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O MATERIALISMO HISTÓRICO E OS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS Parafraseando Marx (A Miséria da Filosofia), dedico humildemente este estudo aos pesquisadores e professores que têm sobre mim a vantagem de nada entenderem sobre o que escrevem e ensinam. José Henrique de Faria 1. Introdução Ao discorrer sobre como realizar uma pesquisa sobre uma base sólida, Marx (1974) refere-se ao método em Economia Política e não a qualquer método. Entretanto, os fundamentos de sua proposta alcançaram uma amplitude que extrapolou a economia política, servindo de orientação às ciências sociais em geral e à filosofia. O objetivo destas reflexões é o de ajustar o método exposto por Marx aos Estudos Organizacionais. Assim, o presente estudo tratará do Materialismo Histórico e do Método Dialético a ele correspondente no campo dos Estudos Organizacionais, do ponto de vista epistemológico e metodológico, como fundamento da Teoria Crítica em Estudos Organizacionais de base marxista. Não se pretende, portanto, discutir as semelhanças e diferenças com os representantes da Teoria Crítica Frankfurtiana, sejam eles da primeira (Adorno, Horkheimer, Benjamin, Marcuse, Fromm, Pollock, entre outros), da segunda (Habermas) ou da terceira (Axel Honneth) gerações. Também não se pretende discutir os desvios estruturalistas de Althusser, a concepção mecanicista de Engels em sua dialética da natureza, a visão reflexológica de Lênin, entre outras interpretações. Estes são estudos importantes, mas cujo debate não cabe no espaço deste trabalho. Também não se pretende discutir os problemas epistemológicos e metodológicos dos CMSs, da arqueologia foucaultiana e outras correntes abarcadas pelos Estudos Organizacionais Críticos. Neste sentido, é necessário esclarecer desde logo que aqui se entende, de maneira bem simples, por epistemologia o estudo científico do conhecimento. A epistemologia pretende responder à seguinte questão: como o conhecimento é produzido (construído, obtido, desenvolvido), organizado, sistematizado e transmitido (explicitado, divulgado, exposto)? Deste modo, entende-se que o método é um procedimento epistemológico, na medida em que ele define como o conhecimento é produzido, sistematizado e transmitido. O método não se confunde com as técnicas de coleta (quantitativas, qualitativas ou ambas), processamento e análise de dados, fatos e informações e tampouco com as fontes (primárias ou secundárias), embora se valha totalmente de todas elas. Este é, portanto, um estudo sobre, ao mesmo tempo, epistemologia e metodologia do Materialismo Histórico e que está organizado em seis partes. Na primeira e na segunda serão apresentados temas básicos que ajudam a esclarecer o restante da exposição. Inicia-se pelo esclarecimento sobre o que é e quais as diferenças entre materialismo, idealismo e interação. Em seguida, serão apresentados os fundamentos da dialética em sua evolução. Estes dois itens serão breves, pois os mesmos têm apenas o propósito de elucidar e não o de promover discussão. O terceiro item aprofunda o segundo, pois tratará de expor o que é a dialética marxista, discutindo posições sobre este tema. O quarto item indicará os princípios do materialismo histórico marxista e também discutirá posições. O quinto ítem tratará do método em Marx, que é o tema central deste estudo. Aqui as discussões implicam tomadas de posição e, portanto, desencadeamento de polêmicas. O sexto item completenta o anterior ao abordar o que são categorias de análise na perspectiva marxista. Insiste-se que a discussão de cada tema terá sempre como suporte a epistemologia. 2. Materialismo, Idealismo e Interação Todas as discussões epistemológicas partem da visão entre duas concepções opostas: o materialismo e o idealismo. O que se encerra nesta discussão é se a origem do conhecimento está na realidade apreendida pelo sujeito ou em como o pensamento apreende a realidade. No primeiro caso encontra-se o materislismo, que considera que o conhecimento é produzido a partir do real. No segundo caso está o idealismo, que considera que a realidade é dada a conhecer a partir da idéia que se tem dela. O materialismo considera que todas as coisas são matérias e todos os fenômenos são resultados de interações materiais. Matéria, neste sentido, não é o mesmo que objeto tangível, mas objeto realmente existente. Assim, a organização da sociedade para produzir suas condições de existência é uma realidade material tanto quanto uma barra de ferro, embora sejam realidades de concretudes diferentes. Entretanto, a matéria é a única substância e, deste modo, é a fonte do conhecimento e da prática, ou seja, o sujeito pensa e age de acordo com a realidade dos fatos. Na filosofia, Demócrito e Epicuro foram dois pensadores pré-socráticos que defendiam a posição materialista. Embora o idealismo tenha em Platão um de seus mais importantes filósofos1, é com a revolução filosófica de Descartes e o seu cogito que esta concepção ganha força na filosofia. Contudo, o idealismo está em geral associado a Kant e Hegel que são considerados os mais importantes pensadores idealistas da filosofia moderna. Em linhas gerais o idealismo refere-se ao primado da idéia, mas não à idéia de maneira simples, pois isto significaria reduzir a realidade ao pensamento. O ponto central do idealismo é o Eu subjetivo, ou seja, seu postulado básico é “Eu sou Eu”, porquanto o sujeito (Eu) é objeto para si (Eu). Desta forma, a oposição entre sujeito e objeto se revela no próprio sujeito, já que o próprio sujeito (Eu) é o objeto para si mesmo (Eu). As análises mais simplistas consideram, em geral, que a primazia da idéia e a primazia do real signicam formas absolutas de desenvolvimento do conhecimento. Esta maneira de separar o mundo do saber em duas fontes originárias do conhecimento é uma redução analítica que desemboca no empirismo e no abstracionismo. Em vista disto, alguns autores sustentam que há uma terceira forma, à qual chamam de interacionismo entre sujeito e objeto. Contudo, analisada esta fórmula, nota-se que ela mesmo é fruto de uma 1 Existem autores que defendem a tese de que Platão foi o fundador do idealismo. A história da filosofia indica que Platão é um dos mais importantes, se não o mais importante filósofo da antiguidade a defender o idealismo como filosofia, mas não há certeza de que tenha ele sido o pioneiro. Por outro lado, há quem, citando o mito da caverna, reivindique a origem de uma teoria crítica ao pensamento platônico, negligenciando que para Platão a verdadeira realidade está no mundo das idéias, das formas inteligíveis, acessíveis apenas à razão (somente o visível é real, ou seja, a realidade é aquela que o sujeito controi a partir das imagens ou sombras e o esclarecimento é o que se pode ver na luz do pensamento novo). elaboração metafísica, é uma espécie de partenogênese, em que o conhecimento se desenvolve sem ter sido fecundado por uma interação instantânea entre sujeito e objeto. Neste sentido, é necessário esclarecer melhor a questão. Pode haver uma interação permanente entre sujeito e objeto, interação dialética. Para o materialismo histórico, como se verá adiante, esta interação é mediada pelo pensamento e a primazia é do real, ou seja, a produção do conhecimento é inicialmente fecundada pela realidade material. O materialismo histórico não recusa a interação, mas se opõe ao idealismo que esta vertente contém. Para o materialismo histórico a primazia, portanto, não é da interação. Tampouco é da dialética, como querem outros autores, que confundem a forma, o processo, o conteúdo da produção e do desenvolvimento do conhecimento com a ação do sujeito em relação ao objeto, ou seja, autores que acreditam que o que desencadeia o desenvolvimento da produçãodo conhecimento é a dialética quando a dialética é a relação sujeito-objeto. A interação sujeito-objeto no processo de conhecimento, fora da perspectiva do materialismo e do idealismo, pode ser bem compreendida na explicação piagetiana2. De fato, para Piaget (1975; 1976), todo o sujeito possui estruturas cognitivas e estruturas afetivas, as quais são constituídas de esquemas cognitivos e esquemas emocionais (conscientes e inconscientes). Esquemas são modos de reação passíveis de serem generalizados de uma ação a outra e constituem a principal fonte dos conceitos. Os esquemas possibilitam a adaptação do sujeito ao meio, a qual se dá através de seus mecanismos constituintes: a assimilação (o sujeito age sobre o objeto assimilando suas propriedades) e a acomodação (o objeto “age” sobre o sujeito quando este acomoda o que assimilou em forma de esquema). Desde o início, as estruturas mentais alicerçam tanto a formação quanto o funcionamento dos esquemas. Assim, as estruturas são modificadas pelos novos esquemas, ou seja, se reestruturam, em um movimento permanente, dinâmico e dialético, no qual contradições e paradoxos ocupam seus lugares, pois não se trata de um percurso linear. Desde seu nascimento, o sujeito possui uma forma de funcionar, dada por sua condição humana. Em seu início, na constituição do indivíduo, este padrão de funcionamento, descrito pela Neurobiologia dos Processos Mentais e do Comportamento como sistemas neurais organizados (Buss, 1999; Damásio, 1999), obedece a princípios gerais e a estruturas próprias do mapa genético, constituindo os primeiros atributos e capacidades individuais. Esta forma, portanto, determinará o ponto de partida da constituição das estruturas por um processo organizado de adaptação, de sorte que o sujeito, ao longo de seu próprio desenvolvimento, assimila