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Jornalismo em Quadrinhos: uma plataforma expressiva que se consolida como mídia militante1 CORBARI, Marcos Antonio (graduado)2 Universidade Federal de Santa Maria – Campus Frederico Westphalen, RS SANTOS, Ébida Rosa dos (graduada)3 Universidade Federal de Santa Maria – Campus Frederico Westphalen, RS Resumo: O Jornalismo em Quadrinhos consolida-se a cada dia através de inúmeras iniciativas de produção por parte de segmentos autorais interessados nas suas potencialidades expressivas e na sua virtude narrativa. Há que se notar, neste contexto, que o Jornalismo em Quadrinhos e suas diversas variações a partir das propostas iniciais de seus autores e das muitas interpretações dos pesquisadores que se dedicam a sua análise, encontra bases para consolidar-se entre as diversas paltaformas expressivas apropriadas a interpretação do real, de modo especial, como uma mídia militante, interessada sobremaneira na expressão de temáticas marginalizadas na seleção de espaço digno e representativo nos meios convencionais. Embora, deva-se reconhecer, não seja uma verdade única, boa parte dos HQ-repórteres detem-se a apurar pautas ligadas a zonas de conflito, dedicam-se a dar visibilidade a cenários de periferias, buscam sua materia prima em meio a contextos de exclusão, violência, miséria e amoralidade. O Jornalismo em Quadrinhos consolida-se enquanto plataforma expressiva voltada a informação por diversos fatores, entre os quais destacamos características especiais que o definem como uma mídia militante, particularmente dedicada em estar presente aonde a mídia convencional não está, em dar visibilidade a ângulos informativos os quais a mídia convencional não costuma expor. Palavras-chave: Jornalismo; Quadrinhos; Mídia; Militante. 1 Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Alternativa, integrante do 9º Encontro Nacional de História da Mídia, 2013. 2 Marcos Antonio Corbari é graduado em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria, campus Frederico Westphalen, onde atua atualmente como professor substituto junto ao Departamento de Ciências da Comunicação, nos cursos de Jornalismo e Relações Públicas Multimídia. marcos.corbari@gmail.com 3 Ébida Rosa dos Santos é graduada em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria, campus Frederico Westphalen, onde atualmente cursa segunda graduação, no curso de Relações Públicas Multimídia, pelo qual escreve como co-autora este texto. ebidasantos@gmail.com 1 – Para começo de conversa Em 2011 tivemos a oportunidade de analisar a proposta de interpretação de um modo de fazer Jornalismo diferenciado, que apropria-se das potencialidades expressivas e das virtudes narrativas das Histórias em Quadrinhos para a expressão de conteúdo jornalístico. Neste primeiro texto, apresentado como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)4, analisamos o Jornalismo em Quadrinhos a partir de um questionamento que dirigia a sua interpretação enquanto novo gênero jornalistico ou como plataforma expressiva que se deixa apropriar pelos diversos gêneros em sí, através do qual encontramos maior segurança na segunda afirmação, justificada essencialmente pela diversidade de linhas produtivas que até então foram possíveis identificar e analisar. Em 2012, por ocasião do 4º Encontro do Núcleo Gaúcho de História da Mídia (Alcar – RS), em 2012, tivemos a oportunidade de aprofundar o estudo em um segundo texto5, voltado a identificação das bases históricas que justificam o desenvolvimento do Jornalismo em Quadrinhos, apontando alguns referênciais e elecando diversas hipóteses, partindo do questionamento de origem e permitindo-se supor possíveis rumos futuros. Com este terceiro texto, desenvolvido em 2013, ora apresentado ao 9º Encontro Nacional de História da Mídia, pretendemos nos deter a um aspecto em especial, qual seja a característica adotada por muitos realizadores de produções de Jornalismo em Quadrinhos ao se dedicarem a pautas especificamente dedicadas a temas marginais, afirmando-se neste aspecto, como importante instrumento de mídia militante. A considerarmos a importância deste coletivo voltado a pesquisa e ao registro da história 4 “Jornalismo em Quadrinhos: reflexões sobre a utilização da arte sequencial como suporte a reportagem”. Texto apresentado a disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso I (TCC-I) junto ao curso de Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo. Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), campus Frederico Westphalen, disponível em: http://issuu.com/marcosantoniocorbari/docs/tcc-marcos-corbari?mode=window. 5 “Jornalismo em Quadrinhos: um panorama histórico da Arte Sequencial e sua redescoberta como plataforma informativa”. Texto apresentado ao Grupo de Trabalho História do Jornalismo, no 4º Encontro do Núcleo Gaúcho de História da Mídia, realizado em 14 e 15 de maio de 2012 em São Borja (RS), disponível em: http://porteiras.s.unipampa.edu.br/gphm/files/2012/05/gthistoriadojornalismo_Marcos_Corbari.pdf da mídia, justificamos a proposta de textos como estes manterem-se não apenas como recuperação de aspectos primordiais ao referencial histórico da plataforma em estudo, como também voltar-se ao registro contemporâneo do que vem sendo produzido em nosso tempo e, quiçá no futuro, possa vir a ser reaproveitado por novos pesquisadores na construção de um trabalho analítico mais ampliado, referenciando a história do Jornalismo em Quadrinhos e a contribuição deste para com os novos modelos comunicacionais que se desenham em nosso tempo. 2 – Princípios norteadores O que é mídia militante? Antes de propor uma definição, é preciso esclarescer uma negação: não consideraremos para o objetivo deste texto a associação do termo a comunicação panfletária ou dedicada a determinada causa político-ideológica pura e simplesmente. Para tanto, registramos nestas primeiras linhas a compreensão do Jornalismo enquanto essência associada a maior objetividade possível, mesmo que a subjetividade seja essência natural no direcionamento do olhar humano ao buscar os elementos para reconstruir uma ação – testemunhada ou não – através dos ângulos interpretativos necessários a construção do discurso informativo. Registrado isso, entenderemos por “mídia militante” a apropriação de determinado suporte de veiculação informativa a serviço de um viés interpretativo costumeiramente ignorado pelos meios tradicionais. Não faltam exemplos a serem citados neste âmbito, onde com o advento de um novo estágio da midiatização – agora através dos mecanismos digitais – encontra-se a rede dos chamados “comunicadores sem mídia”, que propoem mecanismos de apuração e veiculação diferenciados dos modelos tradicionais – muitas vezes essecivamente sintéticos – utilizados em coberturas onde há (ou deveria haver) multiplicidade de interpretações. Historicamente a Arte Sequencial, enquanto linguagem que origina o que convencionamos chamar de Histórias em Quadrinhos, tornou-se plataforma expressiva comumente associada a duas formas de apropriação divergentes: 1 – Tentativa de legitimação de discursos ideológicos dominantes, vide os exemplos clássicos das estórias de heróis e super seres que envolvem-se em causas de interesse como a segunda grande guerra nos anos 40 ou no combate do que chamou-se a “ameaça comunista” nos EUA dos anos 50 e 60; 2 – Instrumento de exposição de ideias contrárias ao status quo dominante, procurando de forma artística desconstruir conceitos conservadores, como o american way of life (estilo americano de vida) e propondo ao leitor uma experiência contracultural de matriz crítico/realista.Centramo-nos em produtos culturais que delineiam-se a partir deste segundo conceito, indo de econtro a todos os estereótipos de legitimação ideológica propostos pelos sistemas sociais dominantes ao longo do tempo. Essa espécie de manifestação legitima-se de forma clara, particularmente a partir do final dos anos 1960 e na década de 1970, com os chamados quadrinhos underground, com referência especial as obras de Robert Crumb, Gilbert Shelton e Will Eisner, entre outros. A partir destes autores e seus diversos pares que produzem Arte Sequencial