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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA CURSO DE HISTÓRIA Thaís Valvano MAZZAROPI E A INVENÇÃO DO CAIPIRA NAS TELAS DO CINEMA Niterói 2012 Thaís Valvano MAZZAROPI E A INVENÇÃO DO CAIPIRA NAS TELAS DO CINEMA Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau Bacharel em História. Orientadora: Profª. Drª. Denise Rollemberg. Niterói 2012 Thaís Valvano MAZZAROPI E A INVENÇÃO DO CAIPIRA NAS TELAS DO CINEMA Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau Bacharel em História. Profª. Drª. Denise Rollemberg Orientadora – U.F.F. Prof. Dr. Mauro Castilho Leitor crítico – P.U.C. – S.P. À minha avó Maria Terezinha (em memória), que com seu amor infinito me ensinou a ter responsabilidade e a confiar em mim e nas pessoas. Sem o seu amor, mesmo que de longe, eu não seria nada. Agradecimentos Após meses de pesquisa para a elaboração desse trabalho, percebi que o mais difícil era agradecer às pessoas que acompanharam o processo desde as primeiras palavras escritas até as considerações finais. Não foi difícil lembrar todas as pessoas que me ajudaram, de alguma forma, na elaboração do trabalho. O complicado foi encontrar as palavras certas que abrangessem o melhor possível meus sentimentos de gratidão. Inicio assim meu agradecimento à minha avó, Jurema. Sim, foi ela que possibilitou a elaboração desse trabalho, pois me forneceu o computador que era a necessidade básica para produzir. Digo isso não só pelo valor material de sua atitude, mas também pela confiança que ela depositou em mim, sem contar as incalculáveis horas que eu reclamei no telefone, ela sempre me acalmou e me deu força para seguir em frente. A meus pais, Adriana e Ney, que desde o primeiro dia de aula na faculdade me incentivaram a me formar e a dar valor para a chance que eu estava tendo. Não vou fingir que meu pai ficou feliz com minha decisão por história, mas, mesmo contra sua vontade, bancou meus estudos financeira e emocionalmente. Minha mãe sempre me querendo por perto, guardou sua proteção e me apoiou na decisão de morar no Rio de Janeiro. Além deles, agradeço a minha família inteira, meus irmãos, Raí e Catarina; avô; tios; primos que mesmo indiretamente foram importantes nessa trajetória. Minhas amigas e companheiras de Niterói que sempre estiveram ao meu lado, aguentando as crises, as indecisões e as chatices quase cotidianas em nome da amizade. Graças a Amanda, Ana Beatriz, Fernanda, Janille, Julia, Luana, Rafane, Taiane e Thaíse, nunca me senti sozinha na cidade grande e tive coragem de continuar a faculdade. Sou muito grata pelas risadas, pelos conselhos, pela companhia e pelo amor que sempre senti com e por elas. Agradeço também às pessoas que me ajudaram em todos os capítulos desse trabalho. Meu padrinho, Mauro, sempre lendo e me ajudando na correção. A meu ex- professor, Gustavo, que somente por boa vontade me ajudou nessa jornada também. E a minha orientadora, Denise Rollemberg, que com sua orientação me ajudou bem mais do que a concluir esse trabalho, me inspirou a sentir mais a história. Por fim, mas não menos importante, a Bruno, que com seu carinho e dedicação me tranquilizou nos momentos difíceis e me inspirou a ser uma pessoa melhor. Foi fundamental para me motivar na conclusão desse trabalho e a atingir meus objetivos presentes e futuros, sempre ao meu lado. RESUMO O estudo propõe identificar, a partir da análise fílmica da obra de Mazzaropi, elementos que representam a cultura caipira nos anos de 1950 a 1970. Para isso, analisa fatores presentes nos filmes que, de certa forma, criam a figura do caipira no imaginário social, ao mesmo tempo, que possibilitam uma abordagem prática sobre questões que foram pouco abordadas nos discursos textuais. Nesse sentido, o objetivo é fazer uma leitura do mundo rural, a partir do discurso iconográfico, compreendendo as relações sociais por meio das tradições, mentalidades e costumes. Além disso, a proposta circula entre a recuperação e a reinvenção da memória, à medida que faz a contra-análise social, buscando através das informações da imagem, significados que possibilitem novos elementos no processo de constituição de identidades sociais. Palavras-Chave: História e Cinema – Cultura Caipira – Contra-Análise Social – Identidade Rural; ABSTRACT This article proposes to identify, from filmic analyze of Mazzaropi production, elements that represent the caipira culture in the years around 1950 to 1970. The analyze consists in present factors inside the movies, creating the caipira figure in the social imaginary, in the same time, enable a practical approach about usually low addressed questions in textual speeches. Accordingly, the objective is to propose a Mundo Rural interpretation, from iconographic speech, comprising social relationships through tradition, mentalities and manners. Furthermore, the article circulates between recovery and reinvention of memory, analyzing the Marc Ferro production, “History and Cinema”, searching through image information the meanings that enable new elements creation in the social identities constitution process. Key-words: History and Cinema – Caipira culture – Contra-Análise Social – Rural identity; Sumário Introdução – O surgimento do tema.................................................................... 9 Capitulo 1 – O fazer histórico através do Cinema de Mazzaropi........................... 12 A teoria de Marc Ferro............................................................................................... 12 Ficção na obra de Ferro.............................................................................................. 17 Capítulo 2 - O Jeca do interior de São Paulo.......................................................... 22 O caipira por Antonio Candido.................................................................................... 22 O filme Jeca Tatu......................................................................................................... 25 A cultura caipira e suas representações........................................................................ 32 Capítulo 3 - De Jeca a empresário............................................................................ 37 Da infância caipira ao sucesso de público.................................................................... 38 A crítica especializada.................................................................................................. 41 O sucesso de “Jeca contra o Capeta”............................................................................ 44 Mazzaropi e a crítica ao cinema novo......................................................................... 51 Capítulo 4 - O filho preto do Jeca – No Brasil o preconceito não tem vez. Ounão seria bem assim?............................................................................................................ 54 Considerações finais – Sobre o cinema de Mazzaropi.......................................... 69 Bibliografia............................................................................................................... 72 Anexos......................................................................................................................... 74 Introdução O surgimento do tema Amácio Mazzaropi nasceu em São Paulo no dia 9 de abril de 1912 e morreu em 13 de junho de 1981. Criado no interior paulista ficou conhecido por incorporar as características do caipira em suas apresentações no rádio, no cinema e na televisão. Seu personagem era conhecido como “Jeca” 1 devido à influência das peças teatrais das quais ele participava ainda na adolescência. Nesta época a necessidade de encontrar um nome artístico e de construir seu personagem fizeram com que ele juntasse a personalidade de Sebastião de Arruda, um caipira do interior que levava o público à gargalhada com as suas trapalhadas, com a figura do “Jeca Tatu”, criada por Monteiro Lobato. Foi com seu próprio nome, Mazzaropi, e com a caricatura de Jeca que ficou conhecido nacionalmente. Aos poucos Mazzaropi começou a se inserir no mundo da comunicação. As apresentações de sua trupe pelo interior e até mesmo capital fizeram com que seu personagem ficasse cada vez mais conhecido e admirado pelo público de uma forma tão progressiva que logo ele foi convidado para participar de programas na rádio. Não obstante, além de marcar a entrada do Mazzaropi nesse universo, a década de 1940 presenciou o surgimento de novas produtoras cinematográficas em São Paulo, que foram criadas para acompanhar a cena cultural paulista que nesse período já superava a carioca 2. Foi nesse contexto que a produtora de cinema “Vera Cruz”3 iniciou seus trabalhos e, dentre outros filmes, passou a produzir os filmes de Mazzaropi, tornando-se a instituição responsável pela sua estreia nos cinemas. A Vera Cruz acompanhou o período de ascensão da bilheteria do cinema brasileiro, visto que o número de público aumentava a cada ano 4 . Nesse sentido, sua criação esteve 1 Personagem criado por Monteiro Lobato, a figura do Jeca Tatu teve várias interpretações, sendo a sua maioria representada por Mazzaropi na caracterização do seu personagem “Jeca”. 