o que lhe é fornecido pelo ambiente (age sobre o objeto), acomoda este conhecimento (ajeita a ação do objeto sobre suas estruturas), torna a assimilar e acomodar em um movimento contínuo, o qual forma e renova os esquemas, estabelece relações entre os mesmos, 2 Interessante notar que há marxistas que condenam a epistemologia piagetiana (para além do argumento rasteiro de que seria burguesa ou se prestaria à burguesia) por considerá-la etapista. Não é o caso aqui discutir esta avaliação, mas a mesma decorre de uma leitura superficial e apressada dos trabalhos de Piaget. Entendem, ainda, estes observadores que as concepções epistemológicas marxistas e piagetianas são absolutamente incompatíveis. São eles que também reverenciam a proposição de Vygotsky ou de Paulo Freire. Entretanto, há mais semelhanças entre Piaget, Vygotsky e Paulo Freire, do ponto de vista epistemológico, do que tais observadores podem supor. Veja-se, sobre isto, Fernando Becker (xxxx; xxxx;). ampliando e aprimorando cada vez mais as estruturas da inteligência. Este movimento dialético (assimilação→acomodação→assimilação) é que constitui a interação entre sujeito e objeto Assim, as estruturas, constantemente renovadas, ao mesmo tempo em que formulam e geram informações, concepções e conceitos, processam, controlam e compartilham informações fornecidas pelo real e pelos símbolos, constituindo desta maneira o fundamento do comportamento exibido e da sua compreensão. Gradativa, dinâmica e contraditoriamente, o desenvolvimento do sujeito depende de sua condição de internalizar e se apropriar em suas estruturas cognitivas e afetivas das interações que é capaz de formular conscientemente ou que lhes são inscritas inconscientemente; dito de outro modo, as possibilidades de adaptação (assimilação e acomodação) são geradas por interações processadas no interior das estruturas mentais. De acordo com Piaget (Battro, 1978), existem dois tipos básicos de experiência: I. A experiência física refere-se à interação do sujeito com o real a partir das propriedades do real. Interação na medida em que o sujeito só pode se relacionar com o real enquanto uma ação própria que tem por suporte os esquemas constituintes da estrutura. Aqui, com seus esquemas, o sujeito realiza uma abstração do real de acordo com as propriedades deste e com os esquemas de apreensão daquele. II. A experiência lógico-matemática refere-se a uma abstração decorrente da ação do sujeito sobre o real, ou seja, decorrente das propriedades da ação do sujeito. Em ambos os casos, o sujeito é sempre e necessariamente ativo na relação com o real, de forma que o real não determina a percepção do sujeito e sua interpretação (o que seria uma concepção positivista), e tampouco a percepção do sujeito determina a forma do real (como supõe o idealismo). Ainda que o real tenha primazia na construção do conhecimento e que a abstração lógica possa decorrer de deduções de fórmulas e de leis universais (da geometria, da matemática, da física, da química, etc.), é a relação do sujeito com o real, é a ação e o pensamento, ou seja, é a práxis que constitui a percepção inteligente. A interação não é uma operação em si mesma e nem é a origem do processo de conhecimento, mas a condição da relação do sujeito com o objeto. Assim, se o sujeito não interage com o objeto, poderá ter dele apenas o que ele puder mostrar ao sujeito ou, de outra maneira, poderá concebê-lo apenas com o os limites que seu pensamento aprioristicamente permitiu. A interação também não é uma simples interpretação que desencadeia uma ação, como sugere o chamado esquema interpretativo que entende que o sujeito interpreta o real e age sobre o mesmo. Neste caso, o sujeito não interage com o real, mas o interpreta segundo o que dele pôde deduzir, agindo sobre uma interpretação deduzida e não sobre o objeto concreto e sobre a relação dele, sujeito, com o real. Há, aqui, uma ação impositiva do sujeito sobre o real baseada em uma interpretação alienada tanto do real como do sujeito, pois este, de fato, não se apropriou daquele como objeto do conhecimento e sim como objeto representado, interpretado de acordo com um esquema prévio e estranho ao objeto e a si mesmo na relação com este objeto. Esclarecidos estes conceitos básicos de materialismo, idealismo e interação e suas implicações, trata-se, agora, de discorrer sobre outro conceito importante para as reflexões que se seguirão. Que é o conceito de dialética. 3. A Dialética A dialética não tem uma única e definitiva concepção. Poder-se-ia afirmar, de maneira simplificada, que a dialética passou por diferentes etapas históricas revelando diversos modelos conceituais, todos vinculados ao pensamento dominante ou aos pensamentos de oposição em cada uma das fases. Resumidamente, a dialética experimentou cinco fases. Na primeira fase encontra-se a dialética dos filósofos jônicos, especialmente representada por Heráclito e sua conhecida observação de que a água que corria sob a ponte não era a mesma que ele havia visto anteriormente. Esta observação da natureza em movimento desenvolve a dialética da sucessão. Na segunda fase e ainda na filosofia grega, a dialética foi considerada uma forma de razão usada como um modelo de perguntas e respostas, conforme se encontra exemplificado nos diálogos de Platão e na filosofia de Aristóteles. Considerando que a retórica é um modo de estabelecer um plausível argumento convincente, a dialética aparece como um método para chegar à verdade. Platão e Aristóteles, que representam a segunda fase, desenvolveram a dialética da co-existência. Na terceira fase, a dialética é usada por Kant para descrever a necessária lógica da razão pura. Observa, contudo, que a confiança nas ideias auto-contraditórias e nos silogismos não está baseada em premissas empíricas para passar para a “grande certeza”. Entendendo que o método de Descartes, fundado em um conjuntode procedimentos racionais com suas quatro regras para chegar à verdade representava o fim da filosofia3, Kant propõe os “imperativos categóricos” para se compreender a realidade4. Mas é realmente com Hegel que a dialética, em sua quarta fase, se torna uma importante noção no pensamento moderno. Hegel reune as noções de sucessão, coexistência e lógica para propor uma dialética histórica. Trata-se de uma dialética sob uma forma idealista. Para Hegel, o desenvolvimento da subjetividade e do auto-conhecimento e o desenvolvimento da história do mundo são governados, ambos, por uma dialética entre as divergentes e contraditórias expressões da mente ou do espírito. Todo o estágio de desenvolvimento é caracterizado por uma tensão entre forças opostas (a mais conhecida nas análises de Hegel eram as que se davam entre os interesses dos mestres e dos escravos), as quais serão resolvidas quando uma nova 3 De fato, para Descartes a evidência não é aquela sensível e empírica. Segundo Descartes, os sentidos enganam e apenas as idéias e a razão são claras e distintas. Assim, as quatro regras que ele propõe em “Discursos sobre o Método” são: evidência, análise, síntese e desmembramento. 4 “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”. (KANT, 1984) Esta é a fórmula do imperativo categórico de Kant. Trata-se do princípio subjetivo de uma ação, o qual é distinto do princípio objetivo (lei prática) que é válido para todos. O ser racional reconheceria no imperativo categórico aquele imperativo que “representasse uma ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade” (KANT, 1984. pp. 124-5). A norma moral existe sob a forma de imperativo categórico, ou seja, o imperativo categórico é também a moralidade, pois a lei moral é um fato da razão-pura, um a priori, que se distingue da legalidade. síntese é alcançada. Esta síntese irá, por seu turno, gerar uma nova contradição interna e, então, uma nova resolução. Assim, para Hegel, a dialética opera a partir de uma tese que contem dentro de si uma antítese. O choque destes contrários resultará em uma síntese. Tal síntese conterá sua própria contradição, ou seja, transformar-se-á em uma tese com sua antítese do que resultará nova síntese. O processo cessará, para Hegel, somente com a emergência de um sereno, maduro e completo auto-conhecimento do Espírito Absoluto, que abole todas as contradições. Como se pode perceber, a dialética hegeliana é justamente chamada de idealista na medida em que parte e termina no plano das ideias. É a ideia ou o conhecimento que é capaz de definir a tese e sua antítese e é a ideia que poderá compreender a síntese. A dialética é uma construção do espírito, da ideia, ou seja, o real é apreendido e compreendido à partir da ideia. Contrariamente a Kant, não se trata de um imperativo categórico da moralidade, mas de uma lógica e de um caráter de universalidade. A contribuição de Hegel para a filosofia é inquestionável. Hegel introduz elementos importantes para a história do pensamento moderno. Os conceitos de em si e para si, que Marx vai usar para tratar das classes sociais, re- aparece nos estudos de Lukacs sobre consciência de classes e é utilizado pela “Escola de Frankfurt” para compreender o totalitarismo. Para Hegel, uma montanha em si mesma é uma montanha. Uma montanha para si é uma montanha apropriada pelo pensamento ou para uso-exploração. Com este conceito, as ciências sociais vão tratar de entender, tanto do ponto de vista do sujeito, quanto do ponto de vista coletivo, as atitudes ou ações sociais ou individuais. A psicanálise, por exemplo, ao investir na apropriação, pelo sujeito, de seu inconsciente, no sentido de melhor lidar com a vida, está trabalhando com o conceito