mundo afora, temos a proposta de uma metamorfose expressiva, onde a fantasia deixa-se contaminar pelo real – chegando a desfigurar imagens, personagens, cenários e conceitos – construindo uma ideia de contrariedade ao que predomninava até então, ou seja, a realidade deturpada pela ideia do fantástico. Os quadrinhos underground rompem com modos tradicionais tanto de produção quanto de conteúdo, estabelecendo um novo modo de relação entre a linguagem da Arte Sequencial e o conteúdo real, de onde surgem ramificações diversas que vão conduzir ao que aprendemos a chamar de “quadrinho-verdade” (mais associado a linha documental e ao registro histórico de fatos de maior ou menor relevância) e o próprio Jornalismo em Quadrinhos, assim denominado a partir das produções de Joe Sacco, dos anos 1990 para cá, mas já encontrando representantes ao longo de pelo menos 40 anos de produções espontâneas desenvolvidas através das mais diversas técnicas. Nos tempos atuais se identifica facilmente inúmeros estudos que buscam delimitar procedimentos ideais que legitimem a produção de conteúdo jornalístico neste formato. Há diversas propostas, todas baseadas em argumentos plausíveis. Porém, se divergem quanto a origem, resultando em uma grande multiplicidade de formatos, convergem em grande parte quanto ao conteúdo, especialmente no que tange ao que propomos interpretar como mídia militante, ou seja, interessada nos temas ou nos ângulos informativos que são ignorados pela mídia tradiconal. Herdeiros diretos dos modos de expressão artística e narrativa dos autores underground, os novos realizadores do quadrinho-verdade e do Jornalismo em Quadrinhos, estão delineando um campo diferenciado de produção simbólica, que além de compor uma plataforma interessante no campo da midiação, estabelece novos paradigmas da produção informativa através de todos os recursos expressivos da Arte Sequencial. Há que se considerar ainda a função social da mídia, que encontra através de inúmeros realizadores de Jornalismo em Quadrinhos, comunicadores interessados em campos muitas vezes não contemplados pelos mecanismos tradicionais, novamente nos levando a considerar sua vocação nata para desenvolver-se enquanto mídia militante. 3 – Visibilidade aos invisíveis Uma definição clara e sintética do que discorremos neste texto está presente na apresentação escrita pelo jornalista José Arbex para a edição brasileira do livro “Palestina: uma nação ocupada”, de Joe Sacco, quando se refere ao fato de o autor “ter dado visibilidade aos árabes invisíveis”. Ao que ponderamos, em mesmo nível discursivo, entendendo que o Jornalismo em Quadrinhos propoe-se como meio expressivo adequado a viabilizar uma plataforma midiática aos “sem mídia”. O próprio Joe Sacco, a quem devemos a terminologia “Jornalismo em Quadrinhos”, refere-se aos fatores que o incentivaram a dedicar-se a pautas voltadas a situações de conflito, costumeiramente dedicadas a dar voz e imagem a personagens e acontecimentos que não estamos acostumados e ver, ouvir ou ler através de meios tradicionais. Um bom exemplo observado na obra do jornalista maltês faz referência ao conflito Israel- Palestina e as ações de terrorismo que se propaga a partir deste, conforme relata em entrevista ao grupo Folha: Basicamente, durante o colegial, nos EUA, eu presumia que todo palestino era terrorista. E não me culpo por isso porque, nos jornais e na TV, toda vez que a palavra palestino era mencionada, ela estava relacionada a atividades terroristas. Só quando me tornei autodidata é que percebi que os sequestros e as bombas de fato ocorriam, mas compreendi quais eram seus contextos. Não que isso justifique atos de terror, mas faltava contexto à mídia norte- americana. Um evento que me fez questionar o que eu lia e ouvia foi a invasão do Líbano por Israel em 1982. Os massacres em dois campos de refugiados palestinos levantaram uma questão para mim: Por que os palestinos estão sendo assassinados? Eu achei que eles eram os assassinos! (JOE SACCO, 2011, online) Encontramos ainda em uma entrevista concedida a Revista Época, mais considerações