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1 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E DIREITO LEONARDO SCHWAB PIRES FOUCAULT E O ABOLICIONISMO PENAL NITERÓI 2011 2 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito LEONARDO SCHWAB PIRES FOUCAULT E O ABOLICIONISMO PENAL Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais. Orientador: Professor Doutor José Fernando de Castro Farias NITERÓI 2011 3 RESUMO Este trabalho realiza uma composição entre elementos do pensamento de Michel Foucault e conceitos situados no campo discursivo do Abolicionismo Penal. O estudo se processou em dois grandes momentos: no primeiro momento se concentra em aspectos da chamada segunda fase do filósofo francês. Nesta fase Foucault se debruça sobre o funcionamento das relações de poder na modernidade e sobre o modo como a prisão emerge e se estratifica nesta mecânica. Para melhor compreensão dos aspectos desta fase que foram destacados, buscamos desdobrá-los junto a categorias utilizadas por outros pensadores que, ou influenciaram Foucault – como Nietzsche, Deleuze e Guattari – ou foram influenciados por ele – como Michel Hardt, Agamben, Negri e Pierre Clastres. No segundo momento, o trabalho recorta conceitos presentes nas discussões abolicionistas e os associa a algumas categorias foucaultianas, a maior parte delas abordadas na primeira parte do trabalho. Trata-se de uma pesquisa teórica que não estabelece dicotomias valorativas entre teoria e “prática”, pois compartilha do entendimento de que tanto uma quanto a outra atuam “microfisicamente” nas experiências acadêmicas, cotidianas e subjetivas, desde que encontrem condições de possibilidade para tanto. O sentido do agenciamento Foucault/Abolicionismo é, justamente, contribuir na potencialização de ambos os campos nos aspectos aqui acentuados. Encontramos entre eles um “solo comum” que permitiu a aproximação, ainda que se trate de campos discursivos que surgem de lugares diferentes, mas, que, no entanto, podem produzir efeitos semelhantes. 4 SUMARY This works holds a composition of elements in the thought of Michel Foucault and concepts located in the discursive field of the penal abolition. The study was done in two great moments: the first time focuses on aspects of the so-called second phases of the French philosopher. At this stage Foucault focuses on the operation of power relations in modernity on the way to prison emerges and is stratified in this mechanism. For a better understanding of the issues that were highlighted in this phase, we seek to deploy them along the categories used by other thinkers who influenced of Foucault – as Nietzsche, Deleuze and Guattari – or were influenced by him – as Michael Hardt, Negri and Pierre Clastres. In the second stage, the jobs cuts concept in the discussions associated with abolitionists and some Foucauldian categories, most of them addressed in the first part of the job. It is not a theoretical research establishes of evaluative dichotomies between theory and practice. It’s shares the understanding that both the one and the oder act microphysics in the academic experiences, and the subjective daily, provided they find conditions off possibility for both. The sense of agency Abolitionism/Foucault is precisely to contribute to the enhancement of both aspects in the fields marked here. We find among them a “common ground” approach that allowed, even, if it is in the discursive fields that come from different places, but wich, how ever can produce similar effects. 5 SCHWA PIRES; Leonardo Schwab Foucault e o Abolicionismo Penal/ Leonardo Schwab Pires. Niterói: UFF/ Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito. 2011. 161 p. Orientador: José Fernando de Castro Farias. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas e Sociais/ Universidade Federal Fluminense; 2009). BIBLIOGRAFIA Pág. 164-168 1- Prisão. 2- Diagrama. 3- Relações de Poder. Dissertação de Mestrado – Foucault e o Abolicionismo Penal. 6 Dedicatórias À Clara e a “clareira” dos nossos “encontros” que me ajudam a tentar construir a vida “como obra de arte”. Aos meus pais Wanilton e Celinha por serem o que são e pela sua crença de que nunca é tarde pra recomeçar. À memória de Claudio Ulpiano e ao pensamento que se manifestou através dele e “tocou” a inúmeros lugares, entre os quais este está trabalho. 7 AGRADECIMENTOS Assim como um “galo sozinho não tece uma manhã”, uma voz sempre se desdobra em outras vozes que compõem essa voz que se expressa. Por isso, reconheço que a “solidão” da escrita pressupõe a alegria e a presença de muitos outros encontros que povoam nossas inspirações e pesquisas. Esses “encontros” fazem parte deste trabalho. A junção Bahia de Guanabara/ biblioteca da UFF, por exemplo, é um componente de paisagem importante nessa busca pela inspiração. Agradeço a José Fernando de Castro Farias pelas direções e encaminhamentos que foram fundamentais na mudança de rumos desta dissertação. À Letícia Veloso pela sua crença neste trabalho. Também por suas aulas que me ajudaram a inserir elementos da sociologia que tanto enriqueceram esta reflexão. Agradeço a Letícia, ainda, por acentuar e ratificar a minha preocupação com a punição e com alguns dos elementos que estão a ela conectados. A Mario Bruno pelas suas aulas e colóquios que redirecionaram minhas referências teóricas e também, por me aproximar das aulas de Claudio Ulpiano que tanto contribuíram para expandir significativamente o meu entendimento sobre Foucault e seus aliados. Foram muitos cafés e “alguns” chopps no Gragoatá e na Cantareira ao lado de colegas pesquisadores, advogado(a)s, sociólogo(a)s.... Colegas que parecem querer “um outro direito”. Na verdade, confesso não saber se isso é possível, por considerar que seja tamanha a ligação entre as formas jurídicas e os estratos de poder difusos pelo campo social. Mas, vindo eu do direito, teimo em usá-lo como modo de “reinvenção da vida” e de “resistência” à servidão. Seguimos tentando... Entre esses colegas do “outro direito” agradeço em especial a Elis, Flavio Sueth e Carlos Frederico pela alegria das festas, cafés, chopps e discussões sobre punição, direitos e liberdade. Ao Programa de Pós Graduação em Estudos da Subjetividade da UFF – em especial à Lilia Lobo e Roberto Novaes. Agradeço, também, às doutorandas - deste programa - Letícia e Giovana pelas trocas em aula e pela internet. Aos meus tios Ricardo e Betinho pelas portas abertas e pela paciência. À Clara... a importância da sua presença é indescritível. 8 SUMÁRIO Introdução....................................................................................... pág.09 PARTE 1 – FOUCAULT E O NASCIMENTO DA PRISÃOCOMO “PEÇA” DO DIAGRAMA DISCIPLINAR Capítulo1 – A mecânica das relações de poder no diagrama disciplinar e as forças ativas e reativas nietzscheanas..................................................pág.18 Capítulo 2 Desdobramentos do diagrama: O adestramento e o panoptismo como processos de normalização e de produção de saber sobre “os anormais”..............................................................................................pág.34 Capítulo 3 – A reforma Penal na França do século XVIII e o surgimento dos enunciados modernos do direito penal................................................pág.45 Capítulo 4 – Alguns modelos “menores” de punição e de disciplina na sociedade de soberania..............................................................................pág.56 Capítulo 5 - A produção da forma “delinqüente”: “formalizar” para capturar.......................................................................................................pág.66 Capítulo 6 – Uma pequena abertura para o Biopoder e para a “sociedade de controle”.................................................................................................pág.83 PARTE 2 – CONJUGAÇÕES ENTRE ELEMENTOS DA ANÁLISE DE FOUCAULT E ALGUNS CONCEITOS PRESENTES NO HORIZONTE DISCURSIVO DO ABOLICIONISMO PENAL Capítulo 7 – O “culpado-necessário” como dispositivo do sistema penal “reativo”.......................................................................................................pág.99 Capítulo 8 - “Os bons e os maus” e o “estigma-estereótipo” em Hulsman e a construção da forma “delinqüente” em Foucault. Uma análise para “além do bem e do mal”...........................................................................................pág.116 Capítulo 9 - Agenciamentos entre “O inimigo no Direito Penal” de Zaffaroni, o “biopoder” em Foucault e o “poder soberano” no trabalho de Giorgio Agamben......................................................................................pág.122 Capítulo 10 – A “sociabilidade autoritária” e a função da “autoridade” externa ou internalizada............................................................................pág.134 Capítulo 11 – Problema Final: a “resposta-percurso” e os “encontros cara a cara” abordados por Hulsman e Edson Passetti: uma “linha de fuga” possível do “ressentimento” impregnado na dinâmica punitiva?....................................................................................................pág.146 CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................pág.164 9 INTRODUÇÃO “Um galo sozinho não tece uma manhã: Ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe este grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. (Neto; 2001; pag. 151) “Reverberar” (Bueno; 2000; pág. 680) segundo o dicionário da língua portuguesa, significa “refletir, brilhar, resplandecer”. A utilização deste termo aqui neste trabalho se relaciona com este significado sim, mas, acaba se articulando muito melhor ao sentido que os músicos atribuem a esta palavra no seu dia a dia de “passagem de som” 1. Na dinâmica dos sentidos, a semântica do “reverberar” se transformou um pouco dentro do fluxo das gírias musicais: Uma corda de violão, por exemplo, ao ser tocada, faz com que ondas sonoras se propaguem pelo ambiente. Dependendo da textura das paredes, do piso, e do material que compuser este ambiente, as ondas sonoras poderão ser absorvidas pela textura deste material ou poderão bater e voltar duplicando o som, mas de uma maneira que este duplo não será idêntico àquelas ondas sonoras que saíram inicialmente do violão. O contato com outras formas transforma a sonoridade das ondas. Delinear aproximações entre o pensamento de Foucault e algumas categorias usadas no discurso abolicionista. É disto que trata este trabalho. Não para criticá-las ou tentar demonstrar o quanto elas são fidedignas ao pensador das relações de poder e das práticas de liberdade. Mas sim para 1 “Passagem de som” é a expressão que os músicos usam para designar o momento anterior a apresentação em que eles testam o som no espaço e procuram adequá-lo e equilibrá-lo de acordo com os instrumentos que serão usados no show. 10 promover agenciamentos e dar nossa pequena contribuição na potencialização dos conceitos trabalhados. Pensar o poder disciplinar e/ou de “controle” (Deleuze; 1993) como um exercício que se propagou pelas instituições modernas e pela “polis” é refletir sobre o campo social e sobre a genealogia de suas hierarquias e dessimetrias. Um dos aspectos da pesquisa de Foucault (1993) sobre a emergência do diagrama disciplinar se revela na sua afirmação de que a sociedade moderna insere um discurso de igualdade em meio a uma rede que funciona produzindo hierarquias e relações de dominação. “Compreende-se que o poder da norma funcione facilmente dentro de um sistema de igualdade formal, pois dentro de uma homogeneidade que é a regra, ele introduz como um imperativo útil e resultado de uma medida, toda gradação das diferenças individuais” (Foucault; 1993; pág. 164) Estas relações de poder operam confirmando e reproduzindo esta lógica embora, os discursos predominantes no capitalismo se afirmem capazes promover a justiça social e a garantia dos direitos humanos. Esta pesquisa consistiu, num primeiro momento, na explicitação do trabalho do Foucault sobre a produção de “corpos dóceis” e “úteis” (Foucault; 1993), sobre o biopoder, sobre a constituição de discursos e de representações em torno da “delinqüência” e sobre o modo como a prisão emerge e se conjuga com o sistema penal moderno neste contexto. Num segundo momento, associamos algumas das análises foucaultianas a determinados conceitos presentes no plano do abolicionismo penal. Ao associar a pesquisa de Foucault sobre a prisão e sobre a produção dos corpos dóceis a alguns conceitos do abolicionismo penal, buscamos expor o problema da positividade do poder que acompanha o funcionamento da dinâmica punitiva, e então, abrir a possibilidade de se afirmarem determinadas práticas de liberdade, contribuindo na formação de “linhas de fuga” (Deleuze & Guattari; 1995). Múltiplos acontecimentos se deram para que a moral da constituição de corpos dóceis, úteis e “sãos” invadisse as várias e diferentes instituições sociais como a família, a escola, o estado e as relações de trabalho e a própria 11 subjetividade. Esta rede disciplinar - e a de controle não é diferente - não está desarticulada daquilo que, em termos discursivos está fora dela: a produção de um saber sobre a delinqüência. O sistema penal tem efeitos produtivos em termos dos “sistemas capitalísticos” (Guatarri; 1999). Esta é uma das grandes descobertas de Foucault (1993): a de que, antes de reprimir, o poder produz a “delinqüência”. E o faz na medida em que esta positividade atende ao diagrama das relações de poder que vem predominando e sofrendo mutações “reativas” (Deleuze; 1976) desde o advento da modernidade. Este trabalho associou e desdobrou algumas destas análises foucaultianas a alguns conceitos do abolicionismo penal. Em alguns momentos esta articulação já foi realizada pelos autores com os quais trabalhamos e, neste caso, nós desdobramos os elementos desenvolvidos por Foucault conjugando-os a outros pensadores que também sofreram influências de Foucault - como Agamben (2007) e Pierre Clastres - ou o influenciaram - comoo Nietzsche e o Deleuze. Em outros momentos a proposta do trabalho será a de inserir análises feitas por Foucault dentro de determinadas categorias utilizadas pelo discurso abolicionista. Segundo Foucault (1993), o sistema penal moderno emerge acompanhado do surgimento (invenção) de uma série de novas práticas e saberes que estariam conectadas a produção de indivíduos úteis e dóceis no campo econômico, mas sem potência para a polis. O homem moderno/ “pós - moderno” é construído em termos de alta produtividade econômica, mas – como nos relata Cláudio Ulpiano (2007) – desprovido de potência criadora no campo político. “Vou fazer uma narrativa do Michel Foucault. O Foucault diz que era um homem triste, muito triste, porque ele vivia em um campo social em que as forças de dominação se dão diretamente no corpo da criança. Isso o entristecia. A prática de estimular aquela criança para produzir o homem que interessa para a família. Isso produzia nele uma imensa tristeza. Uma imensa tristeza. E essa prática geraria homens sem nenhuma potência política. Nós teríamos as nossas potências econômicas altamente estimuladas, mas as potências políticas estariam inteiramente 12 fechadas. Potências políticas – se as potências políticas passassem, o capitalismo já teria desaparecido, porque nós não surpotaríamos esse modo selvagem de vida; não surpotaríamos o que nós somos. Então, o capitalismo estimula o tempo inteiro as nossas potências econômicas – mas não deixa passar as potências políticas. Não deixa passar. Não há nenhuma instituição no nosso campo social que seja estimuladora das potências políticas. A estimulação das potências políticas nos levaria, necessariamente, a fazer transformações sociais; pois quando se estimula uma potência, ela se torna criativa. Nós somos criadores constantes no campo econômico. Sempre criadores no campo econômico. Sempre! Nós não paramos de inventar meios de produzir mais “grana”. Sempre! Por quê? Porque aquilo é estimulado. Se você estimular as potências políticas de um homem, o que vai acontecer? O campo social vai se romper. Então não seria possível que o capitalismo fosse fazer isso. Porque senão ele teria se destruído”. (Ulpiano; 2010) “...ver como, ao nível efeito da família, da vizinhança, das células ou níveis mais elementares da sociedade, esses fenômenos de repressão ou exclusão se dotaram de instrumentos próprios, de uma lógica própria, respondendo à determinadas necessidades; mostrar quais foram seus agentes, sem procurá-los na burguesia em geral e sim nos agentes reais (que pode ser a família,a vizinhança, os pais, os médicos, etc.) e como estes mecanismos de poder, em um dado momento, em uma conjuntura precisa e por meio de determinadas transformações começaram a se tornar economicamente vantajosos e politicamente úteis”. (Foucault; 2004; pág. 185) O surgimento destas novas práticas e configurações para Foucault (2005) é resultado de uma rede não “visível”, mas, difusa em toda sociedade marcada por novas formas de relação de poder que vinham se articulando a partir dos séculos XVII e XVIII: ”Em Vigiar e Punir o que eu quis mostrar foi como, a partir dos séculos XVII e XVIII, houve verdadeiramente um desbloqueio tecnológico da produtividade do poder. As monarquias da Época Clássica não só desenvolveram grandes aparelhos de Estado - exército, polícia, administração local – mas instauraram o que se poderia chamar uma nova economia do poder, isto é, procedimentos que permitem fazer circular todos os efeitos de poder de uma forma ao mesmo tempo 13 contínua, ininterrupta, adaptada e “individualizada” em todo corpo social”. (2004; pág.8) Num primeiro momento do trabalho, foi desdobrada a análise de Foucault (1993) no sentido de que a prisão aparece neste contexto, não, prioritariamente, como um mecanismo repressivo, conforme o próprio Estado justificará e justifica até hoje sua existência, mas como um dispositivo produtor, marcado pela “positividade”. Positividade aqui entendida como sinônimo de produção: produção de corpos dóceis, úteis (poder disciplinar/controle), “limpos” e “saudáveis” (biopoder) para o trabalho por um lado e produção da “delinqüência” (Foucault; 1993) por outro. Estas diferentes construções de “indivíduos” (Foucault; 1993) estão conectadas segundo Foucault. Estão articuladas. A professora Cristina Rauter (2003) em seu livro “Criminologia e subjetividade no Brasil”, desenvolve suas reflexões sobre o sistema prisional do Estado do Rio de Janeiro – onde atuou e militou por muitos anos - a partir das mesmas hipóteses de Foucault. “A prisão inaugurou, com uma nova modalidade de punição