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1 FUNDAMENTAÇÃO ÉTICA E HERMENÊUTICA A L T E R N A T I V A S P A R A O D I R E I T O * Edmundo L. de Arruda Jr.** Marcus Fabiano Gonçalves*** 2 SUMÁRIO Introdução ....................................................................... 4 1. Alternativas do Direito na Modernidade ..................... 33 1.1. Um diagnóstico autocrítico do MDA ........................... 33 1.2. Compreensão e ultrapassagem do positivismo .................. 39 2. Mínimo Ético e Eficácia Normativa............................ 58 2.1. Mínimo ético: uma escavação sob os relativismos axiológicos ................................................................................... 58 2.2. Direito e mínimo ético: a possibilitação da ética pelo direito ................................................................................... 85 2.3. Liberdade e igualdade nas capacidades e oportunidades .. 101 2.4 Direito e ética: impunidade e estratégias de resistência à exclusão social .............................................................. 121 2.4. Direitos humanos, igualdade e desenvolvimento ............. 139 2.5. Direito e desenvolvimento na América Latina .............. 183 2.6. Hegemonia e corrupção: repolitização da legitimidade e remoralização da política ................................................ 189 2.7. Educação para a ética, direitos humanos e ensino jurídico ................................................................................. 196 3. Observações sobre o Sentimento de Justiça .............. 204 3.1. O sentimento de justiça na filosofia do direito orientada pela sociologia e antropologia jurídicas ..................................... 204 3.2. Eficácia normativa e substrato ético da experiência jurídica ................................................................................. 215 3.3. O sentimento de justiça e a formação do sentido de igualdade ................................................................................. 219 3.4. Sentimento de justiça e concretização do mínimo ético ..... 222 3.5. A dialética do jurista-cidadão e do cidadão-jurista: dois focos na apreensão do fenômeno jurídico .................................... 226 4. Hermenêutica ........................................................... 230 4.1. Da pura discricionariedade à fundamentação da pré- compreensão ................................................................. 230 3 4.2. A pré-compreensão jurídica e a pré-compreensão da subjetividade do intérprete: limites e relações ........................ 247 4.3. A hermenêutica da juridicização e a linguagem jurídica .. 265 4.4. A interpretação conforme a Constituição e a Constituição como parâmetro interpretável ........................................... 283 4.5. A concepção de descoberta da verdade na hermenêutica heurística .................................................................... 301 4.6. Hermenêutica e novos consensos: ressignificando o mundo jurídico ....................................................................... 318 4.7. Da hermenêutica ao mínimo ético .............................. 328 F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 4 Introdução Modernidade é a designação genérica adotada para se caracterizar um período histórico, na verdade mais um processo social, marcado pelo colapso das fundamentações tradicionais. Uma fundamentação pode ser considerada tradicional quando valores sociais e normas instituídas justificam privilégios, prerrogativas e diferenças ofensivos àquela igualdade primária pela qual progressivamente é sedimentado nosso ideal de uma universalidade laica e racionalista. A contextura laica da razão demarca um território de coisas não sagradas que tampouco chegaram a ser imediatamente heréticas. Um profano mitigado passa gradualmente a ser conquistado ao longo de várias negociações, com avanços e retrocessos. A luz do iluminismo não teve o caráter impetuoso de um fiat lux, não iluminou de repente; foi iluminando, como nas intensidades de penumbras sucedidas num alvorecer. Porém, se a Modernidade paulatinamente foi lançando luz sobre as trevas medievais, não deixou de afligir a história com seus próprios infortúnios. As vicissitudes da fundamentação da ética moderna pós-tradicional desnudavam problemas sociais cujas causas, agora humanas e materiais, haviam sido relegadas à esfera determinista da transcendência. O humano e o material foram compreendidos como social. E este, como político e econômico. As explicações teológicas foram outrora o signo mais claro daquela transcendência fundamentadora do imobilismo tradicionalista e conservador. As pás da ciência se puseram a cavar trincheiras de resistência às ingerências desse além. Mecanicismo, materialismo, F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 5 positivismo e incontáveis posturas cientificistas somaram forças nesse combate. No entanto, durante o calor dessa luta, a fundamentação pós-metafísica restou produzindo suas próprias transcendências. Retrospectivamente, percebemos hoje que a atitude metafísica não esteve somente nos domínios da religião. Pôde estar também na própria ciência, ou ainda na extensão de seus predicados de previsibilidade calculável para domínios humanos eminentemente contingenciais, como o da história e do comportamento social. A fundamentação moderna, pelo seu caráter pós-tradicional, reivindicou revestir-se também de um temperamento pós-metafísico. Mas se é certo que essa fundamentação promoveu a autonomização de diversas esferas sociais (estética, política, econômica, jurídica, moral), também é verdadeiro que experimentou novas formas de justificação que hoje poderíamos caracterizar como metafísicas. O desencantamento do mundo medieval reclamou sua reorganização cognitiva por uma determinada idéia de sistema, a nova figura arquetípica de uma mitologia racional. O homem agora sujeita o mundo a seus propósitos na medida em que se apossa dele pelo cálculo, pela previsibilidade, pela produção e pela organização cognitiva. O otimismo cientificista generalizou a idéia de progresso. Descobertas as leis da sociedade, tal como outrora foram descobertas as leis da natureza, fez-se possível o vaticínio comunista: inexoravelmente as contradições do sistema capitalista conduziriam o mundo ao socialismo. Na modernidade industrial, ciência e arte divorciaram-se e passaram a viver em domínios longínquos. A arte experimentou a especificação pelo estilo: a sutileza de uma sensibilidade particular, manifestada em uma composição, individualizava um autor. Liberto do jugo religioso, o autor moderno, o artista F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 6 burguês, tornava-se senhor pleno de sua obra. Uma racionalidade estritamente estética imunizou a ciência contra os efeitos das emoções. Emoções e sensibilidade só poderiam ser experimentadas em domínios diversos da técnica e da política. Razão e sensibilidade seguiram cada qual seu próprio rumo. Hoje, no zênite da Modernidade, uma atenção ao que disseram homens póstumos como Nietzsche nos causa assombro ante a confirmação de seus prenúncios: o sufocamento do dionisíaco reclama agora seu preço. Um tecido social hiperestético sobrepuja a racionalidade da política e toma dianteira até sobre a produção econômica.A máquina dos partidos políticos tradicionais, os príncipes modernos no dizer de Gramsci, é substituída por agências de publicidade. As empresas produzem conforme uma economia das necessidades produzidas pela mídia. E em meio ao delírio plástico dos políticos-produto e da manipulação irresponsável do desejo, a felicidade e o sofrimento só freqüentam a ordem do dia como apelos emocionais e como estratégias de consumo. Mas, apesar desses acidentes de percurso, a modernidade foi gestada sobretudo como a época da descoberta dos problemas humanos enquanto humanos. A desigualdade social agravada em virtude da superacumulação acelerada pelo desenvolvimento tecnológico agudizou-se quando o curso da história consumou uma modernidade predominantemente capitalista. O drama da exploração do homem pelo homem não era resolvido, mas antes agravado pela ciência. Novas formas de submissão, formas especificamente modernas, sucederam à vassalagem, assim como outrora essa vassalagem havia sucedido à escravidão. No entanto, também surgiram novas formas de emancipação moderna nesse mundo de homens livres para vender a própria força F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 7 de trabalho: os movimentos sociais se fizeram herdeiros da continuidade e do aprofundamento das reivindicações de 1789. Crenças fundadas na atitude de fé cederam espaço a valores fundados em justificações ás quais todos poderiam acentir. Agrupamentos desses valores na forma de sistemas de idéias e justificações tornaram-se ideologias. E um mundo outrora coeso pelas fundamentações tradicionais experimentou um estilhaçamento caleidoscópico sem precedentes. Uma explosão em diversos fragmentos desenhou o quadro do politeísmo de valores tão bem analisado por Weber. Desde então a vida em sociedade tornou-se uma permanente tensão entre a apologia