de sujeito para si, sujeito capaz do desejo, sujeito autônomo. Outra importante contribuição de Hegel para a filosofia encontra-se nos fundamentos da fenomenologia e em sua noção de totalidade. Ainda que Hegel tenha tratado da Fenomenologia do Espírito, sua concepção de essência versus aparência será utilizada por Marx (que, entretanto, reclama que a aparência também compõe a essência e que forma e conteúdo constituem momentos de um mesmo fenômeno), por Husserl, por Weber (que deste ponto deriva para a construção do seu “Tipo Ideal”), por Merleau-Ponty e por Sartre, todos com perspectivas diferentes. Do ponto de vista da política, Hegel vincula-se ao pensamento liberal e vê no Estado Liberal a única forma de se chegar à Verdade Absoluta. Sendo um Estado livre da opressão, em que todos teriam direitos iguais (inclusive de propriedade) e viveriam em comum, este seria o Estado que superaria as contradições e os conflitos. Analistas modernos, como Itsván Mészáros, afirmam que Hegel “forçou” sua análise da dialética para acomodar o ideário do liberalismo. Ao discorrer sobre a Filosofia do Direito, Hegel afirma que uma pessoa concreta, que como uma pessoa particular é um fim em si mesmo, é também uma totalidade de desejos e uma mistura de necessidades e caprichos, sendo este um dos princípios da Comunidade Cívica. Mas a pessoa particular é essencialmente conectada com outras e desde que ele satisfaça a si mesmo por meio de outros, tem-se uma forma de universalidade, que é outro princípio da comunidade cívica. Assim, o particular é condicionado em sua realização pelo universal, formando um sistema de mútua dependência. Tal sistema Hegel denomina de estado externo, ou seja, o indivíduo particular tem seus próprios interesses e necessidades que se manifestam no universal, que são os meios, de forma que para satisfazer sua individualidade a pessoa deve se conformar ao universal e tornar-se parte deste todo, que lhe é externo enquanto indivíduo. O Estado, então, é a ideia ética realizada ou o espírito ético (note-se que o Estado não é uma contrução que resulta do esforço produtivo mas é uma ideia realizada), é o desejo que se manifesta ele mesmo, que o torna claro e visível, que pensa e conhece a si mesmo. O Estado, para Hegel, encontra nos costumes éticos sua existência e indiretamente reflete sua existência na auto-consciência dos individuos, em seu conhecimento e suas atividades. A auto-consciência na forma de disposição social tem sua liberdade substantiva no Estado, como essência, propósito e produto de suas atividades. Tal Estado ético, que resulta do espírito, que é o lugar da liberdade e que coordena as consciências que o constituíram, é oEstado liberal, detentor de toda consciência e, portanto, da Verdade Absoluta, do Espírito Absoluto, no qual não haveria mais lugar para as contradições pois todos os interesses, necessidades e desejos resultaria em sua constituição. Como se pode notar, embora o pensamento de Hegel não seja muito referenciado nos dias atuais, os fundamentos de sua proposta continuam a habitar o mundo da filosofia, da política e das ciências sociais em geral. A quinta fase pode ser chamada a do Materialismo Histórico, em que a concepção de dialética refere-se à contradição entre classes sociais, e entre as forças e relações de produção e o modo de produção. Como afirmam Marx e Engels (Manifesto Comunista), os meios de produção e troca através dos quais a burguesia construiu seu poder foram, na verdade, criados na sociedade feudal. As relações sociais de propriedade-posse tornaram-se imcompatíveis com as forças produtivas da indústria e com o sistema fabril. Nota-se que do ponto de vista marxista não é a ideia que contem as contradições, mas o real. Também é o real que contem o movimento e é no real que se encontram as relações. Porém, é necessário que o pensamento também seja dialético para compreender o movimento dialético do real. A dialética marxista e o MaterialismoHistórico serão mais bem destacados adiante. A análise dialética se aplica a qualquer campo das ciências. Na área dos Estudos Organizacionais pode-se propor temas a partir de fatos mais relevantes ou conhecidos. Os dois exemplos a seguir mostram uma tese e uma antítese, ou seja, um fenômeno e sua contradição interna. A síntese, de acordo com Marx, é um processo histórico em construção e, de acordo com Hegel, é um processo do pensamento. I. Globalização Tese: movimento de integração econômica, política e cultural no qual os países se abrem para os mercados e para as trocas e manifestações de diferentes culturas, usufruindo dos benefícios dos avanços científicos, do acesso a informações via internet e satélite, entre outras; Antítese: a integração permite que os países do bloco central comandem os mercados de produção, através do domínio e da propriedade tecnológica (microeletrônica, biotecnologia, engenharia genética, farmacologia, etc.) e o fluxo de capitais. Os países periféricos, para poderem inserir-se no mundo global, importam indústrias de alto composto tecnológico, geralmente poupadoras de força de trabalho e demandantes de importação de componentes sofisticados de alto custo. O resultado é aumento da dependência da periferia para com o centro, desemprego e necessidade de financiamento do desenvolvimento (o que permite o livre passeio do fluxo de capitais estrangeiros de alta remuneração e o conseqüente aumento do endividamento externo e interno); II. Ação Afirmativa e Política Pública Tese: Programa adotado nas universidades, no setor público (através de reserva de vagas) e em algumas empresas privadas, visando permitir o acesso de parte das populações excluídas, ou seja, negros, afro-descendentes, indígenas e portadores de necessidades especiais, etc. aos cursos universitários e aos empregos públicos e privados; Antítese: Partindo de um acordo entre um governo popular e as elites políticas, empresariais e educacionais, o programa pretende reafirmar a idéia de democracia racial através de uma demonstração de diversidade étnica e cultural, introduzindo os excluídos em cursos universitários, em cargos e funções públicas, empresariais e educacionais, com uma política que disfarça, mas não elimina o preconceito e nem retira o estigma segregacionista das relações sociais; Outras análises podem ser elaboradas à partir da dialética. Para a dialética o que importa é a forma de análise, na qual é relevante a contradição, o movimento e como estes componentes dos fenômenos estudados se relacionam internamente tendo em vista uma totalidade. Entretanto, para que as pesquisas tenham um caráter teórico rigoroso é necessário que sejam definidas quais as categorias de análise que serão utilizadas para apreender o real e suas relações. Tais categorias devem ser buscadas na realidade para, então encontrarem correspondência na teoria, como se verá adiante. Cada categoria pode comportar sub-categorias que a detalhem. Cada categoria/sub- categoria deve ser encontrada no fenômeno tal como o mesmo se manifesta, a partir de seus elementos constitutivos, procurando compreender seu significado e sua contradição e, neste sentido, também o seu movimento. 4. A Dialética Marxista Segundo alguns autores (ABBAGNANO, 1971; CHEPTULIN, 1982; KONSTANTINOV, 1959; KOSIK, 2002; LEFEBVRE, 1975; POLITZER, BESSE, e LAVEING, 1977; REALE e ANTISERI, 1986; SWINGEWWOD, 1978; TRIVINOS, 1992), na dialética marxista os objetos e os conceitos devem ser considerados em seu encadeamento, em suas relações mútuas, em suas ações recíprocas, em seu processo (nascimento, desenvolvimento, transformação). Tais objetos devem ser analisados no interior da formação histórica, na qual a verdade não é um conjunto de princípios definitivos, mas um processo em mutação. Tendo em conta estas duas questões, cinco características se levantam: I. Primeira característica: tudo se relaciona (ação recíproca e conexão universal), tudo se condiciona reciprocamente; II. Segunda característica: tudo se transforma (desenvolvimento incessante): a realidade é movimento (em termos de deslocamento, natureza e propriedade), pois este é o modo de ser da matéria. A matéria sem movimento é tão inconcebível quanto o movimento sem matéria; III. Terceira característica: existe uma relação entre mudanças quantitativas (simples aumento ou diminuição da quantidade) e qualitativas (passagem de um estado ou qualidade para outro). O novo decorre da acumulação de pequenas mudanças quantitativas (o que é resulta do que foi, embora seja qualitativamente diferente). O movimento assume, assim, duas formas: evolutiva (quantitativa) e revolucionária (qualitativa): a. Não se pode separar quantidade de qualidade (a quantidade é sempre quantidade de alguma coisa, é quantidade de uma qualidade); b. A quantidade se transforma em qualidade e esta novamente em quantidade. IV. Quarta característica: a luta dos contrários. Todos os fenômenos possuem contradições internas. Existe uma unidade entre os contrários5: a realidade é ao mesmo tempo, ela mesma e outra coisa, diferente dela. A contradição interna é uma “causa fundamental” ou de primeira ordem; as relações externas são “causas complementares” ou de segunda ordem. Toda a mudança qualitativa é a mudança fecunda de uma contradição. Neste sentido, é necessário levar em conta que: a. A contradição existe ainda que não seja manifesta; b. O antagonismo é um momento de contradição. O antagonismo pode ser resolvido, mas a contradição permanece; c. O caráter específico da contradição não é absoluto e não tem sentido quando separado da totalidade. O específico não tem valor senão em relação à totalidade, na medida em que ambos são inseparáveis; d. Há contradições principais (que existem do começo ao fim do processo e cuja existência e desenvolvimento definem o processo) e secundárias ou subordinadas (e.g. luta de classes e luta no interior das classes); e. As contradições principais e secundárias interagem, sendo que estas podem alcançar tal relevância que condicionam aquelas. V. Quinta característica: negação da negação (terceiro incluso): todo o fenômeno é, ao mesmo tempo, o que ele afirma (tese) e o seu contrário (antítese). Da luta entre o que afirma e o que nega, resulta outra negação (síntese). Enquanto para a fenomenologia dialética, a sociedade é um processo dialético, que envolve tanto a atividade humana subjetiva quanto a estrutura social objetiva, ou seja, os homens produzem a sociedade e são produzidos por ela (“o produto retroage sobre o produtor”), para Marx, a sociedade é construída e não dada. Como tal, a consciência não pode ser resultado ou reflexo da realidade objetiva. Aqueles que pensam que o homem é produto das circunstâncias, diz Marx, esquecem que as circunstâncias são mudadas pelos homens. “O próprio educador deve ser educado”, afirma Marx (Teses contra Feuerbach).. 