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Lewis Mumford nacidoem1• Lewis Mumford nasceu nos Estados Unidos; fez seus estudos na Universidade de Colúmbia. Tendo-se dedicado à história da civi- lização e especializado na era maquinista, é discipulo e continuador de Patrick Geddes. Como Geddes, vê a cidade como o centro nevrálgico do nosso tempo; dá para o problema do urbanismo todas as suas dimensões culturais e históricas e recusa-se a fechá-lo num quadro exclusiva- mente técnico. Esta abordagem global e sintética dos problemas morfológicos inspirou-lhe Sticks and Stones (1924) e The Brown Decades (1931), que giram particularmente em tomo da arquitetura. Posteriormente publicou sua obra magistral, The Culture of Cities ( 1938), à qual pertence The City in History, que constitui seu acabamento e siste- matização. Longe de ser um puro teórico, Lewis Mumford constantemente nutriu e susteve sua obra por um contato direto, um conhecimento profundo da realidade urbana contemporânea, como também por uma triplice atividade prática. Com efeito, ele participou de diversos movimentos de planificação urbana: foi membro fundador do Regional Planning Number, juntamente com Henry Wright e Clarence Stein, assim como pesquisador para The New York Housing and Regional Planning Commission, secretário da Community Planning Commission do American Institute of Architecture. Além disso, foi professor 286 O URBANISMO de town-planning na Universidade da Pensilvânia de 1951 a 1956 e visiting professor do M.I. T. (Massachusetts lnstitute of TechnologyJ. Mas talvez tenha sido por sua atividade polêmica de jornalista que Lewis Mumford exerceu a mais profunda influência nos Estados Unidos e nos paises anglo-saxões. Critico de arquitetura e de urbanismo do New Yorker há muitos anos, colaborou desde os anos 20 em uma série de revistas mais ou menos especializadas: J oumal of the American Institute of Architecture, Architectural Record, Architecture, Lands- cape, Sociological Review, entre outras. Escolhemos precisamente para publicar aqui, quase in extenso, um de seus artigos, originalmente impresso em 1960 na revista Lands- cape. PAISAGEM NATURAL E PAISAGEM URBANA1 Função biológica e social dos espaços livres Na última gera Io, ocorri' ~ma mudança em nossa concepção dos espaços livres e de sua relação com o meio ambiente urbano e regional. O século XIX foi antes de tudo consciente da função higiê· nica e sanitária dos espaços livres. Até Camillo Sitte, um dos promo- tores de uma visão estética da cidade, chamava os parques urbanos de "espaços verdes sanitários" . Para combater o congestionamento e a desordem crescente da cidade, djspuseram-se grandes par.ques paisagísti- cos, próximos do estilo das propriedades rurais da aristocracia. O valor recreativo desses parques paisagísticos era incontestável ; além disso, serviam de barreira contra um desenvolvimento contínuo da cidade. Mas, salvo no caso das classes privilegiadas, esses parques só eram utilizados nos domingos e em dias de festas. Mas temos de convir que nenhum esforço análogo foi feito para criar em cada bairro espaços livres mais íntimos, onde os jovens pudessem jogar à vontade, e os adultos descansar de vez em quando, durante a semana, sem ter de fazer uma lon-~a caminhada. Dada a densidade do habitat nas grandes cidades, era natural que se sublinhasse a necessidade biológica dos espaços livres. * O parque era entendido não como uma parte integrante do meio urbano, mas como um local de refúgio cujo valor essencial vinha do contraste com a ruidosa e empoeirada colmeia urbana. A maior parte das cidades, salvo no caso de terem recebido dos séculos passados a herança de alguns parques aristocráticos, algumas praças residenciais espaçosas ou certas áreas destinadas aos jogos, eram tão pobres em espaços livres que estes passaram a ser considerados como se seu valor fosse dire- tamente proporcional ã sua superfície, sem que se mostrasse muita preocupação com o acesso a eles, a freqüência de sua possível utili· zação ou sua incidência sobre a própria textura da vida urbana. As pessoas que não podiam suportar a ausência de jardins e parques • mudaram-se, quando podiam, para os subúrbios espaçosos e repletos 1. Título do autor. • L.EWIS MUMFORD 287 de verde; esta solução simplista teve como resultado que se conges- tionasse cada vez 'mais a cidade propriamente dita e que o campo fosse ficando cada vez mais longe do centro da urbe. Devemos dar mais importância à função biológica dos espaços livres, hoje que a cidade está ameaçada pela poluição radioativa e que, dentro do perímetro dos centros urbanos, o ar formiga de subs- tâncias