às virtudes pluralistas desse estilhaçamento e a busca de uma unidade precária que possibilitasse identificar nesses fragmentos as partes de um mesmo ex- todo. Uma totalidade harmônica deixava de ser a causa da unidade coerente de um mesmo mundo. Sucumbiam as explicações organicistas, ascendiam as fundamentações individualistas. E, segundo esse individualismo, a totalidade social tornava-se um constructo a ser permanentemente buscado nas composições provisórias e mutáveis entre as diversas forças sociais em disputa por valores e ideologias que representavam agora interesses antagônicos. Os extremos do nazismo e do stalinismo foram indicativos de um desconforto com esse estilhaçamento. Representaram descaminhos de uma razão histórica tão totalitária quanto a metafísica teológica, pois buscaram recompor uma unidade cindida por meio da violência e da eliminação física da diversidade. Com o capitalismo, não tardou esse mundo da razão a atingir uma nova condição mítica. A lanterna do iluminismo foi conduzida para o rumo da barbárie. A F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 8 ciência tornou-se a grande ideologia comum dos Estados Modernos. Soviéticos e americanos disputavam um mesmo terreno, previamente considerado valioso. A técnica a serviço da dominação ofuscou as forças emancipatórias. E o que em outros tempos foi dominação atingia um paroxismo inusitado: a dominação determinada pela divisão do trabalho agora extermina o dominado. Aqueles que protestaram contra a injustiça da Divisão Internacional do Trabalho traçada pelo imperialismo jamais chegaram a pensar que um dia deixasse de existir até trabalho explorador a dividir. Juristas críticos procuraram levar o direito para os rumos da transformação social. O pluralismo jurídico romântico reduzia o direito moderno a um monismo de índole burguesa a ser extirpado. Juristas tradicionais lembravam: o direito é um instrumento de conservação social. A história recente prova o quanto esses juristas tradicionais acabaram se tornando paradoxalmente certos: a barbárie neoliberal impõe a conservação da sociedade, sua preservação contra a supressão do direito e a exclusão social. Mas, como lembra Boaventura de Sousa Santos no seu livro A Crítica da Razão Indolente, a modernidade não nasceu capitalista, tornou-se. A supremacia da ideologia cientificista selou essa união: o ideal positivista do progresso indicava um sulco de luz desbravado pela razão em meio às trevas. O culto à tranqüilidade cultivada por essa ordem não demorou em reprimir os domínios da vida social não imediatamente reguladores. Boaventura identifica aí um sufocamento das energias emancipatórias da modernidade pelo capitalismo. O exame da tensão surgida no decurso da modernidade entre os extremos do par regulação–emancipação torna-se decisivo. E o papel do Estado no equilíbrio dessa tensão não pode mais ser universalizado em desconsideração às F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 9 peculiaridades históricas de cada sociedade situada em estágios distintos de edificação do projeto moderno. Ainda mais na América Latina, onde sociologicamente o aparato burocrático do Estado não só antecede a sociedade civil, como também chega a fundá-la em muitos casos. Quando esse Estado torna-se, ou permanece, como destinatário dos apelos por emancipação, seja para chancelá-los na forma de reconhecimento pelo seu direito positivo, seja para promover estratégias assecuratórias e efetivantes, isso acena à ocorrência de algo deveras importante: esse Estado é ainda identificado como o protagonista de uma comunidade em via de afirmação histórica na forma de uma sociedade a ser mantida minimamente coesa pela eliminação das exclusões maciças. As demandas dirigidas ao Estado são assim sintomas de um estágio primordial de socialização cooperativa ainda não plenamente conquistado. Talvez o pensador contemporâneo mais célebre por sua defesa vigorosa da modernidade seja Jürgen Habermas. Ele enxerga o projeto moderno como incompleto, como algo que poderia ainda ser consumado mediante a adoção de algumas alternativas gestadas ao longo dos caminhos e descaminhos da própria modernidade. Já Boaventura prefere pensar a modernidade como não podendo ser consumada, ao menos nos exatos termos como ela até então vem sendo concebida enquanto momento anterior ao que comumente é designado como pós-modernidade. Cada um desses autores tem lá suas razões para assim pensar. Postulando a modernidade num contexto europeu, Habermas provavelmente estaria correto, não fosse o fato notório de a modernidade não ser um fenômeno apenas europeu. Em contextos de sociedades periféricas, a modernidade social, política e jurídica muitas vezes nem bem chegou e já dá ares de F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 10 obsolescência. E isso demonstra mesmo a inépcia dos pensamentos etapistas que, além de corroborarem um certo eurocentrismo, não conseguem vislumbrar o além da modernidade através dela mesma, algo como uma transpós- modernidade. Em uma analogia, essa é uma situação muito semelhante àquelas recomendações de direção defensiva feitas aos condutores de automóveis em auto-estradas: olhar através dos pára-brisas dos outros veículos para enxergar além deles, diminuindo assim o risco de acidentes. Parece então ser bem esse o nosso desafio, pois se não conseguirmos vislumbrar o além através da modernidade, poderemos ter o alcance de nossa visão bloqueado por um obstáculoerguido pela sua configuração capitalista: a constante cooptação das energias emancipatórias pelas forças regulatórias. Aliás, o próprio ideal democrático sofre um arrefecimento de sua aptidão transformadora no curso dessa cooptação regulatória. E até mesmo a prática das reformas sociais perde sua urgência à vista do colapso do que poderia sobrevir na sua ausência: a revolução. O ideal democrático não pode então ser mais exclusivamente uma diretriz para a esfera pública reduzida à política. A criatura concreta escondida sob a pele do moderno homem-cidadão, capacitado a participar politicamente, sente cada vez mais ânsia por se expressar e se realizar em dimensões da existência social distintas da política. A diversão, a arte, o amor, a cultura, o lazer, a religiosidade, a intimidade, o consumo de bens e serviços fazem dessa criatura concreta um ser multidimensional em suas aspirações. O ideal democrático necessita, assim, desdobrar-se em éticas para essas e muitas outras dimensões da vida social e individual cada vez mais requisitadas nas discussões políticas da esfera pública tradicional. Mas nem o comparecimento dessas questões à esfera pública, e tampouco o interesse imediato de muitos F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 11 envolvidos, vertem-se necessariamente em participações efetivas. Muitos afetados, por vezes, não desejam participar das deliberações cujos resultados podem atingi- los. E essa deserção participativa não pode ser diagnosticada de maneira simplista como pura alienação ou apoliticidade. Ocorre mesmo que a esfera pública também passou a se desenvolver em outros segmentos da vida social não imediatamente políticos. O surgimento dessa esfera pública burguesa, magnificamente apreciada por Habermas em Mudança Estrutural da Esfera Pública, em muito se deveu à associação entre indivíduos particulares preocupados com o que Boaventura vem designando como uma racionalidade estético-expressiva: os cafés, os círculos literários, a freqüência aos teatros e aos concertos. O homem da esfera pública no alvorecer da modernidade originalmente fazia parte de movimentos culturais. Hoje, porém, contingentes enormes dos participantes potenciais das sociedades contemporâneas foram absorvidos por modalidades de expressão sem repercussões políticas e nem mesmo culturais. O puro hedonismo e o consumo de produtos de entretenimento de baixíssima qualidade cultural recrutam legiões de indivíduos passivos em países com diferentes estágios de desenvolvimento. Ao mesmo tempo, a política é vista por tais indivíduos, várias vezes não sem razão, como atividade longínqua e promíscua, fonte de corrupção e de oportunismo. Os poucos ensaios de participação geram frustração por não chegarem a produzir resultados em um lapso de tempo desejado. Assim, muitos teóricos da sociedade recusam-se a analisar essas manifestações estéticas por considerá-las desprovidas de conteúdos mais significativos. Mas a verdade é que essas análises são muito complexas, pois envolvem a criação de linguagens conceituais para o tratamento de fenômenos bem F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 12 diferentes das ideologias políticas, das legitimidades ou das configurações institucionais. O chamado tribalismo pós-moderno reforça entre os indivíduos maneiras estéticas e performáticas de troca de imagens e códigos denotadores de uma pertinência grupal responsáveis pelo atendimento de uma demanda por auto-estima e identidade social. O ato de pertencer a um grupo sacia a sede por identidade em meio a sociedades diluídas no gigantismo anônimo das massas. O aglutinante desses novos grupos sociais designados como pós-modernos definitivamente