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TTRRAANNSSTTOORRNNOOSS AALLIIMMEENNTTAARREESS VViissõõeess ppssiiccaannaallííttiiccaa ee eexxiisstteenncciiaall WWaallmmiirr MMoonntteeiirroo.. AAlliinnnnee CCooppppuuss Alinne Nogueira Silva Coppus - Psicanalista, doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professora da Pós-graduação em Psicanálise: subjetividade e cultura e da Pós em Psicologia Médica da Universidade Federal de Juiz de Fora – MG. Walmir dos Santos Monteiro - Psicólogo Existencial, Mestre, Especialista em dependência química e transtornos compulsivos, formação em fenomenologia- existencial, professor da Unileste – Universidade do Leste de Minas Gerais. ISBN: 978-85 -9103-640-0 2014 2 APRESENTAÇÃO Aceitar o convite para fazer a apresentação deste livro resultou numa agradável surpresa: constatar que a diferença de perspectivas entre os modelos psicanalítico e fenomenologico- existencial pode se transformar num olhar muito acurado e rigoroso sobre um dos mais surpreendentes fenômenos da clínica psi contemporânea. De fato, os assim chamados “transtornos alimentares” – anorexia/bulimia – fazem parte do conjunto de formas de sofrimento psíquico que, pelo aumento expressivo do número de suas incidências, estão atualmente desafiando as orientações clínicas tradicionais. Temos enfrentado dificuldades na direção do tratamento da anorexia e da bulimia, assim como no tratamento das toxicomanias, das depressões e melancolias, dos estados de angústia como a chamada “síndrome do pânico”, das compulsões de todos os tipos, do esvaziamento da interioridade, da devastação do pensamento reflexivo, etc., o que tem ensejado esforços e interrogações particulares: estaríamos nos defrontando com uma nova economia psíquica, novas doenças da alma? Novos sintomas? Casos raros e difíceis de classificar, estados limítrofes entre a neurose e a psicose? Ou tratam-se das mesmas 3 vicissitudes da alma, já apontadas por um Freud ou um Binswanger durante a modernidade, que apenas estariam se exprimindo de uma forma que ainda não entendemos? Acredito que as injunções da vida coletiva têm efeitos nas configurações da subjetividade, de que há uma profunda articulação entre o individual e o social. Assim sendo, talvez as perturbações psíquicas acima listadas contenham reverberações de nosso ideário contemporâneo, talvez digam alguma coisa sobre a “sociedade do espetáculo” (Débord) em que atuamos, ou sobre a “pós-modernidade líquida” (Bauman), a “cultura do narcisismo” (Lasch) ou a “cultura da decepção” (Lipovestky) em que estamos imersos. Esses autores são unânimes em denunciar que vivemos num tempo de expectativas desmesuradas, constantemente numa exterioridade máxima em relação à nossa vida interior, acreditamos em completude, satisfação de todos os anseios, cremos que a vida é uma festa maravilhosa – se ainda não chegamos lá é porque somos indivíduos incompetentes -, pensamos que tudo é possível (sem relativizar quase nada), que podemos atingir todos os ideais e banir todas as ressalvas em relação à beleza, à juventude e até à própria morte! E que ainda estamos tentando exilar as categorias da renúncia e da frustração de nossas vidas... 4 Há até quem diga que no mundo de hoje, no discurso capitalista, vivemos um momento de demanda compulsiva, convulsiva, demanda num estado de contínua solicitação, exasperação, enfatização, desenganchada da dialética do desejo (J-A. Miller) – pois nessa dialética a possibilidade da falta é fundamental e constitutiva. O demandar contínuo que nos habita hoje não se relacionaria mais com o desejo mas seria sobretudo eletrizado pelos objeto de gozo. Se este é o quadro e estas as tintas da ilusão... como não pensar na anorexia e na bulimia como tentativas de dar conta disto que vai tão mal? Pois estas são formas de sofrimento em que vemos intrincadas as questões do desejo/necessidade/demanda, falta/satisfação, tudo/nada, saciação/purgação, incorporação/separação, vida/morte ? Este livro é uma bem situada e vigorosa tentativa de compreender algumas questões relacionadas aos impasses da clínica psíquica frente aos transtornos alimentares da atualidade. Quer encontremos em suas páginas as questões do Dasein ou do “objeto a“, estão bem trabalhadas e