2 MATOS, M. Sai da Frente – A vida e a obra de Mazzaropi. . Rio de Janeiro: Desiderata, 2010. pp 63- 64. 3 Criada em 1949 pelos empresários Franco Zampari e Francisco Matarazzo Sobrinho. “Espelhada em Hollywood, fundaram a Companhia Cinematográfica Vera Cruz” (Matos, M. p 63) 4 Op.cit. p.65. ligada principalmente à preocupação dos empresários brasileiros em fomentar a economia interna com o cinema, já que esse crescimento da bilheteria nacional estava muito ligado aos filmes estrangeiros, principalmente norte-americanos que cobravam uma porcentagem muito alta sobre a distribuição dos filmes. O contexto dos anos 1950 foi marcado pela quebra e criação de várias companhias cinematográficas. Isso pelo advento da televisão, que esvaziou muitas salas de cinema. Mas mesmo assim havia muitos empresários que ambicionavam criar uma indústria cinematográfica no Brasil. Um deles foi Oswaldo Massaini 5 , fundador da Cinedistri Ltda, que além de produzir mais três filmes do ator, depois do fechamento da Vera Cruz, ensinou a Mazzaropi tudo o que era necessário para a produção de um longa. Equipamentos técnicos, direção, fotografia, enredo e contou com a ajuda de profissionais especializados para isso. Porém, o que foi mais válido para Mazzaropi nesse período de trabalho na ainda pequena Cinedistri foi a percepção de que ele não precisava de grandes estúdios para rodar seus filmes, o que fomentou a ideia de criar sua própria produtora. O artista progredia a todo instante, tornou-se conhecido nacionalmente, até criar sua própria produtora de cinema em 1958. A Produtora Amácio Mazzaropi (PAM – filmes), a partir do ano de 1959, proporcionou a Mazzaropi a autonomia de dar vida a seu personagem “Jeca”, que caricaturava o grupo rural paulista de forma cômica e denunciativa. Seus filmes eram compostos por cenas externas gravadas em cidades do interior de São Paulo que garantiam a veracidade do cenário. Muitas vezes, recrutava a própria população rural para serem figurantes em seus filmes. Nesse sentido, a viabilidade do trabalho pode ser argumentada a partir da obra “Cinema e História” de Marc Ferro, quando o autor defende a possibilidade do fazer histórico a partir do cinema 6 . Portanto, a proposta é utilizar os filmes de Mazzaropi como fonte documental e a partir do estudo da imagem fílmica propor a contra-análise social no processo de urbanização, que ocorreu a partir dos anos de 1950, focando nos modos, costumes e condições sociais da população do interior que durante esse período lotava as salas de cinema de suas pequenas cidades. Isso porque, para entender esse processo de urbanização, é necessário, previamente, pensar o mundo rural e as condições sociais daquela população. As mudanças que 5 Produtor e distribuidor de filmes brasileiros. Nasceu em São Paulo em 1920 e foi responsável pela produção de mais de 60 filmes, entre eles o “Pagador de Promessa” (Ganhador da Palma de Ouro em Cannes). 6 Ver MORETTIN, E. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 38, p. 11-42, 2003. Editora UFPR. ocorreram, a necessidade de mão de obra nas grandes cidades e ainda a questão da identidade rural nesse contexto, são temas pertinentes de serem estudados. Além disso, pensar que Mazzaropi sempre defendeu a figura do Jeca, mas só começou a utilizá-la em seus filmes no ano de 1959. Isso requer a análise de outro problema: por que o produtor incorporou a ruralidade em sua obra? Que efeitos ele almejou obter com essa proposta? Portanto, o objetivo dessa obra é analisar a construção da identidade caipira a partir dos elementos presentes na sociedade rural paulista dos anos de 1950. No entanto, tal analise será feita a partir dos filmes produzidos por Mazzaropi nesse período. O foco é identificar, através da imagem fílmica, os caracteres do caipira e entender como as mudanças causadas pela modernização modificaram o cotidiano do interior. Para isso, é necessário compreender as características que estiveram presentes na formação desse grupo e como ela foi reinterpretada ao longo dos anos, definindo modos, costumes e relações pessoais. Capítulo 1 O fazer histórico através do Cinema de Mazzaropi “certamente o cinema não é toda a História. Mas, sem ele, não se poderia ter o conhecimento do nosso tempo” 7. Trabalhar com história e cinema requer um cuidado acerca da utilização dos filmes como fonte histórica. Por isso pretendo utilizar teoricamente autores como Marc Ferro que estudam essa relação e argumentam a possibilidade de fazer história através do cinema, observando casos concretos. Porém, antes de incorporar o cinema ao fazer histórico, Ferro elaborou uma nova teoria que fundamentasse essa discussão, no contexto do que ficou conhecido como História Nova 8 . A proposta de fazer um balanço historiográfico acerca da relação entre cinema e históriaocorreu da necessidade de argumentar historiograficamente a análise que fiz: um estudo sobre a população rural do estado de São Paulo, a partir dos filmes de Mazzaropi. Para isso utilizo os próprios filmes do produtor como fonte histórica, que somado à bibliografia sobre o tema compõe a minha argumentação. Nesse sentido, utilizarei fundamentalmente o autor Eduardo Morettin, que, em sua obra “O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro”, observa, além do lugar que o cinema ocupa na obra de Ferro, o processo de elaboração dessa teoria. 1.0 – A teoria de Marc Ferro Em sua obra mais conhecida acerca da discussão entre História e Cinema, Ferro analisa a sociedade e suas representações. No artigo “Filme: uma contra-análise da sociedade?”, defende logo de inicio que o cinema pode ser considerado uma fonte de 7 Moetin. IN FERRO, Société du XXe. sièclè...., p. 585.. p. 19. 8 De Le Goff, ver LE GOFF, J. História. In: ROMANO, R. (Org.). Enciclopédia Einaudi, Memória – História. [S.l.]: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,1984. v. 1, p. 158-259; e LE GOFF, J. L’histoire nouvelle. In: LE GOFF, J. et al. (Orgs.). Les Encyclopédies du Savoir Moderne – La Nouvelle Histoire. Paris: CEPL, 1978. p. 210-241; de Le Goff e Pierre Nora, ver: LE GOFF, J., NORA, P. (Orgs.). História: novos objetos. Trad.: Terezinha Marinho. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976; por fim, ver GARÇON, F. Desnoces anciennes. In: GARÇON, F. (Dir.). Cinéma et Histoire. Autour de Marc Ferro. CinémAction, n. 65, p. 9-18, oct./déc. 1992. análise de qualquer sociedade. E vai além, garante que o estudo através do filme pode ser ainda mais contundente do que as fontes tradicionais, pois a produção cinematográfica não carrega da mesma forma o controle de estâncias estatais 9 . Para Ferro, “o documento fílmico produzido pelo Estado ou por outras instituições difere do documento escrito que possui a mesma origem”. O primeiro “traz sem querer uma informação que vai contra as intenções daquele que filma, ou da firma que mandou filmar”. Não que não haja “lapsos” nos documentos escritos, “mas no filme há lapsos a todo o momento, porque a realidade que se quer representar não chega a esconder uma realidade independente da vontade do operador”.10 No entanto, não é possível fazer a analise de um determinado grupo social simplesmente a partir da reprodução da imagem e os lapsos documentais que ela aponta. Num estudo sistemático de determinada sociedade é necessário ter um pré- conhecimento desse objeto de estudo. Só a partir de uma noção do objeto é que se torna possível encontrar conteúdo que retrate o grupo analisado. Além disso, o filme pode abrigar leituras opostas acerca de um determinado fato, e a percepção desse movimento deriva fundamentalmente do conhecimento específico do meio. Portanto, Ferro passa a analisar os grupos sociais marginalizados, que por esta condição não detêm o poder de representação social. Tais grupos ficam na dependência dos grupos sociais de maior poder que dificilmente farão uma história dessa classe marginalizada, ao menos não sem deter juízo de valor. É a partir dessa visão que Ferro, analisando as produções cinematográficas concretas desses grupos, chega à conclusão de que tais produções são efetivos elementos correspondentes à contra-análise da sociedade. Segundo Ferro, a contra-análise da sociedade acontece quando se encontram elementos nos filmes que representam a sociedade de uma forma diferente daquelas presentes nas fontes tradicionais 11 . Isso porque, tais elementos não são visíveis nessa sociedade e aparecem nos filmes de forma involuntária. Simplesmente acontecem, sem que produtores ou diretores disso tomem ciência. Estão presente no cenário, no modo de falar, nos diálogos, na própria estrutura dos filmes, entre outros. 9 Morettin. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 38, p. 11-42, 2003. Editora UFPR. p. 13. 10 Morettin. Op.cit. p.14. 