cancerígenas. Mas não é tudo : aprendemos que ·OS espaços livres também têm um papel social, freqüentemente negligenciado em benefíclo único de sua função higiênica. Uma civilização do jardim perfila-se no horizonte Para entender toda a importância desse fato, temos de nos reportar às grandes agitações do século passado. Em primeiro lugar, as transformações do estabelecimento humano, decorrentes dos trans- portes rápidos e dos meios de comunicação instantâneos. Graças a eles, o amontoamento em um espaço reduzido deixou de ser o único meio de permitir o contato e a cooperação de um número muito grande de indivíduos ao mesmo tempo. Esta situação provocou, por sua vez, uma outra mudança, nos locais em que o terreno era acessível a preços razoáveis. * O aspecto * total da cidade foi transformado: nos subúrbios (suburbs) que se desenvolveram com tanta rapidez em tomo dos grandes ~ntros, os edifícios dispõem-se livremente , como em um parque paisagístico. Mas, freqüentemente , árvores e jardins desaparecem sob a pressão demográfica, enquanto permanece e pro- lifera a construção individualista, cuja dispersão e anarquia tendem a assumir um caráter anti-social. A terceira grande mudança consiste na redução geral das horas de trabalho, assim como na crescente trans- ferência, no interior do próprio trabalho, do setor industrial para o setor terciário ou para as profissões liberais. Hoje não é mais uma classe minoritária, mas uma população inteira que dispõe de horas de lazer e a quem devem ser fornecidos meios de recreação. Para que essa emancipação não se converta em um castigo, temos de substituir as soluções sedativas e anestesiantes atualmente em uso, particular- mente no que diz respeito à anestesia através da velocidade semprl! crescente dos meios de transporte. Diante dessa ameaça, podemos evocar a experiência das antigas aristocracias que, quando não esta- vam ocupadas com atividades violentas, destrutivas, absolutamente inúteis, dedicavam uma grande parte de sua energia ã transformação audaciosa do conjunto da paisagem. A criação de um meio ambiente bastante rico em recursos humanos para que ninguém pense em aban· doná-lo voluntariamente, nem mesmo para realizar uma cruzada astro- náutica, seria um objetivo que permitiria modificar o esquema com- pleto do estabelecimento humano. O sonho das cidades-jardins de Ebenezer Howard amplia-se dentro da perspectiva de uma civilização do jardim. Incompreensão e dlfu:uldades atuais Mas pouquíssimos projetos ou realizações do urbanismo da última geração levaram em conta esta situação. Além disso, o essen- cial do que foi realizado em matéria de extensão urbana e de cons- 288 O URBANISMO trução de auto-estradas traduz wna curiosa tendência a privilegiar as exigências da máquina em detrimento das aspirações hwnanu. Se novas concepções não forem postas em prática, o desenvolvimento contínuo das regiões suburbanas de textura lassa destruirá nosau cidades históricas e desf agurará a paisagem natural. Estaremos diante da imensa massa de wn tecido urbano indiferenciado e medíocre que, para poder realizar suas funções mais elementares, exigirá a partici- pação de wn máximo de veículosparticulares e, conseqüentemente, fará com que o campo fique cada vez mais longe. Este tipo de espaço aberto de baixa densidade demográfica traduz a desintegração social e cívica que reina em cidades como Los Angeles. Ao mesmo tempo, os grandes parques paisagísticos exis- tentes no coraçfo das nossas antigas cidades são freqüentemente negli- genciados para criar outros, muito menos agradáveis, aos quais só 1e chega depois de uma longa viagem de automóvel. Paralelamente, u zonas turísticas mais distantes, os bosques, as margens lacustres ou marítimas sofrem, nos fins de semana, uma invasão que elimina seu valor recreativo; os carros transportam para ali não os habitantes de uma s6 cidade, mas a população de uma região inteira. • A "matriz verde" Para voltar a nos sentirmos donos de nós mesmos, sem dúvida teremos de começar por nos sentirmos de novo donos da paisagem e por reestruturá-la em seu conjunto. • Chegou, pois, o momento de inventar soluções que substituam os clichês clássicos e românticos do passado, e os clichês ainda mais estéreis dos "devoradores de espaço" que acabariam por aniquilar todos os recursos estéticos da paisagem, sob o pretexto de peanitir que dezenas de milhares de pessoas se concentrem simultaneamente em um mesmo ponto, lugar onde os turistas de fim de semana só chegariam para encontrar de novo o congestionamento e as distrações banais de que fugiram a busto de um esforço desesperado. Não se trata mais de proceder a um simples