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FOUCAULT E O ABOLICIONISMO PENAL LEONARDO SCHWAB PIRES

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1 
 
 
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE 
 
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM 
SOCIOLOGIA E DIREITO 
 
LEONARDO SCHWAB PIRES 
FOUCAULT E O ABOLICIONISMO PENAL 
NITERÓI 
 
2011 
 
2 
 
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE 
 Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito 
LEONARDO SCHWAB PIRES 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
FOUCAULT E O ABOLICIONISMO PENAL 
 
 
 
 
 
 
 
Dissertação apresentada ao programa de 
Pós-Graduação em Sociologia e Direito da 
Universidade Federal Fluminense, como 
requisito parcial para a obtenção do título de 
Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais. 
 
Orientador: Professor Doutor José Fernando 
de Castro Farias 
 
 
NITERÓI 
2011 
 
3 
RESUMO 
 
Este trabalho realiza uma composição entre elementos do pensamento 
de Michel Foucault e conceitos situados no campo discursivo do Abolicionismo 
Penal. O estudo se processou em dois grandes momentos: no primeiro 
momento se concentra em aspectos da chamada segunda fase do filósofo 
francês. Nesta fase Foucault se debruça sobre o funcionamento das relações 
de poder na modernidade e sobre o modo como a prisão emerge e se 
estratifica nesta mecânica. Para melhor compreensão dos aspectos desta fase 
que foram destacados, buscamos desdobrá-los junto a categorias utilizadas por 
outros pensadores que, ou influenciaram Foucault – como Nietzsche, Deleuze 
e Guattari – ou foram influenciados por ele – como Michel Hardt, Agamben, 
Negri e Pierre Clastres. No segundo momento, o trabalho recorta conceitos 
presentes nas discussões abolicionistas e os associa a algumas categorias 
foucaultianas, a maior parte delas abordadas na primeira parte do trabalho. 
Trata-se de uma pesquisa teórica que não estabelece dicotomias valorativas 
entre teoria e “prática”, pois compartilha do entendimento de que tanto uma 
quanto a outra atuam “microfisicamente” nas experiências acadêmicas, 
cotidianas e subjetivas, desde que encontrem condições de possibilidade para 
tanto. O sentido do agenciamento Foucault/Abolicionismo é, justamente, 
contribuir na potencialização de ambos os campos nos aspectos aqui 
acentuados. Encontramos entre eles um “solo comum” que permitiu a 
aproximação, ainda que se trate de campos discursivos que surgem de lugares 
diferentes, mas, que, no entanto, podem produzir efeitos semelhantes. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
4 
 
SUMARY 
 
This works holds a composition of elements in the thought of Michel 
Foucault and concepts located in the discursive field of the penal abolition. The 
study was done in two great moments: the first time focuses on aspects of the 
so-called second phases of the French philosopher. At this stage Foucault 
focuses on the operation of power relations in modernity on the way to prison 
emerges and is stratified in this mechanism. For a better understanding of the 
issues that were highlighted in this phase, we seek to deploy them along the 
categories used by other thinkers who influenced of Foucault – as Nietzsche, 
Deleuze and Guattari – or were influenced by him – as Michael Hardt, Negri 
and Pierre Clastres. In the second stage, the jobs cuts concept in the 
discussions associated with abolitionists and some Foucauldian categories, 
most of them addressed in the first part of the job. It is not a theoretical research 
establishes of evaluative dichotomies between theory and practice. It’s shares 
the understanding that both the one and the oder act microphysics in the 
academic experiences, and the subjective daily, provided they find conditions 
off possibility for both. The sense of agency Abolitionism/Foucault is precisely to 
contribute to the enhancement of both aspects in the fields marked here. We 
find among them a “common ground” approach that allowed, even, if it is in the 
discursive fields that come from different places, but wich, how ever can 
produce similar effects. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
5 
 
 
 
SCHWA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
PIRES; Leonardo Schwab 
Foucault e o Abolicionismo Penal/ Leonardo Schwab Pires. Niterói: 
UFF/ Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito. 2011. 
161 p. 
Orientador: José Fernando de Castro Farias. Dissertação 
(Mestrado em Ciências Jurídicas e Sociais/ Universidade Federal 
Fluminense; 2009). 
BIBLIOGRAFIA Pág. 164-168 
1- Prisão. 2- Diagrama. 3- Relações de Poder. 
Dissertação de Mestrado – Foucault e o Abolicionismo 
Penal. 
 
 
6 
 
 
 
 
 
Dedicatórias 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
À Clara e a “clareira” dos nossos “encontros” que me 
ajudam a tentar construir a vida “como obra de arte”. 
Aos meus pais Wanilton e Celinha por serem o que são 
e pela sua crença de que nunca é tarde pra recomeçar. 
À memória de Claudio Ulpiano e ao pensamento que 
se manifestou através dele e “tocou” a inúmeros 
lugares, entre os quais este está trabalho. 
 
 
 
 
 
 
 
 
7 
AGRADECIMENTOS 
 
Assim como um “galo sozinho não tece uma manhã”, uma voz sempre 
se desdobra em outras vozes que compõem essa voz que se expressa. Por 
isso, reconheço que a “solidão” da escrita pressupõe a alegria e a presença de 
muitos outros encontros que povoam nossas inspirações e pesquisas. Esses 
“encontros” fazem parte deste trabalho. 
A junção Bahia de Guanabara/ biblioteca da UFF, por exemplo, é um 
componente de paisagem importante nessa busca pela inspiração. 
Agradeço a José Fernando de Castro Farias pelas direções e 
encaminhamentos que foram fundamentais na mudança de rumos desta 
dissertação. 
À Letícia Veloso pela sua crença neste trabalho. Também por suas aulas 
que me ajudaram a inserir elementos da sociologia que tanto enriqueceram 
esta reflexão. Agradeço a Letícia, ainda, por acentuar e ratificar a minha 
preocupação com a punição e com alguns dos elementos que estão a ela 
conectados. 
A Mario Bruno pelas suas aulas e colóquios que redirecionaram minhas 
referências teóricas e também, por me aproximar das aulas de Claudio Ulpiano 
que tanto contribuíram para expandir significativamente o meu entendimento 
sobre Foucault e seus aliados. 
 Foram muitos cafés e “alguns” chopps no Gragoatá e na Cantareira ao 
lado de colegas pesquisadores, advogado(a)s, sociólogo(a)s.... Colegas que 
parecem querer “um outro direito”. Na verdade, confesso não saber se isso é 
possível, por considerar que seja tamanha a ligação entre as formas jurídicas e 
os estratos de poder difusos pelo campo social. Mas, vindo eu do direito, teimo 
em usá-lo como modo de “reinvenção da vida” e de “resistência” à servidão. 
Seguimos tentando... 
Entre esses colegas do “outro direito” agradeço em especial a Elis, 
Flavio Sueth e Carlos Frederico pela alegria das festas, cafés, chopps e 
discussões sobre punição, direitos e liberdade. 
Ao Programa de Pós Graduação em Estudos da Subjetividade da UFF – 
em especial à Lilia Lobo e Roberto Novaes. Agradeço, também, às 
doutorandas - deste programa - Letícia e Giovana pelas trocas em aula e pela 
internet. 
Aos meus tios Ricardo e Betinho pelas portas abertas e pela paciência. 
À Clara... a importância da sua presença é indescritível. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
8 
 
SUMÁRIO 
 
 
Introdução....................................................................................... pág.09 
 
PARTE 1 – FOUCAULT E O NASCIMENTO DA PRISÃOCOMO “PEÇA” 
DO DIAGRAMA DISCIPLINAR 
Capítulo1 – A mecânica das relações de poder no diagrama disciplinar e 
as forças ativas e reativas nietzscheanas..................................................pág.18 
Capítulo 2 Desdobramentos do diagrama: O adestramento e o 
panoptismo como processos de normalização e de produção de saber sobre 
“os anormais”..............................................................................................pág.34 
Capítulo 3 – A reforma Penal na França do século XVIII e o surgimento 
dos enunciados modernos do direito penal................................................pág.45 
 Capítulo 4 – Alguns modelos “menores” de punição e de disciplina na 
sociedade de soberania..............................................................................pág.56 
Capítulo 5 - A produção da forma “delinqüente”: “formalizar” para 
capturar.......................................................................................................pág.66 
Capítulo 6 – Uma pequena abertura para o Biopoder e para a “sociedade 
de controle”.................................................................................................pág.83 
 
PARTE 2 – CONJUGAÇÕES ENTRE ELEMENTOS DA ANÁLISE DE 
FOUCAULT E ALGUNS CONCEITOS PRESENTES NO HORIZONTE 
DISCURSIVO DO ABOLICIONISMO PENAL 
Capítulo 7 – O “culpado-necessário” como dispositivo do sistema penal 
“reativo”.......................................................................................................pág.99 
Capítulo 8 - “Os bons e os maus” e o “estigma-estereótipo” em Hulsman 
e a construção da forma “delinqüente” em Foucault. Uma análise para “além do 
bem e do mal”...........................................................................................pág.116 
Capítulo 9 - Agenciamentos entre “O inimigo no Direito Penal” de 
Zaffaroni, o “biopoder” em Foucault e o “poder soberano” no trabalho de 
Giorgio Agamben......................................................................................pág.122 
Capítulo 10 – A “sociabilidade autoritária” e a função da “autoridade” 
externa ou internalizada............................................................................pág.134 
Capítulo 11 – Problema Final: a “resposta-percurso” e os “encontros cara 
a cara” abordados por Hulsman e Edson Passetti: uma “linha de fuga” possível 
do “ressentimento” impregnado na dinâmica 
punitiva?....................................................................................................pág.146 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................pág.164 
 
 
 
 
 
 
 