dita mais humana, um saber sobre a delinqüência. Na verdade diríamos que a prisão produz a delinqüência, não no sentido de que se devesse reformá-la ou de que seu funcionamento tivesse que ser aperfeiçoado. Ao contrário, dizer que a prisão produz o delinqüente é dizer que ela cumpre plenamente o seu papel enquanto dispositivo de controle social”. (2003; pág.118) Algumas questões importantes presentes nesta análise genealógica caberiam dentro das seguintes perguntas: a que tipo de dinâmica social interessa a pena privativa de liberdade? Que forças se articularam para que tal dispositivo fosse necessário a esta dinâmica? Que diagrama se formou e vem se reproduzindo, mas também, vem sofrendo “mutações reativas” no sentido de formar saberes e práticas nas quais a prisão é uma técnica de poder quase que inquestionável do ponto de vista da sua manutenção? Na primeira parte do trabalho buscamos explicitar algumas respostas que Foucault nos traz a estas interrogações. São respostas que fazem parte de uma fase de pesquisas de Foucault que Deleuze (1986) denominou como a fase do aparecimento de “um novo cartógrafo”. Neste momento a pesquisa se 14 concentrou na exposição de como - a partir do “Vigiar e Punir” (Foucault; 1993), do “Em defesa da Sociedade” (2008), da “História da Sexualidade I – a vontade de saber” (2003), da obra “Os Anormais” (2002) e da “Verdade e as formas jurídicas” (2005) - o encontro de determinadas relações de forças possibilitaram que a prisão se compusesse com o direito penal moderno, tornando-a mecanismo punitivo predominante do chamado Estado Democrático de Direito. Traremos a análise que o Deleuze (1988) faz sobre o modo de funcionamento do diagrama social e da sua abordagem sobre a articulação entre o visível (prisão) e o dizível (linguagem do Direito Penal) por entendermos que elas desvelam possibilidades muito interessantes das análises foucaultianas. Para terminar a primeira parte, articulei o “Vigiar e Punir” à abordagem que Foucault faz do papel do Estado e do biopoder neste processo de criminalização apontando esta abordagem para uma importante mutação no diagrama: da sociedade disciplina à sociedade de controle. Na segunda parte, foram feitas composições entre elementos utilizados nas reflexões do abolicionismo com as obras de Foucault e alguns de seus afins que abordamos na primeira parte do trabalho. Para promover tal associação utilizo alguns autores que construíram conceitos que estão situados dentro do discurso abolicionista: Louk Hulsman, Edson Passetti e Eugênio Raul Zaffaronni. Faz-se importante expor que este último autor não se autodenomina como “abolicionista”, no entanto, nos traz inúmeros conceitos que ao problematizarem o modo de operação discursivo e não discursivo do sistema penal se configuram como de grande interesse para as reflexões do abolicionismo. Ao associarmos Foucault ao abolicionismo penal o trabalho caminhou num processo problematizador, em outras palavras, buscou desconfigurar o modo de operação do sistema penal nos enviando para linhas de fuga nas quais podem aparecer algumas saídas das estratificações “constituídas”(Negri; 2002). A nossa hipótese é a de que não é possível criar se não desfizermos as amarras e verdades que caracterizam a dinâmica do controle punitivo. É preciso uma certa “desorganização” para que o novo apareça. 15 Flutuando neste percurso explicitamos ou introduzimos os conceitos foucaultianos e seus desdobramentos analisados na primeira parte do trabalho a determinadas categorias utilizadas pelo abolicionismo penal. Apenas no último capítulo que é realizada uma pequena inflexão com uma entrada na chamada terceira fase do Foucault que não foi desdobrada diretamente na primeira parte desta pesquisa. Nesta fase Foucault se debruça de modo mais incisivo sobre os “processos de subjetivação” e sobre a abertura para as “práticas de liberdade” em meio a estes processos. Entendemos que não foi necessário ser mais detalhado sobre esta fase do Foucault na primeira parte, pois, trata-se apenas de uma pequena entrada cujos conceitos foucaultianos estão explicados ou no próprio capítulo final ou ao longo de toda esta escrita. As categorias do abolicionismo trabalhadas foram “os bons e os maus”, “o culpado necessário” e o “estigma/estereótipo” em Louk Hulsman (1993), os conceitos de “sociabilidade autoritária”, “resposta-percurso” e os “encontros cara a cara” utilizados por Edson Passetti (2003) e Hulsman; e em Raul Zaffaronni (2007) a categoria de “Inimigo” em alguns momentos históricos do Direito Penal. Após alguns anos de leitura e pesquisas sobre a obra de Foucault – através de grupos de estudo, de colóquios, de aulas particulares com filósofos especialistas no autor, e de estudos individuais – a hipótese que levanto é a de que este pensador, embora seja muito citado nas pesquisas situadas dentro do campo epistemológico da história, das ciências sociais e do direito, acaba sendo estudado, dentro destes horizontes discursivos de uma forma um tanto quanto precipitada. Na maior parte das vezes se quer encontrar um Foucault sem Nietzsche, ou seja, um Foucault pensando a história como um estruturalista, desconsiderando jogos de forças que atravessam essa mesma história para além das formas e dos estratos constituídos. Acompanhando alguns autores que caminham na contramão deste predomínio, tentamos colaborar na inserção de abordagens que considerem esta dimensão, digamos, inventiva da vida, no pensamento de Foucault. 16 Além de colaborar nesta reflexão buscamos associá-la a alguns conceitos de um campo quase que abandonado pelas pesquisas sócio- jurídicas: o abolicionismo penal. Partimos da hipótese de que é preciso problematizar o discurso punitivo, como um “devir-menor” (Guattari; 1999), descaracterizá-lo em suas verdades, “desterritorializá-lo” (Deleuze & Guattari; 1995; pág.111) para que seja possível lidar de um modo diferente com os problemas que lhe dizem respeito, tais como a violência e outras práticas que o sistema penal afirma querer corrigir e /ou reprimir. Neste sentido, a hipótese aqui levantada é a de que tanto a obra de Foucault quanto os conceitos do abolicionismo que foram trabalhados podem promover uma disruptora e desorganizadora composição. Trabalharemos com a “Cartografia” (Guattari; 1999; 149) de algumas das relações de poder que possibilitaram que a emergência da prisão fosse útil aos estratos constituídos e se conjugasse a outros modos de subjetivação de determinadas coletividades. Seguindo o Foucault a nossa hipótese é a de que estas construções não estão desassociadas da constituição de indivíduos dóceis e úteis pelas escolas, fábricas, conventos, universidades e outras instituições modernas, também chamadas por Foucault de disciplinares e nem desarticuladas de alguns dispositivos predominantes do contemporâneo, como o “biopoder”, por exemplo. Para isso recorrerei também ao método nietzschiano/foucaultiano da genealogia. No que diz respeito à associação de conceitos de Foucault e do abolicionismo penal, o trabalho promoveu aquilo que Deleuze e Guattari (1995) classificaram como “agenciamentos”. Tal procedimento significa buscar compreender e potencializar os conceitos que estamos trabalhando, tanto os de Foucault e de alguns pensadores a ele próximos, quanto os do abolicionismo penal, a partir das articulações e aproximações que faremos entre eles, e não como algo que possui uma existência em si mesma, à parte das relações que estabelece. 17 PARTE 1 FOUCAULT E O NASCIMENTO DA PRISÃO COMO PEÇA DO DIAGRAMA DISCIPLINAR 18 CAPÍTULO 1 – A MECÂNICA DAS RELAÇÕES DE PODER NO DIAGRAMA DISCIPLINAR E AS FORÇAS ATIVAS E REATIVAS NIETZSCHEANAS. “Como denominar esta nova dimensão informe? Foucault deu- lhe certa vez o nome mais exato: é um diagrama, isto é “um funcionamento que se abstrai de qualquer obstáculo ou atrito... e que se deve destacar de qualquer uso específico”. O diagrama não é mais o arquivo, auditivo ou visual, é o mapa,a cartografia, co-extensiva a todo campo social”. (Deleuze; 1988; pág. 46) A questão do poder é um tema que se revelou como objeto de reflexões de muitos autores ao longo da história2. Da idade clássica com Hobbes, La Boétie e Maquiavel até a idade moderna com Locke, Rousseau, Marx, Weber, Tockeville e Nietzsche a temática do poder aparece com nuances e abordagens diferentes. Entre estas perspectivas ou mesmo na associação e disputa entre elas há alguns elementos destes diferentes discursos que se sobrepõem em relação a outros constituindo modelos predominantes de análises sobre a questão do poder. Neste sentido, há algumas representações diferentes sobre a teoria do poder que, embora sejam diferentes quanto as suas estratégias, conservam entre seus campos alguma intercessão a partir de determinados elementos discursivos. O que de maneira difusa ou mesmo confusa caracterizava o esquerdismo era, em termos de teoria, um novo questionamento do problema do poder, voltado tanto contra o marxismo quanto as concepções burguesas e em termos de prática, um certo tipo de lutas locais, específicas, cujas relações e necessária unidade não poderiam mais vir de um processo de totalização, nem de centralização, mas, como disse Guattari, de uma transversalidade. (Deleuze; 1988; pág. 34) Foucault irá trabalhar nesta “transversalidade” (Guattari & Rolnick; 2003) guattariana. Segundo Deleuze (1988), Foucault “deve ter sido o primeiro a inventar esta nova concepção de poder, que buscávamos, mas não 2 Em Platão (...) já se pode encontrar preocupações com respeito ao funcionamento da “Polis” e da constituição de maneiras de se conceber uma “idéia de justiça” (...) dentro das cidades gregas. 