do autor a respeito do momento em que identifica a necessidade de redirecionar o olhar para um ângulo até então não contemplado pelo que se produzia em termos de reportagem, delineneando o aspecto que destacamos neste texto como mídia militante: A cobertura que eu acompanhava era tendenciosa e parcial. Aquela história não estava completa. Comecei a reeducar meu olhar. Eu precisava ir até lá ver como eles viviam. Me entristeceu muito, como alguém que estudou jornalismo nos Estados Unidos, saber que a mídia americana não tinha me mostrado os fatos que eu precisava para entender o que acontece. (JOE SACCO, 2011, online) Outra fala de Sacco que vem ao encontro da proposta de interpretação delineada neste texto foi registrada em entrevista ao portal Omelete: Os quadrinhos são uma mídia muito visceral. O leitor é colocado na cena. Também parece muito fácil, e o leitor pode ser seduzido a achar que será uma leitura tranquila. Mas você pode tocar em questões profundas com quadrinhos, assim como comunicar informações bem complicadas, e nesse sentido os quadrinhos ainda são subversivos. Como um lobo em pele de cordeiro. (JOE SACCO, 2011, online) Não é difícil encontrar obras que deixam-se influenciar tanto pelos modos de produção utilizados por Sacco, quanto pelo que entendemos ser a forma de angulação aplicada ao seu olhar enquanto repórter, buscando prioritariamente expor imagens, cenários, personagens e mesmo discursos costumeiramente ignorados. 4 – Referencias a serem consideradas Embora as referências ao quadrinho-verdade remetam as décadas de 1960 e 1970, é com a publicação da obra seminal “Maus”, pelo sueco Art Spiegelman, que a associação entre Jornalismo e Quadrinhos passa a ser considerada a um nível mais concreto. A distinção da HQ, que ilustra os depoimentos do próprio pai do autor sobre suas experiências durante a Segunda Guerra Mundial, laureada com o prêmio Pulitzer – maior honraria destinada a produtos jornalísticos –, traz à tona toda potencialidade expressiva da plataforma e a real possibilidade de aproveitamento para produtos indentificados primeiramente com a informação e secundiramente com a expressão artística. Spiegelman cria figuras simbólicas que potencializam o discurso informativo, tratando as informações coletadas através de entrevistas com seu pai e de pesquisas documentais com – ao mesmo tempo – isenção objetiva e dedicação conceitual. A figuração dos judeus como ratos e dos alemães como gatos clarifica um enfrentamento de forças desiguais, evocando uma força expressiva que dificilmente a fotografia ou a arte de matriz realista conseguiria alcançar em tal nivel como foi possível fazer através deste expediente. A inserção de outras linhas étnicas igualmente representadas através de animais como porcos (poloneses), cachorros (americanos)ou sapos (franceses) chega a nos remeter a concepção de “A Revolução dos Bichos”, onde as relações de poder são interpretadas através de discursos figurativos. Spiegelman, porém é duro e direto na história contada, não permitindo que a alegorização étnica dos peronagens interfira na interpretação real das passagens históricas relembradas, levando o leitor – não raras vezes – a conter a leitura tal a força expressivas impressa em desenhos e palavras. Outro petardo expressivo de grande força foi construído a seis mãos pelos franceses Didier Lefèvre, Emmanuel Guibert e Frédéric Lemercier. A obra, construída em três tomos, vai além da mescla desenho/texto característica da linguagem híbrida dos quadrinhos, pois utiliza um segundo elemento visual no enunciado discursivo: a fotografia. A reportagem surge do material coletado por Lefèvre em incursões junto com o grupo Médicos Sem Fronteiras no Afeganistão pré-taleban. O posicionamento das informações e fotografias de Lefèvre, acrescidas do roteiro e desenhos de Guibert, mais a diagramação e cores de Lemercier, dá origem a uma obra impar na construção dos conceitos do que hoje entendemos como Jornalismo em Quadrinhos. A força expressiva da soma dos signos visuais (desenhos e fotografias) convivendo lado a lado nas páginas dos