não é mais um vir a ser utópico, ideológico e bastante improvável em curto prazo. Esse aglutinante social teve sua maior expressão orgânica nos partidos políticos e em suas ideologias. Diversamente, tal aglutinante social é hoje uma composição entre duas disjuntivas: (a) ter/não-ter e (b) ser/não-ser. Sujeitos sociais dificilmente cerram fileiras nos dias atuais pela causa do comunismo (vir a ser), mas não hesitam em constituir um grupo reivindicatório para resolver problemas como o daqueles que carecem de habitação hic et nunc (ter/não-ter). Sem chegar a questionar as razões globais do sistema socioeconômico que lhes nega habitação, a demanda desses sujeitos sociais é maximamente imediatista e seu caráter corporativo freqüentemente não tergiversa em recorrer ao arrivismo para atendê-la em detrimento das reivindicações de um grupo diverso. Aglutinações assim (ou, caso se prefira, sujeitos sociais coletivos) podem ser conflitantes entre si e muitas vezes subsistem sem nenhum grande princípio político ou ideológico unificador além da premente necessidade. E nem seria exagerado acrescentar que a constituição de muitas dessas organizações já nasce com seu prazo de validade determinado: precisamente o da satisfação da demanda que lhes dera gênese. F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 13 De outra parte, também temos hoje incontáveis associações formadas pelo aglutinante (b) ser/não-ser. Trata-se do compartilhamento daquilo designado por Max Horkheimer como o minimal self dos indivíduos. Podemos perceber o ingresso de pessoas em agremiações relativamente informais sendo impulsionado pela comunhão de atitudes sociais e características fenotípicas entre seus membros: tatuagens, roupas, brincos, piercings, cortes de cabelos, gostos musicais, artefatos desportivos, formas do próprio corpo e ainda muitos outros objetos e comportamentos fetichizados que identificam os membros daquilo que se convencionou chamar tribo. Nos anos 1970 e 1980, a depressão econômica produziu grandes contingentes de jovens desempregados, dentre os quais muitos se tornaram os revoltosos punks na Inglaterra. A iminência de um conflito nuclear mundial que havia gerado o pacifismo amoroso dos hippies nos anos de 1960 produziu mais tarde o niilismo mórbido dos darks e góticos com o ar blasé das sociedades européias. Simultaneamente, a crescente angústia das populações juvenis produzia na sociedade norte-americana, e nas demais que seguem seu estilo de vida, a violência gratuita das gangues de artes marciais. Mas foi mesmo nos anos 1990 que esses grupos ditos pós- modernos aumentaram em número e diversidade. Como aspecto positivo, poderia ser destacada a proliferação de reivindicações com caráter planetário em defesa da preservação ambiental e da qualidade de vida. Todavia, também cresceram pelo mundo a xenofobia e o preconceito étnico responsáveis pela disseminação dos skinheads e outros agrupamentos intolerantes. No Brasil, a implacável exclusão econômica e social da juventude negra recrudesceu sua guetificação. Apareceram os rappers, os MCs, os pagodeiros e os funkeiros. Favelados e integrantes F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 14 das classes baixas reúnem-se para fruição de suas produções artísticas, muitas imitadoras de padrões norte- americanos, ou simplesmente para a diversão catártica em grandes eventos na periferia das metrópoles. Ainda nos anos 90, cada vez mais segmentos formados por integrantes da classe média ou das camadas abastadas de vários países foram sendo assimilados pela cultura midiática demandante de uma obsessão pelo consumoestético. Os clubbers, os cybers, os models e incontáveis outros grupos menores aglutinam-se pelo consumo de marcas, tecnologias e produtos semiculturais, ou pela simples ostentação narcísea de corpos meticulosamente torneados em centros estéticos como academias ou clínicas de cirurgia plástica. Difundidas nas sociedades de consumo como valores em si, as buscas da celebridade e de um específico padrão de beleza apresentaram-se como verdadeiras metas sociais. Décadas de conscientização feminista foram suplantadas por um novo tipo de machismo, aliciador das próprias mulheres para sua disseminação. No Brasil, espécies de mulheres-produto são lançadas à hiperexposição na mídia, constrangendo o bom gosto remanescente com sua brutal ignorância, sua futilidade excessiva e suas táticas grosseiras de escalada social, baseadas na sedução de homens ricos e poderosos. Em meio a sociedades exageradamente massificadas, essas e muitas outras práticas oferecem oportunidades para indivíduos em busca de identidade pessoal e de realizações materiais. Essa identidade e essa realização material buscadas são componentes indispensáveis ao reconhecimento e à constituição da auto-estima que transforma anônimos em alguém, se não para toda a sociedade, ao menos para esses mesmos grupos que, funcionando como espelho, devolvem-lhes uma certa imagem de si mesmos. Assim, ao ser limitado à F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 15 dimensão político-participativa da esfera pública, o ideal democrático tem seu potencial emancipador drasticamente comprometido. As aspirações por identidades e realizações materiais merecem a atenção dos programas modernos de individualização possibilitados pelo direito e pela política. Mas isso não necessita significar imediatamente uma juridicização ou mesmo uma politização dos seus sujeitos demandantes. Logo, recomendações e prognósticos a essa transpós-modernidade reclamam muitas precauções e sutilezas. É urgente retornarmos ao indivíduo, mas sem cairmos novamente na armadilha do individualismo dispersante ou exclusivamente politizante. Também é recomendável não menosprezarmos essa dimensão estético-cultural tão contundente nas sociedades contemporâneas: não é pela baixa relevância institucional das manifestações estéticas e expressivas que suas práticas não determinam muitas outras representações sociais. É da mesma forma emergencial recuperarmos a dimensão ética do Estado, mas sem incidirmos no seu autoritarismo ou na sua radical dicotomização com a sociedade civil. As prerrogativas filosóficas da modernidade foram atribuídas à subjetividade individual e abstrata, formulada enquanto entidade ético-jurídico-política do Homem-sujeito de direitos-cidadão com aspirações igualitárias. Mas essa subjetividade abstrata foi sendo lentamente desligada do mundo real na qual concretamente acontecia ou, mais precisamente, deveria acontecer. O ideal dessa subjetividade abstrata, recoberto pelo formalismo jurídico, tornou-se um obstáculo à efetiva realização do programa social da modernidade. E esse mundo real no qual a modernidade deveria acontecer foi justamente aquele no qual ela muitas vezes nem pôde ensaiar sua aparição: o mundo das relações sociais e econômicas alienadas, o mundo do trabalhador explorado F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 16 e reificado, o mundo dessubjetivado das mercadorias e do abismo antiigualitário estabelecido pela superacumulação capitalista. Ao longo da modernidade no século XX, existiram ainda alguns desastrosos afãs por realizações aceleradas de seu programa. A classe e o clã foram reivindicados como maneiras de se provocar o advento dessa subjetividade bloqueada pelas versões abstratas e formalistas. A aventura do socialismo real, iniciada com a Revolução de 1917, recentemente culminou nessa catástrofe material e espiritual a que todos assistiram entre os anos de 1980-1990. Por outro lado, quando o conceito de demos tentou ser revigorado diretamente pela noção de ethnos, tivemos os racismos transmutados em fascismos. Agora, precavidos contra esses afãs e auxiliados pela visão de uma transpós-modernidade (o além através da modernidade), necessitamos assegurar a possibilidade da experiência social por um certo ethos. Nossa idéia do mínimo ético pretende incorporar algumas tematizações das subjetividades modernas, sem, no entanto, reincidir em abstracionismos melancólicos: a saudade do que teria ido sem jamais ter propriamente chegado. Ora, o que ainda não veio não pode mais ser exatamente o mesmo do momento em que se acredita que devesse ter vindo. Em razão disso, o mínimo ético não menospreza as expressões identitárias e estéticas pelas quais o sujeito abstrato da modernidade contemporânea preenche seu vácuo de impessoalidade naquelas maneiras de individualização não imediatamente políticas ou jurídicas. A resolução dos entraves igualitários surgidos na formação capitalista da modernidade é aqui pressuposta como condição para a expressão livre do homem em todas as suas possibilidades, que, como tais, evidentemente não são mais apenas aquelas mesmas possibilidades que se poderia antever na aurora da modernidade. F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 17 O referido sufocamento das energias emancipatórias da modernidade contou também com uma concepção de comportamento social subjacente ao positivismo jurídico: o registro de uma tradição coativa que necessita ser urgentemente repensada. A ênfase heteronomista e sancionatória tende a assimilar a regulação