9 
 
INTRODUÇÃO 
 
“Um galo sozinho não tece uma manhã: 
Ele precisará sempre de outros galos. 
De um que apanhe este grito que ele 
e o lance a outro; de um outro galo 
que apanhe o grito que um galo antes 
e o lance a outro; e de outros galos 
que com muitos outros galos se cruzem 
os fios de sol de seus gritos de galo, 
para que a manhã, desde uma teia tênue, 
se vá tecendo, entre todos os galos. (Neto; 2001; pag. 151) 
 
 “Reverberar” (Bueno; 2000; pág. 680) segundo o dicionário da língua 
portuguesa, significa “refletir, brilhar, resplandecer”. A utilização deste termo 
aqui neste trabalho se relaciona com este significado sim, mas, acaba se 
articulando muito melhor ao sentido que os músicos atribuem a esta palavra no 
seu dia a dia de “passagem de som” 1. Na dinâmica dos sentidos, a semântica 
do “reverberar” se transformou um pouco dentro do fluxo das gírias musicais: 
Uma corda de violão, por exemplo, ao ser tocada, faz com que ondas 
sonoras se propaguem pelo ambiente. Dependendo da textura das paredes, do 
piso, e do material que compuser este ambiente, as ondas sonoras poderão ser 
absorvidas pela textura deste material ou poderão bater e voltar duplicando o 
som, mas de uma maneira que este duplo não será idêntico àquelas ondas 
sonoras que saíram inicialmente do violão. O contato com outras formas 
transforma a sonoridade das ondas. 
 Delinear aproximações entre o pensamento de Foucault e algumas 
categorias usadas no discurso abolicionista. É disto que trata este trabalho. 
Não para criticá-las ou tentar demonstrar o quanto elas são fidedignas ao 
pensador das relações de poder e das práticas de liberdade. Mas sim para 
 
1
 “Passagem de som” é a expressão que os músicos usam para designar o 
momento anterior a apresentação em que eles testam o som no espaço e procuram adequá-lo 
e equilibrá-lo de acordo com os instrumentos que serão usados no show. 
 
10
promover agenciamentos e dar nossa pequena contribuição na potencialização 
dos conceitos trabalhados. 
Pensar o poder disciplinar e/ou de “controle” (Deleuze; 1993) como um 
exercício que se propagou pelas instituições modernas e pela “polis” é refletir 
sobre o campo social e sobre a genealogia de suas hierarquias e dessimetrias. 
Um dos aspectos da pesquisa de Foucault (1993) sobre a emergência 
do diagrama disciplinar se revela na sua afirmação de que a sociedade 
moderna insere um discurso de igualdade em meio a uma rede que funciona 
produzindo hierarquias e relações de dominação. 
“Compreende-se que o poder da norma funcione facilmente 
dentro de um sistema de igualdade formal, pois dentro de uma 
homogeneidade que é a regra, ele introduz como um imperativo útil e 
resultado de uma medida, toda gradação das diferenças individuais” 
(Foucault; 1993; pág. 164) 
 
Estas relações de poder operam confirmando e reproduzindo esta lógica 
embora, os discursos predominantes no capitalismo se afirmem capazes 
promover a justiça social e a garantia dos direitos humanos. 
Esta pesquisa consistiu, num primeiro momento, na explicitação do 
trabalho do Foucault sobre a produção de “corpos dóceis” e “úteis” (Foucault; 
1993), sobre o biopoder, sobre a constituição de discursos e de representações 
em torno da “delinqüência” e sobre o modo como a prisão emerge e se conjuga 
com o sistema penal moderno neste contexto. Num segundo momento, 
associamos algumas das análises foucaultianas a determinados conceitos 
presentes no plano do abolicionismo penal. 
Ao associar a pesquisa de Foucault sobre a prisão e sobre a produção 
dos corpos dóceis a alguns conceitos do abolicionismo penal, buscamos expor 
o problema da positividade do poder que acompanha o funcionamento da 
dinâmica punitiva, e então, abrir a possibilidade de se afirmarem determinadas 
práticas de liberdade, contribuindo na formação de “linhas de fuga” (Deleuze & 
Guattari; 1995). 
Múltiplos acontecimentos se deram para que a moral da constituição de 
corpos dóceis, úteis e “sãos” invadisse as várias e diferentes instituições 
sociais como a família, a escola, o estado e as relações de trabalho e a própria 
 
11
subjetividade. Esta rede disciplinar - e a de controle não é diferente - não está 
desarticulada daquilo que, em termos discursivos está fora dela: a produção de 
um saber sobre a delinqüência. 
O sistema penal tem efeitos produtivos em termos dos “sistemas 
capitalísticos” (Guatarri; 1999). Esta é uma das grandes descobertas de 
Foucault (1993): a de que, antes de reprimir, o poder produz a “delinqüência”. E 
o faz na medida em que esta positividade atende ao diagrama das relações de 
poder que vem predominando e sofrendo mutações “reativas” (Deleuze; 1976) 
desde o advento da modernidade. 
Este trabalho associou e desdobrou algumas destas análises 
foucaultianas a alguns conceitos do abolicionismo penal. Em alguns momentos 
esta articulação já foi realizada pelos autores com os quais trabalhamos e, 
neste caso, nós desdobramos os elementos desenvolvidos por Foucault 
conjugando-os a outros pensadores que também sofreram influências de 
Foucault - como Agamben (2007) e Pierre Clastres - ou o influenciaram - comoo Nietzsche e o Deleuze. Em outros momentos a proposta do trabalho será a 
de inserir análises feitas por Foucault dentro de determinadas categorias 
utilizadas pelo discurso abolicionista. 
Segundo Foucault (1993), o sistema penal moderno emerge 
acompanhado do surgimento (invenção) de uma série de novas práticas e 
saberes que estariam conectadas a produção de indivíduos úteis e dóceis no 
campo econômico, mas sem potência para a polis. O homem moderno/ “pós -
moderno” é construído em termos de alta produtividade econômica, mas – 
como nos relata Cláudio Ulpiano (2007) – desprovido de potência criadora no 
campo político. 
“Vou fazer uma narrativa do Michel Foucault. O Foucault diz que era um 
homem triste, muito triste, porque ele vivia em um campo social em que 
as forças de dominação se dão diretamente no corpo da criança. Isso o 
entristecia. A prática de estimular aquela criança para produzir o homem 
que interessa para a família. Isso produzia nele uma imensa tristeza. 
Uma imensa tristeza. E essa prática geraria homens sem nenhuma 
potência política. Nós teríamos as nossas potências econômicas 
altamente estimuladas, mas as potências políticas estariam inteiramente 
 
12
fechadas. Potências políticas – se as potências políticas passassem, o 
capitalismo já teria desaparecido, porque nós não surpotaríamos esse 
modo selvagem de vida; não surpotaríamos o que nós somos. Então, o 
capitalismo estimula o tempo inteiro as nossas potências econômicas – 
mas não deixa passar as potências políticas. Não deixa passar. Não há 
nenhuma instituição no nosso campo social que seja estimuladora das 
potências políticas. A estimulação das potências políticas nos levaria, 
necessariamente, a fazer transformações sociais; pois quando se 
estimula uma potência, ela se torna criativa. Nós somos criadores 
constantes no campo econômico. Sempre criadores no campo 
econômico. Sempre! Nós não paramos de inventar meios de produzir 
mais “grana”. Sempre! Por quê? Porque aquilo é estimulado. Se você 
estimular as potências políticas de um homem, o que vai acontecer? O 
campo social vai se romper. Então não seria possível que o capitalismo 
fosse fazer isso. Porque senão ele teria se destruído”. (Ulpiano; 2010) 
 
“...ver como, ao nível efeito da família, da vizinhança, das células ou 
níveis mais elementares da sociedade, esses fenômenos de repressão 
ou exclusão se dotaram de instrumentos próprios, de uma lógica própria, 
respondendo à determinadas necessidades; mostrar quais foram seus 
agentes, sem procurá-los na burguesia em geral e sim nos agentes reais 
(que pode ser a família,a vizinhança, os pais, os médicos, etc.) e como 
estes mecanismos de poder, em um dado momento, em uma conjuntura 
precisa e por meio de determinadas transformações começaram a se 
tornar economicamente vantajosos e politicamente úteis”. (Foucault; 
2004; pág. 185) 
O surgimento destas novas práticas e configurações para Foucault 
(2005) é resultado de uma rede não “visível”, mas, difusa em toda sociedade 
marcada por novas formas de relação de poder que vinham se articulando a 
partir dos séculos XVII e XVIII: 
”Em Vigiar e Punir o que eu quis mostrar foi como, a partir dos séculos 
XVII e XVIII, houve verdadeiramente um desbloqueio tecnológico da 
produtividade do poder. As monarquias da Época Clássica não só 
desenvolveram grandes aparelhos de Estado - exército, polícia, 
administração local – mas instauraram o que se poderia chamar uma 
nova economia do poder, isto é, procedimentos que permitem fazer 
circular todos os efeitos de poder de uma forma ao mesmo tempo 
 
13
contínua, ininterrupta, adaptada e “individualizada” em todo corpo social”. 
(2004; pág.8) 
 
