir, transgredir e violar o limite natural, para ter uma relação com o não vivível e usar uma fala suscetível de namorar e dizer o não dizível. Excede-se, desafia, investe e vai além dos limites, em todas as dimensões existenciais, convertendo as suas possibilidades naturais em domínios culturais, assim se artificializando e acrescentando novas qualidades artificiais. Afetado pela ‘hibridez’, ele tanto pode ser refém da feiura e do mal como optar pelo bem e o bom. Esta competência de opção faz dele um ‘sujeito ético’, metafísico, sobrenatural, e místico, incompatível com a esfera dos meros factos. Um ‘sujeito auto-transcendente’ e ‘problemático’, disponível para a transgressão, para sair de si e da subjetividade, para buscar e apropriar o não familiar e o não existente, distendendo-se numa esfera superior à da objetividade e à dos factos. Somente seguindo esta via, é que se realiza como ‘sujeito ético e estético’, superador e transgressor do espaço do seu mundo estreito e fechado, para contactar com o intocável. É precisamente isto que perfaz o cerne da filosofia e da arte; e constitui o fim primeiro do desporto e neste é visível, tal como em todas as modalidades da cultura e ciência. Filosofia, arte e desporto são uma forma de busca e afirmação da verdade ética e estética, da virtualidade pura. Estas ganham foros de realidade no momento em que se toca o impossível. Dito de outro modo, a filosofia, a arte e o desporto são formas e instrumentos de realização de 29 verdades não pré-existentes, de as inventar e produzir. Ao convidarem, intimarem e pressionarem o ‘artista’ a ir para além do seu ser atual, a lançar-se e perder-se no espaço do indeterminado, a aprimorar, depurar e sublimar a forma, a arte e o desporto concitam para a verdade, ou seja, para o que sobra, para o que resulta do excesso laborioso do artífice. É assim, saindo da esfera da restrita subjetividade, que o sujeito projeta como objeto e alvo a sua identificação; e encontra-a na peregrinação atrás do inconcebível e incrível. Paradoxalmente, a figura lendária e mítica de Ícaro só existe por ele ter arriscado voar e expor aos raios e ao calor do sol as suas asas fixas com cera. A filosofia e a arte ligam-se, de maneira insolúvel, à ‘liberdade transcendental’ ou à transcendência fundamental e fundadora do sujeito. Elas ostentam um carácter de desassossego e instigação, espicaçante, ofensivo e agressivo, apostado em remover o sujeito da mera circunstância animal, em dar a esta um pendor supra-subjetivo, a beirar o esplendor platónico do belo, do bom e verdadeiro. Outra coisa não é o desporto. Ele configura-se como uma compilação de medidas e padrões de criação e animação da vontade (conforme a fundamentação de Pestalozzi) e da coragem da liberdade do sujeito e do seu anticonformismo. Para sair de si e da ordem estabelecida, para setransgredir, não se acomodar e conformar à autoimagem, para ativar o seu outro si e se responsabilizar por essa ousadia. No desporto afirma-se, ao mesmo tempo, uma forma de verdade e uma forma de vida, que partilha com os outros. Por isso, ele é, cumulativa e essencialmente, um campo de cultivo da alteridade, da convivialidade e solidariedade, de aprendizagem de normas do trato humano do outro, de apreço e assunção de responsabilidade pelo outro. VIII A ontologia, a questão do ser e da sua essência são objeto da filosofia, pelo menos desde Parménides (530 - 460 a.C.). Do desporto também; sim, é esse o coração e o assunto fulcral do desporto. Os pensadores gregos espantaram-se por ver, nos seres, o menos, o pequenino, o insuficiente, o frágil, o imperfeito e o rasteiro crescer e 30 tornar-se mais, grande, forte, magnífico, superior, sobrenatural e sublime. A esta transformação evolutiva chamou Aristóteles ‘ousia’, percebendo nela a substância e essência imanentes no ser, conceitualizando a chegada aos limites e à maturidade, mediante a coadjuvação da experiência e do conhecimento. Na ‘ousia’, digo eu, configura-se o sentido da vida, a finalidade vinculativa da nossa existência. Vê-se bem, o desporto, quer na sua conceção, quer na sua execução, é arte e filosofia. É uma prática artística e filosófica, na