5 Como sugere Engels, em seu Dialética da Natureza, se a semente fosse apenas semente, permaneceria indefinidamente semente. Mas há uma “luta” entre a permanência da semente e o processo de germinação. Desta luta resulta a planta, que já não é mais semente e nem germinação, mas que contém os elementos de ambos. A consciência não é redutível à estrutura social, política ou econômica, mas é um elemento relativamente autônomo capaz de retroagir sobre tal estrutura. A consciência é tanto um produto social como um fator independente de mudança. Para Marx (1977), quando o homem constrói o quadro objetivo do mundo por meio da reflexão, o próprio ato de conhecer não só lhe permite mudar (ou intervir sobre) a realidade, como de fato a muda, pois o pensamento é parte desta realidade. De fato, o movimento é sempre uma unidadede elementos contraditórios e não uma evolução homogênea. Marx (A miséria da filosofia), afirma que o pensamento dialético rejeita as falsas antíteses (positivo-negativo; dia-noite, etc.). “Não é a categoria que é apresentada e se opõe a si mesma, mas sua natureza contraditória”; A dialética não implica em desenvolvimento (progresso) histórico definido, necessário e inevitável. Primeiro, porque a regressão (que nunca se dá nos mesmos termos) histórica é tão possível quanto a progressão (e.g. declínio de Roma); segundo, porque o futuro será o que a práxis humana for capaz de construir: não existe tal objetividade extra-histórica e extra-humana. Afirmar uma realidade independentemente dos homens (ENGELS “Dialética da Natureza”) é invocar um conceito metafísico da matéria como sendo externo e absoluto: a história nada faz por si, mas o homem é quem desencadeia as mudanças em suas relações históricas. “A História nada mais é do que a atividade do homem em busca de seus fins” (MARX e ENGELS6 em A ideologia alemã). Marx rejeita a concepção determinista e teológica. Para ele, o homem (coletivo) intervém diretamente no processo histórico, mas apenas como parte deste processo. Somente os homens podem colocar seus propósitos em realização, mas o que eles podem querer é condicionado pelo estado predominante das forças materiais e culturais (o socialismo não é concedido pela história, por suas leis ou tendências, mas deve ser algo que os homens desejam e pelo que devem lutar). A dialética não é um movimento externo às ações dos homens, pois os envolvem tanto objetiva quanto subjetivamente. Ao contrário das críticas segundo as quais o pensamento de Marx é determinista, mecanicista ou reducionista (tudo se reduz à determinação da estrutura econômica), sua concepção é a de que todo o processo procede em forma de interação. Não uma interação simples de fatores (do tipo “os homens produzem a sociedade e são produzidos por ela” ou X influencia Y que influencia Z...), mas complexa, dinâmica e contraditória. Como se viu no início, o método de Marx baseia-se na categoria da totalidade, que compreende a relação do simples para o complexo (forma simples de valor, valor, mercadoria...). Para Marx (1974), o método que analisa os fatos sem investigá-lo em sua totalidade, em suas contradições e movimentos, termina por propor leis universais abstratas aplicáveis a quaisquer casos. A concepção segundo a qual a sociedade é construída com base na interpretação que dela os homens fazem (como em “A construção Social da Realidade”, de Luckman e Berger ou como no chamado interpretacionismo), é chamada pelo marxismo de “atomismo social” (axioma metodológico em que as “opiniões” são mais “reais” que a análise histórica objetiva). A sociedade, para Marx, é uma totalidade complexa na qual os elementos subjetivos (consciência, 6 O homem, no sentido empregado por Marx, não é o indivíduo, mas o sujeito coletivo, os grupos, as classes sociais. ideologia) são também elementos objetivos, no sentido de que existem para os outros. No método de investigação de Marx, a unidade de análise é sempre coletiva (grupos, classes) e jamais individual. Desta forma, Engels, ao descrever a história em termos de “conflitos entre muitas vontades individuais” e a sociedade como “agregado” de tais vontades, entrou no campo dos individualistas metodológicos. Para Marx (1977) os fatos não são coisas concretas dadas imediatamente aos sentidos, pois sua concretude existe apenas dentro da totalidade específica: os fatos precisam ser, neste sentido, mediados pela consciência e pela práxis humana para serem apreendidos como tais e não em sua aparência ou superficialidade. A essência do método de Marx é que a análise social consiste em um vaivém constante entre as partes e o todo. Não simplesmente um movimento em uma só direção, mas em ambos; não uma simples interação, mas complexa, dinâmica e contraditória. A parte não pode ser retirada do todo para ser examinada em separado dele e depois, mecanicamente, inserida novamente na análise: os fatos empíricos devem estar integrados na totalidade ou vão permanecer abstratos, superficiais e teoricamente enganadores; Como já referido anteriormente, metodologicamente é incorreto, para o marxismo, começar a análise social a partir de fatos isolados (instituições, população, classes) porque estes pressupõem uma sociedade econômica, política e socialmente específica. Trata-se de partir destas abstrações, mas para reconstruí-las pela via do concreto e não partir delas tais como estão dadas para a observação. A relação entre conhecimento e sociedade é dialética, contraditória e desigual em seu desenvolvimento: o conhecimento não reproduzirá passivamente a estrutura dominante. O conhecimento pode ser, em parte, autônomo e construir uma crítica da sociedade existente. Porém, do ponto de vista marxista o conhecimento é científico ou ideológico na medida em que correspondam aos interesses práticos de classe: uma teoria da sociedade genuinamente científica entenderá a realidade social como um todo orgânico, que abrange tanto os valores como a ação humana. A teoria e a prática não podem separar-se. De fato, no âmbito do marxismo, a questão quanto a se a verdade objetiva pode ser atribuída ao pensamento humano não é uma questão teórica, mas uma questão prática. O homem deve provar a verdade em sua prática e não em seu discurso. Mesmo assim, tal verdade jamais será absoluta, pois ela é sempre referente ao momento e às condições históricas e materiais. Quanto mais se desenvolve o conhecimento, mais se apresentam novas indagações e mais as “verdades” são desfeitas. Portanto, a verdade, enquanto resultado do conhecimento, jamais será definitiva. Os sujeitos possuem conhecimento, decorrente de sua práxis. Este conhecimento (que não se confunde com interpretação) do concreto pela via do pensamento, dada a primazia do real, sempre oferecerá uma verdade passageira, falsificável, que será superada pelo desenvolvimento deste mesmo conhecimento. Marx parte da dialética hegeliana, mas a recoloca sobre seus pés, emprestando-lhe uma “fisionomia racional” em contraposição à sua “fisionomia espiritual”. Se, enquanto para Hegel é o pensamento que cria a realidade, sendo esta a manifestação exterior da Idéia, para Marx o objeto é o mundo material e a contradição é histórica e social: é o mundo material que é dialético, que está em constante movimento, sendo que historicamente as mudanças ocorrem das contradições surgidas a partir do processo de produção social. Neste sentido, portanto, é que se pode dizer que existem categorias, leis e características do materialismo histórico e dialético. As características são: I. Materialidade do mundo (fenômenos, objetos, processos, etc. são aspectos da matéria em movimento); II. A matéria é anterior à consciência (a consciência é um reflexo da matéria); III. O mundo é cognoscível (tudo pode ser conhecido com o tempo). As categorias são entendidas como formas de conscientização dos conceitos dos modos universais da relação do homem com o mundo, que refletem as propriedades e leis mais gerais e as essências da natureza, da sociedade e do pensamento. As categorias são: I. A matéria (realidade objetiva); II. A consciência (apreensão, pelo pensamento, da matéria); III. A prática social (atividade, resultante da relação entre matéria e consciência, orientada à transformação). As leis são ligações necessárias gerais, interativas e estáveis entre fenômenos. São três as leis da dialética: I. Lei da transformação da quantidade em qualidade e vice-versa; II. Lei da