Num primeiro momento do trabalho, foi desdobrada a análise de 
Foucault (1993) no sentido de que a prisão aparece neste contexto, não, 
prioritariamente, como um mecanismo repressivo, conforme o próprio Estado 
justificará e justifica até hoje sua existência, mas como um dispositivo produtor, 
marcado pela “positividade”. Positividade aqui entendida como sinônimo de 
produção: produção de corpos dóceis, úteis (poder disciplinar/controle), 
“limpos” e “saudáveis” (biopoder) para o trabalho por um lado e produção da 
“delinqüência” (Foucault; 1993) por outro. Estas diferentes construções de 
“indivíduos” (Foucault; 1993) estão conectadas segundo Foucault. Estão 
articuladas. 
A professora Cristina Rauter (2003) em seu livro “Criminologia e 
subjetividade no Brasil”, desenvolve suas reflexões sobre o sistema prisional do 
Estado do Rio de Janeiro – onde atuou e militou por muitos anos - a partir das 
mesmas hipóteses de Foucault. 
“A prisão inaugurou, com uma nova modalidade de punição dita mais 
humana, um saber sobre a delinqüência. Na verdade diríamos que a 
prisão produz a delinqüência, não no sentido de que se devesse 
reformá-la ou de que seu funcionamento tivesse que ser aperfeiçoado. 
Ao contrário, dizer que a prisão produz o delinqüente é dizer que ela 
cumpre plenamente o seu papel enquanto dispositivo de controle 
social”. (2003; pág.118) 
 
Algumas questões importantes presentes nesta análise genealógica 
caberiam dentro das seguintes perguntas: a que tipo de dinâmica social 
interessa a pena privativa de liberdade? Que forças se articularam para que tal 
dispositivo fosse necessário a esta dinâmica? Que diagrama se formou e vem 
se reproduzindo, mas também, vem sofrendo “mutações reativas” no sentido 
de formar saberes e práticas nas quais a prisão é uma técnica de poder quase 
que inquestionável do ponto de vista da sua manutenção? 
Na primeira parte do trabalho buscamos explicitar algumas respostas 
que Foucault nos traz a estas interrogações. São respostas que fazem parte de 
uma fase de pesquisas de Foucault que Deleuze (1986) denominou como a 
fase do aparecimento de “um novo cartógrafo”. Neste momento a pesquisa se 
 
14
concentrou na exposição de como - a partir do “Vigiar e Punir” (Foucault; 1993), 
do “Em defesa da Sociedade” (2008), da “História da Sexualidade I – a vontade 
de saber” (2003), da obra “Os Anormais” (2002) e da “Verdade e as formas 
jurídicas” (2005) - o encontro de determinadas relações de forças possibilitaram 
que a prisão se compusesse com o direito penal moderno, tornando-a 
mecanismo punitivo predominante do chamado Estado Democrático de Direito. 
Traremos a análise que o Deleuze (1988) faz sobre o modo de funcionamento 
do diagrama social e da sua abordagem sobre a articulação entre o visível 
(prisão) e o dizível (linguagem do Direito Penal) por entendermos que elas 
desvelam possibilidades muito interessantes das análises foucaultianas. Para 
terminar a primeira parte, articulei o “Vigiar e Punir” à abordagem que Foucault 
faz do papel do Estado e do biopoder neste processo de criminalização 
apontando esta abordagem para uma importante mutação no diagrama: da 
sociedade disciplina à sociedade de controle. 
Na segunda parte, foram feitas composições entre elementos utilizados 
nas reflexões do abolicionismo com as obras de Foucault e alguns de seus 
afins que abordamos na primeira parte do trabalho. Para promover tal 
associação utilizo alguns autores que construíram conceitos que estão situados 
dentro do discurso abolicionista: Louk Hulsman, Edson Passetti e Eugênio Raul 
Zaffaronni. 
Faz-se importante expor que este último autor não se autodenomina 
como “abolicionista”, no entanto, nos traz inúmeros conceitos que ao 
problematizarem o modo de operação discursivo e não discursivo do sistema 
penal se configuram como de grande interesse para as reflexões do 
abolicionismo. 
Ao associarmos Foucault ao abolicionismo penal o trabalho caminhou 
num processo problematizador, em outras palavras, buscou desconfigurar o 
modo de operação do sistema penal nos enviando para linhas de fuga nas 
quais podem aparecer algumas saídas das estratificações “constituídas”(Negri; 
2002). A nossa hipótese é a de que não é possível criar se não desfizermos as 
amarras e verdades que caracterizam a dinâmica do controle punitivo. É 
preciso uma certa “desorganização” para que o novo apareça. 
 
15
Flutuando neste percurso explicitamos ou introduzimos os conceitos 
foucaultianos e seus desdobramentos analisados na primeira parte do trabalho 
a determinadas categorias utilizadas pelo abolicionismo penal. Apenas no 
último capítulo que é realizada uma pequena inflexão com uma entrada na 
chamada terceira fase do Foucault que não foi desdobrada diretamente na 
primeira parte desta pesquisa. Nesta fase Foucault se debruça de modo mais 
incisivo sobre os “processos de subjetivação” e sobre a abertura para as 
“práticas de liberdade” em meio a estes processos. Entendemos que não foi 
necessário ser mais detalhado sobre esta fase do Foucault na primeira parte, 
pois, trata-se apenas de uma pequena entrada cujos conceitos foucaultianos 
estão explicados ou no próprio capítulo final ou ao longo de toda esta escrita. 
As categorias do abolicionismo trabalhadas foram “os bons e os maus”, 
“o culpado necessário” e o “estigma/estereótipo” em Louk Hulsman (1993), os 
conceitos de “sociabilidade autoritária”, “resposta-percurso” e os “encontros 
cara a cara” utilizados por Edson Passetti (2003) e Hulsman; e em Raul 
Zaffaronni (2007) a categoria de “Inimigo” em alguns momentos históricos do 
Direito Penal. 
Após alguns anos de leitura e pesquisas sobre a obra de Foucault – 
através de grupos de estudo, de colóquios, de aulas particulares com filósofos 
especialistas no autor, e de estudos individuais – a hipótese que levanto é a de 
que este pensador, embora seja muito citado nas pesquisas situadas dentro do 
campo epistemológico da história, das ciências sociais e do direito, acaba 
sendo estudado, dentro destes horizontes discursivos de uma forma um tanto 
quanto precipitada. Na maior parte das vezes se quer encontrar um Foucault 
sem Nietzsche, ou seja, um Foucault pensando a história como um 
estruturalista, desconsiderando jogos de forças que atravessam essa mesma 
história para além das formas e dos estratos constituídos. 
Acompanhando alguns autores que caminham na contramão deste 
predomínio, tentamos colaborar na inserção de abordagens que considerem 
esta dimensão, digamos, inventiva da vida, no pensamento de Foucault. 
 
16
Além de colaborar nesta reflexão buscamos associá-la a alguns 
conceitos de um campo quase que abandonado pelas pesquisas sócio- 
jurídicas: o abolicionismo penal. 
Partimos da hipótese de que é preciso problematizar o discurso punitivo, 
como um “devir-menor” (Guattari; 1999), descaracterizá-lo em suas verdades, 
“desterritorializá-lo” (Deleuze & Guattari; 1995; pág.111) para que seja possível 
lidar de um modo diferente com os problemas que lhe dizem respeito, tais 
como a violência e outras práticas que o sistema penal afirma querer corrigir e 
/ou reprimir. 
Neste sentido, a hipótese aqui levantada é a de que tanto a obra de 
Foucault quanto os conceitos do abolicionismo que foram trabalhados podem 
promover uma disruptora e desorganizadora composição. 
Trabalharemos com a “Cartografia” (Guattari; 1999; 149) de algumas das 
relações de poder que possibilitaram que a emergência da prisão fosse útil aos 
estratos constituídos e se conjugasse a outros modos de subjetivação de 
determinadas coletividades. Seguindo o Foucault a nossa hipótese é a de que 
estas construções não estão desassociadas da constituição de indivíduos 
dóceis e úteis pelas escolas, fábricas, conventos, universidades e outras 
instituições modernas, também chamadas por Foucault de disciplinares e nem 
desarticuladas de alguns dispositivos predominantes do contemporâneo, como 
o “biopoder”, por exemplo. Para isso recorrerei também ao método 
nietzschiano/foucaultiano da genealogia. 
 No que diz respeito à associação de conceitos de Foucault e do 
abolicionismo penal, o trabalho promoveu aquilo que Deleuze e Guattari (1995) 
classificaram como “agenciamentos”. Tal procedimento significa buscar 
compreender e potencializar os conceitos que estamos trabalhando, tanto os 
de Foucault e de alguns pensadores a ele próximos, quanto os do 
abolicionismo penal, a partir das articulações e aproximações que faremos 
entre eles, e não como algo que possui uma existência em si mesma, à parte 
das relações que estabelece. 
 
 
17
 
 
 
 
 
 
 
 
PARTE 1 
 
FOUCAULT E O NASCIMENTO DA PRISÃO 
COMO PEÇA DO DIAGRAMA DISCIPLINAR 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
18
CAPÍTULO 1 – A MECÂNICA DAS RELAÇÕES DE PODER NO 
DIAGRAMA DISCIPLINAR E AS FORÇAS ATIVAS E REATIVAS 
NIETZSCHEANAS. 
 
 “Como denominar esta nova dimensão informe? Foucault deu-
lhe certa vez o nome mais exato: é um diagrama, isto é “um 
funcionamento que se abstrai de qualquer obstáculo ou atrito... e que se 
deve destacar de qualquer uso específico”. O diagrama não é mais o 
arquivo, auditivo ou visual, é o mapa,a cartografia, co-extensiva a todo 
campo social”. (Deleuze; 1988; pág. 46) 
 
A questão do poder é um tema que se revelou como objeto de reflexões 
de muitos autores ao longo da história2. Da idade clássica com Hobbes, La 
Boétie e Maquiavel até a idade moderna com Locke, Rousseau, Marx, Weber, 
Tockeville e Nietzsche a temática do poder aparece com nuances e 
abordagens diferentes. 
Entre estas perspectivas ou mesmo na associação e disputa entre elas 
há alguns elementos destes diferentes discursos que se sobrepõem em relação 
a outros constituindo modelos predominantes de análises sobre a questão do 
poder. Neste sentido, há algumas representações diferentes sobre a teoria do 
poder que, embora sejam diferentes quanto as suas estratégias, conservam 
entre seus campos alguma intercessão a partir de determinados elementos 
discursivos. 
O que de maneira difusa ou mesmo confusa caracterizava o 
esquerdismo era, em termos de teoria, um novo questionamento do 
problema do poder, voltado tanto contra o marxismo quanto as 
concepções burguesas e em termos de prática, um certo tipo de lutas 
locais, específicas, cujas relações e necessária unidade não poderiam 
mais vir de um processo de totalização, nem de centralização, mas, 
como disse Guattari, de uma transversalidade. (Deleuze; 1988; pág. 34) 
 
Foucault irá trabalhar nesta “transversalidade” (Guattari & Rolnick; 2003) 
guattariana. Segundo Deleuze (1988), Foucault “deve ter sido o primeiro a 
inventar esta nova concepção de poder, que buscávamos, mas não 
 
2
 Em Platão (...) já se pode encontrar preocupações com respeito ao funcionamento da 
“Polis” e da constituição de maneiras de se conceber uma “idéia de justiça” (...) dentro das 
cidades gregas. 
 