três volumes alcançam potenciais de significado impressionantes. Há, porém, sempre que se retornar ao nome de Joe Sacco, o jornalista maltês radicado nos Estados Unidos que reivindicou o estatuto jornalístico para a produção da arte sequencial através do desenvolvimento de reportagens expressas como Histórias em Quadrinhos. Sacco vai além de Spiegelman ou o trio francês, bem como de muitos outros autores e realizadores que poderíamos enumerar neste texto desde os anos 70 até a atualidade. O mérito de Sacco está em apropriar-se de todas as ferramentas do Jornalismo, tais quais a definição de uma pauta, a pesquisa prévia, o levantamento de dados, a identificação das fontes e – principalmente – a execução de um processo completo de apuração, não raro indo a campo para coletar dados, reconhecer o terreno, conversar com as fontes, até mesmo chegando a investigar fatos e versões. A partir de “Palestina, uma nação ocupada” e “Palestina, na faixa de Gaza”, firma-se a proposta de um novo mecanismo de produção jornalística, consolidando a plataforma expressiva do Jornalismo em Quadrinhos e abrindo um sem-número de possibilidades de desenvolvimento de contéudo através das variações de projeção de linguagem e expressão sígnica do que hoje nos esforçamos para mapear e interpretar, seja aos olhos da manifestação artística ou aos intuitos da produção de Jornalismo. É Sacco que nos desperta também a interpretação do Jornalismo em Quadrinhos como legítima manifestação de mídia militante, que se deixa apropriar e expressa potencialidades para o atendimento de pautas que dificlmente seriam contempladas ou encontrariam possibilidades de repercussão adequada através de meios convencionais. 5 – Experiência sem fronteiras A denúncia de situações de desigualdade, corrupção, exploração, escravidão, miséria, conflito, desastres e outras trgédias de matriz humana despertam de forma muito particular a atenção do Jornalismo, que deve assumir nestes cenários o critério mor de noticiabilidade, referente ao interesse público em sua mais decisiva encarnação, através da reportagem denúncia. Se ao jornalista não cabe apenas a missão de noticiar pura e simplesmente os fatos, muitas vezes sendo desafiado a assumir o papel de intérprete ou mesmo de investigador a respeito dos fatos que balisam a informação, quanto mais se eleva a potencialidade máxima ao desafiar-se a mostrar através dos meios a que dispõe as interpretações de fatos muitas vezes incômodos a maioria. O jornalista passa a ser militante da verdade quando não se deixa convencionar pelo lugar comum estabelecido formal ou informalmente pelos meios de massa, comprometendo- se exclusivamente com a verdade e seus personagens, jamais com uma versão e seus atores. No que tange ao Jornalismo em Quadrinhos, há uma experiência que merece destaque, chamada Cartoon Movement (http://www.cartoonmovement.com), coletivo que propõe a utilização da Internet como plataforma de publicação para caricaturas políticas e reportagens em Arte Sequencial. Já tivemos a oportunidade de analisar esta palataforma em texto anterior, apresentado a Alcar/RS: Além de oportunizar aos realizadores a possibilidade de veicular seus produtos, o Cartoon Movement proporciona a viabilização de muitas dessas publicações. Entre algumas HQ´s em destaque, disponíveis para leitura online, estão “Tents Beyond Tents” (Jean Pharés Jerome e Chevelin Pierre) cuja produção mobilizou a viagem de editores do grupo até o Haiti, com o intuito de encontrar cartunistas e jornalistas interessados em contar a respeito da realidade do país após os terremotos que devastaram a capital, Porto Príncipe. O projeto se estende ainda, diferenciando-se de outras iniciativas humanitárias, por oportunizar que cidadãos haitianos sejam os executores dos trabalhos de argumento e arte. (CORBARI, SANTOS, DOMINGUEZ, 2012, online). O Cartoon Movement continua em atividade, tendo recentemente produzido reportagens a respeito de política de imigração americana, das ações do tribunal penal internacional, da situação dos tibetanos que optam pela autoimolação em defesa de sua