compõem um rico conjunto de informações, interpretações e possibilidades para o manejo clínico. Bianca Faveret 5 PREFÁCIO DOS AUTORES A presente obra trata dos transtornos alimentares, dando relevo à anorexia e à bulimia e abordando a matéria a partir de duas distintas visões: a psicanalítica e a fenomenologico- existencial. Independente dessas visões o livro é iniciado com uma perspectiva geral do problema onde apresentamos os conceitos e as implicações físicas e mentais da patologia. Na segunda parte a psicanalista Alinne Coppus aborda o tema a partir da escuta psicanalítica e na terceira parte o existencialista Walmir Monteiro trata a questão conforme a visão fenomenologico-existencial. A anorexia pode ser definida como um transtorno alimentar no qual o sujeito diminui gradativamente seu peso em decorrência da redução, cada vez maior, da ingestão de alimentos. É comum aparecer em mulheres, no período da adolescência ou em adultos jovens, e apresenta de forma frequente e pontual, episódios bulímicos. Sintomas como queda de cabelo, unha fraca, amenorréia, perda óssea e muscular podem ser resultado da ausência de alimentação adequada. 6 Esta é uma das possíveis descrições da anorexia. Descrição comum, presente tanto no discurso médico quanto em revistas e jornais. No trabalho apresentado a seguir, não nos restringimos ao sintoma da anorexia em uma perspectiva médica ou social. Nosso objetivo é estudar a anorexia como um sintoma que traz consigo uma mensagem; uma formação do inconsciente que possui uma função para o sujeito. Qual seria ela? Desde o primeiro momento, o que mais nos intrigava era o estatuto da anorexia como um sintoma que diz algo do sujeito. Que sintoma é esse? O que a anorexia pode dizer do sujeito? De sua articulação com o desejo e com o gozo? Esses são alguns dos questionamentos que estarão presentes. Além disso, o nada, que, como veremos, se mostra tão presente no discurso da paciente anoréxica, nos intriga. Como pode ele figurar como um objeto, investido libidinalmente pelo sujeito? Aos poucos, as pistas vão surgindo. Com Freud, podemos dizer que a anorexia está relacionada com a presença de uma satisfação sexual no ato de se alimentar, satisfação pulsional. Articulamos o sintoma da anorexia sobretudo com a pulsão em sua vertente oral, representada no binômio devorar – ser devorado. Vale relembrar a ligação que Freud estabelece entre o seio, a amamentação e o objeto perdido do desejo, ao afirmar que 7 “para a criança, a amamentação no seio materno torna-se modelar para todos os relacionamentos amorosos. O encontro do objeto é, na verdade, um reencontro” (Freud, 1905, p.210). Seguindo as contribuições de Freud, não podemos deixar de relacionar a anorexia-bulimia com a incidência da pulsão de morte. A partir de 1920, Freud postula que, além da pulsão sexual, há também uma outra força, atuando no psiquismo, uma força de natureza conservadora, um “impulso inerente à vida orgânica a restaurar um estado anterior de coisas (...)” (Freud, 1920, p.47). A tendência ao nada ou ao tudo é uma das possíveis manifestações da pulsão de morte na anorexia-bulimia. Com seu ensino, Lacan permite aarticulação de pontos interessantes, sobretudo quando define a anorexia como o ato de comer nada, e não como o ato de não comer. É Lacan quem ressalta a articulação entre a anorexia e o nada, uma das possíveis vestimentas imaginárias do objeto a, estabelecendo uma relação entre a recusa e o desejo. Já sob a perspectiva da fenomenologia existencial examinamos a manifestação de fenômenos em dois casos clínicos de portadoras de transtornos alimentares: Ellen West e Daiane, buscando descobrir a visão e o sentido de cada uma delas, o mundo vivido de cada uma. 8 Ellen, não conseguia ser ela mesma, e mais do que se rejeitar, se destruía por meio de antagonias como a ideia fixa de se manter magra e obsessão pelo empaturramento. Daiane intencionava afetos, vivenciava afetividades e vínculos importantes, mas em seguida os eliminava, fazendo com suas relações o mesmo que fazia com a comida: sempre expelia, de forma súbita, definitiva e inexplicável. Em ambas verificamos a dificuldade de vivenciar seu ser- no-mundo, de lidar com as implicações da construção do seu projeto existencial e de