11 Fontes escritas, ou reconhecidas como documento histórico. Um modo de exemplificar essa teoria de Ferro e aproximá-la do objeto de análise desse estudo é identificar esses elementos nos filmes de Mazzaropi. Para isso, é necessário observar que o objetivo do produtor era criar um enredo a partir de um representante de um grupo social: o caipira. Seguindo o conceito de Ferro, é possível identificar nos filme de Mazzaropi, elementos que comprovam que o filme pode deter a função de contra-análise social. Nesse sentido, uma analise da sociedade rural através dos filmes que esteja relacionada a uma bibliografia prévia cria um debate interessante. Possibilita identificar a viabilidade de utilizar uma ou outra forma do fazer histórico. O que determina essa condição é o objeto do estudo proposto. No entanto, na medida em que há um enfoque maior num tipo de fonte em detrimento de outro, o trabalho pode se tornar incompleto. Outra análise da teoria de Ferro é ver o cinema como fonte complementar a uma fonte escrita. A exemplo do que utilizei nesse capítulo, para entender a proposta do filme para além do que a imagem transmite, é necessária uma contextualização prévia, principalmente se esse entendimento depender da análise de um grupo social. Como defesa de sua proposta, que em termos práticos corresponde à criação de uma nova ciência 12 , Ferro cria sua argumentação a partir da análise de vários filmes. Nesse sentido, defende o cinema como novo documento. No entanto, sabe que sua defesa requer um cuidado especial, pois afirma “que o cinema, como fonte histórica, sempre foi desprezado pelos historiadores e pela sociedade. Esse desprezo pelo cinema reflete um distanciamento do historiador diante de informações de outra natureza” 13, que só uma análise fílmica pode proporcionar. Seguindo essa linha de pensamento, Ferro defende que só a imagem pode ser livre de manipulação. Por mais que haja uma intenção determinada, uma leitura mais intrínseca de tal imagem revela fatos que nem mesmo o produtor ou roteirista do filme poderia prever. Para chegar a essa conclusão, o autor buscou estudar os filmes produzidos por grupos sociais marginalizados de algumas sociedades. Um exemplo disso foi a análise de um filme produzido por um grupo de índios. Contudo, analisando esse estudo de Ferro, Morettin observa que mesmo essas sociedades marginalizadas ao compor a representação de sua história estão, ao mesmo 12 Morettin. Op. cit. P. 18. 13 Morettin. Cf. FERRO, O filme: uma contra-análise..., p. 199-202. A posição que o cinema ocupava na sociedade, nos inícios do século XX, é discutida também em FREY (1977) e FERRO, M. Cinéma 14u Histoire – 2. Entretien avec Marc Ferro. Cahiers 14u Cinéma, n. 257, p. 22-26, mai/juin 1975. P. 21. tempo, fazendo sua contra-análise. Por mais que eles tenham o poder de intervir na produção, a própria imagem fílmica possibilita uma leitura além de suas propostas, trazendo fatos e características sociais que possivelmente são inéditas para a própria sociedade representada. “A contra-história, via cinema, apresenta-se em sua forma mais cristalina quando grupos marginalizados pela sociedade assumem o controle da produção de imagens. Neste momento, teríamos um ponto de junção entre a natureza histórica do cinema enquanto possibilidade de “revelar” o inverso da sociedade e a origem social desses grupos, uma vez que eles representam esse inverso. Por serem excluídos,não participam nem da representação da sociedade – elaborada por uma de suas partes que, entretanto, apresenta-a como pertencente ao todo – e nem do poder instituído. No momento em que estabelece esta relação, Ferro precisa um pouco melhor a maneira pela qual o cinema contribui para uma contra-análise da sociedade, mas, ao mesmo tempo, coloca-nos um outro problema se pensarmos de acordo com o seu referencial teórico: as imagens cinematográficas produzidas por esses grupos não forneceriam elementos para a sua própria contra-análise, pondo abaixo a representação que fazem de si e da sociedade?”14 Nota-se nesse trecho, que Ferro se preocupa com a veracidade histórica das fontes tradicionais e com a questão política nas produções cinematográficas. Argumenta que em regimes totalitários, o cinema, principalmente o produzido por grupos marginalizados, pode representar mais do que as autoridades permitem. Pois, além de em governos totalitários ocorrer a censura, os grupos que detêm o poder de registrar a história são os que possuem boa escrita e leitura, comum em classes de poder aquisitivo maior. Portanto, mesmo que tal filme seja produzido pela classe privilegiada, a própria manifestação cultural e até mesmo os cenários mostram, mesmo que involuntariamente, as relações sociais e os costumes da sociedade. Essa visão de Ferro é observada nos filmes de Mazzaropi. Analisando as películas, percebe-se que o produtor se esforça para representar as relações sociais desde o inicio e que elas são determinadas pela condição social dos personagens. Na maioria dos filmes, o personagem principal representa, utilizando as palavras de Ferro, a camada mais marginalizada da sociedade. O interessante é que todo enredo se constrói a 14 Morettin. Op.cit. pp. 16-17. partir dessa camada, que, mesmo sendo marginalizada historicamente, no filme dita as regras. Um dos filmes em que esse argumento mais se faz presente é o “Jeca contra o Capeta”, que aborda a lei do divórcio. Historicamente existem muitas fontes que resgatam as discussões ocorridas no Brasil na época em que a lei foi aprovada. São fontes tanto oficiais, como os próprios diários oficiais, quanto veículos de divulgação, como jornais. No entanto, tais fontes, que guardam a memória social, foram escritas de acordo com o interesse das partes que a produziam, no caso as autoridades e a mídia. Sem abster da complexidade dessa abordagem, essa é uma visão possível, mas não completa sobre tal memória. O que o filme de Mazzaropi propõe, logo no início, é representar a opinião da sociedade acerca da aprovação da lei do divórcio. No entanto, o grupo social que analisa é o caipira, a população rural paulista dos anos de 1970. Tal elemento comprova que para estudar o filme de Mazzaropi, antes é necessário ter um conhecimento do momento e da condição histórica em que estão sendo representados, para depois analisar a construção da opinião social. Na maioria de seus filmes, Mazzaropi critica, nos diálogos e enredos construídos, a influência que a modernização teve nas mudanças ocorridas no cotidiano do interior. Os filmes do produtor são compostos por várias cenas externas, gravadas, algumas vezes, nas cidades rurais próximas ao estúdio. Esse fato possibilita que haja uma análise social a partir da própria imagem fílmica, como defende Ferro. [o cinema] destrói a imagem do duplo que cada instituição, cada indivíduo se tinha constituído diante da sociedade. A câmara revela o funcionamento real daquela, diz mais sobre cada um do que queria mostrar. Ela descobre o segredo, ela ilude os feiticeiros, tira as máscaras, mostra o inverso de uma sociedade, seus “lapsus”. É mais do que preciso para que, após a hora do desprezo venha a da desconfiança, a do temor (...). A idéia de que um gesto poderia ser uma frase, esse olhar, um longo discurso é totalmente insuportável: significaria que a imagem, as imagens (...) constituem a matéria de uma outra história que não a História, uma contra-análise da sociedade. 15 15 FERRO, M. O filme: uma contra-análise da sociedade? In: LE GOFF, J., NORA, P. (Orgs.). História: novos objetos. Trad.: Terezinha Marinho. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976. p. 202-203. Não obstante, Ferro, ao aprofundar nesse tema, sentiu certa carência de argumentação teórica para defender sua tese. Por isso, em sua obra “Société du XXe siècle et histoire cinematographique”, de 1968, afirma que a “sócio história cinematográfica”, então nascente, constitui uma nova área das ciências humanas16. É um novo recurso que possibilita ampliar o campo de análise. No entanto, como toda ciência que está sendo criada, carece de elementos que estabeleçam os limites de sua argumentação e seu fazer histórico. Pois toda ciência necessita de delimitações que construam a epistemologia do objeto. Seguindo sua argumentação, rumo à criação de uma nova ciência, Ferro continua a analisar as mudanças culturais e historiográficas que ocorreram na história. Para isso, ressalta a importância cultural que o cinema passou a ter no século XX, visando a entender melhor o papel das fontes nas produções historiográficas. Ao analisar somente as fontes escritas, o historiador provoca um efeito superficial no fazer histórico. A proposta do teórico é demonstrar que o estudo da sociedade está para além das fontes tradicionais, está também nos modos, gestos e costumes. Sua teoria pode ajudar na recuperação das fontes escritas, se considerarmos que a memória, a imagem fílmica e a cultura material são tipos de fontes. A partir do momento em que o imaginário da sociedade passa a ser considerado pelo historiador, o cinema como fonte fica mais perto de se tornar um elemento da argumentação histórica, pois, segundo Ferro, “aquilo que não se realizou, as crenças, as intenções, o imaginário do homem, é tanto a História quanto a História” 17. 