social ao uso efetivo ou potencial da violência. Administrada sob sociedades traumatizadas com os excessos históricos de variadas formas de violência, o efeito perverso dessa cultura repressiva atinge níveis incomensuráveis. As sociedades latino-americanas experimentaram uma continuidade laico-patrimonialista das éticas tradicionais de fundamentação desigualitária, embora em nada semelhantes àquelas vigentes na Europa durante a Idade Média. E em tal contexto, essa cultura jurídica repressiva só pode fazer uso de uma violência estatal que recaia sobre parcelas dramaticamente excluídas do acesso às benesses da cooperação comunitária. Nesse ciclo perverso, o Estado desempenha o avesso de sua função socializadora. O discurso da coatividade oficial foi o verniz com o qual se tentou recobrir um patrimonialismo pré-moderno há muito putrefato. Nas sociedades tradicionalistas de caráter patrimonial, a cultura coativa patrocinada em nome do Estado operou uma extensão do poder privado – branco e masculino – exercido sobre o núcleo familiar e suas adjacências. Muitos são os exemplos desse quadro e maiores ainda as deformações herdadas. Ilustra esse estado de coisas o servilismo semi-escravo dos peões aos fazendeiros, dos cassacos de engenho aos seus senhores, dos caboclos aos patrões seringalistas; no Brasil de sul a norte. Na Argentina, podem ser lembrados os negritos, descendentes F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 18 de índios, mantidos distantes dos núcleos urbanos de predominância euroascendente. Podemos também recordar os camponeses mexicanos rebelados contra seus senhores, que pretendiam marcá-los com ferro em brasa, como uma espécie de gado humano, para que não se evadissem dos domínios de seus latifúndios. Na América Latina,a disseminação de uma cultura colonial heteronomista impediu de ser vislumbrada a fragilidade dos fundamentos ético-conviviais sobre os quais mais tarde se pretendeu assentar edifícios jurídicos de arquitetura européia. O avassalamento de civilizações e culturas autóctones pelas éticas e direitos oficiais dos dominadores relegou à marginalidade uma série de hábitos, costumes e práticas normativas que, a despeito de jamais terem perdido completamente sua eficácia vinculativa, principiam agora a ter sua dignidade resgatada para o pluralismo do fenômeno jurídico revisto à luz das localidades. O desempenho da violência oficial durante situações de cisão do pacto cooperativo e de indiferença ao sofrimento de milhões de pessoas conduz o sistema jurídico a cumpliciar-se com a histórica exclusão social em razão da qual a própria legitimidade do direito passa a ser duramente questionada. É esse o caso da sociedade brasileira, onde historicamente desenvolveu-se uma apropriação do poder social do direito por uma elite empenhada em pô-lo a serviço da manutenção de privilégios absolutamente infundamentáveis, que atingem toda a capacitação oportunizante em virtude da qual crescem as chances de se conquistar alguma igualdade material precária. Todavia, reprovações românticas ao monismo jurídico também constituem um problema crítico da F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 19 herança positivista a ser administrada. Evidentemente, um espaço democrático de produção normativa deve manter a ordem jurídica estatal permeável às exigências emancipatórias gestadas ao largo dos domínios institucionais. Existem inúmeras dessas práticas emancipatórias voltadas diretamente ao reconhecimento de suas reivindicações na forma do direito positivo estatal. Aliás, em momentos de tempestade desregulamentadora e flexibilizante, o reforço tático das estruturas eficaciais do direito positivo estatal representa um porto seguro no qual podem ser ancoradas muitas garantias ameaçadas. Mas, por outro lado, é prudente evitar ingenuidades, pois nem toda reivindicação ou prática nomogênica apresenta alguma substância libertária simplesmente por exibir em sua origem alguma normatividade paralela ou plural em relação ao Estado. Logo, é no espaço público de negociação da normatividade vigente, com suas vicissitudes de hegemonia política e subjetividade dos intérpretes, que muitas dessas mesmas práticas emancipatórias vão medir suas aptidões efetivas para generalizar e assegurar propostas e pontos de vista na modalidade de direito oficial. A maior ou menor permeabilidade do espaço normativo oficial às reivindicações oriundas de movimentos emancipatórios oscila de sociedade para sociedade. E essa permeabilidade pode ainda ser regulada pelas ações da cidadania política, que, por seu turno, jamais deixam de supor preliminarmente certas capacidades participativas viabilizadas graças à efetivação dos direitos humanos e fundamentais, hoje especialmente sociais e econômicos. O discurso dos direitos humanos constitui atualmente um núcleo ético comum e irredutível do direito moderno. Longe de ter florescido de algum consenso racional estabelecido entre os povos do ocidente, essa F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 20 espécie proliferou mesmo através do transplante sistemático de certas exigêcias por segurança e previsibilidade surgidas no contexto do modelo de Estado europeu moderno. O apelo igualitarista e libertante desses direitos humanos difundiu e orientou sua apropriação por sociedades de aspiração pós-convencional. Tal discurso, entretanto, tem hoje permanecido refém da pura igualdade formal, facciosamente alardeada como um valor intocável por intelectuais de tradição conservadora. Enquanto isso, no imaginário social, o potencial pacificador dessa igualdade formal, que aliás sempre permaneceu relativamente baixo, foi praticamente cancelado pelos sucessivos testemunhos de desmentido fornecidos pela intensa crueldade das situações concretas absurdamente antiigualitárias. Essa nossa referência ao antiigualitário pretende apresentar algo ainda mais grave que o simplesmente desigual. A palavra desigual refere-se a alguma situação na qual não se conseguiu alcançar uma certa equalização tida como justa. Antiigualitário, porém, é o que, além disso, segue provendo essa fonte de desigualdade, seja para reproduzi-la em outros casos, seja para agravá-la. Nesse sentido, a sociedade brasileira adquire feições nitidamente antiigualitárias em variados níveis de sua estruturação. Abordar seriamente as relações entre ética e direito com vistas à superação dessa configuração antiigualitária requer um compromisso constante com o problema conexo da eficácia, seja sob o ângulo do conjunto conceitual teoricamente adotado para essa análise, seja do ponto de vista das realidades concretas às quais ele pretenda se reportar. Da maneira como o estamos elaborando, o tema da desigualdade pretende sempre remeter à detecção dos sintomas de uma configuração social antiigualitária. Assim, a justiça social passa a envolver o conjunto daquelas medidas pelas quais F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 21 certas manifestações agudas desses sintomas devem ser urgentemente atacadas, sem serem jamais esquecidos o tratamento das causas desse quadro antiigualitário e a sua prevenção contra futuras recidivas e distorções. Diante do drama da exclusão social maciça, a experiência ética reclama do direito a consignação de seu poder e de sua força para ela própria se tornar possível. Configurações sociais antiigualitárias inviabilizam a ocorrência dessa experiência ética entre indivíduos membros de uma comunidade, quando já não tratam de por o direito a serviço de seu próprio agravamento. Configurações sociais antiigualitárias obstaculizam a própria representação dos indivíduos do que possa ser por eles compreendido como uma sociedade da qual fazem parte. Mas não se trata de o direito ir recolher na ética, ou nas incontáveis concepções de justiça das várias éticas, algum critério de validade duvidoso para contextos modernos de relativismo axiológico. A proposta de o direito possibilitar a experiência ética significa o mesmo que ele possibilitar a própria sociedade. E isso não pode significar imediatamente a adesão a nenhuma concepção particular de justiça, senão antes mesmo a construção de um espaço social onde essas justiças possam circular. O patrimônio semântico acumulado ao longo dos séculos pela palavra justiça muitas vezes produziu, ao invés de fortuna, ruína. Filósofos e mesmo teólogos arriscaram ousadas transações com esse patrimônio na bolsa das idéias e das teorias. Foi assim que essa atividade especulativa com a semântica da justiça provocou amiúde um distanciamento dos processos de produção social envolvidos na sua possibilidade de ocorrência concreta. Na marcha das idéias, o direito moderno acabou por adquirir uma racionalidade formal e, logo em seguida, fustigado o F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 22 jusnaturalismo, as preocupações com a justiça perderam uma parte considerável de seu sentido. Atualmente, entretanto, muitos pensadores do direito esqueceram ser essa racionalidade jurídica conquistada na modernidade sobretudo uma racionalidade formal, e assimtentam, novamente, reiniciar as transações com o capital semântico da justiça. A retomada de um