viver as contingências do para-si. Daiane recusava-se assimilar o mundo e as pessoas. Por isso, de forma impulsiva, purgava os afetos. Ellen estabelecia um nível tão inalcançável de exigências para ela mesma que fechava totalmente o seu presente em relação ao porvir. Esperamos que tanto o leitor com interesse acadêmico e científico quanto o interessado em obter conhecimento para melhor lidar com o tema, possam aqui achar alguma direção. Alinne Coppus e Walmir Monteiro 9 ÍNDICE Apresentação, 2 Prefácio dos autores, 5 O problema - Perspectiva geral, 10 “T. A.” - A escuta psicanalítica, 32 A função da recusa na anorexia, em Freud, 39 Anorexia-bulimia, em Lacan, 66 T. A. - a ótica existencial - intenção, refúgio, renúncia, 80 Sem saída – O caso Ellen West, 90 Açúcar e afeto – O caso Daiane, 104 Posfácio, 123 Bibliografia, 130 10 PRIMEIRA PARTE O PROBLEMA I – PERSPECTIVA GERAL Da mesma forma como a paralisia histérica contextualizava o momento histórico do final do século passado e início deste, a anorexia e a bulimia relatam a história de nosso tempo presente. E tanto uma quanto outra configuram-se como afecções emocionais que atingem mais especificamente às mulheres, em uma época em que se busca com avidez o corpo esbelto, magérrimo, de modelo. São conhecidos os malefícios do excesso de peso e o comprometimento da saúde na condição de obesidade, mas temos caído numa condição inversa, no exagero de corpos semi- esquálidos e adoecidos de moças portadoras de anorexia nervosa e bulimia. A anorexia e a bulimia estão entre as principais causas de morte de mulheres jovens em todo o mundo, de acordo com a Organização Mundial de Saúde. Dois de cada dez casos de anorexia levam à morte. As vítimas são jovens que ainda estão no 11 colégio ou na universidade e colocam em risco suas vidas pelo temor obsessivo de engordar. Suas personalidades estão apenas se formando quando a anorexia e a bulimia aparecem. A questão cultural é muito séria, e a cultura hodierna aponta para a estética do corpo como a coisa mais importante do mundo. As meninas já nascem envolvidas na obsessão por ter aquele corpo modelar que a televisão propaga. Tudo o mais se torna secundário: o saber, a cultura, o caráter, o amor, as relações humanas, a família, tudo fica para segundo plano. Geralmente as pacientes bulímicas-anoréxicas desconsideram tudo na vida e qualquer um que se interponha entre elas e a sua compulsão, torna-se um inimigo a ser evitado. Não tem pai nem mãe, nem mesmo namorado ou amiga que possam ser mais importantes que a sua obsessão pela magreza mórbida. Profissionais de saúde também ficam por um fio. É necessário que seja muito hábil e competente para tentar manter o vínculo terapêutico e não ser eliminado também. Trata-se de uma compulsão e conhecemos como isso funciona, mas aí entra um componente do caráter problemático, quando elas também eliminam (vomitam) as pessoas que tentam ajudar, e manipulam de forma muito hábil a tudo e a todos. 12 Aqui chamamos os pais à responsabilidade, porque muitos deles, inebriados pela publicidade, encaminham, desde cedo, a filha para o mundo da ilusão da fama e do “glamour”. A maioria das meninas possui aquele álbum fotográfico amador, com fotos que as deixam com uma certa beleza artificial, de gosto duvidoso, bem diferente do que ela realmente é. Basta a criança fazer cinco ou seis anos que as mães já compram esse tipo de produção, e assim vão encaminhando a filha para um mundo de ilusão, passando a mensagem de que ela vai precisar daquele rostinho e daquele corpinho, para vencer. A sociedade moderna faz tudo virar produto. Precisamos questionar se é ético colocar uma criança dessa forma na vitrine. Eis aí uma das hipóteses etiológicas prováveis do comportamento bulímico: a menina sendo ensinada, desde cedo, a dar primazia ao corpo, em detrimento aos demais valores que compõem a pessoa humana. Não se quer condenar a beleza - mas o exagero da vaidade adoece o corpo e a alma. Não se quer destruir o marketing, a mídia, a propaganda - o que se espera é que as pessoas contemplem tudo isso com mais espírito crítico e mais independência, pois cabe aos pais cuidarem para que suas filhas não se tornem obcecadas pela beleza artificial, ensinando-as a desenvolverem uma postura