1.1 – Ficção na obra de Ferro Uma das propostas desse trabalho é perceber a identidade caipira, a partir dos filmes de Mazzaropi, no contexto de modernização do Brasil dos anos de 1950. Considerando o grande sucesso de público que o produtor tinha, é possível observar elementos que comprovem a força da identidade caipira, inclusive nos que migraram do campo para a cidade. A partir disso, entender a cultura e os costumes predominantes na cultura rural paulista na segunda metade do século XX. A argumentação de Ferro possibilita uma defesa historiográfica para a minha tese, à medida que garante que os filmes de ficção podem identificar com maior clareza o 16 Morettin. Op.cit. p. 19. 17 FERRO, O filme: uma contra-análise..., op. cit., p. 203 diálogo entre filme e sociedade por meio da crítica e da recepção do público 18 . Nesse sentido, garante que os gêneros cinematográficos devem ser entendidos como tais, sem que as diferenças se tornem um impedimento para o historiador, porque, seja qual fora natureza fílmica (documentário ou ficção), ela captará imagem, consideradas reais, sobre algum aspecto da sociedade, tanto o imaginário, quando a economia e a política. “Na verdade, para a análise social e cultural, eles são igualmente objetos documentários. É suficiente aprender a lê-los” 19. Ferro passa a analisar metodicamente a veracidade do documento fílmico. Para ele, existe um procedimento importante para analisar a produçãode película e a partir disso entender os recursos utilizados na montagem no longa-metragem. É a partir disso que a analise fílmica começa a se aproximar cientificamente do conhecimento. No que diz respeito aos noticiários, Ferro arrola traços identificadores da presença ou não de reconstituição, entendida como tentativa deliberada de modificação do documento. O primeiro se refere ao ângulo adotado, na tomada de cena que “permite averiguar se um documento é autêntico em sua totalidade e intacto em sua continuidade”. O segundo, à “distância das diferentes imagens de um mesmo plano”. O terceiro, ao “grau de legibilidade das imagens e da iluminação”. O seguinte, ao “grau de intensidade de ação”. O último, ao “grão da película”, pois, para Ferro, se a película é contratipada (cópia de um positivo), ela encerra maior possibilidade de trucagens 20. Não obstante, Ferro segue argumentando que fazer histórico através do cinema tem que obedecer aos limites que o estudo compreende. Mesmo as fontes tradicionais necessitam dessa delimitação. A crítica mais comum de historiadores é a presença, em algumas obras, de elementos do momento histórico do autor que constrói a obra. Essa questão se torna mais importante no momento em que se escreve sobre o passado. Tal cuidado, segundo Ferro, também necessita ser acompanhado na produção de um filme. Na produção de um filme de época é comum que haja um estudo prévio da cultura, indumentária e costumes da sociedade que serão representados. No entanto, a partir do 18 Morettin. op. cit. p. 23. 19 Morettin. op.cit. p. 24. Ibid., p. 13. O que pode diferenciar estas duas categorias (“films-documents” e filme de ficção) é a “natureza diferente das tomadas de origem”. A partir desta distinção, o autor se propõe a analisar os gêneros mais diversos: “desde o documento bruto, ou considerado como tal, até o filme de ficção, mesmo o de ficção científica” (FERRO, Analyse de film..., op. cit., p. 15). 20 FERRO, Analyse de film..., op. cit., p. 21. momento que a reprodução recupera processos e acontecimentos históricos importantes, essa questão se torna fundamental. Para Ferro, uma análise mais contundente seria aquela feita sobre um filme produzido no mesmo período que pretende documentar 21 . Não obstante, sobre essa visão acerca da veracidade histórica,“a possibilidade de representação do passado se manifesta de outra maneira. Como dito mais acima, Ferro entende que algumas obras de ficção, com trechos rodados em exteriores, trazem informações documentais” 22. Essa questão está presente na analise dos filmes de Mazzaropi. O produtor, na maioria das películas, procura filmar as cenas externas nas próprias cidades de interior paulista, para aumentar o grau da veracidade do enredo que está sendo exposto no filme. Nesse sentido, Mazzaropi é bem fiel a essa proposta. Inclusive criou sua produtora de cinema no município de Taubaté, interior de São Paulo. Algumas de suas cenas externas eram gravadas na cidade vizinha, São Luiz do Paraitinga, que na época era estritamente rural. Além disso, recrutava os próprios moradores dessas cidades rurais para atuarem como figurantes. Todos esses recursos na produção, de certa forma, garantia uma construção baseada em fatores verídicos, que relacionada à visão de Ferro, torna-se uma importante fonte documental. No entanto, não se pode confundir a veracidade representativa de um filme produzido por Mazzaropi com a produção de um documentário. Neste, o produtor tem o cuidado de reproduzir algum dado histórico, de formas mais real possível. O que de certa forma faz com que Ferro analise a questão mais profundamente. Para ele, o documentário de ficção traz mais dados históricos do que os próprios documentos, pois, segundo ele, “analizan el funcionamiento económico y estudian la mentalidad de tiempos pasados”.23 Não obstante, com o intuito de aumentar a argumentação sobre os cuidados que se tem que ter na analise fílmica, é importante ressaltar autores que também escreveram sobre esse modo de fazer história e que para isso desenvolveram procedimentos que defendam o cinema como fonte histórica. Como Leutrat que defende que analisar um filme é: 21 Como os produzidos durante a república de Weimar, por exemplo. Produzidos nos anos de 1920, são fundamentais na representação da sociedade alemã da época, além disso, possibilita um estudo mais aprofundado dos fatores que antecederam o regime nazista. 22 Morettin. op.cit. p. 31. 23 FERRO, Cine e Historia, op. cit., p. 41. IN Morettin. p. 32. “delimitar um terreno, medi-lo, esquadrinhá-lo muito precisamente (trata-se de um fragmento de obra ou de uma obra inteira). Uma vez recortado e batizado o terreno, devemos nele, e em conformidade com a sua natureza, efetuar seus próprios movimentos de pensamento. Para este périplo é imperativo dispor de várias cartas, ou seja, de instrumentos trazidos de disciplinas diversas, para que se possa superpô-las, saltar de uma a outra, estabelecer as passagens, as trocas e as transposições (...). A descoberta de tais signos depende das questões postas às obras, cada obra necessitando de questões particulares. Como diz Gérard Granel, “não há migalhas numa obra, nem ‘triagem’ possível entre o que seria importante, revelador ou insignificante”. (...) Afinal de contas, tudo pode ser levado em conta, dado que é disto que o sentido advém”.24 A partir disso, outra questão que Ferro ressalta é a importância de fazer a relação da documentação escrita com a fílmica para argumentar sobre a veracidade do contexto histórico. Ou seja, antes de partir para a análise fílmica, é necessário ter um conhecimento prévio do período de análise através de fontes escritas. Isso facilita um melhor entendimento do processo histórico, tal como suas implicações e influências, além de propiciar a criação de argumentos que defendam a análise fílmica quando esta for comparada com os documentos escritos. Nesse sentido, o que Ferro procura fazer é sistematizar, através das fontes escritas, o conhecimento do fato histórico e a partir dele buscar denúncias nos filmes que demonstrem a representação desse fato. O autor se preocupa com a veracidade da fonte e com a busca do documento autêntico. Idealiza o alcance de uma realidade, numa perspectiva que tem como eixo o fato histórico, reinterpretado 25 . Portanto, o historiador que pretender estudar um determinado fato histórico através do cinema tem que se conscientizar de que a análise do filme não pode ser dada por interpretações de criticas ou propagandas da época. É através da estrutura do próprio filme que ele deve ser interpretado, pois cada filme tem sua intenção singular. A partir dessa explicação teórica dada por Ferro, os capítulos que se seguem nesse trabalho destacam, através das estruturas fílmicas, um período que abriga a modernização brasileira e os conflitos gerados por ela, principalmente para o mundo 24 LEUTRAT, J. L. Uma relação de diversos andares: Cinema & História. Imagens. Cinema 100 anos, n. 5, 31 août./déc. 1995 25 MORETTIN, 2003, p. 37. rural. Entender os motivos que levaram o produtor Mazzaropi a produzir filmes popular nessa época. Algumas questões ficam evidentes quando se pensa na popularidade que seus filmes atingiram. Eram filmes modestos em termos de financiamento no primeiro momento ede acordo com o sucesso atingido obtinham lucro. Não obstante, a proposta desse capítulo foi situar historicamente o objeto de estudo a ser analisado a partir de reconstruções que permitiram abordar de forma cômica o período de grande transformação na sociedade brasileira ocorrido com a modernização. A partir dessas mudanças, passo agora a analisar um dos tipos sociais brasileiro mais afetado e não por acaso mais representado no cinema de Mazzaropi: o caipira paulista. Capítulo 2: O Jeca do interior de São Paulo O estudo sobre Mazzaropi, tanto através de sua biografia quanto de análises de seus filmes, remete fundamentalmente a uma cultura específica que necessita ser estudada. Nesse sentido, a proposta desse capítulo é analisar de que modo o produtor se apropriou das características do caipira do interior paulista, da metade do século XX, para recriar o cenário nacional, demonstrando as contradições entre os meios urbanos e rurais e os desafios da formação da identidade nacional. Para argumentar a questão do caipira e suas representações utilizarei a obra “Os parceiros do Rio Bonito”, de Antonio Candido26. Já para caracterizar o caipira como um tipo de identidade brasileira 27, o filme “O Jeca Tatu”, de Mazzaropi. E, por fim, para compor um diálogo entre representação e manifestação do caipira, o artigo “A tradução do Jeca Tatu por Mazzaropi: um caipira no descompasso do samba”, de Maurício Bragança 28 . 