19 conseguíamos encontrar nem enunciar” (pág.34).3 E nesta “invenção” Foucault (1993) irá sugerir o abandono de alguns postulados e entre outras estratégias, tentar se colocar como um “novo intercessor” (Deleuze; 1993; pág. 158) da esquerda. Deleuze (1988) em seu livro sobre Foucault desdobra estes postulados e aponta alguns caminhos desta nova análise do poder. O título de “novo intercessor” da esquerda irá se justificar, naquele momento, pela crítica inovadora que Foucault irá propor, principalmente em relação a um certo tipo de freudismo/marxismo predominantes nas universidades francesas. É importante afirmar que embora Foucault se associe a esta crítica ao marxismo/freudismo predominante naquele momento, ele não irá abandonar as análises que Marx (2003) realiza no campo econômico. O que ele fará é retirar o conceito de “relações de produção” (Marx; 2003) da posição de infra- estrutura histórica - fora do modelo piramidal em que as relações de produção ocupam uma posição de base- e inseri-las num campo de imanência, no qual elas estão conectadas a outros tipos de relações, como as relações de poder, por exemplo. Este processo é mais bem explicitado na própria sugestão de abandono de “um certo número de postulados que marcam a posição tradicional da esquerda” (Deleuze; 1988; pág.34). Para compreender o abandono destes postulados, será preciso pensar na sua crítica de modo relacional. Em outras palavras, significa pensar a problematização de um postulado conjugada a problematização de outro(s). Por exemplo: o abandono do postulado da propriedade sugere a compreensão do “postulado da localização” e o “da subordinação” para ser melhor entendido. Passemos à explicação dos postulados para que fique mais clara a proposta do Deleuze (1988). “Postulado da propriedade” (Deleuze; 1988) 3 Talvez por situar sua abordagem numa perspectiva diferente da do marxismo ortodoxo e das concepções de poder que o entendem a partir de um viés exclusivamente jurídico-político - concepções estas que ainda predominam nas reflexões sobre o poder no contemporâneo - Foucault tenha sido tão criticado e mal compreendido. 20 “Ora, o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma apropriação, mas a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos”. (Foucault; 1993; pág. 28) O poder, segundo este postulado, seria algo que se tem, algo que uma classe teria conquistado e usaria esta conquista para manter o seu domínio nas relações de produção. Na nova concepção de poder não haverá negação da existência das classes e das lutas, mas trata de inseri-las num novo quadro, numa micropolítica, onde há inúmeros pontos de resistência, de criação, de enfrentamento. Os lugares onde o poder se exerce seriam construídos a partir de um exercício de poder, mais do que previamente definidos. “E “o” poder no que tem de permanente, de repetitivo, de inerte, de auto-reprodutor, é apenas efeito de conjunto, esboçado a partir de todas essas mobilidades, encadeamento que se apóia em cada uma delas e, em troca, procura fixá-las. Sem dúvida, devemos ser nominalistas: o poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é um nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada”. (Foucault; 2010; pág. 89) Esta diferença do filósofo com o marxismo ortodoxo e com as concepções jurídico-políticas do poder foi desdobrada em outros textos nos quais o Foucault nos remete ao problema da representatividade política, do intelectual, do psicanalista, do padre e das relações de poder que conectam estes modelos de exercício da vida na cidade, na polis. No prefácio da edição norte-americana, do “Anti-Édipo” (Deleuze & Guattari; 2010) - texto dos mais militantes da sua carreira – por exemplo, Foucault (2010) escreve uma curiosa frase: “não caiam apaixonados pelo poder” (pág. 106). A frase intrigante leva a problematização dos modelos de relação em que um fala pelo outro ou alguns falam por muitos. Não cabem aqui muitos desdobramentos sobre esta questão, pois enveredaríamos por outros caminhos que declinariam das linhas aqui propostas. Mas, tratar um pouco dela nos ajuda no entendimento do postulado da propriedade que está sendo analisado. 21 Ao perceber o poder como uma propriedade mais do que como um exercício, como uma relação, a estratégia se direciona para a conquista desta propriedade cujo espaço, o lugar não existe para todos. Alguns vão falar da verdade de muitos, como na representação política e jurídica, por exemplo. Não que Foucault, Deleuze e Guattari estejam propondo uma ingênua revolução para desconstruir estas formas de representação jurídico-políticas. Não se trata disso. Trata-se de problematizá-las enquanto verdades. Problematizar as hierarquias do campo social e ao problematizá-las chamar a atenção para a questão da “falta” 4 relacionada àquele que fala a verdade dos outros e da “vontade de submissão” daquele que permite que alguém fale em nome dele. O poder em Foucault é muito mais um exercício do que uma propriedade. Tal exercício se dá em relação: relação entre o representante e o representado, entre o padre e o fiel, entre psicanalista e o paciente. Sendo um exercício, o poder produz, reproduz e mantém estas identidades ao se exercer. Ao reproduzi-las este exercício vai marcando as experiências, constituindo-se como estímulos e crenças a respeito da manutenção e da necessidade destas hierarquias. Os estímulos e crenças vão reforçando os papeis nas relações de poder. Esta crítica nos leva a uma concepção na qual há um grande conteúdo de adesão voluntária (Weber, 1999, pág.188) no exercício do poder. E também nos remete a dificuldade de se mensurar o quanto de desprendimento de desejo por poder há naquele que fala em nome de outros e de se medir o processo oposto: o quanto de vontade de submissão há naquele que está sendo representado. Mas, retornemos da inflexão: Estes desdobramentos do postulado da propriedade estão articulados aos postulados da localização e da subordinação 4 A relação de poder implica num “desejo” de poder. Tal desejo constitui-se na relação onde o lugar de dominante e dominando são reproduzidos num processo de estímulo e recompensa. Trata-se de um de um mecanismo “reativo” – tal conceito será desenvolvido mais a frente – que se caracteriza pela “falta” constante. O poder tende a estender-se em busca de um objeto que lhe possibilite isso. A relação de poder sempre estará buscando este objeto que lhe “falta” e que lhe dará as condições para sua expansão. 22 que quando bem compreendidos levam a uma melhor compreensão do primeiro. “Postulado da localização” (Deleuze; 1988) “Analisar os métodos punitivos não como simples conseqüências de regras de direito ou como indicadores de estruturas sociais; Mas como técnicas que tem sua especificidade no campo mais geral dos outros processos de poder. Adotar em relação aos castigos a perspectiva da tática política”. (Foucault; 2010; pág. 26) O poder estaria localizado no aparelho de estado cujo controle seria o reflexo da hegemonia de uma classe social sobre a outra. Aqui o título dado por Deleuze (1988) à Foucault se torna mais evidente: um “novo cartógrafo”. O poder se distribui em rede a partir de forças instáveis. Trata-se de uma “Microfísica do Poder” onde o Estado não é um reflexo, nem uma unidade dessa microfísica, mas, um efeito conjunto ou resultante de uma multiplicidade de engrenagens. O estado seria uma forma maior sustentada por outras formas, por outras relações de poder, nas quais a disciplina, a partir do século XVIII, emergirá como uma função, uma máquina abstrata que atravessará e atualizará as instituições (formas5) estatais e não estatais, como a escola, a família, o convento, o sistema penal, a universidade, as relações de trabalho, e o próprio estado. Estas instituições ainda que estejam diretamente ligadas ao estado, possuem segundo Foucault, uma relativa autonomia, tanto em seus discursos, quanto em seu funcionamento interno. O sistema penal, por exemplo, ainda que seja um sistema estatal, será atravessado pela função disciplinar de uma forma específica em relação às outras instituições do campo social. A “vitória da prisão” segundo Foucault ou a articulação da rede penal ao diagrama disciplinar e a emergência da prisão nesta dinâmica não se dá em razão de sua efetividade no adestramento dos corpos dos indivíduos para a economia. A prisão se estratifica no diagrama disciplinare se resignifica na “sociedade de controle” (Deleuze; 1993) pelo 5 O termo “forma” aqui tem sentido filosófico. É sinônimo de “corpo”. A cadeira é uma forma, o sistema penal é uma forma, o estado é uma forma. As “palavras e as coisas” são formas. Guardadas as devidas diferenças epistemológicas, na linguagem heideggeriana o termo “ente” teria um significado semelhante ao termo de “forma” em Deleuze. 