medida em que rompe o campo do possível, extrapola a realidade, a ordem estabelecida, pragmática e situacional (a ‘frónesis’, de Aristóteles). Como a arte e a filosofia, ele tem como objeto a edificação do sujeito como força de afirmação da oposição e do contrariamento, de negação, recusa, rompimento e transgressão dos factos dados, apodíticos e dogmáticos (a ‘doxa’). Como elas, o desporto não se contenta com provas e opiniões, já dadas e firmadas, com um cenário de definição marcado pela fixação do contexto, tempo e lugar; visa posições, superadoras e transgressoras do convencional, seguindo pela via da incerteza. A verdade, que procura e à qual quer dar forma, é a do contacto com o limite dos factos, liberta dos imperativos da facticidade. Logo, a função utópica da arte, da filosofia e do desporto é a mesma e una: mediante tocarem no intangível e intocável, abrem-nos as portas para uma superior forma de vida. Na filosofia trata-se de alargar as margens e possibilidades de conhecer, de procurar sem conhecer o que se procura, de tocar a verdade, mas sem cessar de continuar a procurar, sob pena de se enclausurar na certeza. O mesmo sucede no desporto. Atingido um objetivo, ele deixa de o ser, constituindo-se em ponto de partida para outra meta. Arte, filosofia e desporto são um oceano ou descampado do ‘vaguear’; partem do contacto da naturalidade dos factos e do contacto com os projetos, ideias e ideais, para habitarem uma terceira dimensão: a do limite, a da indiscernibilidade da zona de indeterminação para além dele. No fundo, o sujeito experiencia-se a si mesmo como um limite, subtrai-se ao familiar, ao seu abrigo e fechamento, abre-se ao indizível, ao sobrenatural, ao metafísico e místico, ao devir, ao exterior, à diferença, 31 ao outro, ao universal.11 Enfim, coloca-se num horizonte de infinitude e impossibilidade, escalando e atravessando a montanha do possível para tanger o impossível, que é a dimensão da verdade e da liberdade não real. Esta projeção para além do familiar visa a familiaridade fundamental com uma forma de vida, cuja presença apenas pode aparecer como ausência. Numa das muitas e tão assertivas frases que nos deixou, Ludwig Wittgenstein (1889-1951): definiu a preceito: “Se o lugar onde quero chegar fosse apenas alcançável graças a uma escada, eu renunciaria a ele, uma vez que ao lugar aonde quero chegar, na verdade eu já lá deveria estar.” Que síntese excelente para clarificar e iluminar a função da arte, da filosofia e do desporto, e do sujeito de cada uma delas! Ademais, o desporto é uma pedagogia da superação e da admiração da arte e beleza das performances, próprias e alheias, e de tudo quanto lhes subjaz para poderem ser alcançadas. Nos atos desportivos moram uma alma transcendental e uma sublimação espiritual, buscando a maior liberdade que alguma vez se pode congeminar. Nesta conformidade eles incarnam, em simultâneo, uma ‘antropologia da afirmação’ da humanidade e uma ‘antropologia da restrição’ da animalidade. O desporto é a forma pedagógica de um imaginário ou fenómeno artístico e filosófico, que nele se torna realidade e pode ser representado, conhecido e partilhado com outros sujeitos. Deste modo ele é agente de uma comunidade de sujeitos ou fator da vertente comunal do sujeito, potenciada e concretizada em torno de um fenómeno convertido em realidade factual. Em síntese, o desporto não é uma coisa ‘utilitária’; serve finalidades éticas e estéticas, axiológicas e simbólicas que nos ajudam a escapar ao triste fado de Sísifo e ao pesado fardo do utilitarismo. Ele encontra um alicerce sólido e uma polinização frutífera num matrimónio de comunhão de bens com a filosofia, a arte e a cultura. Este é um legado dos gregos, do qual temos a obrigação de ser bons gestores e dele extrair as devidas ilações para as tarefas de formação, 11 Ludwig Wittgenstein caracterizou a ética como esfera do “sobrenatural” (“acima da natureza”), do miraculoso e do místico, apostada em operar um milagre na existência e no mundo. Dito de outro modo, a ética tem como vocação olhar para a vida e o mundo como objetos de um milagre, de modo a que existam não como são, mas, sim, como místicos. Esta asserção é central na matriz axiológica do desporto. 