aumento quantitativo dos parques dispo- níveis, mas a uma mudança qualitativa de toda a nossa estrutura de vida, o que pentµtirá que realmente ponhamos em prática a função social dos espaços livres. Em primeiro lugar, é preciso conceber um espaço aberto desti- nado ao lazer, situado fora das áreas urbanas existentes. Ele não deve mais ser imaginado em forma de parques paisagísticos ou reservas selvagens, qualquer que seja sua importância; precisa-se nada menos que de uma região inteira (cuja maior parte se manterá em estado natural, sob forma de culturas úteis) para satisfazer a esses lazeres com um novo estilo, com que se beneficiará a maior parte da popu- lação. A tarefa pública mais importante, em tomo e além de cada centro urbano em curso de desenvolvimento, consiste em reservar zonas livres definitivas, suscetíveis de serem dedicadas à agricultura ou à horticultura, e que tenham relação com as indústrias rurais. Estas zonas devem ser detemúnadas de modo a impedir a coalescência das unidades urbanas entre si. Esta foi a performance realizada, dentro do território metropolitano de Estocolmo e, em um grau não negli- ......_ ... ..., .... ..., .......... -·-.- enciável nos Países Baixos: é digna de ver a fascinação que os campos g ' . de tulipa exercem, quando florescem na pnmavera. . Se bem que a previsão de cinturões verd~s satisfaça em par~e nossas novas exigências, agora devemos pensar, amda, em uma m~~ verde permanente, dedicada a fins ~ais, depen_dente da adminis- tração pública ou controlada por particulares. Assim, para os lazeres de fim de semana, o conjunto da paisagem regional é que faz o papel ae parque paisagístico. Mas esta superfície verde seria vasta demais para ser unicamente destinada à criação de par~u~s ; ~ua manutençã~, com fundos exclusivos do Estado ou das muruc1palidades, agravana os mais altos orçamentos. Entretanto uma legislação rigorosa deveria determinar que estes terrenos fossem reservados para uso rural ; assim, preservar-se-ia o valor recreativo, com a condição de que o sistem~ de estradas e auto-estradas e os serviços recreativos fossem concebi- dos com o fun de dispersar os visitantes transitórios. A nova tarefa do arquiteto-paisagista consiste em estruturar o conjunto da paisagem de modo a integrar nela todos os ele~entos que constituam wn programa de lazeres. Uma vei que as autondade_s públicas estejam convencidas a conservar a v~ação dos terren_o~ agr1- colas mediante uma regulamentação do zon1ng e uma pohtica de impostos adequada, a tarefa do arquiteto-paisagista consistirá em conceder pistas para pedestres, áreas de piquenique; em dispor devida- mente, para os pedestres, as margens dos rios e do mar, assim como as clareiras, de modo a .permitir o acesso do público ao interior de cada parte da paisagem rural, sem perturbar seu funcionamento e economia cotidianos. Devemos imaginar faixas contínuas de terrenos públicos, serpenteando através do conjunto da paisagem e .tomand~-a simultaneamente acessível aos habitantes do lugar e aos tunstas. A d1s- posição das pistas de ciclismo nos Países Baixos e~timula este. processo que consiste em utilizar, para os lazeres, o con1unto da pai~em. * O mesmo tipo de planificação deveria também ser aplicado às auto-estradas; seu fim não consistiria mais em permitir a velocidade máxima mas em oferecer o máximo de descanso e de prazer esté- ' tico, em percursos com velocidade limitada, para ressaltar a beleza da região.• A transfonnação geral da paisagem regional em wn parque cole- tivo, dotado de serviços recreativos disseminados e facilmente aces- síveis, dependerá do modo como as autoridades p~b~cas embelezam as zonas deserdadas e selecionadas para os lazeres publicos, sendo que o número de pequenos terrenos será suficiente para evitar qualquer ponto de congestionamento. • . Dentro deste programa regional relativo aos espaços livres, não vejo nenhuma diferença entre as necessidades da metrópole mais _co~ges tionada e as da cidade provinciana ou até mesmo as do suburb10. * Se tomarmos as medidas políticas necessárias para estabelecer esta matriz verde a tendência de fugir da cidade congestionada para um subúrbio apar'entemente mais rural será em grande parte abolida '. já que os valores rurais que o subúrbio procuraria assegurar por meios estritame-nte privados - e que só se podiam re~ar verdad~ir~~nte em benefício de uma fração da população econorrucamente pnvilegiada - tomar-se-ão caráter integrante de cada comunidade urbana. .tYU U U KISANl:SMU Reestruturação paralela dos subúrbios e dos centros urbanos Dois movimentos complementares revelam-se atualmente neces- sários e possíveis. Um consiste