19
conseguíamos encontrar nem enunciar” (pág.34).3 E nesta “invenção” Foucault 
(1993) irá sugerir o abandono de alguns postulados e entre outras estratégias, 
tentar se colocar como um “novo intercessor” (Deleuze; 1993; pág. 158) da 
esquerda. Deleuze (1988) em seu livro sobre Foucault desdobra estes 
postulados e aponta alguns caminhos desta nova análise do poder. O título de 
“novo intercessor” da esquerda irá se justificar, naquele momento, pela crítica 
inovadora que Foucault irá propor, principalmente em relação a um certo tipo 
de freudismo/marxismo predominantes nas universidades francesas. 
É importante afirmar que embora Foucault se associe a esta crítica ao 
marxismo/freudismo predominante naquele momento, ele não irá abandonar as 
análises que Marx (2003) realiza no campo econômico. O que ele fará é retirar 
o conceito de “relações de produção” (Marx; 2003) da posição de infra-
estrutura histórica - fora do modelo piramidal em que as relações de produção 
ocupam uma posição de base- e inseri-las num campo de imanência, no qual 
elas estão conectadas a outros tipos de relações, como as relações de poder, 
por exemplo. 
Este processo é mais bem explicitado na própria sugestão de abandono 
de “um certo número de postulados que marcam a posição tradicional da 
esquerda” (Deleuze; 1988; pág.34). Para compreender o abandono destes 
postulados, será preciso pensar na sua crítica de modo relacional. Em outras 
palavras, significa pensar a problematização de um postulado conjugada a 
problematização de outro(s). Por exemplo: o abandono do postulado da 
propriedade sugere a compreensão do “postulado da localização” e o “da 
subordinação” para ser melhor entendido. 
Passemos à explicação dos postulados para que fique mais clara a 
proposta do Deleuze (1988). 
“Postulado da propriedade” (Deleuze; 1988) 
 
3
 Talvez por situar sua abordagem numa perspectiva diferente da do marxismo ortodoxo 
e das concepções de poder que o entendem a partir de um viés exclusivamente jurídico-político 
- concepções estas que ainda predominam nas reflexões sobre o poder no contemporâneo - 
Foucault tenha sido tão criticado e mal compreendido. 
 
 
20
“Ora, o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido 
não seja concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia, 
que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma apropriação, 
mas a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos”. 
(Foucault; 1993; pág. 28) 
 
O poder, segundo este postulado, seria algo que se tem, algo que uma 
classe teria conquistado e usaria esta conquista para manter o seu domínio nas 
relações de produção. 
Na nova concepção de poder não haverá negação da existência das 
classes e das lutas, mas trata de inseri-las num novo quadro, numa 
micropolítica, onde há inúmeros pontos de resistência, de criação, de 
enfrentamento. Os lugares onde o poder se exerce seriam construídos a partir 
de um exercício de poder, mais do que previamente definidos. 
 “E “o” poder no que tem de permanente, de repetitivo, de inerte, 
de auto-reprodutor, é apenas efeito de conjunto, esboçado a partir de 
todas essas mobilidades, encadeamento que se apóia em cada uma 
delas e, em troca, procura fixá-las. Sem dúvida, devemos ser 
nominalistas: o poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é 
uma certa potência de que alguns sejam dotados: é um nome dado a 
uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada”. 
(Foucault; 2010; pág. 89) 
 
Esta diferença do filósofo com o marxismo ortodoxo e com as 
concepções jurídico-políticas do poder foi desdobrada em outros textos nos 
quais o Foucault nos remete ao problema da representatividade política, do 
intelectual, do psicanalista, do padre e das relações de poder que conectam 
estes modelos de exercício da vida na cidade, na polis. No prefácio da edição 
norte-americana, do “Anti-Édipo” (Deleuze & Guattari; 2010) - texto dos mais 
militantes da sua carreira – por exemplo, Foucault (2010) escreve uma curiosa 
frase: “não caiam apaixonados pelo poder” (pág. 106). 
A frase intrigante leva a problematização dos modelos de relação em 
que um fala pelo outro ou alguns falam por muitos. Não cabem aqui muitos 
desdobramentos sobre esta questão, pois enveredaríamos por outros 
caminhos que declinariam das linhas aqui propostas. Mas, tratar um pouco dela 
nos ajuda no entendimento do postulado da propriedade que está sendo 
analisado. 
 
21
Ao perceber o poder como uma propriedade mais do que como um 
exercício, como uma relação, a estratégia se direciona para a conquista desta 
propriedade cujo espaço, o lugar não existe para todos. Alguns vão falar da 
verdade de muitos, como na representação política e jurídica, por exemplo. 
Não que Foucault, Deleuze e Guattari estejam propondo uma ingênua 
revolução para desconstruir estas formas de representação jurídico-políticas. 
Não se trata disso. Trata-se de problematizá-las enquanto verdades. 
Problematizar as hierarquias do campo social e ao problematizá-las chamar a 
atenção para a questão da “falta” 4 relacionada àquele que fala a verdade dos 
outros e da “vontade de submissão” daquele que permite que alguém fale em 
nome dele. 
O poder em Foucault é muito mais um exercício do que uma 
propriedade. Tal exercício se dá em relação: relação entre o representante e o 
representado, entre o padre e o fiel, entre psicanalista e o paciente. Sendo um 
exercício, o poder produz, reproduz e mantém estas identidades ao se exercer. 
Ao reproduzi-las este exercício vai marcando as experiências, constituindo-se 
como estímulos e crenças a respeito da manutenção e da necessidade destas 
hierarquias. Os estímulos e crenças vão reforçando os papeis nas relações de 
poder. 
Esta crítica nos leva a uma concepção na qual há um grande conteúdo 
de adesão voluntária (Weber, 1999, pág.188) no exercício do poder. E também 
nos remete a dificuldade de se mensurar o quanto de desprendimento de 
desejo por poder há naquele que fala em nome de outros e de se medir o 
processo oposto: o quanto de vontade de submissão há naquele que está 
sendo representado. 
 Mas, retornemos da inflexão: Estes desdobramentos do postulado da 
propriedade estão articulados aos postulados da localização e da subordinação 
 
4
 A relação de poder implica num “desejo” de poder. Tal desejo constitui-se na relação 
onde o lugar de dominante e dominando são reproduzidos num processo de estímulo e 
recompensa. Trata-se de um de um mecanismo “reativo” – tal conceito será desenvolvido mais 
a frente – que se caracteriza pela “falta” constante. O poder tende a estender-se em busca de 
um objeto que lhe possibilite isso. A relação de poder sempre estará buscando este objeto que 
lhe “falta” e que lhe dará as condições para sua expansão. 
 
22
que quando bem compreendidos levam a uma melhor compreensão do 
primeiro. 
“Postulado da localização” (Deleuze; 1988) 
 
“Analisar os métodos punitivos não como simples conseqüências 
de regras de direito ou como indicadores de estruturas sociais; Mas 
como técnicas que tem sua especificidade no campo mais geral dos 
outros processos de poder. Adotar em relação aos castigos a 
perspectiva da tática política”. (Foucault; 2010; pág. 26) 
 
O poder estaria localizado no aparelho de estado cujo controle seria o 
reflexo da hegemonia de uma classe social sobre a outra. 
Aqui o título dado por Deleuze (1988) à Foucault se torna mais evidente: 
um “novo cartógrafo”. O poder se distribui em rede a partir de forças instáveis. 
Trata-se de uma “Microfísica do Poder” onde o Estado não é um reflexo, nem 
uma unidade dessa microfísica, mas, um efeito conjunto ou resultante de uma 
multiplicidade de engrenagens. O estado seria uma forma maior sustentada por 
outras formas, por outras relações de poder, nas quais a disciplina, a partir do 
século XVIII, emergirá como uma função, uma máquina abstrata que 
atravessará e atualizará as instituições (formas5) estatais e não estatais, como 
a escola, a família, o convento, o sistema penal, a universidade, as relações de 
trabalho, e o próprio estado. Estas instituições ainda que estejam diretamente 
ligadas ao estado, possuem segundo Foucault, uma relativa autonomia, tanto 
em seus discursos, quanto em seu funcionamento interno. 
O sistema penal, por exemplo, ainda que seja um sistema estatal, será 
atravessado pela função disciplinar de uma forma específica em relação às 
outras instituições do campo social. A “vitória da prisão” segundo Foucault ou a 
articulação da rede penal ao diagrama disciplinar e a emergência da prisão 
nesta dinâmica não se dá em razão de sua efetividade no adestramento dos 
corpos dos indivíduos para a economia. A prisão se estratifica no diagrama 
disciplinare se resignifica na “sociedade de controle” (Deleuze; 1993) pelo 
 
5
 O termo “forma” aqui tem sentido filosófico. É sinônimo de “corpo”. A cadeira é uma 
forma, o sistema penal é uma forma, o estado é uma forma. As “palavras e as coisas” são 
formas. Guardadas as devidas diferenças epistemológicas, na linguagem heideggeriana o 
termo “ente” teria um significado semelhante ao termo de “forma” em Deleuze. 
 