32 de educação, de pesquisa, de problematização, reflexão, aplicação e instrumentalização do desporto, conformes aos desafios desta era. Ao dizer isto, estou a proclamar, de modo inequívoco, a impossibilidade da legitimação plausível e do entendimento cabal do desporto fora da sua conexão com a arte e a filosofia (entendida esta como teoria de indagação do mundo e de salvação da vida). Mais, proclamo que os estudos sobre tática, técnica e temas quejandos dos jogos desportivos, após se terem autonomizado e independentizado, carecem de regressar à sua casa mãe: à mansão da ‘arété’, da cultura, da filosofia e da pedagogia, da axiologia, da ética e da estética, para receberem sustento, alento, impulso e influxo para novos voos em direção à arte, à beleza, à verdade. O seu casamento com temáticas, externalidades e mais-valias, mesmo que elas sejam atraentes, importantes e rendosas nos nossos dias (p. ex., atividade física, saúde, obesidade), estafou-se e gastou-se, requerendo outros temperos; é chão que não dá mais uvas, pelo menos com o tamanho e sabor que satisfaçam os paladares exigentes. IX “Vivemos tempos assustadores”; para os equacionar e combater temos que responder na mesma moeda: “precisamos de conceitos assustadores”, prescreve Charles Esche.12 Com esta apresentação conclamo-vos, muito queridos companheiros e cúmplices da caminhada existencial, para a urgência de repensar a Universidade e o desporto como observatório de contemplação e consideração da beleza e da sensibilidade. Citius, Altius, Fortius! Este pregão instala o desporto nas alturas. Invetiva-nos por nos mantermos agarrados e presos às cadeias da rasura do chão, em vez de subirmos para os píncaros da altitude e magnificência. Aviva-nos a convicção de que temos uma vocação alada: somos seres obstinadamente transcendentes, porém só criamos algo belo e mágico com transpiração abundante. Assemelhamo-nos a anjos nascidos sem asas; e, realmente, nascemos sem elas. Contudo, impende sobre nós a obrigação de subir e voar. Não a conseguimos cumprir, sem criarmos asas e fazê-las crescer. 12 Entrevista a Charles Esche, Jornal Público, p. 26-28,22.12.2014. 33 Parafraseando José Saramago (1922-2010), temos que fazer jus ao nosso nome: levantar-nos do chão, lamber as feridas como um ‘cão de lágrimas’, rasgar o cerco da cegueira com a luz dos sonhos, sobreviver numa jangada de pedra face às ondas e aos ventos da alienação e opressão, contrariar a propensão para elefante, libertar-nos da condenação e fado de Caim e subir no céu como morteiros impulsionados pela pólvora do espírito e ousadia, para escrevermos, com as letras e a tinta do compromisso e decência, um manual da existência e deixarmos de nós um memorial do impossível. Olhemos o desporto e a Universidade por esta fresta de luz e esperança. Examinemos um e a outra com o estetoscópio da arte, com o fito de nos apercebermos do seu estado e dos remédios que necessitam tomar para debelar os males detetados. Convém lembrar que a arte tem uma função curativa; e esta não é apenas mítica. A arte é útil (não ‘utilitária’), ferramental ou instrumental e imprescindível, porquanto tem o condão de imaginar coisas que não existem. Imaginar o que ainda não existe é um pressuposto indispensável; porque, se não conseguirmos imaginar, será muito difícil criar. Por outras palavras, a arte tem um papel funcional dentro das estruturas do pensamento; cumpre-lhe assumir relações reais com o mundo, fazer propostas para mudanças concretas deste. O espaço da arte é, pois, o da imaginação de coisas diferentes das que existem. Logo com ela podemos também imaginar outra sociedade. Indo mais longe, a arte pode ter a função genuína de nos ajudar a desmascarar a pseudo-democracia, imposta pelos poderes autocráticos e cleptocráticos. Essa função é deveras relevante nestes tempos, em que o interesse coletivo está cada vez menos representado e defendido e cada vez mais perseguido e espremido, em que se passou da dependência de estruturas democráticas para a dependência de organismos compostos por membros diretos e ou oriundos das oligarquias. Ademais, a