em retrair a estrutura lassa e dispersa do subúrbio, que se deve transformar em comunidade equilibrada, que tenda para a verdadeira cidade-jardim pela variedade e autonomia parcial, que conte com uma população mais variada, uma indústria e um comércio locais bastante grandes para lhe dar vida. O outro movi- mento consiste em diminuir correlativamente o congestionamento da metrópole, tirando uma parte de sua população e introduzindo parques, áreas destinadas a jogos, passeios sombreados e jardins privados em zonas que deixamos se congestionarem vergonhosamente, que perderam toda a beleza e muitas vezes se tomaram até inadequadas à vida. Aqui também devemos pensar em uma nova forma para a cidade, que apre- sentará as vantagens biológicas do subúrbio, as vantagens sociais da cidade, e proporcionará novos prazeres estéticos que satisfaçam estes dois modos de vida. A função básica da cidade consiste em dar uma forma cole- tiva ao que Martin Buber chamou justamente de relação Eu e Tu: em permitir - e até favorece r - o maior número de reuniões, encon- tros e competições entre pessoas e grupos variados, de modo que o drama da vida social possa ser interpretado, com os atores e especta- dores podendo revezar-se em seus papéis. A função social qos espaços livres dentro da cidade consiste em permitir que os indivíduos se reú- nam. Como Raymond Unwin demonstrou em Hampstead Gardens e Henry Wright e Clarence Stein de modo ainda mais decisivo em Radbum, esses contatos ocorrem nas mais favoráveis condições, quando os espaços privados e públicos são concebidos simultaneamente, dentro de um mesmo processo de planificação. Infelizmente, o congestiona-mento da cidade supervalorizou o espaço livre em seu aspecto puramen- te quantitativo. • Do ponto de vista social, o excesso de espaço livre pode revelar-se mais como carga; que como benefício. O que conta é a qualidade de um espaço livre - seu encanto, sua acessibilidade - , mais que sua dimensão bruta. Hoje, o problema do subúrbio consiste em trocar uma parte de seu excedente em espaço biológico (jardins) por um espaço social (locais de r..:união); o da cidade congestionada consiste, pelo contrário, em introduzir em seus bairros "superconstruídos" a luz do sol, o ar puro, jardins privados, praças públicas e passeios para pedestres; todas estas inovações, sem deixar de cumprir funções estritamente urbanas, fariam da cidade um lugar tão agradável quanto os antigos subúrbios, onde se poderia viver e criar filhos. Para tornar nossas antigas cidades habitáveis, a primeira medida consistiria em reduzir as densidades resi- denciais; os bairros em mau estado - cujas densidades atingem atual- mente de 200 a SOO habitantes por acre - seriam substituídos por uma nova estrutura que integraria o habitat em parques e jardins cuja densi- dade não ultrapassaria os 100 habitantes ou, no máximo, em zonas com grande proporção de pessoas sem filhos, 125 ou 150 habitantes por acre. Não nos deixemos iludir pelo espaço aberto que aparentemente se pode conseguir amontoando um grande número de famílias em imóveis de 15 andares. Um espaço livre, visual e abstrato, não é de modo algum \ LEWIS MUMFIJRD 291 equivalente a um espaço livre funcional que pode ser utilizado para áreas de jogos ou jardins particulares. • As filas de edifícios altos, ainda que estejam bastante isolados entre si para não projetar sombra uns nos outros, criam um meio am- biente desprovido de atrativos, visto que roubam o sol e destroem a escala humana. cuja intimidade e familiaridade são vitais para a criança pequena e extremamente agradáveis para o adulto. Dentro do remodelamento ou da criação completa de novos espaços livres urbanos, há lugar para toda uma experimentação nova e para planos audaciosos, que diferem ao mesmo tempo dos modelos tradicionais e dos que se converteram em clichês em moda do estilo contemporâneo. Nesse campo, cada cidade deve oferecer uma resposta diferente ; o que convém a Amsterdã, com seus grandes planos de água, não se aplica a Madri. Não preci."3mos só de planos globais para os setores inteiramente novos, recuperados à custa dos antigos bairros insa- lubres. Precisamos também de soluções parciais, aplicáveis em pequena escala e que, no correr dos anos e das ocasiões, se integram em urna transformação radical do nosso meio ambiente. Landscape and Townscape, artigo originalmente publicado na revista Landscape em 1960 e reeditado no conjunto de trabalhos publicados sob o título The Highway and dre City , Londres, Secker &: Warburg, 1964. (Tradução da · autora.) • Untitled-1 Untitled-2 Untitled-3 Untitled-4
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