23
sucesso de sua função que “fabricaria uma ilegalidade fechada, separada e 
útil” (Foucault; 1993; pág.244). Função esta, que constitui identidades sobre 
àqueles que são submetidos a esta rede, além de possibilitar a constituição de 
saberes sobre a “delinqüência” reafirmando e reproduzindo estas identidades 
construídas. Esta colocação da prisão como parte do diagrama disciplinar - que 
será melhor explicitada ao longo deste trabalho – não é elaborada pelo forças 
do estado, mas tem “procedimentos e exercícios que o estado aprova, controla 
ou se limita a preservar em vez de instituir” (Deleuze; 1988). 
Neste sentido há uma certa autonomia do sistema penal que construirá 
mecanismos para garantir esta autonomia e para se conservar e se reproduzir. 
Trata-se de um corpo, de uma forma que funcionará no sentido da sua própria 
conservação. 
No que diz respeito à composição da prisão como função do Estado, 
Deleuze (1988) junto com Foucault (1998) nos afirmam que “a prisão não tem 
suas origens nas estruturas jurídico-políticas da sociedade” (Deleuze; 1988; 
pág.36). No capítulo sobre a “polícia” dos quakers e dos metodistas, as lettres-
de-cachet na França” esta questão está melhor trabalhada. O que nos 
interessa afirmar neste momento é que o sistema penal enquanto uma forma, 
um corpo, possui sua própria mecânica constituída por múltiplas relações de 
poder onde há uma micropolítica que se compõe com a macro-política estatal. 
Nesta associação entre a micro e a macro-política há uma relativa autonomia 
da dinâmica penal em relação ao próprio estado do qual faz parte. O estado é 
uma resultante em Foucault. Um corpo maior sustentado por múltiplos corpos. 
Por uma micropolítica. 
As formas, os estratos – entre os quais poderíamos colocar o sistema 
penal - emergem a partir de relações de forças. E estas relações de forças, 
muitas vezes, não são localizáveis. As relações de poder são o produto de 
fragmentos de forças que se relacionam6. E a rede penal enquanto uma forma 
é constituída por um certo número de relações de poder, por um certo número 
 
6
 Esta questão das formas, das relações de poder que emergem a partir das forças será 
melhor desdobrada algumas páginas à frente. 
 
24
de corpos, de identidades construídas que vão atuar com certa autonomia e 
investimento conservativo emergindo a partir destas relações de forças. 
Postulado da subordinação (Deleuze; 1988) 
 “... o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo 
produtivo e corpo submisso. Essa sujeição não é obtida só pelos 
instrumentos da violência ou da ideologia, pode ser muito bem direta, 
física, usar força contra força; agir sobre elementos materiais sem, no 
entanto, ser violenta”. (Foucault, 2010; pág. 28) 
 
De acordo com este postulado, o poder estaria concentrado no aparelho 
de Estado o qual atuaria construindo investimentos para a manutenção de 
determinadas ideologias. Estas ideologias, mantidas pelo poder do estado, 
seriam um reflexo, um desdobramento se reproduzindo para a conservação do 
predomínio burguês nas relações de produção. As relações de produção 
seriam a estrutura-histórica e o estado e suas ideologias, superestruturas, 
reflexos superestruturais investindo no predomínio de determinada classe. 
Em Foucault a função disciplinar/controle está associada ao sistema de 
produção, mas “é difícil ver uma determinação econômica em última instância” 
(Deleuze; 1988; pág. 36). “As relações de poder não se encontram em posição 
de exterioridade em relação a outros tipos de relação...” (Foucault; 2003; 
pág.90). Aqui não há uma figura piramidal global, mas imanência entre o 
sistema econômico e o diagrama disciplinar. É certo que há hierarquias no 
campo social, mas são hierarquias difusas pelas formas institucionais e não 
institucionais que se constituem num processo histórico e não numa base 
estrutural econômica. Significa afirmar que uma mudança nas relações de 
produção( numa linguagem marxista clássica: uma mudança na infra-estrutura) 
não significa, necessariamente, como conseqüência, uma mudança nas 
relações de poder e nas hierarquias presentes nas formas sociais. 
Sem dúvida alguma, a economia, o trabalho, são formas que se 
estenderam em termos globais e alcançaram uma certa universalidade. Sem 
dúvida alguma, estas formas repercutem nos valores, nas instituições, na 
moral. Entretanto, o capitalismo embora tenha se tornado universal, a sua 
universalidade não se mantêm somente graças ao controle dos meios de 
produção e das ideologias que a este predomínio estão ligadas. A própria 
 
25
forma econômica encontra condições de possibilidade de sua manutenção e 
reprodução nas micropolíticas, nas instituições, na moral cotidiana que não se 
encontram em posição de superestrutura em relação à economia. 
Postulado da essência ou atributo e da modalidade (Deleuze; 1988) 
“Finalmente, não são unívocas; definem inúmeros pontos de luta; 
focos de instabilidade comportando cada um seus riscos de conflito, de 
lutas e de inversão, pelo menos transitória das relações de forças7. A 
derrubada desses micropoderes não obedece, portanto, a lei do tudo ou 
nada; ele não é adquirido de uma vez por todas por um novo controle 
dos aparelhos nem por um novo funcionamento ou uma destruição das 
instituições; em compensação nenhum dos episódios localizados pode 
ser inscrito na história senão pelos efeitos por ele induzidos em toda 
rede em que se encontra”. (Foucault; 2010; pag. 29) 
 
 “O poder teria uma essência ou atributo que qualificaria os que o 
possuem e os que não o possuem”. (Deleuze; 1988, pág. 37). Em Foucault, o 
poder é operatório, é relação. Não existe em si mesmo, não é uma substância. 
Atua em relação, sempre. A desconstrução deste postulado se relaciona com a 
desconstrução do postulado seguinte que é o da modalidade. Neste, o poder 
agiria, exclusivamente, por ideologia e repressão. 
O poder mais do que reprimir, produz. Ele produz, fabrica corpos, 
identidades, formas, mas fabrica em relação. Produz a identidade dominante e 
a dominada na relação entre ambos. Não há dominante sem dominado. Não há 
relações de poder que não impliquem numa possibilidade de resistência que 
podem implodir estas relações. Logo, o papel do ator dominante pressupõe o 
papel do ator dominado sem os quais não haveria relação de poder atuando. 
Isso significa afirmar que quando se ocupa um papel de poder, de falar em 
nome de outros, por exemplo, esse papel pressupõe a conservação e 
reprodução da identidade daquele em nome do qual se fala. E reproduz 
também a identidade daquele que fala em nome de outros. 
“G.D.: ... Se as crianças conseguissem que seus protestos, ou 
simplesmente suas questões, fossem ouvidas em uma escola maternal, 
isso seria o bastante para explodir o conjunto do sistema de ensino. Na 
verdade este sistema em que vivemos nada pode suportar: daí sua 
 
7
 Segundo Deleuze (1988), em Foucault o conceito de “relação de forças” é diferente do 
conceito de “relação de poder”. Na pág. 22 deste trabalho, esta diferença se encontra um 
pouco desenvolvida. As “forças” remetem ao pensamento de Nietzsche, no qual as relações de 
poder emergem a partir destas forças. 
 
26
fragilidade radical em cada ponto, ao mesmo tempo quesua força global 
de repressão. Ao meu ver você8 foi o primeiro a ensinar – tanto em seus 
livros quanto no domínio da prática – algo de fundamental: a indignidade 
de falar pelos outros. Quero dizer que se ridicularizava a representação, 
dizia-se que ela tinha acabado, mas, não se tirava a conseqüência desta 
conversão teórica, isto é, que a teoria exigia que as pessoas a quem ela 
concerne falassem por si próprias”. (Foucault; 2004; pág. 72) 
 
Em Foucault, a violência e a repressão não são ignoradas de modo 
algum. No entanto, são secundárias em relação à dimensão positiva, produtiva 
do poder. 
Postulado da legalidade – Este postulado será mais bem explicado no 
capítulo 3 deste trabalho. Neste momento, interessa afirmar que Foucault 
substitui a oposição “lei-ilegalidade”, por uma correlação “ilegalismos-lei”. Nesta 
correlação há ilegalidades que serão, somente, formalmente ilegais. A 
concretização destas práticas ilegais, no entanto, se torna necessária à 
dinâmica da vida na Cidade. Isto um estudante de direito conhece bem: 
significa afirmar que a proibição de uma determinada prática não significa um 
investimento no sentido de expurgá-la do campo social. Os ilegalismos dos 
crimes financeiros, das campanhas eleitorais, da gestão pública são exemplos 
deste funcionamento. 
A lei determina os ilegalismos, mas alguns devem ser tolerados na 
prática jurídica, política e social cotidiana para que outros possam ser 
severamente punidos, à margem até mesmo das garantias legais do individuo 
que realizou um ato ilícito ou que está sendo acusado de tal ação. 
Nesta crítica aos postulados tradicionais a partir do quais o poder é 
analisado, pode-se observar um movimento cartográfico de Foucault. Uma 
cartografia do funcionamento das relações de poder, do seu nascimento, sua 
reprodução que o filósofo vai mapear a partir de seu olhar sobre dispositivos 
localizados como a sexualidade, a loucura, a prisão, os discursos, o biopoder. 
Foucault faz recortes sobre as práticas históricas que estuda e busca atuar 
numa perspectiva local, não totalizante. No entanto, não deixa de reconhecer 
que existem formas, discursos, práticas que se espalham pelo campo social 
 
8
 Esta citação é retirada de um diálogo entre Foucault e Deleuze intitulado “Os Intelectuais e o 
Poder”. Deleuze usa o pronome “você” referindo-se à Foucault. 
 