interpenetração dos contrários (lei da unidade e da luta dos contrários); III. Lei da negação da negação. Os aspectosdestas leis podem ser resumidos em quatro pontos: I. Tudo se relaciona. Na natureza, na economia, na sociedade, nas organizações, os objetos não são um amontoado acidental de fenômenos separados, independentes, isolados, mas uma totalidade coerente, orgânica, em que tudo se relaciona com um ou vários sentidos, em que cada fenômeno condiciona outros e é por eles condicionado. Nada pode ser compreendido fora dos seus fenômenos circundantes. A conexão entre os fatos não é um detalhe destes, mas uma condição de sua totalidade, não uma particularidade, mas uma universalidade. A pesquisa dialética precisa, sempre, avaliar seu objeto do ponto de vista das condições que o determinam e explicam, da interação entre os fatos e entre estes e o sujeito pesquisador, pois este é o ponto de partida de toda a teoria científica dialética; II. Tudo se movimenta. Como afirma Engels (XXXX), “jamais, em parte alguma, houve matéria sem movimento, nem poderá haver. (...) A matéria sem movimento é tão inconcebível como o movimento sem matéria”. A realidade não é estática. Por isto, a pesquisa dialética não se contenta em ser descritiva, em esgotar sua investigação no momento da análise sem considerar seu desenvolvimento. A descrição serve de base para a formulação de conceitos. Reduzir a realidade a um de seus aspectos, reduzir o processo a um de seus momentos, acreditando que o que é será, é desconhecer a dialética. Os conceitos exercem o papel de leis que explicam o movimento e não que o descrevem; III. Tudo muda. Existem duas espécies de mudança. As mudanças quantitativas, que são transformações simples que não interferem na natureza essencial do objeto/fato; as mudanças qualitativas, que são passagens de um estado a outro. A segunda não acontece sem a primeira: mudanças mínimas (quantitativas) vão se acrescentando e provocam, em determinado momento, um salto ou mudança de qualidade. Isto explica porque as pequenas mudanças podem levar a uma ruptura de uma determinada estrutura. Esta passagem também permite distinguir evolução (ou reforma) de revolução, crescimento de desenvolvimento, contingente de necessário. O salto de qualidade (passagem do inferior para o superior), quando se opera, é resultado de um acúmulo às vezes imperceptível de pequenas mudanças. Para a pesquisa dialética, cabe sempre observar como pequenas mudanças (quantitativas) levam a mudanças radicais (qualitativas); como a qualidade se transforma em quantidade, já que ambos os movimentos são inseparáveis, a partir do novo estado de qualidade que entra em movimento; IV. Tudo resulta da luta (do choque) dos contrários. Da interação das forças contraditórias, em que uma nega a outra, surge uma terceira, que é a negação da negação, a síntese, o novo. A síntese contém elementos dos contrários de onde surgiu (da tese e da antítese), mas não se confunde mais com os mesmos. Ao se concretizar, a síntese se transforma em nova tese, com seu contrário, sua antítese. O choque dos contrários é o motor de toda a mudança na natureza e o motor do pensamento, mas nada se realiza na história social dos homens que não seja decorrente de sua práxis. Alguns pontos desta lei merecem destaque: I. A contradição é interna ao movimento, é inerente a ela, é sua essência. A realidade muda por ser, em essência, ela mesma e outra coisa, diferente dela. A mudança não se opera de fora, mas de dentro. A interação com o exterior pode acentuar, precipitar, favorecer ou arrefecer a mudança, mas não causá-la; II. A contradição é inovadora. Quando o superior supera definitivamente o inferior de onde surgiu, aparece a fecundidade da contradição. O passado não se repete senão como farsa. O novo sempre se impõe, mesmo quando sua constituição não remete a uma “elevação” (por exemplo, quando uma política democrática se esgota e dá lugar a uma autoritária, esta não será o que já foi e nem o novo que ela representa significa que houve uma elevação); III. A contradição encerra dois termos que se opõem: a unidade dos contrários. Os contrários se combatem, mas são inseparáveis. Um não existe em si senão com o outro, de forma que se um desaparecer, também desaparece o outro (e.g. burguesia e proletariado): há uma unidade indissociável dos contrários; IV. Análise e síntese, para o pensamento, implicam-se mutuamente. Na análise, separam-se os elementos do todo, mas os elementos não são partes do todo, senão um todo, pois não há elementos em si. A separação analítica é apenas formal, pois a síntese que ela reclama define-se pela análise e esta pela síntese. Da mesma forma, teoria e prática são duas forças em interação dialética, que se interpenetram e se fecundam mutuamente, de onde resulta a práxis. Para compreender a dialética da natureza, o pensamento também precisa ser dialético; V. A contradição é universal e é específica. A contradição é uma característica universal dos fenômenos, o que não significa que não se possa buscá-la nas particularidades destes. Pode-se falar da contradição do capitalismo, manifesta na existência de duas classes antagônicas. Mas pode-se também falar das contradições que se operam no interior destas classes, entre frações específicas. Do mesmo modo, pode-se falar em contradições no interior de uma fração de classe e no interior de grupos sociais desta fração. Pode-se tomar, aqui, um exemplo da dialética na natureza para mostrar que a mesma não é uma operação apenas da razão que opera sobre a coisa, mas que a dialética se encontra na estrutura da coisa. Em 1960, o físico Yoishiro Nambu criou o conceito de “quebra de simetria”, que em síntese é uma nano diferença na forma como um tipo de força nuclear funciona na matéria e na antimatéria. Makoto Kobayashi e Toshihide Maskava, baseados na teoria de Nambu, mostraram que esta diferença é que deve ter contribuído, no início do Universo, para que houvesse um excesso de matéria sobre a antimatéria, pois sem isto as quantidades seriam iguais e ambas teriam se aniquilado totalmente. Os três físicos foram agraciados com o Prêmio Nobel de Física de 2008. A descoberta, resumidamente, indica que para cada tipo de partícula elementar (tese) sempre existe outro tipo que é a sua antipartícula (antítese). A antipartícula (antítese) tem a mesma massa (qualidade) que a partícula (tese), mas com carga elétrica e outras propriedades invertidas (particularidade). A aparência é a mesma, mas a ação é diferente (unidade dos contrários). Quando uma partícula (tese) encontra sua antipartícula (antítese) as duas se aniquilam (choque ou luta dos contrários) e se transformam (mudança qualitativa) em outras partículas (síntese ou terceiro incluso). A simetria significaria, neste caso, que em um encontro entre a matéria e a antimatéria haveria uma explosão e uma anulação total de ambas sem a criação de um terceiro. A descoberta dos físicos da “quebra da simetria” sugere que o movimento da dialética da natureza não é o de destruição, mas o de superação, de transformação e de construção. Finalmente, cabe alertar que a lógica dialética não faz desaparecer a expressão formal. A investigação dialética e o pensamento dialético são expressos de maneira formal, ou seja, de forma organizada, sistematizada, dividida, categorizada. A dialética se distingue pela origem e não pela expressão. Enquanto a natureza e a produção de idéias são dialéticas, sua expressão é sempre formal. O que é pensado dialeticamente tem que ser dito formalmente, pois se acha subordinado às categorias da linguagem (formadas por força de sua constituição social). 5. Características do Materialismo Histórico De acordo com diversos autores (ABBAGNANO, 1971; CHEPTULIN, 1982; KONSTANTINOV, 1959; KOSIK, 2002; LEFEBVRE, 1975; POLITZER, BESSE, e LAVEING, 1977; REALE e ANTISERI, 1986; SWINGEWWOD, 1978; TRIVINOS, 1992),do ponto de vista do materialismo marxista a natureza (o real) comporta dois estados: matéria7 e consciência. Para o materialismo marxista, tudo o que existe na natureza é matéria (ou seja, é matéria para o 7 A matéria pode ser tanto pode ser o elemento “tangível” quanto o “intangível”. A matéria é a matéria para o conhecimento, por isso é o objeto do saber. conhecimento), mas nem toda a matéria é percebida pelos sentidos. Como se viu anteriormente, a matéria existe independentemente da consciência que dela se tenha, de onde decorre a primazia do real concreto sobre o real pensado. A forma que a matéria adquire é dada pelo seu conteúdo, ou seja, a forma não pode existir sem um conteúdo. Porém, a forma também condiciona o conteúdo, embora não o determine, pois a mesma não é pré-existente e imutável. Forma e conteúdo interagem, mas são as contradições internas do conteúdo que podem modificar a forma nos limites das relações entre ambas: a matéria tem seu próprio movimento. Assim a aparência (a forma) é inferior ontologicamente ao conteúdo (essência), mas não há como se compreender a realidade sem que se compreendam ambos, a forma e o conteúdo; Já a consciência, tanto quanto a matéria, é real (realmente existente), mas não se confunde com esta, pois o sujeito é diferente do objeto. Matéria e consciência, não são estáticos, o que implica em que o pensamento é uma abstração da matéria quando com ela interage (concreto pensado), mas pode ser uma abstração idealista ou dogmática, quando existe independentemente da matéria (metafísica). Para o materialismo dialético as divindades (deuses, mitos, etc.) não existem realmente, o que não significa que não se possa estudá-las, porém não na perspectiva delas mesmas, mas como um problema da idéia da divindade (fatos reais). A religião, neste sentido, pode ser problematizada enquanto força ideológica (qualquer que seja sua divindade específica)8. O materialismo é, portanto, uma concepção do mundo, uma forma de compreender os fenômenos da natureza e da vida social (objetivos e subjetivos). Existem, segundo os mencionados autores, quatro características que distinguem o materialismo marxista de outros tipos de materialismo: I. O mundo é material e os múltiplos fenômenos, que se relacionam e se condicionam reciprocamente, são diferentes aspectos da matéria em movimento; II. A matéria (realidade objetiva) é anterior à consciência, pois é a fonte das representações; III. O mundo é cognoscível, sendo a práxis (teoria e a prática) relevante para a consciência: não há diferença entre a propriedade de uma coisa e a própria coisa. Para o materialismo dialético, o conhecimento não é uma operação pela qual o pensamento interpreta os dados dos sentidos, mas um processo complexo de interação entre o sujeito e o objeto; IV. As leis da natureza e da sociedade são históricas, sendo a história uma construção humana marcada pelas relações de produção das condições de existência. 