23 sucesso de sua função que “fabricaria uma ilegalidade fechada, separada e útil” (Foucault; 1993; pág.244). Função esta, que constitui identidades sobre àqueles que são submetidos a esta rede, além de possibilitar a constituição de saberes sobre a “delinqüência” reafirmando e reproduzindo estas identidades construídas. Esta colocação da prisão como parte do diagrama disciplinar - que será melhor explicitada ao longo deste trabalho – não é elaborada pelo forças do estado, mas tem “procedimentos e exercícios que o estado aprova, controla ou se limita a preservar em vez de instituir” (Deleuze; 1988). Neste sentido há uma certa autonomia do sistema penal que construirá mecanismos para garantir esta autonomia e para se conservar e se reproduzir. Trata-se de um corpo, de uma forma que funcionará no sentido da sua própria conservação. No que diz respeito à composição da prisão como função do Estado, Deleuze (1988) junto com Foucault (1998) nos afirmam que “a prisão não tem suas origens nas estruturas jurídico-políticas da sociedade” (Deleuze; 1988; pág.36). No capítulo sobre a “polícia” dos quakers e dos metodistas, as lettres- de-cachet na França” esta questão está melhor trabalhada. O que nos interessa afirmar neste momento é que o sistema penal enquanto uma forma, um corpo, possui sua própria mecânica constituída por múltiplas relações de poder onde há uma micropolítica que se compõe com a macro-política estatal. Nesta associação entre a micro e a macro-política há uma relativa autonomia da dinâmica penal em relação ao próprio estado do qual faz parte. O estado é uma resultante em Foucault. Um corpo maior sustentado por múltiplos corpos. Por uma micropolítica. As formas, os estratos – entre os quais poderíamos colocar o sistema penal - emergem a partir de relações de forças. E estas relações de forças, muitas vezes, não são localizáveis. As relações de poder são o produto de fragmentos de forças que se relacionam6. E a rede penal enquanto uma forma é constituída por um certo número de relações de poder, por um certo número 6 Esta questão das formas, das relações de poder que emergem a partir das forças será melhor desdobrada algumas páginas à frente. 24 de corpos, de identidades construídas que vão atuar com certa autonomia e investimento conservativo emergindo a partir destas relações de forças. Postulado da subordinação (Deleuze; 1988) “... o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. Essa sujeição não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia, pode ser muito bem direta, física, usar força contra força; agir sobre elementos materiais sem, no entanto, ser violenta”. (Foucault, 2010; pág. 28) De acordo com este postulado, o poder estaria concentrado no aparelho de Estado o qual atuaria construindo investimentos para a manutenção de determinadas ideologias. Estas ideologias, mantidas pelo poder do estado, seriam um reflexo, um desdobramento se reproduzindo para a conservação do predomínio burguês nas relações de produção. As relações de produção seriam a estrutura-histórica e o estado e suas ideologias, superestruturas, reflexos superestruturais investindo no predomínio de determinada classe. Em Foucault a função disciplinar/controle está associada ao sistema de produção, mas “é difícil ver uma determinação econômica em última instância” (Deleuze; 1988; pág. 36). “As relações de poder não se encontram em posição de exterioridade em relação a outros tipos de relação...” (Foucault; 2003; pág.90). Aqui não há uma figura piramidal global, mas imanência entre o sistema econômico e o diagrama disciplinar. É certo que há hierarquias no campo social, mas são hierarquias difusas pelas formas institucionais e não institucionais que se constituem num processo histórico e não numa base estrutural econômica. Significa afirmar que uma mudança nas relações de produção( numa linguagem marxista clássica: uma mudança na infra-estrutura) não significa, necessariamente, como conseqüência, uma mudança nas relações de poder e nas hierarquias presentes nas formas sociais. Sem dúvida alguma, a economia, o trabalho, são formas que se estenderam em termos globais e alcançaram uma certa universalidade. Sem dúvida alguma, estas formas repercutem nos valores, nas instituições, na moral. Entretanto, o capitalismo embora tenha se tornado universal, a sua universalidade não se mantêm somente graças ao controle dos meios de produção e das ideologias que a este predomínio estão ligadas. A própria 25 forma econômica encontra condições de possibilidade de sua manutenção e reprodução nas micropolíticas, nas instituições, na moral cotidiana que não se encontram em posição de superestrutura em relação à economia. Postulado da essência ou atributo e da modalidade (Deleuze; 1988) “Finalmente, não são unívocas; definem inúmeros pontos de luta; focos de instabilidade comportando cada um seus riscos de conflito, de lutas e de inversão, pelo menos transitória das relações de forças7. A derrubada desses micropoderes não obedece, portanto, a lei do tudo ou nada; ele não é adquirido de uma vez por todas por um novo controle dos aparelhos nem por um novo funcionamento ou uma destruição das instituições; em compensação nenhum dos episódios localizados pode ser inscrito na história senão pelos efeitos por ele induzidos em toda rede em que se encontra”. (Foucault; 2010; pag. 29) “O poder teria uma essência ou atributo que qualificaria os que o possuem e os que não o possuem”. (Deleuze; 1988, pág. 37). Em Foucault, o poder é operatório, é relação. Não existe em si mesmo, não é uma substância. Atua em relação, sempre. A desconstrução deste postulado se relaciona com a desconstrução do postulado seguinte que é o da modalidade. Neste, o poder agiria, exclusivamente, por ideologia e repressão. O poder mais do que reprimir, produz. Ele produz, fabrica corpos, identidades, formas, mas fabrica em relação. Produz a identidade dominante e a dominada na relação entre ambos. Não há dominante sem dominado. Não há relações de poder que não impliquem numa possibilidade de resistência que podem implodir estas relações. Logo, o papel do ator dominante pressupõe o papel do ator dominado sem os quais não haveria relação de poder atuando. Isso significa afirmar que quando se ocupa um papel de poder, de falar em nome de outros, por exemplo, esse papel pressupõe a conservação e reprodução da identidade daquele em nome do qual se fala. E reproduz também a identidade daquele que fala em nome de outros. “G.D.: ... Se as crianças conseguissem que seus protestos, ou simplesmente suas questões, fossem ouvidas em uma escola maternal, isso seria o bastante para explodir o conjunto do sistema de ensino. Na verdade este sistema em que vivemos nada pode suportar: daí sua 7 Segundo Deleuze (1988), em Foucault o conceito de “relação de forças” é diferente do conceito de “relação de poder”. Na pág. 22 deste trabalho, esta diferença se encontra um pouco desenvolvida. As “forças” remetem ao pensamento de Nietzsche, no qual as relações de poder emergem a partir destas forças. 26 fragilidade radical em cada ponto, ao mesmo tempo quesua força global de repressão. Ao meu ver você8 foi o primeiro a ensinar – tanto em seus livros quanto no domínio da prática – algo de fundamental: a indignidade de falar pelos outros. Quero dizer que se ridicularizava a representação, dizia-se que ela tinha acabado, mas, não se tirava a conseqüência desta conversão teórica, isto é, que a teoria exigia que as pessoas a quem ela concerne falassem por si próprias”. (Foucault; 2004; pág. 72) Em Foucault, a violência e a repressão não são ignoradas de modo algum. No entanto, são secundárias em relação à dimensão positiva, produtiva do poder. Postulado da legalidade – Este postulado será mais bem explicado no capítulo 3 deste trabalho. Neste momento, interessa afirmar que Foucault substitui a oposição “lei-ilegalidade”, por uma correlação “ilegalismos-lei”. Nesta correlação há ilegalidades que serão, somente, formalmente ilegais. A concretização destas práticas ilegais, no entanto, se torna necessária à dinâmica da vida na Cidade. Isto um estudante de direito conhece bem: significa afirmar que a proibição de uma determinada prática não significa um investimento no sentido de expurgá-la do campo social. Os ilegalismos dos crimes financeiros, das campanhas eleitorais, da gestão pública são exemplos deste funcionamento. A lei determina os ilegalismos, mas alguns devem ser tolerados na prática jurídica, política e social cotidiana para que outros possam ser severamente punidos, à margem até mesmo das garantias legais do individuo que realizou um ato ilícito ou que está sendo acusado de tal ação. Nesta crítica aos postulados tradicionais a partir do quais o poder é analisado, pode-se observar um movimento cartográfico de Foucault. Uma cartografia do funcionamento das relações de poder, do seu nascimento, sua reprodução que o filósofo vai mapear a partir de seu olhar sobre dispositivos localizados como a sexualidade, a loucura, a prisão, os discursos, o biopoder. Foucault faz recortes sobre as práticas históricas que estuda e busca atuar numa perspectiva local, não totalizante. No entanto, não deixa de reconhecer que existem formas, discursos, práticas que se espalham pelo campo social 8 Esta citação é retirada de um diálogo entre Foucault e Deleuze intitulado “Os Intelectuais e o Poder”. Deleuze usa o pronome “você” referindo-se à Foucault. 