mais crítica e 13 independente em relação à massiva propaganda que prega o contrário. Sabemos que ninguém sozinho mudará as tendências da sociedade e da nossa cultura hodierna, mas se pudermos orientar nossas famílias a uma atitude mais crítica e avaliativa, já será o bastante. Em várias famílias de pessoas que sofrem de transtornos alimentares observamos uma característica conhecida como “família emaranhada”, onde não há diferenciação nítida entre pensamentos, vontades e objetivos. A individualidade não é admitida e os membros funcionam em bloco. Todo mundo controla todo mundo sem dar espaço à afirmação das singularidades. Constata-se superproteção, rigidez e extrema dificuldade de encontrar solução adequada para os conflitos. Possivelmente o que se objetiva, neste caso, é a perpetuação dos impasses, pois parece que esse tipo de família precisa sempre estar às voltas com conflitos insolúveis; senão, enlouquece. O filme “A melhor garota do mundo” (The best girl in the world) relata a história de Casey Powel, uma adolescente de 16 anos com graves problemas de relacionamento e comunicação na família. Casey tinha uma irmã, Gail; e a sua irmã era considerada a filha rebelde e problemática. Já Casey era tida como um exemplo de candura e obediência. Essa divisão, muito comum nos 14 lares, entre filho-problema e filho-exemplo pode gerar insatisfação em ambos. O considerado problemático acaba por achar que é exatamente esse o seu papel na família, e começa a tirar proveitos secundários disso; já o considerado exemplar começa a perceber que perdeu o espaço da sua expressão pessoal, que tem deixado de ser ele mesmo para representar um papel no qual apenas cumpre as expectativas dos pais e não vive a sua própria vida, pois, na ansiedade de executar o que os pais obsessivamente esperam dele, acaba por não comunicar seus verdadeiros sentimentos e necessidades. Mais ou menos isso acontecia na família Powel. Casey, sob o pretexto de cobiçar um corpo de bailarina, simplesmente deixou de comer. A atençãoe a preocupação que eram exclusivamente dirigidas à sua irmã Gail começaram a se voltar para Casey e o processo de não se alimentar ou de provocar o vômito daquilo que ingeria fez com que os pais de Casey se dedicassem a ela, providenciando um psicólogo e um médico - conforme havia sido indicado pelo médico da família - que examinaram a adolescente e perceberam que o seu súbito emagrecimento não era causado por nenhuma doença física, mas estava sendo provocado voluntariamente. Casey chegou a um 15 estágio tal de inanição que teve de ser internada para tratamento em uma clínica especializada. A adolescente Casey não era ouvida em suas necessidades pelos pais. Todas as decisões, desde a escolha de um vestido até um curso que fosse fazer, era uma incumbência dos pais, que se recusavam a discutir as questões que diziam respeito à vida da filha. Casey exerceu sobre o corpo, um controle que não estava conseguindo com a sua vida e planos. Por meio do emagrecimento, ela mostrava aos pais que ela também tinha vez e espaço na condução do seu destino, mesmo que esse destino fosse a morte. Casey quase morreu por anorexia, mas, a partir do vínculo feito com o psicólogo ela conseguiu resgatar o amor próprio, valorizando-se e animando-se a comunicar os seus sentimentos de maneira franca, corajosa e direta. Em uma sessão familiar, ela pôde ser assertiva com os pais, falando das suas insatisfações e do seu sentimento de inutilidade, falta de identidade e de espaço na família. Casey exigia respeito, e os pais puderam perceber, naquela sessão, em que aspectos da educação da filha eles tinham falhado. 