2.0 – O caipira por Antonio Candido Na obra “Os parceiros do Rio Bonito”, o autor discute a formação da cultura caipira que se iniciou com o fim do ciclo dos bandeirantes. No capítulo “O caipira e sua cultura”, Candido começa por analisar os acontecimentos que caracterizaram os paulistas do interior, como, por exemplo, o início da formação dos povoados da região, considerando a importância que a terra passou a ter para a população da época. Darcy Ribeiro é outro teórico que estuda o processo de transformação que ocorreu com o fim da mineração, analisando posteriormente o crescente interesse pela terra. 26 Estudioso da literatura brasileira e estrangeira possui uma obra crítica extensa, respeitada nas principais universidades do Brasil. À atividade de crítico literário soma-se a atividade acadêmica, como professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 27 Uma obra de importante análise antropológica sobre a identidade brasileira é a obra de Darcy Ribeiro, “O povo brasileiro”, 1995. 28 Doutor em Letras pela Universidade Federal Fluminense. Pós-Doutorando junto ao programa de Pós- graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense (Niterói-RJ). No entanto, a obra de Candido é mais eficaz no objetivo do trabalho à medida que o autor caracteriza a cultura caipira, justificando a forma peculiar com que as pessoas do interior levavam a vida. O autor passa a analisar as atividades econômicas dos proprietários rurais do interior de São Paulo que se dividiam em donos de fazendas de cana, gado e café e em sitiantes. Os primeiros eram permeáveis às atividades de troca; já os proprietários do tipo sitiantes ora seguiam as atividades de troca ora produziam somente o necessário para subsistência. Tal observação acerca dos proprietários mostra o papel que a produção e o comércio tinham no cotidiano da população caipira, o que sistematizando, principalmente os sitiantes, sugere o desenvolvimento de uma economia caipira de subsistência 29 . Tendo a economia relativamente fundamentada na subsistência, Candido passa a analisar as relações pessoais e o modo de vida da população do interior. Segundo ele, “essa diferenciação de camadas, pelo nível e as formas de participação cultural, não decorreu necessariamente de uma diferença social na origem dos grupos” 30. Inicialmente, argumenta que existia certa democracia, mas que foi se perdendo de acordo com o surgimento de grandes e pequenas propriedades. Além disso, havia a existência do trabalho servil que carregava o peso da escravidão, pois a maioria desses trabalhadores era descendente de escravos. Por isso a crescente diferenciação e criação de grupos determinados por questões econômicas influenciavam na formação da cultura caipira. A diferenciação entre os grupos aumentou de acordo com o progresso das questões produtivas. Segundo Candido, a falta de diferença inicial dá lugar a uma estrutura que se torna mais complexa à medida que coloca uma sobreposição dos fazendeiros em relação aos sitiantes 31 que por sua vez se sobrepunha aos agregados sem estabilidade. O autor admite ainda que nas três camadas se encontra a cultura caipira. Porém, para ele, o caipira típico são os sitiantes fechados em sua cultura, que sofrem com a posse ilegal de terras e vivem à mercê dos latifundiários. Segundo Candido, caipira é aquele que tem a cultura e a sociabilidade voltadas para si mesmo, sem influencias ou dominações externas. Candido chega a dialogar com obras que vão discutir a as características da formação do caipira. Porém, o que parece ser mais explicativo é a tese de que a 29 Ver Candido. p. 104. 30 Idem. 31 Muitas vezes tinha a mesma quantidade de terra que os fazendeiros, mas o que os diferenciam destes é que eles trabalhavam pessoalmente nas lavouras. (Ver Candido, 105). elaboração de um equilíbrio ecológico e social fez com que o caipira se acomodasse a essa forma de ser, “enquanto tipo de cultura e sociabilidade” 32. Não é a toa que Monteiro Lobato descreveu o caipira, Jeca Tatu, como um sujeito preguiço e desanimado. Para Candido, o que se tinha era um apego por parte do caipira às formas mínimas de sobrevivência, uma dificuldade de adaptação rápida às formas mais produtivas e exaustivas de trabalho. Nesse sentido, “a precariedade dos direitos à ocupação de terra contribuiu para manter os níveis mínimos de sobrevivência biossocial. As formas culturais, condicionadas por ela, favorecem sua permanência naquele nível” 33. Essa argumentação é necessária para defender que a cultura caipira não foi feita para o progresso. Candido ainda diz que o caipira está tão adaptado a essa estrutura social e econômica que qualquer alteração dessas formas pode acarretar o fim de sua própria cultura. Por isso, o fato de encontramos vivos costumes antigos e de pouca variação é condicionado pela própria sobrevivência de sua identidade. No entanto, Candido aceita que a cultura caipira teve variações no tempo. Porém, antes de entender a condição atual dessa cultura, ele a caracteriza: 1) Isolamento; 2) posse de terras; 3) trabalho doméstico; 4) auxílio vicinal; 5) disponibilidade de terras; 6) margem de lazer. Para o autor, o isolamento é importante à medida que não é visto a partir de um individuo isolado, mas sim de um grupo de indivíduos que mesmo participando das crescentes atividades de troca, não tiveram experiências realmente novas. “Por toda a parte, as mesmas práticas festivas, a mesma literatura oral, a mesma organização da família, os mesmos processos agrícolas e o mesmo equipamento material” 34. A partir dessa observação de Candido, é possível fazer uma analogia com os filmes de Mazzaropi, que de certa forma mantinham as mesmas estruturas, os personagens com os mesmos problemas e a própria produção sem grandesalterações técnicas 35 . Com efeito, “ressalvados os latifúndios, movidos pelo trabalho servil, espalhou-se pelo território habitado de São Paulo o tipo já referido, do caipira proprietário ou posseiro, relativamente estável” 36. Resumindo Candido defende que o desamor ao trabalho estava ligado à desnecessidade de trabalhar, condicionada pela falta de 32 Candido. Opcit. p. 107. 33 Idem. p. 107. 34 Idem.p. 108. 35 Ver Bragança. p. 107 36 Idem. p. 109. estímulos prementes, pela técnica sumária e, em muitos casos, pela espoliação eventual da terra obtida por posse ou concessão. Nesse sentido, entender a cultura caipira como defensora das tradições e costumes do passado é fundamental. Tais tradições se manifestavam de formas negativas e positivas. Ao mesmo tempo em que a precariedade de recursos humanos fazia com que a população desenvolvesse pessoas subnutridas, presa de verminoses e moléstias tropicais, ela proporcionava oportunidades para caça, coleta, pesca e indústria doméstica. Além disso, havia manifestações culturais de grande importância para as relações sociais, como festas e celebrações. Portanto, Candido defende no capítulo “O caipira e sua cultura” a desnecessidade de trabalho das pessoas do interior de São Paulo. Seu isolamento em grupos, sua extensa posse de terra e seu apego ás tradições marcam as principais características desse caipira, que, segundo o autor, não é um vadio, pelo menos não em absoluto. O que se tem é um sujeito que não é ambicioso nem previdente. Continua por defender que “desambição e imprevidência devem ser interpretadas como a maneira corrente de designar a desnecessidade de trabalho, no universo relativamente fechado e homogêneo de uma cultura rústica em território vasto” 37. 