27 estudado em determinado momento histórico. Inobstante as especificidades históricas e políticas dos dispositivos como a sexualidade, o aprisionamento e o discurso sobre a loucura na passagem da idade clássica para a idade moderna, por exemplo, é possível reconhecer uma “função co-extensiva” (Foucault; 1993) atravessando estes dispositivos e criando condições para sua manutenção e reprodução. Esta função co-extensiva é chamada por Foucault de diagrama. O diagrama é a “causa comum imanente a todo campo social” (Deleuze; 1988; pág. 45), “uma função que se abstrai de qualquer atrito e que se deve destacar de qualquer uso específico” (Foucault, 1993; pág.207). É verdade que a idéia de uma causa que se estende por todo campo social poderia nos remeter a idéia de infra-estrutura que foi desconstruída anteriormente. Se não é uma infra-estrutura, então surgem algumas questões: o que seria este diagrama que se co-estende já que ele não é uma estrutura? Seria algo como uma substância ahistórica, na medida em que Foucault afirma que “toda sociedade possui seus diagramas”? Há “alguma coisa”, algum movimento a partir do qual este diagrama aparece? O diagrama não é nem uma estrutura e nem uma substância histórica ou ahistórica. O diagrama emerge. Acontece. Sofre mutações e investimentos conservativos. E a sua emergência se dá a partir de “forças” (Nietzsche;2010). Aqui a influência de Nietzsche sobre Foucault se revela mais potente. Segundo Nietzsche (1947; pag. 36) o que governa o universo são forças. Forças sem formas. Forças que possuem duas características principais que irá classificá-las de acordo com estas características. “A qualidade nada mais é do que a diferença de quantidade e lhe corresponde em cada relação de força”. (Deleuze;... pág. 50) “Segundo a diferença de quantidade entre elas, as forças são ditas dominantes ou dominadas. Segundo a qualidade delas as forças são ditas ativas ou reativas”. (Deleuze;... pág. 60) A partir desta caracterização das forças segundo suas qualidades, podem-se observar alguns desdobramentos de cada uma delas: As forças ativas são criadoras. Remetem para o futuro. Para o infinito. Para uma totalidade aberta. O seu movimento desconstitui as formas para 28 criar. Trata-se de uma mutação que associa fragmentos de potências fazendo emergir um “devir-diferença” (Deleuze; 1993) constante. Inventa novas possibilidades de vida. Já as forças reativas possuem três características principais: conservação, adaptação e utilidade. Atuam e se associam no sentido de manter as formas. A idéia de identidade, por exemplo, está associada às forças reativas. A memória também se desdobra como uma função onde há predomínio da força reativa. Na força reativa o movimento será de “desejo” pelo conhecimento, pelo passado. Conhecer as leis da vida para obedecê-las. Nietzsche (1947) irá afirmar que ambas as forças são necessárias à vida, ao movimento do universo, da natureza. Mas, embora estas duas espécies de forças sejam necessárias à vida, elas nunca se encontram numa posição de equilíbrio. Sempre há o predomínio de uma força sobre a outra. O que ocorre na história do homem é que a força ativa, a força que remete a alegria (Spinoza; 2009) da criação, que nasceu para dominar, foi decomposta e dominada pela força reativa. A história do homem é a história do domínio da força reativa sobre a força ativa. Esta é uma das teses de Nietzsche. Ora, se a história do homem é a história do domínio da força reativa, logo, no diagrama que se co-estende ao campo social, nas relações de poder deste diagrama, nas identidades e sistemas que compõem a dinâmica social, na função disciplinar, haverá movimentos onde as qualidades que irão predominar serão a conservação, a utilidade e a adaptação. E se a história do homem e das relações sociais é formatada pelo domínio das características reativas, na subjetividade, na “alma” 9 não será diferente. Estas forças que atravessam o universo invadem a subjetividade, onde também haverá predomínio de uma força sobre a outra. Quando as forças reativas dominam as forças ativas, a memória do homem que deveria estar a serviço da força ativa, da criação, se transforma em “ressentimento” (Nietzsche; 2003). O 9 O termo “alma” aqui não tem o sentido platônico, de uma experiência para além do corpo. Trata-se de remeter aos processos de cognição, de hábito e das forças inconscientes que marcam e atravessam constantemente o indivíduo. 29 “ressentimento” decompõe a criação e a diferença, dificultando no pensamento a emergência das forças ligadas à arte e à filosofia, por exemplo, e restringindo, também, as possibilidades de potencialização de uma ciência mais comprometida com a construção do novo do que a serviço da utilidade e a adaptação. 10 No entanto, embora haja o predomínio da força reativa isso não significa a extinção da força ativa. Ela continua atravessando as formas, provocando mutações, diferenciações na vida, no campo social. Mas, o investimento na conservação das formas, na adaptação dos sistemas é constante e neste sentido as mudanças acabam servindo mais à manutenção dos estratos sociais do que à criação de novas possibilidades. Segundo Deleuze (1988) o diagrama se “atualiza em seu efeito” e o faz de dois modos: se diferenciando e se integrando.Todo este movimento do poder operando em relação se dá por integrações e diferenciações. Integração é o movimento de expansão que uma força – transformada em relação de poder – realiza. Ambas as forças – ativas e reativas - buscam afirmar-se, expandir-se. É da própria natureza das forças buscarem sua expansão. O “princípio da Inércia” expressa relativamente bem esta movimento das forças: Um corpo (poderíamos substituir por: uma força) tende a permanecer em movimento ou em repouso se não houver outra força que se constitua como obstáculo a esta permanência. Logo as forças tendem a integração, a expansão se houver condições de possibilidade para tanto. E quando as forças se transformam em formas, em relações de poder, não será diferente. As formas – onde há predomínio das forças reativas – buscam a expansão para se conservar. E como a ameaça de destruição dessa forma que quer se conservar é iminente e constante, pois a mutação, o choque com as forças ativas se dá a todo o momento, a forma busca expandir-se para que se adapte e se conserve em meio à possibilidade constante de se desconfigurar. Neste sentido, a integração de determinada forma, de determinada função, de 10 Heidegger (1997.) por um caminho diferente, talvez nos expresse algo semelhante ao tratar da “questão da técnica”. 30 determinada relação de poder no campo social sofre uma grande influência do acaso neste processo de expansão. Expliquemos melhor: Segundo Foucault, a função disciplinar “co-extensiva”, ou seja, uma função que “se abstrai de qualquer obstáculo ou atrito” (Foucault; 1993; pág. 207) não se dá, majoritariamente, pela imposição de uma classe que passa a controlar os meios de produção e o Estado. Mas a integração se realiza pelas condições de possibilidade favoráveis do campo social, por “um solo fértil” que permite que uma relação de poder se integre, se expanda, se prolifere pelas instituições, pelas relações de trabalho, pelo regime de punição, pelas famílias, pelos processos pedagógicos. E essa função se expandindo é utilizada estrategicamente, segundo Foucault. (2006). A dominação de uma classe social não é um lugar de controle de todos os processos históricos. Esse próprio controle e as suas estratégias e investimentos - que existem sem dúvida alguma, segundo Foucault - estão submetidos a um regime de “mutação” (Maquiavel; 2004) que não pode ser impedida, embora se invista a todo instante no uso dessa mudança para a manutenção e conservação de determinadas formas que interessam ao diagrama e ao sistema econômico. A expansão-integração se dá e as classes dominantes, o estado “aprova, controla ou se limita a preservar ao invés de instituir” (Deleuze; 1988; pág.35). Quanto à função diferenciativa, cabe nos remetermos ao postulado da modalidade e da essência ou atributo que analisamos anteriormente. Para o digrama se atualizar se diferenciando é preciso que, em relação, ele produza corpos, identidades que vão se diferenciar no próprio exercício das relações de poder: dominante e dominado se produzindo em relação. Se não, vejamos: É possível, neste momento, trazer algumas ilustrações, exemplos dentro das relações sociais que irão clarear um pouco este movimento tão abstrato que estamos desdobrando. Na função diferenciativa um exemplo que se reproduz diariamente nas relações cotidianas pode ser bastante ilustrativo: Mv Bill (2005) - hoje conhecido nacionalmente pela exibição do documentário “Meninos do Tráfico” exibido durante algumas semanas pelo programa “Fantástico” da Rede Globo de Televisão – escreveu um livro junto com o produtor Celso Athayde (2005) e com o antropólogo e ex-secretário de 31 segurança do Estado do Rio Janeiro Luiz Eduardo Soares (2005). Neste livro relata experiências pessoais como ex-morador da Cidade de Deus, além de descrever suas pesquisas e vivências em inúmeras favelas do Brasil onde funcionam ou funcionavam o mercado do varejo de drogas. Em um destes depoimentos Mv Bill fala de sua adolescência e do seu “primeiro carro”: um carrinho de supermercados no qual levava as compras dos consumidores até suas casas. Os meninos que realizam tal trabalho são chamados de “marrecos”. Os “marrecos”, por sua vez, chamam as