arte avisa para não deixarmos espinhar o coração, a alma e os olhos, para o perigo de que isso pode suceder em todo o tempo. Ela mantém à superfície a curiosidade da infância e a candura da meninice, para não sermos expressão de uma velhice apagada, soturna, trágica e 34 triste, sem sabedoria, benignidade e ingenuidade, cerrada ao espanto, à admiração, à maravilha e fantasia, e aberta à angústia e ao pasmo. Para não nos desidratarmos de ideais, sonhos e utopias. A invasão da arte (tal como do desporto e da Universidade) pela economia e pela ganância financeira tem vindo a condicionar a orientação e consumação daquela, e a dificultar a observância da sua nascente original: a transcendência. A cultura e a arte, a Universidade e as estruturas desportivas estão a esquecer a sua idiossincrasia axiológica, cultural, ética e estética, a ser capturadas pelo pragmatismo e utilitarismo, pelo mercado e pela ‘civilização do espetáculo’, correndo o risco de se afastarem da arété e paideia gregas.13 O panorama apresenta-se desfigurado, sombrio, mostrengo e aterrador, propício à vinda dos cavaleiros da escuridão civilizacional. Enfrentemo-lo. Não pode nem deve ser atirado para o caixote do lixo a observância do terceiro dos mandamentos da Lei de Deus, redigidos e proclamados por Moisés para condenar e sancionar, refrear e inibir a barbárie e violência até então reinantes - e que se veem ressuscitar nestes tempos de austeridade, crueldade, tortura e esfola, praticadas pela gadanha e seitoura da ignóbil globalização financeira e neoliberal. O dito mandamento não perdeu validade; é de atualidade candente e permanente e exige vigilância gritante e incessante. Ele ordena que guardemos os dias santos e valoremos a fruição do corpo e da mente! Esse imperativo apresenta-se, muito justamente, como o ‘mandamento do ócio 13 Com isto não estou a sugerir que o sistema mercadológico, em que vivemos, se desinteressou do embelezamento do mundo e aposta na sua feiura e decadência estética. Nem ignoro que o design, o estilo e outros padrões estéticos são hoje um aspeto relevante nos mais variados objetos, inclusive os tecnológicos, procurando cativar a atenção e atração dos consumidores. De resto, é notória, nas mais pequenas coisas, a intenção de fazer do dia-a-dia um projeto de arte. O processo de estetização do mundo continua navegando a todo o pano. “Arte e mercado nunca se misturaram tanto, inflando a experiência contemporânea de valor estético.” A questão é outra; tem a ver com a ordem dos fins. “Essa arte já não tem a dimensão absoluta e o poder questionador que tinha em outros momentos da história, ela não pretender transformar a humanidade ou refletir sobre a própria função. Seu propósito é mercadológico: ampliar o consumo das massas e o lucro das empresas.” (GILLES LIPOVETSKY & JEAN SERROY, A estetização do mundo: Viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015) 35 criativo’, estipulando que o Ser humano não é apenas ‘homo faber’ ou besta e ‘recurso de trabalho’; antes alcança, exibe e realça a sua Humanidade, ‘santificando’ todas as dimensões da existência. Não tomemos este aspeto como coisa menor ou um devaneio intelectual. Ele situa-nos na fronteira de demarcação nítida entre a civilização e a animalização, a ética e a imoralidade, a moral e a amoralidade. X É curial afirmar estas coisas aqui e agora. O ‘aqui’ refere-se à Universidade e ao desporto; o ‘agora’ a esta ‘hora crepuscular’ e à ‘civilização do espetáculo’, inimigas da reflexão, em que todos, com irresponsabilidade mais ou menos consciente ou diluída, aceitamos participar. Vivemos numa conjuntura em que as palavras não passam de ardis para impingir uma ‘saída limpa’ da estrumeira em que nos atolamos. Estou a falar, com dorida mágoa, para a Universidade: não especificamente para a que nos alberga, mas a Universidade, edificada para ser casa da erudição e da espiritualidade, para colocar o ‘primado da verdade sobre a utilidade’, para fomentar o ‘espírito livre’. O que é feito dessa instituição da Modernidade, cujos alicerces e alvos Humboldt tão luminosamente plantou? Mal a vemos, porque foi abatida com a nossa conivência e cumplicidade, ação