16 Diagnóstico e Tratamento Bulimia e anorexia são transtornos que se referem ao encrudescimento de uma idéia levada à sua mais profunda proporção: a de que as mulheres, com muito mais freqüência que os homens, costumam perceberem-se como obesas sem sê-lo. Elas mostram, em geral, uma grande confusão a respeito do que significa uma aparência normal, mas não é somente isso. Além desta concepção distorcida, acompanham-se muitos outros comportamentos. Infere-se, inicialmente, que os casos de bulimia purgativa apresentam maior grau de psicopatologia do que aqueles sem purgação. Lembramos que os transtornos psiquiátricos mais freqüentemente associados com os distúrbios alimentares são: transtornos do humor; transtornos de ansiedade; transtornos por uso de substâncias e transtornos da personalidade. Dentre os transtornos do humor, destacam-se a depressão maior e o transtorno bipolar, especialmente tipo II, em pacientes com quadros de bulimia graves e crônicos. Existe, no sistema familiar bulímico, uma forte necessidade de cada um ver a si mesmo como “totalmente bom”. As qualidades inaceitáveis dos pais são projetadas na paciente, que passa a ser o depósito de todas as “coisas ruins”. Identificando-se com essas projeções, ela passa a 17 ser a portadora de toda a avidez e impulsividade da família. O equilíbrio homeostático resultante mantém o foco sobre a paciente “doente”, em vez de focalizar conflitos entre os pais. É fundamental, portanto, um enfoque multidisciplinar no tratamento das compulsões alimentares com cuidadosos exames clínico, psicológico e psiquiátrico para que se chegue a uma avaliação diagnóstica específica àquele paciente. A causa desta afecção continua sendo um enigma. Não são conhecidos pela ciência que fator, ou fatores, causariam a bulimia ou a anorexia. Isto fortalece uma visão de singularidade, uma abordagem fenomenológica. A bulimia de determinado paciente tem uma causa, ou várias. Não as conhecemos, mas existem, e isto nos faz olhar com mais rigor e interesse a origem dos fatos e nos faz ler com melhor acuidade a história pregressa do paciente. Tornando de fato importante que saibamos sustentar um olhar menos científico, investigador de causalidade, mas principalmente humano, a medida que nos interessamos em compreender como se dá cada fenômeno, cada caso, cada história. Herscovici (1992) diz que a própria natureza desse transtorno, no sentido de carecer de uma etiologia conhecida com precisão, possui o benefício ulterior de desterrar o dogmatismo, e este também é um princípio muito caro. Porque aí reside, em boa 18 medida, a sabedoria para enfrentar um mundo cada vez mais complexo. Depois que a paciente recorre tanto ao método de supressão da alimentação, quanto ao de purgar o que comeu, estabiliza-se o hábito que se transforma em compulsão, ficando muito difícil abandoná-lo. Identificamos períodos de remissão em que a bulímica suspende a purga de alimentos, muitas vezes motivada por eventos de intervenção social, como uma viagem, um namorado novo, ou outro fato qualquer que desperta, de modo muito especial, a sua atenção. Mas na verdade depois desse período de latência, na maioria das vezes ela volta a apresentar os mesmos comportamentos. Concluímos que com relação a tais hábitos o melhor fim é nunca começar. O desenvolvimento de um transtorno da alimentação é semelhante - como comparou Rezende - a subir em um bote nas cataratas do Niágara. “O ato de subir no bote é voluntário, mas, após um tempo, as correntezas e as cataratas se apoderam dos fatos e a situação escapa do controle pessoal.” Além da atenção médica, as mulheres que aderem ao comportamento anorexico-bulimico necessitam tratamento psicológico, não apenas para a eliminação do hábito, mas principalmente para ajustamento da sua forma de interpretar a 19 realidade, de pensar a sua vida e de conduzir as suas relações com as pessoas e com o mundo. Anorexia e bulimia podem levar ao óbito se não forem devidamente tratadas. No passado via-se como histrionismo de mulher rica, mas hoje já se constata que trata-se de um gravíssimo problema de saúde pública. O tratamento deve começar com duas avaliações uma feita por um médico e outra por psicólogo, verificando-se a dimensão do transtorno, as atuais condições físicas e mentais do paciente e se existem distúrbios psiquiátricos associados. Dependendo do resultado desta avaliação, a continuidade do tratamento poderá ser ambulatorial ou então ser necessária a internação. No tratamento ambulatorial a paciente será submetida à psicoterapia ou psicanálise com simultâneo acompanhamento de um médico-clínico. Nos casos de comorbidade (detectada associação a outros transtornos psiquiátricos) será necessário um atendimento psiquiátrico, com administração de medicação apropriada. É necessário ter muito cuidado para não se administrar antidepressivos a qualquer pessoa que