senhoras, donas das compras que levam, de “madames”. Irei reproduzir estas identidades aqui – embora busque fugir delas neste trabalho - neste relato por razões pedagógicas. Um belo dia Bill, o “marreco”, é solicitado por uma “madame” moradora do Botafogo – bairro onde se localizava o supermercado – para que leve suas compras até seu apartamento. Durante o percurso até o prédio, o “marreco” é constantemente chamado a atenção pela “madame” por causa de sua suposta lentidão e da pressa da “madame”: “... ela não podia entender que eu não poderia caminhar diante de tantos obstáculos pela frente e pelos lados” (Bill; Athayde; Soares; 2005; pág. 79). Depois destes breves e tensos momentos, o “marreco” e a “madame” chegam ao prédio destino e pegam o elevador. Durante o trajeto do térreo ao andar destino, o “marreco” em alguns momentos vai deixando de ser marreco e a “madame” vai deixando de ser madame. Uma potência diferente emerge ali. Na subida do elevador, Bill (2005) é surpreendido por olhares da madame dirigidos a ele com intenções para além de uma relação de poder entre uma “madame” e um “marreco”. Bill (2005) demora a compreender o que se passa. Mas, diante da manifestação constante e intensa começa a vislumbrar a possibilidade de concretização de uma prática de amor entre o “par” do elevador no “AP” de Botafogo. Bill (2005) idealiza o momento mágico e ainda vislumbra a chance de “tirar uma onda” com seus colegas de trabalho, contando a eles os prazerosos momentos que ele vivera naquela tarde. Mas, a porta do elevador se abre e logo em seguida a porta de serviço do apartamento da mulher, que volta a ser “madame” ao reafirmar a condição 32 de “marreco” de Bill (2005): Ela manda que ele que deixe as compras no chão. O “marreco” entrega as compras, sai do apartamento e chama o elevador. A “madame” pede que sua filha espere junto ao “marreco” a chegada do elevador. A filha da “madame” e o”marreco” trocam alguns pequenos olhares constrangidos, daqueles que se trocam entre pessoas que nunca se viram e que são atravessadas por um silencio constrangedor. Mas, tudo bem! O “marreco” volta ao trabalho um pouco frustrado por uma expectativa criada e idealizada, mas, não realizada. No dia seguinte, o “marreco” é acusado de ter tentado agarrar menina filha da “madame”. A própria “madame” foi até o supermercado construindo uma história que não se deu e pressionando o supermercado para que mandasse o “marreco” embora “sob pena” de realizar a “notícia-crime” (...) e as “ medidas judiciais cabíveis”. O “marreco” desmente a madame”! Tenta contar o que se passou. Mas, ninguém, a não ser alguns de seus colegas, acredita em sua história. “Seu Joaquim” gerente do supermercado manda que o “marreco” faça sua rescisão com o “Seu Edmar”. Mas, “Seu “Edmar é um dos poucos que acredita na história de Bill (2005) pois já tinha presenciado situações semelhantes com “madames” freqüentadoras do supermercado. “Seu Edmar” convence “Seu Joaquim” não da veracidade da história do “marreco”, mas, o convence a dar uma nova chance ao “marreco”, que fica no trabalho, mas nunca mais olha pra “madame” nenhuma. Onde está o processo de diferenciação do diagrama presente nesta história? No curto período de manifestação de desejo por Bill (2005), a “madame” quebrou a identidade de “madame” ao quebrar, também, a identidade do “marreco” pois, uma “madame” que corresponda ao “código social” das “madames” não pode desejar um “marreco”. Bill na subida do elevador deixou de ser “marreco”,nos seus desejos e nos dá mulher que o desejava. Mas, a quebra da identidade foi tão abrupta para a madame que nem ela mesma suportou aquele “desejo” e precisou reafirmar a sua identidade de “madame” colocando o “marreco” em seu “devido” lugar de “marreco”: construiu, divulgou e ameaçou com uma história que não existiu. 33 É o diagrama se atualizando na diferenciação. Só há “madame” se houver “marrecos” para garantir a relação de poder entre estes entes. E a identidade é produzida na própria relação, pois, não há identidade fixa. Somente se atualizando na diferenciação é que as formas emergem. Tais processos de diferenciação se revelam no adestramento dos corpos, onde a subjetividade de alunos, de trabalhadores, de marrecos, de madames, de professores, de burgueses e operários será produzida através de múltiplas estratégias e estímulos. E dentro destas estratégias e estímulos, a posição de dominante e de dominado emergem e se reproduzem num processo constante. Processo no qual a crença a respeito de sua posição e da necessidade dela nessas relações de poder é fundamental para sustentá-la e reproduzi-la. Daí surge, de acordo com a posição tomada neste trabalho, um dos grandes aspectos da obra de Foucault: a questão da positividade, da produtividade das relações de poder. As relações de poder emergem e produzem formas identitárias, produzem discursos, saberes e crenças. Mais do que reprimir, o poder produz. E, como vimos, o faz a partir de relações de forças que atravessam o mundo, as formas, governando sem início, nem finalidade todos estes processos que envolvem o homem e a natureza. 34 CAPÍTULO 2 – DESDOBRAMENTOS DO DIAGRAMA: O ADESTRAMENTO E O PANOPTISMO COMO PROCESSOS DE NORMALIZAÇÃO E DE PRODUÇÃO DE SABER SOBRE “OS ANORMAIS”. “Se nos limitarmos à evolução das regras de direito ou dos processos penais, corremos o risco de valorizar como fato maciço, exterior, inerte e primeiro, uma mudança na sensibilidade coletiva, um progresso do humanismo, ou o desenvolvimento das ciências humanas. Para estudar, como fez Durkheim, apenas as formas sociais gerais, corremos o risco de colocar como princípio da suavização punitiva processos de individualização que são antes efeitos das novas táticas de poder e entre elas dos novos mecanismos penais. (Foucault; 1993; pág. 26) A palavra “adestramento” em Foucault (1993) é um termo utilizado para representar alguns dos desdobramentos a partir dos quais funciona o diagrama disciplinar. Trata-se de um olhar minucioso sobre os mecanismos disciplinares e sobre as mudanças ocorridas na maneira mais extensa e difusa a partir da qual estes mecanismos atuam. O adestramento na sociedade disciplinar, segundo Foucault (1993), opera a partir de três recursos principais que resumem estes movimentos estratégicos de docilização e utilização dos corpos. Tais recursos, como ficará descrito aqui, estão articulados a função panóptica que aparecerá como uma técnica eficaz de produzir os indivíduos sob determinados modos. Estes três elementos – chamados por Foucault (1993) de “Os recursos para um bom adestramento” (pág.153) – são denominados de “vigilância hierárquica”, “sanção normalizadora” e “exame”. O processo de disciplinarização tem tamanha importância para Foucault neste momento histórico – século XVIII e XIX – que em alguns momentos, ele classifica a sociedade a partir desta função: sociedade disciplinar. É importante ressaltar, entretanto, que esta forma de normalização e enquadramento das experiências subjetivas se transformou bastante ao longo destes quase dois séculos. Deleuze (1992) ressalta esta mudança a ponto de caracterizá-la como uma modificação no diagrama, uma mutação na função co-extensiva: da sociedade disciplinar para sociedade de controle. Mas, embora concordemos com Deleuze (1992) quanto a esta mudança no modo de operação e 35 desdobramento das relações de poder11, entendemo-la , sob os aspectos que nos interessam neste trabalho, como uma radicalização de um processo anterior – disciplinar - com suas especificidades. Ainda que tenha havido toda esta modificação no diagrama12, o papel da prisão e a sua composição e manutenção dentro desta rede de funções, identidades e lugares sociais, não nos parece que tenha mudado. Logo, a análise da sociedade disciplinar faz-se profundamente necessária para entendermos o processo de normalização que se encontra radicalizado e um tanto quanto transformado na “sociedade de controle” (Deleuze; 1992; pág. 219). Além do mais, a polarização surgida na modernidade entre a normalização e “Os anormais” (Foucault; 2001) ainda é bastante atual no que diz respeito à prisão e seus papeis principais no contexto contemporâneo. No tocante ao adestramento, a “vigilância hierárquica” consiste numa inversão em relação ao diagrama de soberania. Neste o poder punitivo deverá expressar o máximo de visibilidade para demonstrar sua força, além de ao mesmo tempo tornar invisível aqueles sobre quem este poder se exerce. Na sociedade disciplinar o processo se inverte: o poder torna-se invisível e as pessoas e seus respectivos efeitos de poder é que devem adquirir visibilidade. Tal visibilidade dá condições de possibilidade para constituição de saberes sobre os indivíduos nos quais este poder se exerce. “A disciplina fabrica indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos do seu exercício. Não é um poder triunfante que, a partir de seu próprio excesso, pode-se fiar no seu suoerpoderio; é um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente. Humildes modalidades, procedimentos menores, se os compararmos aos rituais majestosos da soberania ou aos grande aparelhos do estado”. (Foucault; 1993; pág. 153) 11 No capítulo 6 encontra-se uma abordagem mais detalhada sobre esta mudança no diagrama. As estratégias de enquadramento passam do espaço fechado (disciplinar) para o espaço aberto (controle), mais próximo daquilo que Foucault chama de “biopolítica”: controle sobre a vida em espaço aberto. 