certo otimismo, por vezes inocente e por outras oportunista, com as elucubrações principiológicas e aistóricas constitui a mais recente versão dessa que pode ser notada como uma velha e conhecida prática especulativa. Mas quem sabe agora, atentando para Weber, enxerguemos com mais nitidez que essa tentativa de uma racionalidade substancial ou conteudística para o direito não pode ser buscada em conjecturas abstratas de filósofos profissionais que pretendem falar para o mundo inteiro como se ele fosse um só. Nem a filosofia e tampouco a ciência têm condições de oferecer coerência e harmonia a conteúdos axiológicos intrinsecamente conflitantes, ainda mais quando observamos de perto as sociedades reais freqüentemente negligenciadas no nível da estratosfera filosófica. O que podemos e até devemos postular, agora saindo desses limites mais formais, é uma maior atenção aos processos sociais de produção e circulação da sociabilidade. Ao invés de especulação com o capital semântico da justiça, a economia dos saberes sociais necessita, com toda pressa, de pesados investimentos teóricos nas configurações materiais e culturais de produção da experiência convivial ausentes nas sociedades empíricas de baixo desenvolvimento e sem justiça social. Essa mudança de enfoque econômico na circulação dos saberes sociais, a passagem da especulação para os processos de produção, está na base da análise eficacial norteadora desse trabalho. Como assinalamos, o que então entra em pauta agora é a própria ética ir buscar, na força F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 23 do direito, as condições materiais mínimas para sua possibilitação. Esse mínimo de ética torna-se um mínimo de sociedade. E isso não representa de maneira alguma um recuo jusnaturalista simplesmente porque significa apenas uma aposta decisiva no financiamento da autonomia dos indivíduos pela qual até mesmo a atividade coativa do direito pode diminuir sua freqüência e sua intensidade. Também por isso, em respeito à diversidade moral, essa busca da ética nas cercanias do direito deve permanecer cingida àquilo que for cultural e materialmente indispensável para sua ocorrência. Chamaremos essa busca de um mínimo ético. Pensadores tão distintos entre si como Bentham, Pachucanis, Jellinek, Schopenhauer e Hartmann já se utilizaram em suas reflexões dessa expressão ou de alguma outra muito similar: mínimo ético, mínimo de ética, mínimo moral, ética mínima, etc. Nós, entretanto, não assumimos qualquer vínculo imediato com as propostas desses ou de outros pensadores, embora relações possam até existir entre o que eles designaram como mínimo ético e o que nós mesmos estaremos tratando também sob esta idêntica nomenclatura. Trata-se então apenas do compartilhamento de uma expressão significante, sem maiores compromissos que daí possam ser extraídos para a relação com seu referente fenomênico na sociedade. O mínimo ético constitui o alicerce possibilitador da sustentação da experiência convivial, sendo composto da mesma substância cooperativa e mutual que integra o Estado, o direito e a moral. A idéia de um mínimo ético não pode ser malversada como o oferecimento de mais um outro núcleo axiológico suprapositivo ou metafísico, bem ao estilo dos inúmeros jusnaturalismos. O mínimo ético é representado pelo conjunto de medidas culturais e materiais a partir das quais se reverte, pela concretização e F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 24 efetivação dos direitos humanos e fundamentais, o quadro da exclusão social. O mínimo ético almeja então o (re)ingresso dos excluídos no pacto social e, por conseqüência, acarreta o próprio incremento de legitimidade do direito. O mínimo ético anseia por aquele mínimo de condições necessárias à possibilitação da experiência social solidária. Expressa, por esse viés, um direito à oportunidade de moralização: o direito dos indivíduos a uma identidade digna sendo equalizado pela contrapartida do atendimento aos deveres de expectatividade e cooperatividade afiançados pela força do Estado. Mas, no mundo moderno, além dos seus aspectos conviviais, a ética também envolve uma obrigação política de submissão ao Estado como representante da ordem pública, à qual devemos atender mediante certas contrapartidas que, entre outras coisas, assegurem a subsistência dos indivíduos como seres livres para o exercício da diferença e iguais em dignidade e nas condições práticas dessa mesma liberdade. Com isso é assinalado que a obediência não envolve tão-somente problemas de autoridade e coerção mas também um dado essencialmente ético, fundado no reconhecimento da mutualidade nas prestações entre o Estado e a sociedade negociadas no espaço democrático. Uma sociedade merece tal designação quando fornece aos seus membros condições para seu desenvolvimento moral e possibilidades reais de atendimento material àquelas expectativas que lhes são dirigidas na forma de obrigações, deveres, e promessas empenhadas. De outro lado, esses membros anuem em cooperar com sua comunidade, abstendo-se de prejudicá- la e, quando possível, empreendendo ações altruístas para seu aprimoramento. O equilíbrio havido nessa mutualidade, estabelecida entre indivíduos e sociedade, F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 25 incrementa a própria legitimidade do pacto social. Isso tudo assim resulta porque, quando os indivíduos recebem a chance de ser alguém perante seus parceiros de convívio e perante suas auto-estimas, essa chance, além de altamente valorizada, tende a ser traduzida no atendimento a certos deveres próprios de quem é ou tornou-se alguém: mais confiabilidade, mais sociabilidade, mais honestidade, mais solidariedade, mais respeito à coisa pública, mais responsabilidade, mais vergonha moral, mais decência. Elaborada dessa maneira, a adesão de um indivíduo à moralidade não depende de nenhuma condição intrínseca de subjetividades naturalmente boas ou más. Antes, essa adesão à mutualidade da moralidade exige certas contrapartidas materiais: benefícios realmente vislumbrados por quem ingressa na reciprocidade de um convívio regulado por normas. Mas como exigir de uma mãe, com sua prole faminta em um barraco, que não se empregue na distribuição de cocaína nas favelas do Rio de Janeiro? Na ausência de contrapartidas sociais mínimas, é melhor ser incluída como desempregada ou excluída como uma traficante? Mas é realmente possível formular tal disjuntiva, justamente quando a opção pela licitude e pela moralidade já significa riscos à própria subsistência? Pode alguém, em meio à guerra pela sobrevivência, optar pelo respeito ao direito quando este significa a própria fome ou mesmo o fim? A efetivação do mínimo ético torna-se imprescindível a uma estratégia de possibilitação do direito nos Estados de modernidade periférica, especialmente quando passa a viger o consenso de que o dever de obediência ao poder instituído há de estar baseado no reconhecimento, e não na pura força. O reconhecimento funda-se também na possibilidade de a sociedade sentir a coisa pública como sua, e não apenas como uma F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 26 hospedaria infestada de parasitas e escroques. Por essarazão, o debate sobre os direitos humanos acaba fazendo convergir para um mesmo foco os temas da igualdade material, da democracia e da participação. Nesse foco comum, a exigência é por espaços nos quais seja exercida a diversidade da autonomia coletiva com garantias preliminares à subsistência. O mínimo ético representa o atendimento àquelas condições culturais e materiais essenciais, a partir das quais a própria pluralidade de concepções axiológicas pode ser manifestada como expressão maior da liberdade e da participação. A atenção ao mínimo ético equaliza a mutualidade desde a qual começa a ser possível uma sociedade. Logo, esse mínimo ético, ao renunciar à adesão a qualquer constelação axiológica específica, faz-se condição de possibilidade dessa própria pluralidade. Para que haja diversidade de valores numa sociedade, há de existir, antes, a própria sociedade. É das condições de existência dessa sociedade em um contexto moderno pós- tradicional que o mínimo ético pretende cuidar. O mínimo ético é, portanto, um mínimo social que repudia não só a cisão entre incluídos e excluídos, senão também a dominação dos incluídos sobre os excluídos em nome do direito. A fala em nome desse direito, porém, teve diversas vezes a dicção de uma voz do além: solene, neutra, intrinsecamente boa. O lugar oculto dessa fala foi a instância de um saber que se pretendeu apresentar como ciência: a ciência do direito. O conhecimento social da maioria esmagadora dos porta-vozes dessa ciência do direito tornou-se um saber de impostores. Oscilando entre os improvisos e a arrogância, opiniões mais ou menos preconceituosas, do tipo Hebe Camargo, desperdiçam a experiência acumulada com o amadurecimento de diversos estudos sociais. Boaventura propõe uma crítica da razão indolente contra F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 27 esse desperdício da experiência. Também a ignorância dos juristas sobre as formas não-jurídicas de