pátria, a inserção de programa artístico em uma penitenciária americana, o movimento estudantil do Quebec, entre outros. A plataforma digital potencializa a produção de quadrinhos, permitindo em muitos casos a ampliação de ocnteúdo através de links externos ou mesmo a inserção de conteúdo extra associado às próprias páginas das HQ's. Dentro das reportagens viabilizadas pelo coletivo, conforme já identificamos no texto anterior apresentado a Alcar/RS, há uma produzida pelo jornalista brasileiro Augusto Paim, contando com desenhos do listrador Maumau, dividida em duas partes intituladas “Inside in the favelas” e “Inside in the maré”, propondo um olhar crítico sobre a vida nas favelas do Rio de Janeiro, na sequência das ações policiais em massa realizadas para varrer os cartéis de drogas realizadas em 2010. No mesmo site há disponíveis ainda reportagens em Quadrinhos a respeito de países como Bahrein, Congo, Palestina e Afeganistão, mas materiais alusivos a cidades americanas e européias também encontram suporte no mesmo projeto e recebem o mesmo tom crítico de abordagem. Há que se registrar uma experiência continuada de Jornalismo em Quadrinhos realizada no Brasil pela revista Fórum. A publicação abre espaço para veiculação em formato digital (por vezes também reproduzida na versão impressa) para as reportagens em Arte Sequencial produzidas pelo repórter Carlos Carlos e pelo ilustrador Alexandre De Maio. A primeira veiculação foi realizada na edição 106 (Janeiro de 2012), abordando a marginalização dos usuários de crack, onde o repórter participa da ação narrativa como personagem, interagindo no desenho junto com o entrevistado, que fornece os argumentos para composição da cena. A partir desta proposta inicial, não apenas se abre através da publicação a possibilidade de sequenciar o trabalho, como estabelece padrões estético-narrativos que vão se confirmar em trabalhos posteriores. A segunda veiculação acontece um mês depois, na edição 107, onde o tema foi a remoção de famílias da área onde estavam assentadas favorecendo obras para a Copa do Mundo.A influência da obra de Joe Sacco parece bastante clara nas produções de Carlos e Maio, assinaladas principalmente pela clara exemplificação através da imagem do repórter e da apresentação de técnicas de apuração através das ilustrações – formulando uma sequencia narrativa visual –, porém permite-se experimentações diferenciadas onde se pode notar de forma bastante clara a diferença artística de traço (enquanto Sacco circula entre o real e o caricaturizado, Maio procura a maior fidelidade fotográfica em seus desenhos), a escolha da coloração (Sacco utiliza preto e branco em linha artística, Maio usa cores em ilustração realista) e, por fim, na formulação do texto (Sacco desenvolve a narrativa longa, costumeiramente publicada em fascículos contínuos ou em versão reunida em livro, enquanto Carlos desenvolve seu texto sintetizando informações e primando pela compactação ao condensar seu trabalho de reportagem em poucas páginas). O trabalho continuado de reportagens em quadrinhos já rendeu atenção a pautas como incêndios em favelas paulistas, ativismo social desempenhado por pixadores, aumento das mortes violentas na periferia de São Paulo, a situação do sistema carcerário brasileiro, o desalojamento de famílias por conta das obras para a Copa do Mundo, marginalização de usuários de crack, entre outras. Estas e outras produções também podem ser localizadas no site do projeto de jornalismo comunitário Catraca Livre, que informa sobre serviços e atividades culturais gratuitas nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro e costuma abrir espaço para publicaçãoes de linha alternativa. 