6. O Método em Marx O método original adotado por Marx se opõe ao pensamento idealista e ao pensamento abstrato, bem como ao empirismo descritivo. Ao idealismo porque este se refugia na afirmação incondicionada de uma verdade e de um valor transcendentais enquanto garantias do real. Ao pensamento abstrato porque este se limita a classificar os fenômenos que encontra e a elaborar uma 8 Por exemplo, a justificativa de Laplace, para Napoleão, sobre a desnecessária inclusão da hipótese divina em sua teoria sobre a evolução do sistema solar. lógica formal e uma gramática. Ao empirismo descritivo porque se contenta com a narrativa, ainda que minuciosa, dos fenômenos sem questionar seu conteúdo e suas relações não aparentes. O pensamento idealista, metafísico, é rejeitado por Marx (XXXX – Manu) porque ao tomar como ponto de partida a apreensão das contradições entre sujeito e objeto não alcança qualquer resultado a não ser que coloque o real ou do lado do sujeito ou do lado do objeto, de forma que ainda que a contradição seja recusada, ela não deixa, de fato, de se apresentar como realidade existente a partir do instante seguinte à sua colocação entre parêntesis (em uma époché). O pensamento formal, abstrato, é rejeitado por ser incapaz de avançar e porque as classificações e análises deixam subsistir, sem resolver, todas as contradições. O pensamento empirista descritivo é rejeitado porque ao discorrer sobre um fenômeno tomado a partir dele mesmo, não tem como voltar ao mesmo por não realizar nenhuma elaboração enriquecida que permita expandir, conceituar e reproduzir. Para Marx, o método científico deve ser um movimento dialético ao mesmo tempo do real e do pensamento. E por este motivo que se pode afirmar, com Calvez (1959), que o problema do método é o problema central do pensamento marxista. A dialética marxista é uma crítica severa à dialética hegeliana, pois para Marx (Manu), Hegel concebeu corretamente o movimento do real e do saber enquanto negatividades sucessivas, mas o fez de forma abstrata e especulativamente. Tal como Hegel, Marx admite que o real, assim como o conhecer, constitui um movimento, um ato de negação sucessiva de determinações, o qual é o fundamento concreto da totalidade enquanto também fundamenta cada um dos atos particulares. Mas, para Marx, Hegel rejeita o princípio do movimento fora da própria experiência, ou seja, para chegar ao princípio da consciência humana e da experiência feita por esta consciência, Hegel recorre sub-repticiamente a uma experiência total e a uma consciência plenamente integrada, que escapam ao domínio da experiência e da consciência (CALVEZ, 1959). Para Marx é necessário reencontrar a experiência total sob o modo de uma experiência ao mesmo tempo particular e concreta, ou seja, ao contrário de Hegel, é preciso descobrir o sentido completo da história na própria história e não fora dela. Para Marx, a dialética não é a superação da primazia do concreto ou da idéia, ou seja, não existe tal primazia da dialética na relação do sujeito com o real como alhures se pretende sugerir ao se tratar da epistemologia na Teoria Crítica9. A dialética é a relação sujeito-objeto, a qual nem é separação absoluta e nem ligação imediata, mas separação sempre ao mesmo tempo renovada e suprimida, de forma a ser finalmente conciliada através de mediações sucessivas. A primazia é assim, do real e é na dialética sujeito-objeto que o real concreto, através de mediações sucessivas, se concilia consigo mesmo na forma de real pensado. Portanto, a supressão da separação sujeito-objeto não é a supressão do próprio objeto e da objetividade do sujeito, mas a firmação da dialética de uma relação dinâmica e tensionada. Hegel (Fenomenologia) entende que a supressão deve ser também conservação, porém o que se conserva para ele é o ser pensado, o ser “para si”, o ser “para a consciência de si”. Como afirma Marx (Manuscritos P. ???), tal 9 Não existe tal primazia sequer na Teoria Crítica Frankfurtiana. Dialética é método, é relação sujeito-objeto e, portanto, é processo e não origem. “supressão-conservação é uma supressão da essência pensada (...) porque o pensado se imagina como imediatamente o Outro de si mesmo, realidade sensível: e porque para ela a sua ação vale também como ação real sensível, esta supressão em pensamento, que deixa permanecer o objeto na realidade, cuida de tê-lo realmente ultrapassado; e, por outro lado, porque o objeto se tornou agora momento do pensamento, vale para o pensamento, na sua realidade, como auto-atividade do pensamento da consciência de si, da abstração”. Assim, não tendo atingido o real concreto pela via do pensamento,como real pensado, já que o concreto foi reduzido a mera abstração, na fenomenologia hegeliana o pensamento vê no real não o movimento deste, mas o seu próprio movimento, considerando como realidade aquilo que é abstração, proveniente de um sujeito exterior ao objeto. Sujeito este que se eleva sob a forma de uma consciência de si, como a origem do desenvolvimento do real concreto, de tal forma que, ao final, o concreto é suprimido ao ser reduzido a um momento abstrato. Feito isto, é possível retirar ou dar ao objeto características que o pensamento subjetivamente define para ele, independentemente daquelas que o mesmo venha a ter. Para o Materialismo Histórico não há como suprimir a existência concreta, empírica, do objeto, sejam quais forem os métodos adotados, pois o pesquisador efetivamente não “sai do real” para elevar-se à contemplação deste objeto. Desta maneira, não é o real que deve ser suprimido, mas a alienação que impede a apropriação da essência objetiva da coisa, do objeto, ou seja, o que se deve suprimir na relação sujeito-objeto é a “percepção alienada da objetivação real” (MARX, Manuscr.). É neste sentido que no campo dos estudos organizacionais, sempre quando a própria organização é tomada como uma abstração, ou seja, como coisa em si esvaziada de materialidade, a alienação que acomete o pesquisador o coloca não em confronto com o concreto, mas com as ideologias, não com o real, mas com as idéias, de tal maneira que este acredita que confrontando as idéias confrontará a realidade que elas mascaram. O Materialismo Histórico, assim, recusa a concepção hegeliana de que o movimento se encontra em um universo transcendente ao movimento real, concepção esta que destrói a autonomia do movimento da realidade para reassumi-lo em seguida, no plano da subjetividade, como idéia. Para o Materialismo Histórico a primazia é do real porque é no próprio movimento do real que o princípio do movimento se exprime total e integralmente. \Porque se dá no interior da situação, o movimento atinge a situação. Porque se dá no ser, é movimento do ser. (CALVEZ, 1959). Esta relação dinâmica objeto↔sujeito↔objeto ou matéria↔consciência↔matéria, mediada pelo pensamento, é a forma de se apropriar do real concreto como real pensado, não permitindo a fuga do pensamento como um elemento exterior e anterior à relação. 