ou omissão. Quem a substitui? A resposta titubeia. Por um lado, a ‘coragem’, a virtude que Aristóteles considerou a mais importante de todas, não é abundante e saiu de moda; Por outro, a ‘liberdade’, o genuíno alimento dos Seres Humanos, tal como a ambrosia era o dos deuses, encontra-se perecível, num torpor de morbidez. A Universidade hodierna afunda-se na capitulação. Ao não abjurar a panóplia de mistificações postas em circulação, coopera na instauração de um clima de servidão. Em consequência, ela tem vindo a desfazer-se, paulatinamente, da matriz identitária, a perder o crédito de instituição humana e socialmente relevante. O seu código genético vem sendo desativado e substituído por um programa espúrio e alheio, concordante com o radicalismo neoliberal e o credo do ‘utilitês’. O ócio, o fermento 36 criacionista da ciência e da cultura, esse, de tanto ser pisado, desapareceu e escondeu-se do olhar dos tomadores de decisões e da lista das nossas exigências e reivindicações. Os senhores congressistas e leitores já foram, por certo, assaltados pela tentação de abandonar este auditório ou salão nobre ou estas páginas, molestados com o tom da minha intervenção. Apelo à vossa bondade e compreensão. A honraria, que me foi outorgada, não dispensa a vassalagem a Miguel Torga, a voz maior da alma transmontana: “Nasci para falcão da serra, e não para codorniz de baixio.”14 Tudo se conjuga para tornar apropriadíssima ao panorama universitário dos nossos dias a sátira que Ortega y Gasset (1883-1955) disparou ao da sua época: “Foi preciso esperaraté o começo do século XX para se presenciar um espetáculo incrível: o da peculiaríssima brutalidade e agressiva estupidez com que se comporta um homem quando sabe muito de uma coisa e ignora todas as demais.” Ou estoutra: “Dantes os homens podiam facilmente dividir-se em ignorantes e sábios, em mais ou menos sábios ou mais ou menos ignorantes. Mas o especialista não pode ser subsumido por nenhuma destas duas categorias. Não é um sábio porque ignora formalmente tudo quanto não entre na sua especialidade: mas também não é um ignorante porque (…) conhece muito bem a pequeníssima parcela do universo em que trabalha. Teremos de dizer que é um sábio-ignorante – coisa extremamente grave, pois significa que é um senhor que se comportará em todas as questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem, na sua especialidade, é um sábio.” 15 Com a minha alocução, eu pretendo acordar, homenagear, revisitar e trazer ao palco da vossa atenção a missão da Universidade e as teses de Ortega y Gasset. Disse o mestre insigne: “Todas as grandes obras humanas têm uma dimensão desportiva.” Mais: a filosofia é uma atividade lúdica de dimensão séria, visando promover o “homem luxoso e desportivo”, face ao “homem utilitário e biológico”. Por isso ela é “a ciência dos desportistas.” Nem mais, nem menos! Filosofia e desporto são atividades promotoras de felicidade para 14 TORGA, Miguel. Diário IV, p. 63. 15 Estas citações encontram-se em textos colocados nas redes e espaços informáticos. 37 quem as exercita; elas não estão vinculadas ao imediatismo utilitário. O desinteresse pelo utilitário e pelo imprescindível impregna os pensadores e os desportistas de um dom de generosidade que floresce somente nos cumes de maior altitude vital! O desporto representa a vida criadora e graciosa, enquanto “os atos utilitários e adaptativos, tudo o que é reação a prementes necessidades, são vida secundária. A utilidade não cria, não inventa, simplesmente aproveita e estabiliza o que sem ela foi criado (…) A vida foi primeiro uma invenção pródiga de possibilidades e depois uma seleção (…) Esta abundância de possibilidades é o sintoma mais característico de vida pujante; tal como o utilitarismo, ao ater-se ao estritamente necessário, à maneira do enfermo que poupa movimentos, é o sintoma de debilidade e vida minguante.” 