6 – Considerações finais Joe Sacco, em entrevista ao grupo Folha, reflete a respeito do rumo dos quadrinhos-verdade, como se legitimam como plataforma expressiva e se descobrem além da ideia inicial de um meio identificado com o fantástico: “O que houve é que muitos amantes de histórias em quadrinhos perceberam o potencial desse formato. E eles não estavam interessados em super-heróis”. (SACCO, 2011, online). O que podemos conjecturar é se uma ferramenta característica do fantástico encontrou meios de apropriar-se do real, ou se o contrário, onde o real apropriou-se dos meios expressivos do fantástico para exprimir-se através de outros meios que não os usuais e costumeiros. Mais uma vez, quanto mais aprofundamos a reflexão, mais pereguntas surgem no horizonte. Na mesma entrevista, Sacco fala a respeito da forma como o HQ- repórter se porta frente a interação com o cenário de sua reportagem quando esta retrata cenas de violência: “...para desenhar propriamente um soldado armado, um tiroteio ou um corpo no chão é preciso coabitar aquela cena” (SACCO, 2011, online). A passividade frente a pauta não é uma característica presente na maior parte dos HQ- repórteres, que ao desempenhar a sua função enquanto jornalistas o fazem construindo as bases para um fazer jornalístico que propoem-se existir enquanto uma nova forma de midia militante. Recordamos, nestas palavras finais, de uma passagem interessante do jornalismo-verdade. No ano de 1968 os argentinos conheceriam a HQ “La vida del Che”, cujo argumento foi desenvolvido pelo seu maior quadrinhista, Héctor Oesterheald, tendo como ilustradores a dupla Alberto e Henrique Breccia. O livro, lançado cerca de três meses depois da morte de Ernesto “Che” Guevara, executado na selva boliviana, foi considerada uma das mais belas retratações biográficas da vida do guerrilheiro, despertanto tanto ódio quanto admiração. A repercussão da obra, cuja responsabilidade recai como instrumento de legitimação da imagem heróica de Che em terras argentinas, seria o pontapé inicial de uma longa perseguição política que se estenderia contra Oesterheald e sua família, culminando com o sequestro do autor e de suas quatro filhas, ambos presumivelmente executados pelo regime ditatorial entre os anos de 1976 e 1978. O destino trágico poderia ter sido evitado, tivessem os autores aceito o pedido da embaixada americana, apresentado pouco depois do lançamento de “A vida del Che”, para que redigissem trabalho semelhante tendo como personagem o norte-americano John F. Kennedy. A recusa representa uma ação simbólica que ainda hoje merece ser resgatada, não apenas como afirmação de firmeza de caráter dos autores, mas mesmo como legitimação da plataforma expressiva como mídia militante, caracterizada por identificar-se com as pautas e os personagens contrários ao status quo dominante, costumeiramente apropriada como mecanismo de comunicação dos que não tem alcance aos meios tradicionais. Ao recusar em 1968 o chamado para assinar a construção de John Kennedy como personagem de quadrinho-verdade, Oesterheald inconscientemente deu o primeiro passo para o que hoje nos arriscamos a propor como plataforma característica de mídia militante. E o Jornalismo em Quadrinhos dos nossos dias se aproxima muito da postura de Oesterheald, deixando-se apropriar enquanto meio expressivo por aqueles declaradamente sem mídia, por dar voz e vez aos que costumeiramente são relegados ao silêncio e ao esquecimento. A mídia militante, descrita e desenhada através da Arte Sequencial, representa a partir deste contexto, uma parte imprescindível na construção de um conceito de comunicação completo, visualizado através dos multiplos olhares possíveis e dos mais diversos ângulos aplicáveis. 7 – Referências BARTHES, Roland. Introdução à análise estrutural da narrativa. In: Análise estrutural da narrativa. Coleção Novas Perspectivas em Comunicação. Petrópolis: Editora Vozes, 1977. CORBARI, Marcos Antonio. Jornalismo em Quadrinhos: reflexões sobre a utilização da Arte Sequencial como suporte à reportagem. Artigo apresentado como Trabalho de Conclusão de Curso I (TCC 1). Universiade Federal de Santa Maria, UFSM: 2011. CORBARI, Marcos Antonio; DOMINGUEZ, Carlos André Echenique; SANTOS, Ébida Rosa dos. Jornalismo em Quadrinhos: um panorama histórico da Arte Sequencial e sua redescoberta como plataforma informativa. Anais do 4º Encontro do Núcleo Gaúcho de História da Mídia. Volume 1, Número 1. 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