2.1 – O filme Jeca Tatu A delimitação do conceito de “caipira” é importante para analisar a obra completa de Mazzaropi. Em todos os 32 filmes que produziu, ele representou de forma ora trágica ora cômica, o cotidiano do caboclo do interior que tinha como maior característica a preservação de sua cultura. A escolha do filme “Jeca Tatu” é para retratar essa cultura tradicional do caipira. Mazzaropi representou bem neste filme os problemas e as características do Jeca que foram inspiradas principalmente na obra “Jeca Tatuzinho” 38, de Monteiro Lobato. Tanto Mazzaropi, quanto Monteiro Lobato sabiam bem como a população do interior vivia. Nascido e crescido na cidade de Taubaté, interior de São Paulo, Monteiro Lobato passou sua infância nas grandes fazendas da região, observando o cotidiano e os costumes da população. Mazzaropi nasceu na capital, mas foi no interior, propriamente em Taubaté que passou boa parte da sua infância. Lobato sempre foi questionador, 37 Ver Candido. p . 114. 38 Lançado em 1924, o livro Jeca Tatuzinho veio ensinar noções de higiene e saneamento às crianças, por meio do personagem-símbolo criado por Monteiro Lobato. desde criança. Quando adulto passou a questionar a vida da população do interior, tal como sua cultura. Ao passo que percebia a falta de disponibilidade por parte dos caipiras para trabalhar, sua inquietação aumentava. Não admitia, ao contrário de Candido, que a própria cultura de subsistência do caipira causava essa estagnação. A partir disso, Monteiro Lobato passou a representar o Jeca em suas obras como um sujeito preguiçoso, doente, sem motivação para qualquer atividade, principalmente econômica. A obra que sistematiza essa questão é o “Jeca Tatuzinho”. Direcionada ao público infantil, é muito importante para entender a visão de Lobato sobre o caipira. Além dessa visão, a obra é interessante à medida que traz alternativas para a doença do “Jeca” e faz com que ele se transforme em um sujeito pró-ativo. Esse trabalho de conscientização aumenta sua importância quando analisamos a sociedade brasileira dos anos de 1920, principalmente na área rural. Inúmeras doenças assombravam a população, mas algumas eram mais frequentes, como, por exemplo, a doença do “Jeca Tatu”, o amarelão. Mazzaropi, por sua vez, utilizou o personagem de Monteiro Lobato para endossar e, em certa medida, criticar a forma pejorativa com que o Jeca foi visto por Lobato. Pois, para além da preguiça e dos defeitos, o produtor busca acrescentar o teor questionador e crítico que o modo de vida do caipira pode demonstrar sobre conflitos sociais, como, por exemplo, a desigualdade entre os proprietários de terra do interior de São Paulo. Isso porque encontrava no Jeca elementos representativos da cultura caipira. Para além da falta de conformação que Lobato tinha sobre a imobilidade das pessoas do interior, Mazzaropi enxergava uma rica cultura, a qual deveria ser aproveitada. Nesse sentido, defender que Mazzaropi queria preservar e retratar a cultura caipira em seus filmes é um caminho, principalmente considerando sua infância no meio rural. Porém outro fator era determinante para o interesse do produtor pela reprodução do caipira nas telas de cinema: a certeza do retorno financeiro. Mazzaropi acompanhava o processo de desenvolvimento da população brasileira. Antes de produzir um novo filme, o produtor percorria o interior do Brasil para entender o que mudou no imaginário do povo, ou, muitas vezes, quais costumes permaneciam no seio dessa população. Por mais que as mudanças chegassem, principalmente com a industrialização dos anos de 1950 e 1960, as pessoas do interior se esforçavam para manter a cultura caipira tradicional, com festas e costumes antigos, que, de certa forma, norteavam a sua identidade. O autor sabia que seu público era fundamentalmente caipira e que, portanto, era para esse grupo social que ele deveria produzir seus filmes. Por isso, pode-se dizer que o retorno financeiro acontecia na medida em que a exibição do filme emocionava esse público. A plateia encontrava, nos filmes de Mazzaropi, uma forma de manifestar todo o saudosismo guardado em meio à industrialização. Isso porque, acompanhando os enredos dos filmes produzidos pelo produtor, à medida que passam- se os anos e a forte urbanização perde força, os filmes voltam a recriar a realidade rural, representando o que restou do espaço rural face aos desdobramentos da modernização. Nesse sentido, o filme “Jeca Tatu” retrata bem o ambiente do interior paulista, as pequenas casas, as grandes quantidades de terras e a população fechada em seu grupo social. Esses elementos formam o segredo de Mazzaropi, que foi o único cineasta brasileiro a ter sucesso sem o sistema de financiamento do governo 39 . O produtor utilizava os lucros do filme anterior para produzir o novo, garantindo assim o capital para a nova produção e a tranquilidade financeira, sem ter que depender de empréstimos. O filme “Jeca Tatu” foi produzido em 1959. Diferentemente dos outros filmes que analisei, produzidos nos anos de 1970, esse filme é preto e branco. Nesse sentido, a precariedade de recursos técnicos, tal como a falta de diálogos presentes mostram como os filmes mazzaropianos foram aumentando sua qualidade técnica ao longo dos anos. “Jeca Tatu” dá continuidade a uma série de filmes que seguem a mesma trama. Na maioria dos casos, Mazzaropi representa um caboclo, geralmente proprietário de terra que sofre humilhações devido a sua pouca informação. Nesses filmes, o Jeca é enganado por vários personagens que se aproveitam da inocência do povo interiorano. Foramessas e outras tramas que marcaram o cinema de Mazzaropi, rico em contestação social e teve como marca registrada o personagem Jeca. Entretanto, por mais que a própria figura do personagem levasse o público a adotá- lo como tal, o filme “Jeca Tatu” foi o único em que o personagem recebeu efetivamente tal denominação. No inicio do filme, Mazzaropi reconhece que a fita foi produzida para homenagear à obra “Jeca Tatuzinho” de Monteiro Lobato. Portanto, é natural encontrar no filme cenas que mostram as características do protagonista da história de Lobato, principalmente no que se refere a preguiça. O personagem passa o filme todo evitando 39 Fressato, Soleni Biscouto. Caipira sim, trouxa não: representações da cultura popular no cinema de Mazzaropi. Salvador: EDUFBA, 2011. p. 63. se envolver nos conflitos, preferindo manter-se isolado e ignorante quanto aos fatos ao redor. Já de início essa característica fica evidenciada. Mesmo sendo proprietário de terra, o Jeca é considerado pobre perto do italiano “Giovanni”, um latifundiário da região. Esse fator é explicado pela falta de vontade de trabalhar por parte do Jeca em detrimento do italiano, que enriquece mais a cada dia. Além disso, o italiano passa a explorar as famílias mais pobres da região, fazendo com que elas vendam suas terras em troca do perdão das dívidas. É esta problemática que envolve a trama do filme. O Jeca, com preguiça de trabalhar, passa a produzir menos alimentos para se sustentar e acaba tendo que fazer compras na venda local. Uma cena que mostra essa situação. Jeca vai fazer compra e não tem dinheiro para pagar e o português, dono do comércio, sugere que o caipira forneça parte de sua propriedade para pagar a dívida. Inocentemente o Jeca, até por falta de ambição, assina a venda de parte das terras em troca de alguns mantimentos. (Português): - O que há, vais levar tudo isso? (Jeca): - Vou, por que, não pode? (P): - Poder, pode! Mas e o pagamento, tens dinheiro? (J): - Dinheiro agora eu não tenho, mas assim que tiver eu venho pagar. (P): - Jeca a tua conta está muito alta, mas não faz mal, vamos conversar. Vamos fazer um trato, tu me vendes um pedaço das tuas terras, liquidamos a dívida anterior e começamos uma nova. Tu vais plantar... (J): - Não vou, porque não tenho tempo. (P): - Então, 5m não fazem falta e pagam as dívidas. (J): - 5m dá pra pagar tudo? Posso levar os mantimentos? (P): - Pode. Nesse sentido, a trama se desenvolve a medida que o Giovanni compra a parte da terra que o Jeca vendeu para o comerciante e começa a plantar naquele pedaço. Juntamente a esse conflito, aparece o “Vaca Brava”, um trabalhador da região temido pelo seu caráter violento, interessado na filha do Jeca que o rejeita de imediato. A partir disso, vários acontecimentos marcam a humilhação sofrida pelo Jeca. A falta de dinheiro para se sustentar, a pressão do vizinho latifundiário e a perseguição feita pelo “Vaca Brava” fazem com que ele chegue a cogitar deixar suas terras e viver em outro lugar. Como Antonio Candido mesmo defendeu, o caipira se fez isolado em sua propriedade e a quebra desse paradigma pode acarretar na total perda de sua identidade 40 . Esse momento do filme é muito interessante porque dialoga com essa questão. Ressalta os trabalhadores que deixaram suas terras em busca de maiores oportunidades na cidade grande. Porém, como Candido mesmo defendeu, essa seria a última opção para o caipira. Por isso o que realmente determinou essa fuga pensada pelo Jeca foi o incêndio de sua casa, provocado pelo italiano. Isso porque, naquele contexto o que determinava a identidade do Jeca era a terra. Esse acontecimento propiciou duas cenas emocionantes do filme, que, para além da emoção, dialoga com os princípios e conceitos da época. Na