16 Estas considerações de Ortega y Gasset seguem o padrão do patriarca Aristóteles, que valorou devidamente: a atividade laboral justifica-se e tem em vista o ócio, as coisas necessárias e úteis têm em vista as coisas boas e belas; estas são mais importantes do que as primeiras. O que serve apenas a necessidade utilitária, é feio, não é da ordem do belo. O desporto e a formação universitária não podem ser reduzidos à ordem ‘utilitária’; visam fins éticos e estéticos, axiológicos e simbólicos, que nos ajudem a escapar ao peso do pragmatismo e utilitarismo. O seu préstimo pode ser medido por este metro: “Se o trabalho se torna autodeterminado, autónomo e livre, e por isso dotado de sentido, será também (e decididamente) por meio da arte, da poesia, da pintura, da literatura, da música, do uso autónomo do tempo livre e da liberdade que o ser social poderá humanizar-se e emancipar-se no seu sentido mais profundo.”17 Até hoje estas teses não foram rebatidas. Por conseguinte é imperativo integrá-las no entendimento e na organização da vida, da educação, da sociedade, do desporto e da Universidade. Mas… são, hodiernamente, o desporto e a Universidade um campo onde floresce e frutifica a beleza e dela nos sustentamos? Revemo-nos no canto e na dança? Abjuramos 16 ORTEGA Y GASSET. El origen deportivo del estado, p. 13-16. A coruña: edición inef galicia, universidade da corunha, 2011. 17 ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: Ensaios sobre a Afirmação e a Negação do Trabalho. Coimbra: CES/Almedina, 2013. 38 aquilo que fere e destrói, por não nos ser semelhante? Fazemos boa leitura e melhor apropriação da consabida máxima de Terêncio (195 ou 185 – 159 a.C.)?18 O desporto funda-se nos mitos de Hércules e de Ulisses, nas metáforas, narrativas e parábolas de Homero, que concebem e propõem uma existência ideal, experimentada, séria e virtuosa, fundada na fortaleza do ânimo e na persistência face às dificuldades e perseguições, sem perder a orientação básica da esperança que conduz à elevação e recompensa. Qual o estado de concretização de tais proposições e mitos? Estarão gastos? Será melhor esquecermo-nos deles, abandoná-los, descartá-los ou tentar viver ao nível dos desafios que eles colocam? XI Caros congressistas e leitores: ouço-vos murmurar que sou um idealista, um sonhador. É verdade, eu sou. Mas eu também sei que não sou o único. Cada um de vós está, aprumado e determinado, ao meu lado! É chegada a altura de parar, de medir o caminho andado, de corrigir e reparar os desvios da rota seguida, e de traçar e encetar um novo percurso. Comunguemos o apelo de José Saramago: “O fim duma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que já se viu no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.”19 Trazemos na testa o ferrete de Homo Viator, de condenados a peregrinar em diáspora e errância permanentes, em trânsito ininterrupto. Estamos e somos em viagem; ela não nos concede descanso. Seguimos em viagem, carregados de contradições, metas e carências que indicam o 18 “Homo sum, humani nihil a me alienum puto - Sou um homem, nada do que é humano me é estranho.” 19 SARAMAGO, José. Viagem a Portugal. Lisboa: Editorial Caminho, 1981. 39 quanto há e sempre haverá em nós por fazer. O sonho empurra-nos para a frente, impele-nos a continuar a viagem. É nosso dever embarcar nela. E navegar no rumo da aventura, com os ventos do contentamento e descontentamento a insuflar-nos as velas da alma. Ocupemo-nos a juntar as pessoas em torno de causas, ideais, princípios e valores! Isto requer que estejamos acordados, empenhados e despertos, que não enfileiremos com os medíocres. Cultivemos causas, valores, virtudes, maneiras e disposições para agir condignamente, se não quisermos ser esmagados pelas hordas da bestialidade, que mutilam o teor humanista e cultural do nosso mister. Podemos viver numa sociedade sem causas, ideais, utopias, princípios e valores? Sim, podemos! Mas não é a mesma coisa, nem a isso se chama viver. Com os valores ausentes de nós, não logramos ser pessoas. Somos apenas maciços de carne, que andam e se movem sem o espírito a comandar os nossos passos. O que nos compete fazer? O sociólogo Immanuel Wallerstein alerta-nos que todos os debates são simultaneamente intelectuais, morais e políticos, buscando aonde vamos, aonde queremos ir, a modalidade de chegarmos mais facilmente. Assumamos a nossa quota-parte de responsabilidade. Reflitamos e falemos