regulação social contribui para uma hipertrofia coativa do direito. As interdições epistemológicas, verificadas no âmbito da ciência jurídica, não são perceptíveis apenas na dogmática dos vários ramos do direito material. Tais interdições epistemológicas também se encontram fortemente instituídas na tecnologia do direito processual disponível. Essas sérias limitações dos instrumentos oferecidos para o asseguramento jurisdicional dos direitos humanos e fundamentais, especialmente sociais e econômicos, têm convocado regularmente a criatividade dos pensadores do processo a apresentar inovações que se prestem à realização da justiça social na perspectiva do mínimo ético. Felizmente, diversos juristas da área processual têm corajosamente atendido a esse chamado urgente para a construção de um direito integrativo para toda a sociedade, e não apenas para aqueles segmentos que historicamente sempre tiveram acesso à justiça. Porém, esses heróicos processualistas ainda são poucos para mudar um senso comum teórico sedimentado por décadas de conservadorismo e tecnicismo neutral. Qualquer ciência já impõe uma certa pré- constituição de seu objeto pelas perguntas que consegue ou prefere fazer. Com a ciência jurídica positivista não haveria de ser muito diferente. Uma das tarefas da crítica parece ser então a de procurar a reformulação dessas perguntas para as quais a ciência jurídica positivista pretendeu oferecer respostas unívocas. Alargando-se assim a percepção do direito pelo filtro cognitivo de seus operadores, poderá ser inserida, nesse ponto de vista pré- compreensivo, a consciência da dimensão ética fenomenicamente subjacente a qualquer experiência jurídica em sociedade. O paradigma cognitivo da moderna F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 28 ciência do direito orbitou em torno das múltiplas questões técnicas derivadas de sua teoria da validade. Sistematicamente, a chamada teoria geral do direito afastou para longe de si aqueles problemas ligados à justiça e à eficácia. A justiça foi rebaixada a um estatuto relativista e, às vezes, irracionalista, enquanto a eficácia dispersou-se por vários tópicos da rubrica sobre a legitimidade na hoje chamada ciência política. Pesquisada com certa atenção, entretanto, a temática da eficácia exibe um longo percurso na história do pensamento ocidental. Já em Platão observamos preocupações com o que poderíamos designar de táticas eficaciais para um ordenamento jurídico. Em As Leis (662b), mesmo sabendo tratar-se de uma doutrina duvidosa, Platão propugna a divulgação da idéia de que somente o homem justo é feliz, com o intuito de alcançar a máxima obediência voluntária dos cidadãos às normas da Polis. Todavia, apesar dessa longa trajetória, não é difícil vislumbrar o que aconteceu com a problemática da eficácia na modernidade: ela sofreu um eclipsamento pelo problema da justiça, responsável por monopolizar o interesse de filósofos e juristas por muitos séculos. E, com o advento do positivismo jurídico, eficácia e justiça foram meticulosamente isolados daquele outro fenômeno, desde então considerado jurídico por excelência e excludência: o da validade. Mais dramático ainda foi o encobrimento das abordagens hermenêuticas ínsitas à construção social do fenômeno jurídico-judicial. A temática hermenêutica experimentou um longo exílio no mundo encantado dos métodos científicos de interpretação. Esse obscurecimento, porém, não ocorreu de modo gratuito. A afirmação do programa positivista de uma ciência do direito moderna necessitava arredar aquelas dimensões do fenômeno F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 29 jurídico que eventualmente representassem incertezas e variabilidades das decisões, de vez que essas eram características frontalmente opostas tanto à segurança jurídica como ao ideal de uma ciência rigorosa. Ora, se há uma dimensão do fenômeno jurídico que exalta sua incerteza e sua variabilidade, essa dimensão é a hermenêutica. A libertação da hermenêutica desse mundo encantado dos métodos só tornou-se possível graças ao avanço das pesquisas filosóficas sobre a linguagem e à apresentação de novas abordagens da interpretação jurídica, de inspiração menos cientificista. Desde a década de 1930, com os progressos da filosofia hermenêutica, a reflexão sobre o fenômeno interpretativo, que não é exclusivo do direito, avançou em muitas direções. Especificamente no campo jurídico, a hermenêutica vem deixando de ser uma hermenêutica técnica, um debate apenas sobre a semântica de textos normativos. A hermenêutica passou a tematizar a estruturação global do fenômeno jurídico: da criação normativa pela instância legislativa, passando pelas dogmáticas específicas e pela aplicação concretizadora, até a análise do comportamento dos destinatários e intérpretes desses comandos. Sem desconhecer as conquistas da teoria da validade, essa nova hermenêutica apresentou-se como um saber disposto a enriquecer a percepção do fenômeno jurídico em seus diversos setores de estruturação. A maior contribuição da hermenêutica contemporânea foi a de evidenciar que o conteúdo concreto do direito resulta, em último caso, de uma definição interpretativa. A dialética da criação jurídica revelou-se como um âmbito cuja racionalidade prática não era propriamente científica. A retomada da matriz argumentativa e retórica somou-se a esse entendimento. Paulatinamente as várias visões sobre o fenômeno jurídico trataram de apresentar suas problematizaçõesF u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 30 hermenêuticas. Com o direito alternativo não poderia ser diferente. O direito alternativo, seguramente o movimento de juristas progressistas mais discutido na América Latina, reclama agora também seu amadurecimento hermenêutico. Portador do gérmen reivindicativo de uma modernidade incumprida, o direito alternativo discute agora sua refundação sobre bases teóricas mais consistentes. A primeira delas remonta a um aspecto conteudístico e tenta oferecer reflexões em torno da seguinte questão: como construir alternativas às questões da justiça e da eficácia que não reincidam no jusnaturalismo e tampouco sejam novamente reféns dos relativismos? A segunda, por sua vez, remonta a um aspecto hermenêutico, oferecendo reflexões sobre as seguintes questões: quais alternativas existem ao discurso pseudocientífico dos métodos de interpretação? De que maneira é possível uma percepção hermenêutica para a efetivação do mínimo ético e para o desenvolvimento de uma responsabilização conseqüencial dos intérpretes-aplicadores? Analisados desde a perspectiva das teorias de fundamentação, esses dois campos temáticos, a ética e a hermenêutica, constituem a articulação central deste livro, que oferece teses para uma refundação do pensamento jurídico crítico. Este livro, no entanto, até por seu caráter ensaístico, não pretende oferecer nenhuma teoria integral do direito alternativo. Tendo nascido como um movimento de juristas, o direito alternativo não é uma escola doutrinária. Mas isso tampouco significa sua aversão pela reflexão teórica. O presente exame de fundamentação ética e hermenêutica, além de municiar uma prática alternativa, sugere novas maneiras para a compreensão do fenômeno jurídico. Assim, as idéias aqui expostas não se destinam apenas aos integrantes ou simpatizantes do Movimento de Direito Alternativo, senão também a todos os interessados em exaltar no direito seu compromisso com a eliminação da exclusão social. F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 31 O primeiro capítulo inicia-se por um diagnóstico do Movimento de Direito Alternativo, contextualizando sua abordagem no panorama do positivismo jurídico contemporâneo. Logo após, os conceitos de eficácia e validade são deslindados a fim de se compreender a funcionalidade do direito no processo de exclusão social. No segundo capítulo, as relações entre direito e ética são analisadas com vistas à fundamentação do que estamos denominando como mínimo ético. São aí aprofundadas as matrizes analíticas e psicossociais do chamado mínimo ético, tomando-se em consideração as pesquisas de Ernst Tugendhat, da teoria dos sentimentos morais e da psicanálise. Em seguida, a proposta do mínimo ético é contextualizada num espaço simultaneamente filosófico, sociológico e antropológico. Uma abordagem da teoria das capacidades, da teoria da igualdade e de algumas idéias da economia política torna-se indispensável. Também são sondados o fenômeno da corrupção e a premência do mínimo ético como critério de legitimidade para o sistema jurídico brasileiro. Ao final, é proposta uma pedagogia dos direitos humanos, destinada a dar conta da formação ética dos operadores do direito. O terceiro capítulo apresenta o antigo problema da justiça de um ângulo nada usual. A justiça é agora compreendida como um sentimento moral situado no contexto de uma sociologia jurídica da observância normativa. Após a explicitação dessa perspectiva, a análise do sentimento de justiça é deslocada para um âmbito mais psicológico, procedendo-se a uma incursão às pesquisas de Piaget a respeito da formação do sentimento de igualdade. Depois, são