10 Para o Materialismo Histórico, o método que concede ao 10 Isto não significa que se defenda a concepção de uma tábula rasa. Todo o sujeito pesquisador traz consigo teorias, metodologias, valores, experiências, decorrentes de suas relações sociais e daquelas legadas pela história e pela cultura. O que se argumenta, aqui, é a pensamento exteriorizar-se para reconstruir e para colocar movimento no objeto, não tem nenhuma outra existência além das próprias categorias definidas pelo pesquisador. Tal método somente pode ser útil como filosofia da abstração ou filosofia da idéia. É por esta razão que, como aponta Calvez, (1959), para o método dialético na perspectiva do Materialismo Histórico: I. Não há verdade eterna, imutável, pois não há ciência metafísica e no interior da ciência não metafísica não há verdades abstratas; II. A verdade se encontra na práxis e sua explicitação decorre de uma apreensão desalienada desta pelo sujeito do pensamento; III. O saber é dialético, é um movimento que procede de contradições; IV. O saber é parte de uma consciência entendida como atividade e não como intuição contemplativa; V. O procedimento correto do método é o que vai do concreto ao concreto pela consciência (pela mediação do pensamento), permanecendo, contudo, sempre no interior do concreto; VI. O saber é dialético porque o real também é dialético. O conhecimento está em relação dialética com o real e com a práxis. A consciência é condicionada pelo ser. E também esta relação é em si mesma dialética. Ao contrário dos métodos e das dimensões epistemológicas (FARIA, 2009) que se interessam ou pela forma como o objeto se apresenta em suas relações causais simples (positivismo; pragmatismo), ou pelo conteúdo, pela essência do objeto, suspendendo-o para colocar a forma entre parêntesis, ou reduzindo-o a um simulacro de um conjunto formal de relações fundamentais ou ainda remetendo-o a um sistema integrado de funções (respectivamente: fenomenologia; estruturalismo; funcionalismo), o método dialético é, para o Materialismo Histórico, a unidade de forma e conteúdo, essência e aparência, pois ambos se condicionam. O real é a base da ciência para o Materialismo Histórico e a relação do sujeito com o real é dialética. Entretanto, o conhecimento científico difere daquele imediatamente sensível do qual o sujeito não se apropria totalmente, porque o elabora apenas precariamente. A consciência imediatamente sensível é indiferenciada e vazia e, portanto, nega-se como consciência e como saber elaborado. Do ponto de vista do conhecimento científico, portanto, a primeira consciência do pesquisador resulta de uma “aproximação precária com o objeto” (FARIA, 2008). Nesta fase da relação sujeito-objeto o objeto escapa ao sujeito quando este o contradiz, quando este o enfrenta, o questiona, o submete às primeiras tensões. O objeto não se revela inteiramente ao sujeito senão em sua forma fenomênica e tampouco o sujeito apreende o objeto senão em sua forma aparente. Esta contradição desencadeia uma síntese primária em que o pesquisador é instado a refletir sobre o objeto, sobre si mesmo e sobre a relação dialética dele com o objeto, o que lhe permite avaliar a ambos e suas relações. Como resultado desta síntese primária a percepção do sujeito acerca do objeto eleva-se para uma aproximação relativamente elaborada, em que sujeito e objeto movem-se em direção um ao outro, ainda sob tensão. A consciência sensível do sujeito é parcialmente preenchida à medida que o objeto vai se revelando em sua qualidade. recusa a um pensamento preconceituoso, pré-concebido, pré-elaborado sobre o objeto antes de se estabelecer com ele uma relação dialética. A segunda fase do processo científico, para o Materialismo Histórico, é aquela em que a relação dialética sujeito-objeto é intensa e persistente, de maneira que mais e mais o objeto se revela ao sujeito e este mais e mais dele se apropria, porém agora como objeto relativamente elaborado. Sujeito e objeto movem-se à medida que o conhecimento eleva-se, aprofunda-se, estende-se e qualifica-se. A segunda fase do processo científico é a fase do conhecimento relativamente elaborado ou do conhecimento renovado, que se constitui na negação do conhecimento imediato, da síntese primária conferida pela aproximação precária. Porém, este conhecimento renovado que se opõe e se contradiz ao conhecimento precário, na medida em que o recusa e o enfrenta, forma com ele uma unidade necessária, pois o conhecimento renovado não existe sem o conhecimento precário, já que para negá-lo deve ser parte constitutiva deste. Quando o pesquisador se aprofunda no conhecimento do objeto ele coloca em tensão permanente o conhecimento renovado com o conhecimento imediato, ou seja, tanto o objeto vai se dando a conhecer qualitativamente quanto o pesquisador vai renovando seu conhecimento sobre o objeto. Tal tensão faz suscitar uma síntese. De fato, a superação da tensão entre o conhecimento precário e o conhecimento renovado, desta negação entre o conhecimento imediatamente sensível e o conhecimento relativamente elaborado, resulta na apropriação sintética definitiva (porém jamais final) do objeto pelo sujeito11. Esta é a terceira fase do processo científico, a fase da síntese dialéticado processo, na qual o pesquisador alcança o conhecimento da essência, que lhe permite elaborar os conceitos e organizar, enfim, a idéia da totalidade do objeto. Isto não é senão uma síntese dialética, uma nova forma de consciência sensível ou, em outros termos, não é senão o real concreto sintetizado na forma de real pensado. Nesta fase o pesquisador retorna ao real qualitativamente enriquecido, pois é a passagem do abstrato (do conceito) ao concreto que constitui “o método científico exato” (MARX, 1974). Para Marx (1974, p. 38): O concreto é concreto já que constitui a síntese de numerosas determinações, ou seja, a unidade da diversidade. Para o pensamento constitui um processo de síntese e um resultado e não um ponto de partida. É para nós o ponto de partida da realidade e, portanto, da percepção e da representação. No primeiro caso, a concepção plena se dissolve em noções abstratas. No segundo, as noções abstratas permitem reproduzir o concreto pela via do pensamento. Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que se concentra em si próprio, se aprofunda e se move por si, enquanto o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto é para o pensamento a forma de se apropriar do concreto, ou seja, o modo de reproduzi-lo sob a forma de concreto pensado. Mas, este não é de modo algum o processo da gênese do próprio concreto. 11 A apropriação sintética é definitiva no que se refere ao estágio da pesquisa em que o pesquisador encerra sua investigação. No entanto, tal apropriação jamais é final, porque o conhecimento se renova à medida que a ciência e a história avançam. Convém, aqui, analisar em detalhe esta concepção. I. Quando se analisa um objeto em um determinado campo concreto, o real aparece como uma unidade. Entretanto, o pesquisador deve saber que esta unidade é uma síntese (uma fusão de uma tese e de uma antítese em uma noção ou em uma proposição nova que retém o que elas têm de legítimo e as combina mediante a introdução de uma instância superior, um resultado de uma contradição dialética) de numerosas determinações. O concreto é uma unidade para o pesquisador, mas uma unidade que se origina da diversidade; II. Para o pensamento, o concreto é um resultado. O concreto constitui um processo de síntese para o pensamento porque o pensamento se apropria do real. A primazia é do real e não do pensamento. Não é o pensamento que cria o real, ou seja, o pensamento não é o ponto de partida, mas é o real que dá origem ao pensamento sobre ele. Contudo, o pensamento se apropria do real não como o mesmo é exatamente, mas como real pensado. O concreto é o ponto de partida da realidade e, deste modo, é o ponto de partida da percepção e da representação; III. Como processo de síntese para o pensamento, a concepção plena se dissolve em noções abstratas. Como já mencionado, a concepção plena se dissolve em categorias mais simples, as quais permitem alinhavar categorias mais elaboradas e abstraídas. Estas noções abstratas do mais simples ao mais complexo permitirão ao sujeito (pesquisador) se apropriar do real pelo pensamento; IV. O real, enquanto ponto de partida da realidade, ou seja, da percepção e da representação, se apresenta para o pensamento como um conjunto de noções abstratas que permitem ao sujeito (pesquisador) reproduzir o concreto pela via do pensamento; V. O real não é o resultado do pensamento que se concentra em si próprio, do pensamento que se aprofunda e se move por si, como propunha Hegel. É importante reter esta observação, porque parte significativa das pesquisas em organizações aborda o real como resultado do pensamento, de forma que o sujeito lança hipóteses sobre o mesmo ou faz “leituras” sobre o mesmo sem que o real se pronuncie ao sujeito. O real resulta, desta maneira hegeliana, da idéia que o sujeito faz dele sem que ele se apresente ao sujeito. O pensamento (a razão) se concentra em si mesmo, se aprofunda em suas elucubrações e se movimenta por sua própria disposição, porque o pensamento deseja conceber o real como resultado de sua produção independente. Uma vez pensado o real, o sujeito dirige-se a ele para confrontá-lo com o seu pensamento acerca do mesmo; VI. O método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto, isto é, de compreender o concreto a partir de categorias mais simples e mais elaboradas e complexas, é para o pensamento a forma de se apropriar do concreto, ou seja, o modo de reproduzi-lo sob a forma de concreto pensado. Contudo, o processo como o real pensado reproduz o concreto não é de modo algum o processo da gênese do próprio concreto, pois o pensamento opera, a partir do concreto, uma abstração dele, enquanto o mesmo se apresenta para o pensamento apenas na forma que este pode conhecê-lo. O movimento que vai do concreto ao concreto não é uma circularidade simples em que o sujeito pesquisador volta a encontrar o ponto de partida tal como o deixou. É um percurso dialético enriquecido com as múltiplas determinações do real que o sujeito foi capaz de desvendar e com as reelaborações que o sujeito foi capaz de fazer em suas reflexões, pois ambos, sujeito e objeto, se moveram no processo. Desta forma, o real concreto que o sujeito reencontra é apenas aparentemente o mesmo de onde ele saiu, pois o concreto não se apresenta mais ao sujeito em sua forma fenomênica e o sujeito não o percebe mais como conhecimento imediato. Ao reproduzir o concreto o sujeito o faz em sua forma apropriada pelo pensamento, como real pensado, elaborado, sintético, como totalidade síntese de sentido, pois o sentido do real deve ser buscado nele mesmo e não fora dele. Como se nota, o concreto encontra-se no ponto de partida e no ponto de chegada. A primazia é, portanto, do real. Contudo, se o real não for considerado pelo pesquisador em