primeira cena, que vou descrever, o Jeca conversa com Giovanni de modo a questionar a atitude do italiano, que tendo muito não se preocupou em destruir a casa de quem só a tinha para viver. (Giovanni): - Tá satisfeito agora? Viu o que você arranjou com suas brigas, seus rolos, sua covardia? Fui eu que fiz isso, Está contente agora? (Jeca): - Não seu Giovanni, estou triste, muito triste. (G): - Pois é. Que isso sirva de lição, nem casa você tem mais pra morar. (J): - Mas não é por causa da casa que eu to triste, casa tem muita. Eu to triste é por causa do senhor mesmo. (G): - Por mim? Não compreendo. (J): - Senhor, sim. Senhor queimou minha casa, queimou tudo as minhas coisas, mas isso foi maldade sua, porque eu não matei, nem roubei galinha de ninguém. O senhor não devia ter feito isso. Tenho mulher e filho pra sustentar. O senhor não teve dó de mim, o senhor sempre procurou me encrencar falando mal de mim por aí. Mas Deus sabe que eu nunca fiz nada de mal pro senhor. Ele sabe também que senhor não presta, mas eu não vou fazer justiça, nem eu, nem o delegado, nenhum homem daqui da terra. E ele mesmo que ta lá em cima olhando tudo... (G): - Não vejo ninguém (J): - Mas não vê mesmo porque tá escuro, mas mesmo se estivesse claro, o senhor não veria, pra homem da sua marca ele não aparece. O senhor não é justo, seu “Giovão”, e por isso ainda vai receber um castigo muito grande. Não é praga que eu to rogando não, mas quem na terra faz, na terra há de pagar. 40 Ver Candido. p. 107. A outra cena, para além da descrição, é emocionante à medida que os próprios trabalhadores de Giovanni defendem o Jeca. Para impedi-lo de ir para Brasília 41 , eles convencem o Jeca a utilizar a política a seu favor. Nesse sentido, as cenas posteriores vão trabalhar a questão da política, principalmente os políticos do interior que necessitam dos votos da grande massa de trabalhadores para se elegerem. A questão política, para o interior do Brasil, gira em torno da terra. O único modo de manter o Jeca na região era fornecendo terra para ele viver e trabalhar. Porém o modo mais fácil de consegui-la seria obtê-la em troca da promessa de votos para eleger um deputado. Para isso, o Jeca teria que ir para a cidade grande e entrar em contato com o deputado Felisberto. O interessante nessa cena é o jogo de poder entre os personagens. O Jeca e seus amigos trabalhadores vão procurar um coronel influente da região para que ele faça a ligação com o deputado. As cenas seguintes descrevem o conflito entre meio urbano e rural, à medida que o Jeca chega a São Paulo e se vê perdido naquela cidade. O caipira acha tudo estranho, sente-se como se estivesse em outro mundo. Um mundo que mesmo perto geograficamente, é distante de tudo que o caipira tinha como referência. O movimento dos carros, as pessoas andando apressadas e o cenário cinza da cidade de São Paulo formam a paisagem observada pelo Jeca no instante em que desembarca na capital. Por uma doença que impossibilitou o grande fazendeiro de acompanha-lo, Jeca passa a ter que se virar sozinho para encontrar o endereço do deputado. Ao chegar à residência do deputado, outro fator chama atenção e garante boas risadas. Jeca chega de taxi, sem saber que teria que pagar ao chofer que o levara. Além disso, encontra um ambiente totalmente descontraído e um tanto moderno para o caboclo do interior. Essa característica de ambiente moderno acontece na cena em que o Jeca se depara com um churrasco na piscina, onde todos estão felizes e à vontade para se divertir. A cena da piscina demora alguns minutos, o que é suficientepara descrever a reação do Jeca que fica espantado e preocupado com aquela situação. Essa cena é analisada por Mauricio de Bragança que destaca elementos que compõem a relação entre o progresso urbano e o “atraso” rural. 41 Interessante observar essa passagem no filme, principalmente considerando a história do Brasil. Pois, em 1959, Brasília estava sendo construída e vários trabalhadores rurais estavam abandonando o campo em busca de melhores oportunidades de trabalho. (Ver Ferreira, Jorge. O Brasil republicano. Vol 3. p. 155). “Não voto mais em ninguém, não arranjo voto pra mais ninguém”. Nesta declaração do caipira, a compreensão da situação que permite manter aquela elite paulistana bonita e animada à beira da piscina – e todos os seus códigos de modernidade (os carrões, a música “estrangeira”, etc.) – à realidade de exclusão social e total subordinação a práticas seculares na história brasileira de relações de clientelismo político e corrupção. Está colocada, desta forma, a ideia, paradoxal, de que o arcaico promove a modernidade. 42 . Não obstante, não se atendo somente às questões complexas de relação de poder e mantendo a característica leve do filme, Mazzaropi constrói a figura do político de forma cômica. A baixa estatura, a magreza em excesso e o inicio de calvície satirizam o político que complementa fazendo gestos e discurso demagógicos em toda frase proferida, aumentando ainda mais o teor cômico do personagem. Mazzaropi nesse sentido cria uma obra consistente, pois engloba – além de uma visão, feita por Monteiro Lobato, do caipira preguiçoso, sem vontade e inerte – as mudanças sociais por que o país atravessava. O produtor utilizou uma obra de um autor fortemente politizado como Lobato para criar seu filme. Nesse sentido, sem perder absolutamente a característica leve e cômica do enredo, possibilitou outra visão acerca do Jeca para além da de Lobato. Conseguiu mostrar a desigualdade social e a precariedade da qualidade de vida no campo ao mesmo tempo em que descrevia o amor dos caipiras pela terra. Não é por acaso que Mazzaropi adotou o estilo caipira em todos os outros filmes depois de “Jeca Tatu”. A própria figura do caipira já causava risos no público que somada à identificação que esse público tinha com os enredos de seus filmes gerava o grande sucesso de bilheteria. A prova desse sucesso estava no tipo de publico que ele abrangia: caboclos vindos de interior para trabalhar na cidade grande em busca de melhores condições de vida. Além disso, tinham aqueles que queria prestigiar um filme leve, cheio de canções e que garantia boas risadas. Nesse sentido, o filme “Jeca Tatu” tornou-se uma referência, não só pelo sucesso de público, mas também pela abrangência de temas e situações pertinentes para entender melhor o contexto social e político de 1959. A disputa pela terra; a terra como único bem de subsistência; a modernização e a construção de Brasília; o contraste entre meio urbano e rural e, por fim, a questão política, são eles elementos que Mazzaropi consegue 42 Bragança.p. 113. reproduzir a partir das peripécias de um simples caipira do interior de São Paulo, que se dependesse dele passaria a vida inteira apenas descansando. 2.2 – A cultura caipira e suas representações Maurício de Bragança, ao analisar tanto a obra de Monteiro Lobato, quanto a obra de Mazzaropi, admite que ambos queriam problematizar a industrialização e modernização brasileira. Consideravam que o Brasil, além de ser fortemente marcado pelo espaço rural em todas as esferas, passava por um processo veloz que não englobava questões básicas como a importância da economia agrária. Até o governo de Getúlio Vargas, o país era estruturado fundamentalmente pelas atividades rurais. Essa condição diminui no Estado Novo, mas é fundamentalmente alterada nos anos de 1950 com o plano de metas 43 . Brangança faz uma analise histórica acerca do período de 1930 a 1960 para entender como o processo de modernização marcava cada vez mais a contradição entre o progresso do meio urbano em detrimento do espaço rural. Além dessa contradição, Bragança ainda discute a questão da formação da identidade nacional nesse período. Para isso, utiliza autores como Sônia Mendonça 44 e Antonio Candido, que discutem o forte nacionalismo como formador de uma cultura nacional. O nacionalismo não esteve presente somente no pensamento de uma política econômica colocada em prática pelo Estado Novo, mas também na (re) definição de um conceito de “cultura brasileira”, que passava pela relação entre o Estado e as classes trabalhadoras. Era um momento em que houve maior consciência a respeito das contradições da própria sociedade, podendo-se dizer que sob este aspecto os anos 30 abrem a fase moderna nas concepções de cultura no Brasil (...) Assim, a consolidação de um Estado forte e intervencionista garantia a articulação necessária não somente para a sedimentação de um projeto de desenvolvimento econômico brasileiro, mas também para reunir o plantel de signos que sugerissem 43 Programa de industrialização e modernização levado a cabo na presidência de Juscelino Kubitschek (1956-1961), na forma de um "ambicioso conjunto de objetivos setoriais", que "daria continuidade ao processo de substituição de importações que se vinha desenrolando nos dois decênios anteriores”. (PASSOS, 1957). 