estabelecidas algumas relações entre o plano eficacial do direito e o aspecto motivacional do sentimento F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 32 de justiça. Por último, os problemas até então apresentados são articulados com o capítulo seguinte, que é sobre hermenêutica. Para tanto, são sugeridas as categorias do cidadão-jurista e do jurista-cidadão, demarcando os limites e alcances das ações técnicas e políticas nas esferas corporativas e democráticas mais amplas. O quarto capítulo dedica-se à problemática hermenêutica. Reflexões sobre a aplicação efetivante das idéias substanciais do mínimo ético são propostas. De início, certas noções da hermenêutica filosófica têm sua pertinência examinada para a esfera do direito. É suscitada a problemática das pré-compreensões dos intérpretes, oferecendo-se uma abordagem sobre o papel da fundamentação dessas pré-compreensões na discricionariedade aplicativa. Segue-se a isso uma reflexão hermenêutica sobre o direito alternativo, procurando-se responder à seguinte questão: afinal, o que é alternativo no direito alternativo? Logo após, são analisadas as distinções entre a pré-compreensão subjetiva do intérprete e a pré-compreensão jurídica, no contexto da aplicação normativa. Essa reflexão geral é reunida sob o nome de hermenêutica genealógica. Os fenômenos da incidência e da juridicização são criticamente apreciados em perspectiva hermenêutica. Recolhendo inspiração na metódica estruturante de Friedrich Müller, em seguida é abordada a interpretação conforme a Constituição no contexto de uma hermenêutica preocupada em discutir a fundamentação das pré-compreensões dos intérpretes. Ao final, são retomadas as categorias do jurista-cidadão e do cidadão- jurista a fim de se conciliar a responsabilidade pela concretização do mínimo ético com o compromisso hermenêutico de clarificação das pré-compreensões elevadas à condição de posições fundamentáveis. F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 33 1. Alternativas do Direito na Modernidade 1.1. Um diagnóstico autocrítico do MDA Comemoramos, no jubileu de 2001, o décimo aniversário do Movimento de Direito Alternativo (MDA). Mas não se trata de apenas festejarmos, com ares saudosistas e talvez melancólicos, os bons tempos dos grandes congressos. Nem tampouco de atestarmos o necrológio do MDA, tantas vezes lavrado precipitadamente por exultantes legistas dos setores conservadores. No atual contexto, comemorar não significa apenas festejar, mas, especialmente, rememorar: trazer à memória algo de nosso passado a fim de recuperarmos, no exercício dessa retrospecção, possíveis direções prospectivas. Eis aí o melhor sentido para esse Congresso que assinala a primeira década do MDA.1 Inegavelmente, ao longo de mais de uma década, houve substancial contribuição do MDA para o desenvolvimento do pensamento crítico no direito. Essa importância pode ser aquilatada objetivamente: grandes congressos, edições avidamente recebidas, diversas dissertações e teses de excelente nível acadêmico, atração imediata do interesse dos discentes, diálogo inusitado entre profissionais de distintas áreas jurídicas, antes ensimesmados em suas corporações, e, desde então, aglutinados na luta pela efetivação do Estado de Direito Democrático. Também há de se considerar a simpatia angariada dos movimentos sociais, não apenas para o MDA, mas para as próprias instituições jurídicas. A atuação do MDA contribuiu para que muitos desses movimentos sociais abandonassem o ranço das imagens negativas e estereotipadas das instituições jurídicas, vistas F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e He r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 34 como um lugar onde se praticava um eterno jogo de cartas marcadas. Todavia, muitas outras oportunidades de conquistas e avanços foram desperdiçadas pelo MDA, especialmente em dois níveis: um de ordem conceitual e outro de uma conseqüente ordem prática. A letargia atual, malgrado algum voluntarismo de muitos, deve ser atribuída à inércia e à desarticulação nesses dois níveis, principalmente no teórico. A crise do MDA tem muitas causas. Avaliá-las todas seria aqui impróprio. Mesmo assim, é proveitoso salientarmos algumas: certa despotencialização histórica em face da desvalorização da normatividade estatal engendrada pelo contexto neoliberal; a cegueira da ação corporativa reiterada por muitos profissionais do direito; o mútuo distanciamento entre a produção acadêmica e o mundo das práticas jurídicas extra-universitárias; o desgaste da energia utópica da militância tradicional; a desarticulação orgânica com os segmentos progressistas dos movimentos populares, tradicionais e novos; e, principalmente, a ausência de discussão sistemática sobre questões teóricas. É inadmissível para um movimento que congrega intelectuais descurar a reflexão sobre as formas de produção do direito e o alcance das lutas empreendidas na sua esfera prática. A ausência dessas reflexões conduziu a um praticismo bem intencionado, muitas vezes altamente heterogêneo em linhas de ação e razões de fundamentação. Nesse quadro, a própria identidade do MDA restou parcialmente comprometida. Sob o mesmo signo reuniram-se intervenções cuja unidade poderia tornar-se duvidosa. A recuperação da influência do MDA no direito positivo, como vetor do processo de configuração institucional, deve ser agora assentada no compartilhamento de algumas concepções teóricas e históricas sobre o significado e a urgência da realização da F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 35 modernidade jurídica e social no Brasil. Nossa situação, aliás, não é das mais animadoras nesse terreno de implantação e/ou manutenção da modernidade: a evasão de divisas pelo pagamento de uma dívida e(x)terna ilegal; a falência das economias nacionais, no plano produtivo e nas oportunidades de circulação; a combinação entre a sedução publicitária das camadas médias pelo consumo noveau rich e sua paradoxal ameaça de ingresso, pelo desemprego, na cadeia de exclusão social; a insensatez da regulação das economias por variáveis incontroláveis (o capital estrangeiro); a des-moralização material e simbólica do Estado, a situação vegetativa da democracia induzida ao coma pela deserção social dos integrados e pela impossibilidade de participação dos excluídos; a violência social, pública e familiar, com seus efeitos perversos na solidariedade e na capacidade geral de socialização dos indivíduos; a recidiva de doenças endêmicas e epidêmicas sobre os alijados do sistema de saúde; a crescente concentração de renda, riquezas, terras, cultura, direitos, capacidades e oportunidades; a atuação de uma criminalidade muito mais organizada que as agências de combate aos delitos; a cegueira dos políticos e juristas ao insistirem na regulação social ultrapunitiva; a desatenção às políticas públicas de financiamento da autonomia ética e cultural dos indivíduos; a fome e a subnutrição, nas suas versões crônica e aguda; a devastação ambiental; a displicência com o acesso à educação de qualidade, especialmente das crianças; a desatenção às desigualdades regionais provocadas pelas políticas de concentração de recursos de um federalismo fictício; o neocoronelismo dos políticos parasitas; e uma crise geral na auto-estima do povo brasileiro. Entretanto, nem tudo são espinhos: o Brasil, à diferença de outros países periféricos, não é dividido por F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 36 conflitos religiosos. No Brasil, embora certamente haja racismo, este não atinge níveis de ódio social. Somos unidos por uma mesma língua em toda nossa extensão territorial. Nosso patrimônio natural e estético é um dos mais abundantes do planeta. Desfrutamos de uma cultura pacifista e não sofremos com nenhum movimento separatista digno de consideração. Ademais, o episódio do impeachment de Collor consolidou perante o mundo nossa capacidade de preservação da arquitetura institucional por sobre as mazelas da conjuntura política. Sem aderir a um pessimismo fatalista, a unidade do MDA é também caracterizada pela comunhão não-dogmática de uma consciência acerca do papel ativo do direito no solucionamento desses percalços de nossa modernidade. Diante disso, a auto-análise crítica da trajetória e dos acúmulos do MDA torna-se um imperativo que antecede a potencialização de sua intervenção. Sem uma análise crítica radical, sua pulverização tenderá a se ampliar, restringindo e até cancelando seu alcance para a próxima década. Não postulamos, contudo, o lançamento das bases de um movimento completamente novo. Pretendemos mudar a direção do caminho a percorrer sem descuidar do quanto já foi até aqui palmilhado. Cumpre, assim, revisitarmos algumas experiências já acumuladas pelo MDA para, a partir delas, apresentarmos a edificação de algo mais vigoroso. Propomos, então, a refundação do Movimento de Direito Alternativo. E estamos com o presente ensaio oferecendo algumas idéias para avivar esse debate. Desse modo, as teses a seguir expostas essencialmente constituem um conjunto de reflexões para os próximos congressos do MDA. F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 