27
estudado em determinado momento histórico. Inobstante as especificidades 
históricas e políticas dos dispositivos como a sexualidade, o aprisionamento e o 
discurso sobre a loucura na passagem da idade clássica para a idade 
moderna, por exemplo, é possível reconhecer uma “função co-extensiva” 
(Foucault; 1993) atravessando estes dispositivos e criando condições para sua 
manutenção e reprodução. Esta função co-extensiva é chamada por Foucault 
de diagrama. 
O diagrama é a “causa comum imanente a todo campo social” (Deleuze; 
1988; pág. 45), “uma função que se abstrai de qualquer atrito e que se deve 
destacar de qualquer uso específico” (Foucault, 1993; pág.207). 
É verdade que a idéia de uma causa que se estende por todo campo 
social poderia nos remeter a idéia de infra-estrutura que foi desconstruída 
anteriormente. Se não é uma infra-estrutura, então surgem algumas questões: 
o que seria este diagrama que se co-estende já que ele não é uma estrutura? 
Seria algo como uma substância ahistórica, na medida em que Foucault afirma 
que “toda sociedade possui seus diagramas”? Há “alguma coisa”, algum 
movimento a partir do qual este diagrama aparece? 
O diagrama não é nem uma estrutura e nem uma substância histórica ou 
ahistórica. O diagrama emerge. Acontece. Sofre mutações e investimentos 
conservativos. E a sua emergência se dá a partir de “forças” (Nietzsche;2010). 
Aqui a influência de Nietzsche sobre Foucault se revela mais potente. 
Segundo Nietzsche (1947; pag. 36) o que governa o universo são forças. 
Forças sem formas. Forças que possuem duas características principais que 
irá classificá-las de acordo com estas características. 
“A qualidade nada mais é do que a diferença de quantidade e lhe 
corresponde em cada relação de força”. (Deleuze;... pág. 50) 
“Segundo a diferença de quantidade entre elas, as forças são 
ditas dominantes ou dominadas. Segundo a qualidade delas as forças 
são ditas ativas ou reativas”. (Deleuze;... pág. 60) 
 
A partir desta caracterização das forças segundo suas qualidades, 
podem-se observar alguns desdobramentos de cada uma delas: 
As forças ativas são criadoras. Remetem para o futuro. Para o infinito. 
Para uma totalidade aberta. O seu movimento desconstitui as formas para 
 
28
criar. Trata-se de uma mutação que associa fragmentos de potências fazendo 
emergir um “devir-diferença” (Deleuze; 1993) constante. Inventa novas 
possibilidades de vida. Já as forças reativas possuem três características 
principais: conservação, adaptação e utilidade. Atuam e se associam no 
sentido de manter as formas. A idéia de identidade, por exemplo, está 
associada às forças reativas. A memória também se desdobra como uma 
função onde há predomínio da força reativa. Na força reativa o movimento será 
de “desejo” pelo conhecimento, pelo passado. Conhecer as leis da vida para 
obedecê-las. 
Nietzsche (1947) irá afirmar que ambas as forças são necessárias à 
vida, ao movimento do universo, da natureza. Mas, embora estas duas 
espécies de forças sejam necessárias à vida, elas nunca se encontram numa 
posição de equilíbrio. Sempre há o predomínio de uma força sobre a outra. 
O que ocorre na história do homem é que a força ativa, a força que 
remete a alegria (Spinoza; 2009) da criação, que nasceu para dominar, foi 
decomposta e dominada pela força reativa. A história do homem é a história do 
domínio da força reativa sobre a força ativa. Esta é uma das teses de 
Nietzsche. 
Ora, se a história do homem é a história do domínio da força reativa, 
logo, no diagrama que se co-estende ao campo social, nas relações de poder 
deste diagrama, nas identidades e sistemas que compõem a dinâmica social, 
na função disciplinar, haverá movimentos onde as qualidades que irão 
predominar serão a conservação, a utilidade e a adaptação. E se a história do 
homem e das relações sociais é formatada pelo domínio das características 
reativas, na subjetividade, na “alma” 9 não será diferente. Estas forças que 
atravessam o universo invadem a subjetividade, onde também haverá 
predomínio de uma força sobre a outra. Quando as forças reativas dominam as 
forças ativas, a memória do homem que deveria estar a serviço da força ativa, 
da criação, se transforma em “ressentimento” (Nietzsche; 2003). O 
 
9
 O termo “alma” aqui não tem o sentido platônico, de uma experiência para além do 
corpo. Trata-se de remeter aos processos de cognição, de hábito e das forças inconscientes 
que marcam e atravessam constantemente o indivíduo. 
 
29
“ressentimento” decompõe a criação e a diferença, dificultando no pensamento 
a emergência das forças ligadas à arte e à filosofia, por exemplo, e 
restringindo, também, as possibilidades de potencialização de uma ciência 
mais comprometida com a construção do novo do que a serviço da utilidade e a 
adaptação. 10 
No entanto, embora haja o predomínio da força reativa isso não significa 
a extinção da força ativa. Ela continua atravessando as formas, provocando 
mutações, diferenciações na vida, no campo social. Mas, o investimento na 
conservação das formas, na adaptação dos sistemas é constante e neste 
sentido as mudanças acabam servindo mais à manutenção dos estratos sociais 
do que à criação de novas possibilidades. 
 Segundo Deleuze (1988) o diagrama se “atualiza em seu efeito” e o faz 
de dois modos: se diferenciando e se integrando.Todo este movimento do 
poder operando em relação se dá por integrações e diferenciações. 
Integração é o movimento de expansão que uma força – transformada 
em relação de poder – realiza. Ambas as forças – ativas e reativas - buscam 
afirmar-se, expandir-se. É da própria natureza das forças buscarem sua 
expansão. O “princípio da Inércia” expressa relativamente bem esta movimento 
das forças: Um corpo (poderíamos substituir por: uma força) tende a 
permanecer em movimento ou em repouso se não houver outra força que se 
constitua como obstáculo a esta permanência. Logo as forças tendem a 
integração, a expansão se houver condições de possibilidade para tanto. E 
quando as forças se transformam em formas, em relações de poder, não será 
diferente. As formas – onde há predomínio das forças reativas – buscam a 
expansão para se conservar. E como a ameaça de destruição dessa forma que 
quer se conservar é iminente e constante, pois a mutação, o choque com as 
forças ativas se dá a todo o momento, a forma busca expandir-se para que se 
adapte e se conserve em meio à possibilidade constante de se desconfigurar. 
Neste sentido, a integração de determinada forma, de determinada função, de 
 
10
 Heidegger (1997.) por um caminho diferente, talvez nos expresse algo semelhante ao 
tratar da “questão da técnica”. 
 
 
30
determinada relação de poder no campo social sofre uma grande influência do 
acaso neste processo de expansão. Expliquemos melhor: 
Segundo Foucault, a função disciplinar “co-extensiva”, ou seja, uma 
função que “se abstrai de qualquer obstáculo ou atrito” (Foucault; 1993; pág. 
207) não se dá, majoritariamente, pela imposição de uma classe que passa a 
controlar os meios de produção e o Estado. Mas a integração se realiza pelas 
condições de possibilidade favoráveis do campo social, por “um solo fértil” que 
permite que uma relação de poder se integre, se expanda, se prolifere pelas 
instituições, pelas relações de trabalho, pelo regime de punição, pelas famílias, 
pelos processos pedagógicos. E essa função se expandindo é utilizada 
estrategicamente, segundo Foucault. (2006). A dominação de uma classe 
social não é um lugar de controle de todos os processos históricos. Esse 
próprio controle e as suas estratégias e investimentos - que existem sem 
dúvida alguma, segundo Foucault - estão submetidos a um regime de 
“mutação” (Maquiavel; 2004) que não pode ser impedida, embora se invista a 
todo instante no uso dessa mudança para a manutenção e conservação de 
determinadas formas que interessam ao diagrama e ao sistema econômico. A 
expansão-integração se dá e as classes dominantes, o estado “aprova, 
controla ou se limita a preservar ao invés de instituir” (Deleuze; 1988; pág.35). 
Quanto à função diferenciativa, cabe nos remetermos ao postulado da 
modalidade e da essência ou atributo que analisamos anteriormente. Para o 
digrama se atualizar se diferenciando é preciso que, em relação, ele produza 
corpos, identidades que vão se diferenciar no próprio exercício das relações de 
poder: dominante e dominado se produzindo em relação. Se não, vejamos: 
 É possível, neste momento, trazer algumas ilustrações, exemplos 
dentro das relações sociais que irão clarear um pouco este movimento tão 
abstrato que estamos desdobrando. Na função diferenciativa um exemplo que 
se reproduz diariamente nas relações cotidianas pode ser bastante ilustrativo: 
Mv Bill (2005) - hoje conhecido nacionalmente pela exibição do 
documentário “Meninos do Tráfico” exibido durante algumas semanas pelo 
programa “Fantástico” da Rede Globo de Televisão – escreveu um livro junto 
com o produtor Celso Athayde (2005) e com o antropólogo e ex-secretário de 
 