12 Já neste capítulo, nas próximas linhas, o trabalho apresentará algumas relações entre determinados elementos do adestramento e algumas dinâmicas e estratos de poder atuais, como o Big-Brother Brasil e seus coadjuvantes e correspondentes na internet, por exemplo. 36 O modelo quase ideal deste observatório (vigilância hierárquica), segundo o autor, é o acampamento militar, no qual haverá um encaixamento espacial de vigilâncias hierarquizadas. Este acampamento pode se exemplificar nas fábricas, por exemplo, numa rede na qual inspetores vigiam outros inspetores. Tal rede se identifica com a descrição daquilo que Foucault (1993) chama de “fiscais permanentemente fiscalizados” (pag. 154). Uma competição estabelecida e estimulada entre os próprios operários. Estes em disputa pela sobrevivência e sendo atravessados pelos novos desejos que emergem com aumento da produção de bens no capitalismo, ao mesmo tempo em que constituem novas resistências e maneiras de se associar, também são estimulados pelo próprio processo disciplinar a estabelecer dinâmicas de competição entre si. Nestas relações passam a vigiar o outro como forma de garantir seu lugar neste processo ou vislumbrando a promessa de ascensão à outros lugares sociais13. Este movimento de diferenciação do diagrama, que vai atuando na produção de identidades hierarquizadas, marca competitivamente, também, as relações numa mesma classe social. Se não, vejamos: Ao longo da “Idade Clássica” (Foucault; 1972; pág.351) o trabalho vai se constituindo como um imperativo moral.A pobreza vai deixando de ser uma virtude ou um caminho de sacrifício rumo à vida eterna, para se desenhar como um estigma, como um problema moral ligado ao esforço individual. O trabalho vai se tornando uma necessidade moral. A disciplina vai radicalizando este processo de identidade entre o humano e o trabalho contribuindo significativamente para a constituição de uma proletarização do campo social. Esta proletarização está conjugada à propagação de um outro fenômeno que se multiplica também pelo campo social: o econômico. Neste processo de reverberação econômica e proletarização dos estratos sociais vão aparecer outros papeis além daqueles exercidos pelos 13 Não se trata de generalizar qualquer relação entre os operários. Em outros termos: não significa afirmar que em Foucault não há escapatória deste processo competitivo. A tentativa metodológica usada pelo autor é a de problematizar, cartografar uma prática histórica observando seus efeitos e abrindo a partir deste processo, a possibilidade de aparecimento de resistências. 37 proletários e pelos burgueses. Embora se constituam como heterogêneos, estes diferentes papeis estarão ligados, segundo Deleuze (1988), pela própria função disciplinar. Nesta teia de papeis, aparece aquele que Marx (2004) chama de “lúpem- proletariado” (pág. 752) e/ou o “exército de reserva” (pág. 752). A existência deste exército dá algumas condições econômicas para a exploração do proletariado que tem sua hora de trabalho paga a preços baixos graças, entre outras coisas, a fila de espera dos desempregados, que fragiliza as possibilidades de negociação do operário por melhores salários. Num horizonte de competição, precarização e exploração nas relações de trabalho, o operário acaba muitas vezes se relacionando com este “exército de reserva” de um modo competitivo e estigmatizante, perdendo de vista a articulação desta categoria dentro destas formas disciplinares. O limiar é sutil entre a tensão estabelecida sobre “o lúpem-proletariado” (Marx; 2004; pág. 752) e os operários, e a criação de identidades estigmatizadas sobre este lúpem. O próprio trabalho constituído como um imperativo moral vai ser determinante na produção destes estigmas. Entre aqueles que ocupam os lugares de dominados em termos econômicos – os operários, o exército de reserva, o lúpem-proletariado, os loucos - vai se produzir uma fragmentação, uma tensão, uma captura das resistências, uma oposição destas entre si. Esta fragmentação se favorece pela produção de discursos e saberes sobre esta “multidão” (Negri & Hart; 2005; 417) que vai emergindo do século XVIII ao XIX. Sobre esta “multidão” múltipla e difusa de operários, desempregados e loucos, vão se construir saberes que possibilitarão colocar cada qual em seu lugar de acordo com sua identidade, desenhando sobre esta massa difusa um olhar hierarquizado e vigilante que vai do dominante ao dominado, do dominado ao dominante e entre os próprios dominados. Ressentimentos se modulando no predomínio das “forças reativas”. (Deleuze;1979) A “vigilância hierárquica” se articula à “sanção normalizadora” que é o segundo recurso para o “bom adestramento” (Foucault; 1993). A sanção é um elemento muito caro ao direito penal. E este, segundo Foucault (1993), se apresenta de uma determinada forma no discurso jurídico, mas, se afirma de outra nas práticas “não-discursivas” (Deleuze; 1988; pág. 67). A sanção penal 38 moderna que tem a prisão como identidade, servirá a outros fins que não aqueles declarados no discurso. E esta diferença entre o “discursivo” e o “não discursivo” não é hegemonicamente ideológica, como queria o marxismo ortodoxo, mas, produtiva. A sanção se compõe com o exame, que extrai saber dos corpos, marcando determinados lugares, enquadrando os corpos sobre representações: o normal, o louco, o monstro, o delinqüente. Tratarei melhor desta questão do processo de diferenciação do diagrama a partir da produção de saber sobre a anormalidade (Foucault; 2001) ao abordar o recurso do exame. Aqui neste momento gostaria de acentuar o processo de normalização e não a produção de saber sobre “os anormais” (Foucault; 2001) “A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia, homogeniza, exclui. Em uma palavra ela normaliza. Opõe-se, então, termo por termo a uma penalidade judiciária que tem por função essencial, não um conjunto de fenômenos observáveis, mas, um corpo de leis e de textos que é preciso memorizar; não diferenciar indivíduos, mas, especificar atos num certo número de categorias gerais; não hierarquizar, mas, fazer funcionar pura e simplesmente a oposição binária do permitido e do proibido; não homogeneizar, mas realizar a partilha adquirida, de uma vez por todas da condenação. Os dispositivos disciplinares produziram uma penalidade da norma que é irredutível em seus princípios e seu funcionamento a penalidade tradicional da lei”. (Foucault; 1993;pág. 163) É que se por um lado a sanção marca os indivíduos enquadrando-lhes sob determinados papeis no campo social – delinqüente, louco, histérica -, no que diz respeito à docilização e o adestramento dos corpos, ela se desdobra num funcionamento específico. A sanção que normaliza está conjugada com o processo que estimula à produção de determinadas subjetividades. Estimula as potências econômicas do corpo pela repetição e pelo hábito. A disciplina vem adestrar os corpos para o trabalho e para a economia. Este processo disciplinar vai necessitar da sanção para bloquear as experimentações que não se afinem com este adestramento. A “sanção normalizadora”, assim como a vigilância hierárquica, estimula determinadas potencialidades por um lado e bloqueia a experimentação e estratifica os comportamentos, por outro. Em outras palavras: homogeniza os corpos através de um exercício de “gratificação- sanção”. “A punição disciplinar é, pelo menos por uma boa parte, isomorfa à própria obrigação; ela é menos a vingança da lei ultrajada que sua 39 repetição, sua insistência redobrada. De modo que o efeito corretivo que dela se espera apenas de uma maneira acessória passa pela expiação e pelo arrependimento; é diretamente obtido pela mecânica de um castigo. Castigar é exercitar. 4) A punição, na disciplina, não passa de um elemento de sistema duplo: gratificação-sanção. E é esse sistema que se torna operante no processo de treinamento e de correção. (Foucault; 1993; pág. 161) Exercício, repetição e hábito por um lado e culpabilização por outro. “Castigar é exercitar” é repetir e estimular determinadas forças. Este momento nos remete ao capítulo anterior sobre as forças ativas e reativas. Como vimos, num estrato (Deleuze, 1988), numa forma padronizada como a disciplinar em que as potências que são estimuladas são aquelas voltadas para a economia, nas quais os papeis são, de certa forma, pré- estabelecidos, haverá o predomínio das forças reativas. Neste predomínio, em que os estratos constituídos prevalecem em relação às forças constituintes (Negri; 2002), em que as premissas e soluções são dadas, há diminuição da “potencia de agir” (Spinoza; 2009). Segundo Spinoza (2009) “um corpo aumenta sua potência de agir”, ou “busca perseverar no ser” através da experimentação que é uma “ética” (Spinoza; 2009). Experimentar é criar, é problematizar, é resistir aos estratos. É usar os estratos (forças reativas – conservação, utilidade e adaptação) para se associar, para se agenciar e criar novas possibilidades de ser e de viver. Uma ciência, uma arte, uma pedagogia que “aumente a potência de agir”. Ora, num horizonte em que a forma econômica – capitalista – se expande pelo campo social e em que a
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