44 Sonia Regina de Mendonça concluiu o doutorado em História Econômica pela Universidade de São Paulo em 1990. Atualmente é aposentada da Universidade Federal Fluminense, contando com credenciamento junto ao Programa de Pós-Graduação em História da UFF. a construção de uma “identidade nacional”, no qual “o Estado substituía o mercado também como espaço de legitimação cultural”.45 Brangança continua analisando os anos de 1950 por defender que foram os anos em que o país passou pelo processo mais intenso de modernização. Foi quando as estruturas econômicas, políticas e sociais tiveram transformações mais contundentes. No entanto, para isso, era preciso superar o “atraso” caracterizado pelo meio rural que contrapunha o progresso do meio urbano-industrial. Segundo o autor, a única forma efetiva e acelerada de ter êxito nesse processo era uma forte industrialização. A superação da condição agrário-exportadora brasileira vinha no bojo de uma inevitável hegemonia cultural urbano-industrial. Esta, tida então como “autenticamente nacional”, afirmava-se em detrimento do universo rural, que se decompunha como representatividade do ser nacional (o que não significa que os interiores deixassem de criar possíveis Brasis no imaginário de inúmeros caipiras, sertanejos, matutos e capiaus que compunham o “tal lado arcaico da realidade nacional”). 46 Nesse sentido, passa a defender esse imaginário caipira, que se afastando do processo de modernização cria um imaginário social tradicional, com o universo cultural de hábitos, crenças, valores, mitos e comportamentos, que de certa forma garantia a base da cultura caipira. Buscando o significado e a formação da cultura caipira, Bragança parte para um debate historiográfico acerca da própria formação nacional. Para isso ele utiliza Antonio Candido, que oportunamente foi analisado anteriormente, principalmente para entender a cultura caipira e Sérgio Buarque de Holanda e sua obra Raízes do Brasil, um marcona análise dos elementos formadores da identidade nacional. “As relações sociais e as do âmbito do trabalho são impregnadas deste aspecto do afeto e da solidariedade. Talvez aí encontremos uma chave de análise possível para pensarmos a respeito da ideia de “homem cordial” trabalhada por Holanda.”47 45 Bragança. Ipotesi, Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 103 - 116, jan./jul. 2009. p. 104. IN MENDONÇA, 1998. p. 264. 46 __________________. p. 105. 47 Bragança. p. 106. Seguindo essa analise fica evidente o motivo que levou Bragança a analisar mais precisamente o capítulo tanto de Candido, quanto de Holanda acerca da solidariedade do homem do meio rural. Mazzaropi, no filme “Jeca Tatu”, manifesta essa teoria de forma contundente. Quando o Jeca pensa em ir embora da região, a comunidade de trabalhadores se reúne e impede que ele consolide sua decisão. Não apenas o impede, mas organiza-se para ajudá-lo a conseguir terras para plantar. Nesse sentido, a causa é o início da representação do modo de vida do caipira nos filmes brasileiros e a consequência é a divulgação de uma sociedade fortemente rural contraditória ao processo de modernização. Analisando os primeiros filmes de Mazzaropi, Bragança entende que não é possível ter a pretensão de figurar os filmes que abordam o meio rural como explanador da identidade nacional. Desde o Estado Novo, a política do governo propunha a criação de uma identidade a partir do imaginário carioca e estritamente urbano, com os malandros e as mulatas. Tais personagens foram fixados no imaginário social através dos filmes de chanchadas, produzidos pela produtora carioca, Atlântida. Porém, mesmo fazendo parte do espaço cinematográfico nacional, os filmes de que Mazzaropi participava não ganhavam reconhecimento cultural amplo, mas sim na esfera regional. Assim, Bragança passa a analisar o grande prestígio alcançado por Mazzaropi. Ele defende que, em certa medida, o sucesso dá indícios de uma grande identificação entre público e personagem. Se levarmos em conta que seus filmes faziam muito mais sucesso nos estados onde a cultura rústica caipira tinha raízes, teremos, então, algumas chaves de análise: “As regiões do Brasil que mais consumiam seus filmes eram o sudeste e parte do sul, principalmente onde a cultura caipira mais se desenvolvera, em função das ocupações bandeirantes ocorridas ao longo da história”. 48 Além disso, defende que a capital de São Paulo era onde ele alcançava o maior número de público. O que, segundo Bragança, evidenciava a presença de um enorme contingente de migrantes nesta cidade, o que apontando um grande êxodo rural iniciado com a confirmação do processo de urbanização e industrialização brasileiro. 48 ____________. p. 110. Por fim, Bragança termina sua análise sobre o filme “Jeca Tatu” dialogando com a proposta de modernização brasileira. Utilizando como fonte de análise a letra da música que finaliza o filme, o autor sugere uma denúncia por parte de Mazzaropi acerca dos elementos formadores dessa modernização nacional. Nesse sentido, transcrevo essa letra de modo a discutí-la de acordo com a visão de Bragança. Deixei de ser um qualquer Já não como mais angu Hoje sou um coroné Não sou mais Jeca Tatu. Meu cachorro estimado Já deixou de ser sarnento Tem um terno alinhado Em seu próprio apartamento Eu lavo tudo os leitão Com perfume importado Quando entram no facão Sai toucinho perfumado. A argumentação de Bragança advém da transformação do personagem Jeca em Coronel. A figura do coronel remetia ao passado oligárquico brasileiro, o qual estruturava a sociedade arcaica rural e, no momento em que o filme foi produzido, contradizia diretamente com o processo de modernização. De certo modo o Jeca não evoluiu. Ele simplesmente alterou seu modo de vestir por ter ficado rico, mas não houve mudança efetiva. Brangança segue defendendo que dessa maneira o discurso fílmico associa-se à ideia de uma modernização na qual sobrevivem de forma estrutural as marcas de um Brasil oligárquico. E Mazzaropi não cansa de satirizar essa condição, como defende Bragança. A tal modernidade é colocada caricaturalmente nos símbolos de prosperidade da nova casa da personagem: não só na roupa, ridícula e debochadamente utilizada pelo caipira, mas também nos animais de fita no pescoço, na casinha do cachorro com a placa em inglês, na ideia de toucinho perfumado com perfume importado, na imagem dos galos andando de calças e botinas. Esses sinais de um consumo alcançado pela industrialização brasileira são parodiados pelo riso que desloca o sentido de tal projeto político. Todos esses elementos presentes na cena final do filme “Jeca Tatu” ganham significado principalmente se analisarmos a ultima estrofe da canção. Se arguma coisa não presta Isso eu não vou discuti Pra mim o azá é festa O que eu quero é divertir Mazzaropi deixa seu recado nesse trecho. Uma possível explicação, defendida por Bragança, mostra que “o caipira aponta que há algo de errado naquela situação (os paradoxos de uma modernização que convive com práticas arcaicas da velha tradição política brasileira), mas ele não está aí para discutir isso, afinal de contas, participa de um projeto de cinema ligado à indústria do entretenimento”. Essa visão de Bragança garante um Mazzaropi engajado e compromissado com sua proposta que é criar uma indústria cinematográfica brasileira, sem se importar com as questões políticas. Porém, não é a partir dessa visão que Mazzaropi garantiu a identificação do público. Por mais financeira que fosse a intenção do produtor, a sua proposta pode ser analisada a partir da reconstrução do caipira no imaginário social brasileiro, uma alternativa à grande produção urbana que acontecia. Mazzaropi tinha um sonho, nós temos uma parte do mundo rural reconstruído em seus filmes. Capítulo 3 De Jeca a empresário “Sim, continuar fazendo filmes até morrer - é a única coisa que sei fazer na vida. Quero morrer vendo uma porção de gente rindo em volta de mim” 49. Nesse capítulo, proponho analisar as passagens marcantes na vida de Mazzaropi que, em certa medida, ajudaram a realizar o projeto de vida do produtor que era criar uma indústria cinematográfica no Brasil. Mazzaropi criticava muito o valor que o investidores do cinema nacional dava para os filmes estrangeiros em detrimento dos brasileiros 50 . Suas críticas muitas vezes eram marcadas por sátiras que ele fazia dos próprios títulos dos filmes hollywoodianos, como “Jeca contra o Capeta” (1975), produzido depois do sucesso de “O exorcista” (1973), além de “Pistola para Djeca” (1969) e “O grande Xerife” (1972) que satirizavam os filmes de faroeste. Tais críticas são facilmente encontradas em suas entrevistas, na maioria das vezes, nos lançamentos de seus filmes. Reservado, falava com a imprensa o estritamente necessário. No entanto, até conseguir ter voz crítica sobre o cinema brasileiro, Mazzaropi passou por muitas dificuldades na vida, dificuldades estas que aumentavam proporcionalmente o sonho de se tornar um grande artista. Até mesmo depois de começar a produzir filmes de sucesso, recebia críticas. Para analisar essas questões, as fontes utilizadas foram à
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