31
segurança do Estado do Rio Janeiro Luiz Eduardo Soares (2005). Neste livro 
relata experiências pessoais como ex-morador da Cidade de Deus, além de 
descrever suas pesquisas e vivências em inúmeras favelas do Brasil onde 
funcionam ou funcionavam o mercado do varejo de drogas. 
Em um destes depoimentos Mv Bill fala de sua adolescência e do seu 
“primeiro carro”: um carrinho de supermercados no qual levava as compras dos 
consumidores até suas casas. Os meninos que realizam tal trabalho são 
chamados de “marrecos”. Os “marrecos”, por sua vez, chamam as senhoras, 
donas das compras que levam, de “madames”. Irei reproduzir estas identidades 
aqui – embora busque fugir delas neste trabalho - neste relato por razões 
pedagógicas. 
Um belo dia Bill, o “marreco”, é solicitado por uma “madame” moradora 
do Botafogo – bairro onde se localizava o supermercado – para que leve suas 
compras até seu apartamento. Durante o percurso até o prédio, o “marreco” é 
constantemente chamado a atenção pela “madame” por causa de sua suposta 
lentidão e da pressa da “madame”: “... ela não podia entender que eu não 
poderia caminhar diante de tantos obstáculos pela frente e pelos lados” (Bill; 
Athayde; Soares; 2005; pág. 79). 
Depois destes breves e tensos momentos, o “marreco” e a “madame” 
chegam ao prédio destino e pegam o elevador. Durante o trajeto do térreo ao 
andar destino, o “marreco” em alguns momentos vai deixando de ser marreco e 
a “madame” vai deixando de ser madame. Uma potência diferente emerge ali. 
Na subida do elevador, Bill (2005) é surpreendido por olhares da madame 
dirigidos a ele com intenções para além de uma relação de poder entre uma 
“madame” e um “marreco”. Bill (2005) demora a compreender o que se passa. 
Mas, diante da manifestação constante e intensa começa a vislumbrar a 
possibilidade de concretização de uma prática de amor entre o “par” do 
elevador no “AP” de Botafogo. Bill (2005) idealiza o momento mágico e ainda 
vislumbra a chance de “tirar uma onda” com seus colegas de trabalho, 
contando a eles os prazerosos momentos que ele vivera naquela tarde. 
Mas, a porta do elevador se abre e logo em seguida a porta de serviço 
do apartamento da mulher, que volta a ser “madame” ao reafirmar a condição 
 
32
de “marreco” de Bill (2005): Ela manda que ele que deixe as compras no chão. 
O “marreco” entrega as compras, sai do apartamento e chama o elevador. A 
“madame” pede que sua filha espere junto ao “marreco” a chegada do 
elevador. A filha da “madame” e o”marreco” trocam alguns pequenos olhares 
constrangidos, daqueles que se trocam entre pessoas que nunca se viram e 
que são atravessadas por um silencio constrangedor. Mas, tudo bem! O 
“marreco” volta ao trabalho um pouco frustrado por uma expectativa criada e 
idealizada, mas, não realizada. 
No dia seguinte, o “marreco” é acusado de ter tentado agarrar menina 
filha da “madame”. A própria “madame” foi até o supermercado construindo 
uma história que não se deu e pressionando o supermercado para que 
mandasse o “marreco” embora “sob pena” de realizar a “notícia-crime” (...) e as 
“ medidas judiciais cabíveis”. 
O “marreco” desmente a madame”! Tenta contar o que se passou. Mas, 
ninguém, a não ser alguns de seus colegas, acredita em sua história. “Seu 
Joaquim” gerente do supermercado manda que o “marreco” faça sua rescisão 
com o “Seu Edmar”. Mas, “Seu “Edmar é um dos poucos que acredita na 
história de Bill (2005) pois já tinha presenciado situações semelhantes com 
“madames” freqüentadoras do supermercado. “Seu Edmar” convence “Seu 
Joaquim” não da veracidade da história do “marreco”, mas, o convence a dar 
uma nova chance ao “marreco”, que fica no trabalho, mas nunca mais olha pra 
“madame” nenhuma. 
Onde está o processo de diferenciação do diagrama presente nesta 
história? No curto período de manifestação de desejo por Bill (2005), a 
“madame” quebrou a identidade de “madame” ao quebrar, também, a 
identidade do “marreco” pois, uma “madame” que corresponda ao “código 
social” das “madames” não pode desejar um “marreco”. Bill na subida do 
elevador deixou de ser “marreco”,nos seus desejos e nos dá mulher que o 
desejava. Mas, a quebra da identidade foi tão abrupta para a madame que nem 
ela mesma suportou aquele “desejo” e precisou reafirmar a sua identidade de 
“madame” colocando o “marreco” em seu “devido” lugar de “marreco”: 
construiu, divulgou e ameaçou com uma história que não existiu. 
 
33
É o diagrama se atualizando na diferenciação. Só há “madame” se 
houver “marrecos” para garantir a relação de poder entre estes entes. E a 
identidade é produzida na própria relação, pois, não há identidade fixa. 
Somente se atualizando na diferenciação é que as formas emergem. 
Tais processos de diferenciação se revelam no adestramento dos 
corpos, onde a subjetividade de alunos, de trabalhadores, de marrecos, de 
madames, de professores, de burgueses e operários será produzida através de 
múltiplas estratégias e estímulos. E dentro destas estratégias e estímulos, a 
posição de dominante e de dominado emergem e se reproduzem num 
processo constante. Processo no qual a crença a respeito de sua posição e da 
necessidade dela nessas relações de poder é fundamental para sustentá-la e 
reproduzi-la. Daí surge, de acordo com a posição tomada neste trabalho, um 
dos grandes aspectos da obra de Foucault: a questão da positividade, da 
produtividade das relações de poder. As relações de poder emergem e 
produzem formas identitárias, produzem discursos, saberes e crenças. Mais do 
que reprimir, o poder produz. E, como vimos, o faz a partir de relações de 
forças que atravessam o mundo, as formas, governando sem início, nem 
finalidade todos estes processos que envolvem o homem e a natureza. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
34
CAPÍTULO 2 – DESDOBRAMENTOS DO DIAGRAMA: O 
ADESTRAMENTO E O PANOPTISMO COMO PROCESSOS DE 
NORMALIZAÇÃO E DE PRODUÇÃO DE SABER SOBRE “OS ANORMAIS”. 
 
“Se nos limitarmos à evolução das regras de direito ou dos 
processos penais, corremos o risco de valorizar como fato maciço, 
exterior, inerte e primeiro, uma mudança na sensibilidade coletiva, um 
progresso do humanismo, ou o desenvolvimento das ciências humanas. 
Para estudar, como fez Durkheim, apenas as formas sociais gerais, 
corremos o risco de colocar como princípio da suavização punitiva 
processos de individualização que são antes efeitos das novas táticas de 
poder e entre elas dos novos mecanismos penais. (Foucault; 1993; pág. 
26) 
 
A palavra “adestramento” em Foucault (1993) é um termo utilizado para 
representar alguns dos desdobramentos a partir dos quais funciona o diagrama 
disciplinar. Trata-se de um olhar minucioso sobre os mecanismos disciplinares 
e sobre as mudanças ocorridas na maneira mais extensa e difusa a partir da 
qual estes mecanismos atuam. 
O adestramento na sociedade disciplinar, segundo Foucault (1993), 
opera a partir de três recursos principais que resumem estes movimentos 
estratégicos de docilização e utilização dos corpos. Tais recursos, como ficará 
descrito aqui, estão articulados a função panóptica que aparecerá como uma 
técnica eficaz de produzir os indivíduos sob determinados modos. Estes três 
elementos – chamados por Foucault (1993) de “Os recursos para um bom 
adestramento” (pág.153) – são denominados de “vigilância hierárquica”, 
“sanção normalizadora” e “exame”. 
O processo de disciplinarização tem tamanha importância para Foucault 
neste momento histórico – século XVIII e XIX – que em alguns momentos, ele 
classifica a sociedade a partir desta função: sociedade disciplinar. É importante 
ressaltar, entretanto, que esta forma de normalização e enquadramento das 
experiências subjetivas se transformou bastante ao longo destes quase dois 
séculos. Deleuze (1992) ressalta esta mudança a ponto de caracterizá-la como 
uma modificação no diagrama, uma mutação na função co-extensiva: da 
sociedade disciplinar para sociedade de controle. Mas, embora concordemos 
com Deleuze (1992) quanto a esta mudança no modo de operação e 
 
35
desdobramento das relações de poder11, entendemo-la , sob os aspectos que 
nos interessam neste trabalho, como uma radicalização de um processo 
anterior – disciplinar - com suas especificidades. Ainda que tenha havido toda 
esta modificação no diagrama12, o papel da prisão e a sua composição e 
manutenção dentro desta rede de funções, identidades e lugares sociais, não 
nos parece que tenha mudado. Logo, a análise da sociedade disciplinar faz-se 
profundamente necessária para entendermos o processo de normalização que 
se encontra radicalizado e um tanto quanto transformado na “sociedade de 
controle” (Deleuze; 1992; pág. 219). Além do mais, a polarização surgida na 
modernidade entre a normalização e “Os anormais” (Foucault; 2001) ainda é 
bastante atual no que diz respeito à prisão e seus papeis principais no contexto 
contemporâneo. 
No tocante ao adestramento, a “vigilância hierárquica” consiste numa 
inversão em relação ao diagrama de soberania. Neste o poder punitivo deverá 
expressar o máximo de visibilidade para demonstrar sua força, além de ao 
mesmo tempo tornar invisível aqueles sobre quem este poder se exerce. Na 
sociedade disciplinar o processo se inverte: o poder torna-se invisível e as 
pessoas e seus respectivos efeitos de poder é que devem adquirir visibilidade. 
Tal visibilidade dá condições de possibilidade para constituição de saberes 
sobre os indivíduos nos quais este poder se exerce. 
 “A disciplina fabrica indivíduos; ela é a técnica específica de um 
poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como 
instrumentos do seu exercício. Não é um poder triunfante que, a partir de 
seu próprio excesso, pode-se fiar no seu suoerpoderio; é um poder 
modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia 
calculada, mas permanente. Humildes modalidades, procedimentos 
menores, se os compararmos aos rituais majestosos da soberania ou 
aos grande aparelhos do estado”. (Foucault; 1993; pág. 153) 
 
 
11
 No capítulo 6 encontra-se uma abordagem mais detalhada sobre esta mudança no 
diagrama. As estratégias de enquadramento passam do espaço fechado (disciplinar) para o 
espaço aberto (controle), mais próximo daquilo que Foucault chama de “biopolítica”: controle 
sobre a vida em espaço aberto. 
12
 Já neste capítulo, nas próximas linhas, o trabalho apresentará algumas relações entre 
determinados elementos do adestramento e algumas dinâmicas e estratos de poder atuais, 
como o Big-Brother Brasil e seus coadjuvantes e correspondentes na internet, por exemplo. 
 