37 O espírito de refundação ora proposto conduz para além de uma mera retrospectiva dos acertos e desacertos praticados ao longo dessa década que se completou. A mera ruminação do passado não desvela as possibilidades do futuro. Esse próximo congresso não deve, pois, estar com os olhos voltados para trás, preocupado apenas com as autocríticas que por si só nada removem do passado nem promovem no futuro, já que os erros poderão ser sempre outros. Esse congresso deve, isto sim, apontar para uma nova articulação, em termos mais aglutinadores e consistentes, de um dos movimentos de juristas críticos e democráticos de maior importância e repercussão no panorama nacional e latino-americano. Para refundar o MDA, urge fundamentá-lo melhor, sob o risco de, se não o fizermos, afundarmos no oceano das boas intenções ideológicas ou no mar do voluntarismo inorgânico das práticas de membros atomizados. O presente ensaio não pretende, contudo, suprir essa fundamentação cuja carência ora se aponta. Não poderíamos pretender nesse curto espaço exauri-la. Trata-se, antes de qualquer coisa, de suscitar o debate sobre essa fundamentação. Para tanto, estamos apresentando algumas reflexões para o compartilhamento com todos os interessados na construção de um direito comprometido com a transparência do processo decisório, com a integração dos excluídos e com a justiça social. Esse debate deve ainda ser balizado pelo rechaço ao dogmatismo, pela pluralidade e transdisciplinaridade de pontos de vista teóricos e políticos, e, sobretudo, pela unidade estratégica na implementação de algumas tarefas que estão ao alcance de nossa ação impulsionar, especialmente como juristas-cidadãos, mas também como cidadãos-juristas, no contexto do Estado de Direito Democrático. Falamos da garantia concreta e do acesso Fu n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 38 efetivo à dignidade materialmente realizável para milhões de pessoas. A capacidade do MDA de intervir de maneira efetivamente democrática na redefinição histórica da instância jurídica, e da própria sociedade, depende, assim, do revigoramento de suas bases teóricas. Trata-se especialmente de nosso empenho como juristas-cidadãos. Contudo, esse empenho não olvida aquela outra luta, mais exterior à esfera jurídica, precisamente a da disputa política ampla, que atinge a todos e a nós enquanto cidadãos- juristas. Da luta do cidadão-jurista pela realização da modernidade jurídica e social, porém, não nos compete aqui tratar pormenorizadamente. Até porque essa luta envolve o arranjo de um novo bloco histórico no horizonte dos posicionamentos político-partidários, com os quais não podemos imediatamente nos comprometer. O jurista-cidadão e o cidadão-jurista podem ser um mesmo homem histórico, mas ao MDA não compete exigir a confluência total dos posicionamentos de ambos. Ademais, à assunção radical da pluralidade como diretriz organizativa repugna qualquer monolitismo ideológico ou restrição de agremiação partidária. O MDA, agora situado desde uma perspectiva interna ao direito, privilegia a luta do jurista-cidadão no meio jurídico. Nesse meio, a guerra de posições interna ao direito é parte de uma concepção de embate processual pela afirmação concreta da igualdade material e das instituições modernas vitais para a democracia e para a sobrevivência da própria sociedade. Almejamos então provocar uma discussão dirigida a toda comunidade jurídica e compartir reflexões com intelectuais dispostos a apresentar teses referentes às duas grandes áreas temáticas cujas carências notamos F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 39 como mais evidentes: (1) a teoria de fundamentação do substrato ético do direito; e (2) a fundamentação de uma nova modalidade cognitiva para o conhecimento e prática jurídicos, priorizando o aspecto hermenêutico, cuja expansão vem, pouco a pouco, logrando espaços acadêmicos e institucionais entre os juristas de todo o mundo. Essas duas áreas temáticas, a ética e a hermenêutica, vêm perpassadas por dois eixos políticos mais amplos, perceptíveis na esfera de ação do cidadão- jurista. O primeiro desses eixos exige um compromisso com a ética dos direitos humanos, enquanto o segundo conclama por alternativas para uma outra hegemonia no processo histórico de construção do desenvolvimento social do Brasil. Cumpre então procedermos à análise de cada uma dessas áreas temáticas, cotejando-as com a prática empreendida pelo MDA e com as possíveis linhas de compreensão para o saneamento dessas carências teóricas que tanto repercutem na prática do direito. A partir dessas áreas temáticas (ética e hermenêutica), sugerimos também uma seqüência de discussões mais específicas, em congressos regionalizados a serem organizados a partir de 2002. 1.2. Compreensão e ultrapassagem do positivismo O dado que assinala o ingresso na modernidade jurídica contemporânea é o progressivo abandono do paradigma jusnaturalista, especialmente nas suas versões teológicas e racionalistas. A determinação do que é o direito deixa de pertencer à transcendência, muito F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 40 bem representada no mundo terreno por seus epígonos, para estar à disposição da própria criação humana. O mala en se é gradualmente substituído pelo mala prohibita. O crime paulatinamente conquista sua distância do pecado e aproxima-se de visões cientificistas. Mundaniza-se o direito. Com esse movimento de mundanização muitos problemas são superados, enquanto outros tantos são também criados. O processo de superação dos jusnaturalismos expõe a produção do direito a diversas outras vicissitudes da vida social: as incertezas da política, os interesses econômicos, a diversidade de moralidades e religiões circulantes, as influências das ciências naturais. A certeza sobre o critério pelo qual se definia a própria juridicidade das normas a aplicar é reclamada para a estabilização das expectativas sociais. A busca da chamada segurança jurídica torna-se um imperativo e uma ideologia. E o positivismo jurídico foi a doutrina que melhor expressou uma tentativa de atendimento a essa ânsia na aurora do Liberalismo. Entretanto, para o pensamento jurídico do século XX, o positivismo é marcado por ambigüidades das quais frutificaram muitas confusões. Ocorre assim que o positivismo hoje considerado significa, simultaneamente, algo louvável e insuficiente, bom e ruim. Louvável no positivismo é o golpe de morte desferido na fundamentação jusnaturalista do direito. Insuficiente, porém, tornou-se a sua fundamentação do direito enquanto pura validade para o acautelamento do convívio regulado por normas nas sociedades contemporâneas. Assim, o positivismo merece o apreço devido a doutrina que conseguiu virar uma importante página na história do direito. E é importante reafirmar esse apreço porque, no livro aberto da história, todas as páginas podem ser desviradas, e também reescritas, rasgadas, embaralhadas e F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 41 até apagadas. Todavia, esse apreço não significa nenhuma cegueira para a crítica que se faz hoje necessária. Em uma consideração histórica, a crítica necessária significa um tipo de exame que se vale das conquistas do positivismo para avançar no presente para além dele. Entretanto, inúmeras críticas dirigidas ao positivismo, inclusive de matriz alternativa, não tiveram esse condão de incorporar suas conquistas. Muitas dessas críticas, especialmente as mais carentes de perspectiva histórica, preferiram adotar a clivagem ideológica da sua satanização. E essa satanização do positivismo prejudica a crítica que pretende superá-lo agregando seus acúmulos ao longo da modernidade. Todavia, o positivismo não foi uma resposta imediata aos clamores da modernidade jurídica, sequer foi a primeira tentativa. Dos jusnaturalismos teológicos ao positivismo jurídico, muitas construções de índole racionalista se intercalaram na renitente busca de soluções para o dilema da segurança jurídica através da postulação de conceitos de justiça. Nesse curso, Deus foi sendo substituído por várias elaborações da Razão, das quais eram extraídas tantas outras formas de justiça. Isso se passou assim até que uma doutrina resolvesse buscar uma solução para o critério de juridicidade fora desse âmbito da justiça. As exigências por certeza quanto a um critério de definição da juridicidade que pudesse mesmo incrementar a segurança jurídica receberam uma resposta diferente por parte da teoria da validade proposta pelo positivismo. Essa teoria da validade oferecia então uma maneira de se identificar o que é o direito a aplicar sem recorrer a critérios de justiça marcados por um infinito cardápio metafísico. Contudo, como veremos adiante, muitas outras dificuldades surgiram com essa resposta. F u n d a m e n t a ç ã o É t i c a e H e r m e n ê u t i c a a l t e r n a t i v a s p a r a o d i r e i t o 42 Diversos juristas críticos, imbuídos de uma visão hiperideológica da justiça, não compreenderam profundamente o significado da questão da validade no contexto da modernidade
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