acerca da importância do desporto e da formação universitária, como fatores da dignificação e elevação do mistério da vida. Não fiquemos paralisados diante de factos absurdos e irrazoáveis, por mais impositivos e inevitáveis que pareçam! O momento incita a agir, a pensar de modo sereno, todavia radical, as soluções que nos propõem e os becos aonde elas conduzem. Porfiaremos em ser um edifício em construção, inacabado e inconclusivo. A paixão, o entusiasmo e os ideais, que iluminaram a caminhada até aqui e habitam dentro de nós, continuarão a insuflar-nos a alma e a ditar-nos as palavrase os atos. O mundo em que vivemos, se teimar em banir as utopias e ser coutada do utilitarismo e imediatismo, não passa de uma sensaboria sem o paladar 40 do humano e sem a graça e o encanto da harmonia e felicidade. Em todo o tempo e lugar, impõe-se tentar recriar constantemente a fulgurância da vida, para subtrair esta da tragédia da indignidade e fealdade. Ou seja, a educação ética e estética reclama ser um direito e uma necessidade de todos. No desporto e na Universidade ela deve ser uma meta constante. Ser melhor é jogar, competir, superar e vencer com dignidade e elegância; é fruir e atingir a verdade e beleza do jogo. Precisamos de ‘inutensílios’, de coisas não ‘utilitárias’ e do ‘ócio recriador’, para aliviar o sufoco do utilitarismo e sanear o ambiente inestético e demencial, em que se converteu o contexto social e existencial, inclusive o universitário. Que avaliação faz de si a Universidade a este respeito? Ainda é o lugar do espírito livre, onde se procura a verdade, por ser verdade? Ainda prevalece nela o primado humboldtiano da verdade sobre a utilidade? Que ponderação tecem disto os académicos? Sentem-se bem com a ‘forma’ e a quadratura da Universidade? Estamos disponíveis para passar do desassossego à ação, para remir, no discurso e na prática, os lemas comuns, matriciais e originais da Universidade e do desporto? Aonde transporta este ato de compromisso, selado entre a nossa pertença e paixão pela Universidade e pelo desporto? À inquietude pessoana de inquirir associo a franqueza do Padre António Vieira (1608-1697) para concluir: “Tenho acabado, senhores (…) Se a alguém pareceu que me atrevi a dizer o que fora mais reverência calar, respondo com Santo Hilário: Quae loqui non audemus, silere non possumus: O que se não pode calar com boa consciência, ainda que seja com repugnância, é força que se diga.”20 O que é que então faz falta para abater os muros que comprimem a Universidade e o desporto? Algo muito pequeno na formulação, porém assaz exigente na ação: coragem e lucidez! Ou as temos ou não. Se as temos e não usamos, somos cobardes; se as não temos, somos carentes e dementes. Tanto num como no outro caso, não estamos à altura de cuidar de outrem; antes carecemos de alguém que cuide de nós. Logo, sejamos justos e precisos: o nosso lugar não é na Universidade; é num hospício. 20 PADRE ANTÓNIO VIEIRA. Sermão do Bom Ladrão, proferido em 1655 na Igreja da Misericórdia de Lisboa (Conceição Velha), perante D. João IV e a sua corte. 41 REFERÊNCIAS ANTUNES, R. Os Sentidos do Trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. Coimbra: CES/Almedina, 2013. BAUMAN, Z. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. BAUMAN, Z. Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007. ENTREVISTA a Charles Esche. Jornal Público, p. 26-28, 22.12.2014. LIPOVETSKY, G. & SERROY, J. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. GUMBRECHT, H. U. Elogio da beleza atlética. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. ORTEGA Y GASSET. El origen deportivo del estado. A coruña: edición inef galicia, universidade da corunha, p. 13-16, 2011. VIEIRA, Padre António. Sermão do Bom Ladrão. Proferido em 1655 na Igreja da Misericórdia de Lisboa (Conceição Velha), perante D. João IV e a sua corte. PASCOAES, Teixeira de. Arte de ser português. Lisboa: Assírio & Alvim, 1998. PASCOAES, Teixeira de. Senhora da Noite. Verbo Escuro. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999. SAFATLE, V. Pensamento binário. Folha de S. Paulo, p. A2, 28.07.2015. SARAMAGO, J. Viagem a Portugal. Lisboa: Editorial Caminho, 1981. TORGA, M. Diário IV, p. 63. 