toda sua riqueza e extensão, o mesmo será abandonado como concreto e não será reencontrado no ponto de chegada do processo científico sequer em seu aspecto fenomênico, reduzido. Como argumenta Marx (MMMM. p. X), “a representação plena é volatilizada na determinação abstrata”. Deste modo, para o Materialismo Histórico o concreto deve estar igualmente no ponto de saída (conhecimento imediato) e no de chegada (conhecimento mediato) do processo científico. Há aqui, contudo, uma questão crucial que diferencia o método no Materialismo Histórico com outros métodos: o concreto pensado é uma reprodução enriquecida do concreto no plano da consciência e não uma produção do concreto pela consciência. De fato, ao contrário de outros métodos, para o Materialismo Histórico não é o processo científico que constitui, que faz ou que produz o concreto, ainda que aparentemente seja assim que possa ser percebido em uma leitura apressada. Tampouco a primazia do real consiste em uma garantia de que todo o processo de investigação leve ao seu retorno (ao concreto). Métodos inspirados na primazia do real, no campo empírico, tais como o positivismo e o pragmatismo, partem do concreto imediato, porém o destroem analiticamente no curso do processo científico fixando abstrações, elaborando leis em decorrência de repetições causais diretas, enfim, produzindo e deduzindo o concreto partindo de determinações simples (FARIA, 2009). Métodos inspirados na primazia da idéia, da razão, tais como a fenomenologia, o funcionalismo e o estruturalismo, por seu turno, buscam conceber o real não a partir dele, mas como resultado do pensamento, das reduções, das suspensões, dos modelos (simulacros), das relações funcionais previamente esperadas, enfim, do pensamento que se move por si mesmo. Neste caso, é a condição de aprofundamento do pensamento em si mesmo sobre a coisa que produz o entendimento da coisa como resultado, ou seja, partindoda idéia para a coisa (objeto, concreto), avança-se para a coisa e retorna-se à idéia enriquecida da coisa. Não é o concreto que se desvenda e enriquece e nem o sujeito que se move, mas o pensamento sobre a coisa que se transforma a partir de si mesmo (FARIA, 2009). Citar Marx, passagem sobre concreto vivo, já dado. Marx (1974) argumenta que começar um estudo por uma base sólida concreta pode parecer um bom método, mas sem que lhe proceda a uma análise profunda, chegando a noções cada vez mais simples, este método é errôneo. Um estudo organizacional, nestes termos, poderia começar pelo que constitui a base de sua estrutura e de sua produção, que é a totalidade dos sujeitos que nela atuam, ou a sua “organização”. Mas, é preciso conferir materialidade a esta “organização”, pois a mesma é uma abstração se não se consideram os grupos que a compõem12. Todavia, tais grupos também não têm sentido caso se ignore “os elementos sobre os quais se assentam”, como a divisão do trabalho, o controle sobre a gestão e o processo de trabalho, o controle sobre a hierarquia gestora e o processo decisório, a posição estratégica e política na gestão, a posse e a propriedade dos meios de produção, etc. Se a análise começasse pela “organização”, ainda que ela seja a raiz e o motivo de todo o processo, ter-se-ia, parafraseando Marx (1974, p. 37) “uma visão caótica do conjunto”. Partindo do conjunto dos sujeitos, da “população organizacional”, passa- se para abstrações cada vez mais sutis até chegar às categorias mais simples. Deste ponto, volta-se à “organização”, mas aí já não se terá uma idéia caótica do todo e sim “um conjunto rico de determinantes e relações complexas”. Quando se analisa uma organização a partir destas categorias mais simples (divisão do trabalho, processo e mecanismos de controle, comando sobre a estrutura hierárquica, posse e propriedade dos meios de produção, etc.), torna- se possível alinhavar categorias mais elaboradas e abstraídas. Tais categorias se elevam até as investigações sobre relações de poder, estratégias competitivas, associações (fusões, incorporações, cartelizações), cadeias produtivas e complexos industriais nacionais e internacionais, Estado Capitalista Contemporâneo, Globalismo/globalização. Este é o método correto para Marx que, evidentemente, difere daqueles em que a investigação inicia por um elemento de aparência concreta (por exemplo, o estudo de redes organizacionais, de estratégias institucionais, de habitus ou crenças e valores instituídos), mas que verdadeiramente se debruçam sobre uma abstração, pois os elementos que o constituem são, também eles, abstrações. De fato, este também é o caso de análises que se inspiram nas funções e nos papéis que desempenham os atores sociais ou os fatos sociais (funcionalismo), nos sistemas sociais ou organizacionais e seus componentes ou subsistemas (enfoque sistêmico), na prevalência das instituições sobre as ações práticas (teoria institucional), nos modelos construídos a partir da realidade empírica e nas relações e transformações obtidas que fornecem o sistema de regras (estruturalismo). Estas análises tomam a idéia (a abstração, o idealismo), a razão (racionalidade) como ponto de partida. Há, assim, dois pressupostor: (i) o de que existem elementos sociais dados (instituições, habitus), definidos não por relações sociais concretas, mas por um conjunto de crenças, costumes, valores, usos e interesses que se impõem aos sujeitos; (ii) o de que a realidade é fruto do pensamento que se tem sobre ela, isto é, a realidade é criada pelo pensamento. Estas análises diferem daquela do Materialismo Histórico não só epistemológica, como metodologicamente, porque para o Materialismo Histórico, todos os métodos que se valem de sistematização de categorias predeterminadas, de concepção de um mundo imutável ou conhecível do exterior, estão condenados à falência, porque concretizam o conhecimento e absolutizam os diversos aspectos relativos da experiência do saber (CALVEZ, 1959).13 12 Grupos sólidos, relativamente permanentes, identificados pelo lugar que ocupam no processo de trabalho ou pela posição política que ocupam nas relações de poder. 13 Esta e as seguintes citações de Calvez (1959) serão livres e referidas em itálico. Figura 01: Categorias Simples e Categoria Elaborada ou Complexa De fato, este é o caso de análises que se inspiram nas funções e nos papéis que desempenham os atores sociais ou os fatos sociais (funcionalismo), nos sistemas sociais ou organizacionais e seus componentes ou subsistemas (enfoque sistêmico), na prevalência das instituições sobre as ações (teoria institucional), nos modelos construídos a partir da realidade empírica e nas relações e transformações obtidas que fornecem o sistema de regras (estruturalismo). Estas análises tomam a idéia (a abstração, o idealismo), a razão (racionalidade) como ponto de partida. Há, assim, um pressuposto de que, por exemplo, existem elementos sociais dados (instituições, habitus), definidos por um conjunto de crenças, costumes, valores, usos e interesses. Tanto as instituições quanto seus elementos são obras da razão e são, portanto, abstrações. Para Marx (1974, p. 38), ao contrário: O concreto é concreto já que constitui a síntese de numerosas determinações, ou seja, a unidade da Divisão do Trabalho Relações de Poder Processos e Mecanismos de Controle Processo Decisório Posse e Propriedade dos MP Estrutura Hierárquica Categoria Simples Categoria Complexa diversidade. Para o pensamento constitui um processo de síntese e um resultado e não um ponto de partida. É para nós o ponto de partida da realidade e, portanto, da percepção e da representação. No primeiro caso, a concepção plena se dissolve em noções abstratas. No segundo, as noções abstratas permitem reproduzir o concreto pela via do pensamento. Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que se concentra em si próprio, se aprofunda e se move por si, enquanto o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto é para o pensamento a forma de se apropriar do concreto, ou seja, o modo de reproduzi-lo sob a forma de concreto pensado. Mas, este não é de modo algum o processo da gênese do próprio concreto. Convém, aqui, analisar em detalhe esta concepção. i. Quando se analisa um objeto em um determinado campo concreto, o real aparece como uma unidade. Entretanto, o pesquisador deve saber que esta unidade é uma síntese (uma fusão de uma tese e de uma antítese em uma noção ou em uma proposição nova que retém o que elas têm de legítimo e as combina mediante a introdução de uma instância superior, um resultado de uma contradição dialética) de numerosas determinações. O concreto é uma unidade para o pesquisador, mas uma unidade que se origina da diversidade; ii. Para o pensamento, o concreto é um resultado. O concreto constitui um processo de síntese para o pensamento porque o pensamento se apropria do real. A primazia é do real e não do pensamento. Não é o pensamento que cria o real, ou seja, o pensamento não é o ponto de partida, mas é o real que dá origem ao pensamento sobre ele. Contudo, o pensamento se apropria do real não como o mesmo é exatamente, mas como real pensado. Convém lembrar a célebre indicação de Spinoza: o conceito do cão não é o cão. O concreto é o ponto de partida da realidade e, deste modo, é o ponto de partida da percepção e da representação; iii. Como processo de síntese para o pensamento, a concepção plena se dissolve em noções abstratas. Como já mencionado, a concepção plena se dissolve em categorias mais simples, as quais permitem alinhavar categorias mais elaboradas e abstraídas. Estas noções
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