 
36
O modelo quase ideal deste observatório (vigilância hierárquica), 
segundo o autor, é o acampamento militar, no qual haverá um encaixamento 
espacial de vigilâncias hierarquizadas. Este acampamento pode se exemplificar 
nas fábricas, por exemplo, numa rede na qual inspetores vigiam outros 
inspetores. Tal rede se identifica com a descrição daquilo que Foucault (1993) 
chama de “fiscais permanentemente fiscalizados” (pag. 154). Uma competição 
estabelecida e estimulada entre os próprios operários. Estes em disputa pela 
sobrevivência e sendo atravessados pelos novos desejos que emergem com 
aumento da produção de bens no capitalismo, ao mesmo tempo em que 
constituem novas resistências e maneiras de se associar, também são 
estimulados pelo próprio processo disciplinar a estabelecer dinâmicas de 
competição entre si. Nestas relações passam a vigiar o outro como forma de 
garantir seu lugar neste processo ou vislumbrando a promessa de ascensão à 
outros lugares sociais13. Este movimento de diferenciação do diagrama, que vai 
atuando na produção de identidades hierarquizadas, marca competitivamente, 
também, as relações numa mesma classe social. Se não, vejamos: 
Ao longo da “Idade Clássica” (Foucault; 1972; pág.351) o trabalho vai se 
constituindo como um imperativo moral.A pobreza vai deixando de ser uma 
virtude ou um caminho de sacrifício rumo à vida eterna, para se desenhar como 
um estigma, como um problema moral ligado ao esforço individual. O trabalho 
vai se tornando uma necessidade moral. A disciplina vai radicalizando este 
processo de identidade entre o humano e o trabalho contribuindo 
significativamente para a constituição de uma proletarização do campo social. 
Esta proletarização está conjugada à propagação de um outro fenômeno que 
se multiplica também pelo campo social: o econômico. 
Neste processo de reverberação econômica e proletarização dos 
estratos sociais vão aparecer outros papeis além daqueles exercidos pelos 
 
13
 Não se trata de generalizar qualquer relação entre os operários. Em outros termos: 
não significa afirmar que em Foucault não há escapatória deste processo competitivo. A 
tentativa metodológica usada pelo autor é a de problematizar, cartografar uma prática histórica 
observando seus efeitos e abrindo a partir deste processo, a possibilidade de aparecimento de 
resistências. 
 
37
proletários e pelos burgueses. Embora se constituam como heterogêneos, 
estes diferentes papeis estarão ligados, segundo Deleuze (1988), pela própria 
função disciplinar. Nesta teia de papeis, aparece aquele que Marx (2004) 
chama de “lúpem- proletariado” (pág. 752) e/ou o “exército de reserva” (pág. 
752). A existência deste exército dá algumas condições econômicas para a 
exploração do proletariado que tem sua hora de trabalho paga a preços baixos 
graças, entre outras coisas, a fila de espera dos desempregados, que fragiliza 
as possibilidades de negociação do operário por melhores salários. Num 
horizonte de competição, precarização e exploração nas relações de trabalho, 
o operário acaba muitas vezes se relacionando com este “exército de reserva” 
de um modo competitivo e estigmatizante, perdendo de vista a articulação 
desta categoria dentro destas formas disciplinares. O limiar é sutil entre a 
tensão estabelecida sobre “o lúpem-proletariado” (Marx; 2004; pág. 752) e os 
operários, e a criação de identidades estigmatizadas sobre este lúpem. O 
próprio trabalho constituído como um imperativo moral vai ser determinante na 
produção destes estigmas. Entre aqueles que ocupam os lugares de 
dominados em termos econômicos – os operários, o exército de reserva, o 
lúpem-proletariado, os loucos - vai se produzir uma fragmentação, uma tensão, 
uma captura das resistências, uma oposição destas entre si. Esta 
fragmentação se favorece pela produção de discursos e saberes sobre esta 
“multidão” (Negri & Hart; 2005; 417) que vai emergindo do século XVIII ao XIX. 
Sobre esta “multidão” múltipla e difusa de operários, desempregados e loucos, 
vão se construir saberes que possibilitarão colocar cada qual em seu lugar de 
acordo com sua identidade, desenhando sobre esta massa difusa um olhar 
hierarquizado e vigilante que vai do dominante ao dominado, do dominado ao 
dominante e entre os próprios dominados. Ressentimentos se modulando no 
predomínio das “forças reativas”. (Deleuze;1979) 
A “vigilância hierárquica” se articula à “sanção normalizadora” que é o 
segundo recurso para o “bom adestramento” (Foucault; 1993). A sanção é um 
elemento muito caro ao direito penal. E este, segundo Foucault (1993), se 
apresenta de uma determinada forma no discurso jurídico, mas, se afirma de 
outra nas práticas “não-discursivas” (Deleuze; 1988; pág. 67). A sanção penal 
 
38
moderna que tem a prisão como identidade, servirá a outros fins que não 
aqueles declarados no discurso. E esta diferença entre o “discursivo” e o “não 
discursivo” não é hegemonicamente ideológica, como queria o marxismo 
ortodoxo, mas, produtiva. A sanção se compõe com o exame, que extrai saber 
dos corpos, marcando determinados lugares, enquadrando os corpos sobre 
representações: o normal, o louco, o monstro, o delinqüente. Tratarei melhor 
desta questão do processo de diferenciação do diagrama a partir da produção 
de saber sobre a anormalidade (Foucault; 2001) ao abordar o recurso do 
exame. Aqui neste momento gostaria de acentuar o processo de normalização 
e não a produção de saber sobre “os anormais” (Foucault; 2001) 
“A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla 
todos os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia, 
homogeniza, exclui. Em uma palavra ela normaliza. 
Opõe-se, então, termo por termo a uma penalidade judiciária que 
tem por função essencial, não um conjunto de fenômenos observáveis, 
mas, um corpo de leis e de textos que é preciso memorizar; não 
diferenciar indivíduos, mas, especificar atos num certo número de 
categorias gerais; não hierarquizar, mas, fazer funcionar pura e 
simplesmente a oposição binária do permitido e do proibido; não 
homogeneizar, mas realizar a partilha adquirida, de uma vez por todas 
da condenação. Os dispositivos disciplinares produziram uma penalidade 
da norma que é irredutível em seus princípios e seu funcionamento a 
penalidade tradicional da lei”. (Foucault; 1993;pág. 163) 
 
É que se por um lado a sanção marca os indivíduos enquadrando-lhes 
sob determinados papeis no campo social – delinqüente, louco, histérica -, no 
que diz respeito à docilização e o adestramento dos corpos, ela se desdobra 
num funcionamento específico. A sanção que normaliza está conjugada com o 
processo que estimula à produção de determinadas subjetividades. Estimula as 
potências econômicas do corpo pela repetição e pelo hábito. A disciplina vem 
adestrar os corpos para o trabalho e para a economia. Este processo 
disciplinar vai necessitar da sanção para bloquear as experimentações que não 
se afinem com este adestramento. A “sanção normalizadora”, assim como a 
vigilância hierárquica, estimula determinadas potencialidades por um lado e 
bloqueia a experimentação e estratifica os comportamentos, por outro. Em 
outras palavras: homogeniza os corpos através de um exercício de 
“gratificação- sanção”. 
“A punição disciplinar é, pelo menos por uma boa parte, isomorfa 
à própria obrigação; ela é menos a vingança da lei ultrajada que sua 
 
39
repetição, sua insistência redobrada. De modo que o efeito corretivo que 
dela se espera apenas de uma maneira acessória passa pela expiação e 
pelo arrependimento; é diretamente obtido pela mecânica de um castigo. 
Castigar é exercitar. 
4) A punição, na disciplina, não passa de um elemento de 
sistema duplo: gratificação-sanção. E é esse sistema que se torna 
operante no processo de treinamento e de correção. (Foucault; 1993; 
pág. 161) 
 
Exercício, repetição e hábito por um lado e culpabilização por outro. 
“Castigar é exercitar” é repetir e estimular determinadas forças. 
Este momento nos remete ao capítulo anterior sobre as forças ativas e 
reativas. Como vimos, num estrato (Deleuze, 1988), numa forma padronizada 
como a disciplinar em que as potências que são estimuladas são aquelas 
voltadas para a economia, nas quais os papeis são, de certa forma, pré-
estabelecidos, haverá o predomínio das forças reativas. Neste predomínio, em 
que os estratos constituídos prevalecem em relação às forças constituintes 
(Negri; 2002), em que as premissas e soluções são dadas, há diminuição da 
“potencia de agir” (Spinoza; 2009). 
Segundo Spinoza (2009) “um corpo aumenta sua potência de agir”, ou 
“busca perseverar no ser” através da experimentação que é uma “ética” 
(Spinoza; 2009). Experimentar é criar, é problematizar, é resistir aos estratos. É 
usar os estratos (forças reativas – conservação, utilidade e adaptação) para se 
associar, para se agenciar e criar novas possibilidades de ser e de viver. Uma 
ciência, uma arte, uma pedagogia que “aumente a potência de agir”. 
Ora, num horizonte em que a forma econômica – capitalista – se 
expande pelo campo social e em que a

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