42 43 PROCESSO ORGANIZACIONAL SISTÊMICO, A PEDAGOGIA DO JOGO E A COMPLEXIDADE ESTRUTURAL DOS JOGOS ESPORTIVOS COLETIVOS: UMA REVISÃO CONCEITUAL Prof. Dr. Alcides José Scaglia Prof. Drndo. Riller Silva Reverdito1, Prof. Marcos Vinícius Russo dos Santos1 Prof. Dra. Larissa Rafaela Galatti1 O JOGO COMO UMA UNIDADE DE RELAÇÕES COMPLEXAS Na Pedagogia do Esporte, enquanto disciplina das Ciências do Esporte (REVERDITO; SCAGLIA; PAES, 2009; GALLATTI et al., 2014), tem sido construída uma base argumentativa ao longo dos anos para defender o ensino de jogos esportivos coletivos por meio da valorização do jogo (GRECO, 1998; BETTEGA et al. 2015a; BETTEGA et al. 2015b; CÔTÉ; ERICKSON; ABERNETHY, 2013; CÔTÉ, STRACHAN e FRASER- THOMAS,2007; CÔTÉ, 1999; BAYER, 1994; GARGANTA, 1998; FREIRE, 2006; GRAÇA; MESQUITA, 2009a, 2009b; LEONARDO; REVERDITO; SCAGLIA, 2009; ARAUJO, 2006; TRAVASSOS et al., 2013; BAKER, et. al., 2005; SOBERLAK & CÔTÉ, 2003; MENEZES, 2012; SCAGLIA et al., 2013; SCAGLIA; REVERTIDO e GALATTI, 2014). Estes autores rompem com a abordagem tradicional de ensino e treinamento do esporte (SCAGLIA; REVERDITO; GALATTI, 2014), desvelando a complexidade estrutural e dinâmica dos jogos. Nesta perspectiva de rompimento, as abordagens pautadas nas teorias ecológicas, sistêmicas e complexas, buscam compreender o processo organizacional sistêmico dos jogos para que possam estabelecer interações eficientes entre ambiente de jogo e o ambiente de aprendizagem (BAKER; CÔTÉ & ABERNETHY, 2003; BAKER, et al., 2005; SCAGLIA; REVERTIDO; GALATTI, 2013; SCAGLIA, et al. 2013; BRIDGE; TOMS, 2013; HORNIG; AUST; GÜLLICH, 2014), reconhecendo o jogo como um sistema complexo (FREIRE, 2002; SCAGLIA, 2003, 2005; LEITÃO, 2009; REVERDITO; SCAGLIA, 2007; LEONARDO; REVERDITO; 44 SCAGLIA, 2009; SCAGLIA et al., 2013). No entanto, a compreensão dessa base argumentativa, passa pela compreensão de alguns conceitos que emergem de um processo de rupturas paradigmáticas (KUHN, 2007; 2011). Nesse sentido, por exemplo, não basta dizer que o jogo é complexo; é preciso compreender o conceito de sistema e o engendramento complexo das interações, culminando com o processo organizacional. Desde a segunda metade do século XX ganhou força a ideia de que os sistemas não poderiam ser entendidos a partir do paradigma cartesiano (CAPRA, 1996; MORIN, 2013). Isto porque as suas propriedades e suas qualidades não poderiam ser compreendidas em partes isoladas da sua totalidade ou contexto (CAPRA, 1996). No entanto, salientando que não é uma ideia nova, Morin (2013, p. 259), exprime um aspecto importante de um sistema: “Ora, o paradigma novo que a ideia do sistema traz, Pascal já havia exprimido: Considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, como conhecer o todo sem, particularmente, conhecer as partes.” Já em meados do século XX o nome de Ludwig von Bertalanffy (2008) ganhou destaque pela proposição da sua Teoria Geral dos Sistemas, onde sustentou o conceito de sistema aberto, designado aos organismos vivos para mostrar que neles há um constante fluxo de matéria e energia de fora para dentro e de dentro para fora. Em relação aos organismos de maior complexidade, Morin (2013) destaca também o constante fluxo de informação. Durante as últimas décadas do século XX, Morin (2002, 2007 e 2013), consolidado como um dos nomes mais importantes do pensamento complexo, nos trouxe a complexificação das relações internas dos sistemas, dizendo que estas não expressam apenas o todo maior que a soma de suas partes, mas que as partes são ao mesmo tempo mais e menos que o todo. Isto é, o todo pode ser menos que as partes além de ponderar que o todo é insuficiente, incerto e, por vezes, conflituoso, evidenciando uma das máximas da complexidade que pode se resumir em: apesar de contraditórias as afirmações, elas são complementares. Dentro deste universo, Morin (2013, p. 265) define sistema como aquele “[...] que exprime a unidade complexa e o caráter fenomenal do 45 todo, assim como o complexo de relações entre o todo e as partes”. De modo complementar a
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