apresente bulimia ou anorexia. Antes é necessária uma cuidadosa e extensa avaliação, pois temos constatado casos em que ocorreram sérios danos ao paciente em virtude de uma administração 20 indiscriminada e automática de medicamentos como levanfaxina, fluoxetina e outros, os quais têm sido fundamentais em diversos casos, mas não em todos indiscriminadamente. Devemos, pois, realizar encaminhamentos corretos, para especialistas com experiência no tratamento desses transtornos, já que não é qualquer profissional que está devidamente preparado para tratar os transtornos alimentares. O e-mail abaixo que recebemos ilustra bem a necessidade de melhor aprimoramento e responsabilidade profissional daqueles que pretendem atender pacientes com bulimia: Dr. minha Filha está sendo tratada com um psiquiatra e uma psicóloga, com diagnóstico depressivo. Está tomando tryptanol e continua com os mesmos sintomas: uma compulsão por doces e carboidratos e depois coloca o dedona garganta para vomitar. Já faz isso há três anos e ninguém diagnostica para resolver este problema. Estou perdida e, juntamente com ela, cansada...Pelo amor de Deus, dê-nos uma luz.A psicóloga disse-nos que minha filha teria que desenvolver-se espiritualmente porque está com um espírito obsessor que morreu hipoglicêmico ou diabético. Meu Deus, isso seria possível ? Por favor, responda-me urgentemente ! Não há muito a comentar. A carta mostra claramente que não foi realizada uma avaliação correta e cuidadosa. Um erro 21 ainda cometido por alguns profissionais é misturar religião com diagnóstico e tratamento. Tanto a psicologia quanto a psiquiatria pelo fato de lidarem com aspectos pouco explícitos da vida humana, podem dar margem a interpretações fantásticas como a que está acima exemplificada. Geralmente o tratamento em internação justifica-se nas seguintes hipóteses: Anorexia - Perda de peso acima de 40% do normal para a pessoa; IMC abaixo de 18, perda de peso em ritmo muito acelerado; existência de complicações físicas graves; risco de suicídio; paciente não responde ao tratamento ambulatorial. Bulimia - Depressão/ desmotivação crônica; risco de suicídio; existência de complicações físicas graves; paciente não responde ao tratamento ambulatorial. O tratamento da bulímica ou da anoréxica não é apenas fazer comer ou impedir de vomitar. Muito menos forçar quimicamente sentimentos de alegria e disposição. Além dos procedimentos rotineiros de reflexão para a mudança de comportamento, o que se busca é ajudar a paciente a reformular sua forma de compreender a vida e a si mesma. Ajudá-la a comunicar seus sentimentos, dores, expectativas e frustrações 22 usando a linguagem falada e atitudes diretas, e não só por meio de comportamentos e simbolizações. Também surge de forma muito comum a necessidade de tratar na bulímica tendências como manipulação, impulsividade e auto-mutilação. Na anoréxica o pessimismo, o conformismo e o desânimo, a indiferença. Principalmente em relação à bulímica é preciso ajudá-la a reconhecer e assumir os seus erros, pois ela tem muita dificuldade de fazê-lo sozinha. É comum agir impulsivamente, obedecendo tão-somente aos seus instintos e depois tentar manipular as pessoas, fazendo-se de vítima, para não se ver sendo confrontada com o seu erro. O ideal é que a família da bulímica não se deixe manipular, pois assim haverá maiores possibilidades de mudanças em seus comportamentos. Vemos a bulímica como uma pessoa que geralmente precisa reaprender a se relacionar. Isto dificilmente se fará sem algumas privações, restrições e controle. Também precisamos contar com uma família interessada em repensar profundamente a sua maneira de se relacionar, disposta a aceitar que muito possivelmente há uma real necessidade de mudanças mais abrangentes no grupo familiar por inteiro. 23 A bulimia e a anorexia são transtornos com um curso geralmente crônico, comprometendo o funcionamento global das pacientes acometidas. É comum ouvir bulímicas afirmando não terem medo da morte. Há um forte componente suicida nesse conjunto de comportamentos obsessivos. Aliás, as principais causas de morte entre bulímicas são a hipocalemia e o suicídio, e este se dá - em alguns casos - quando a paciente encontra-se em estágio de plena recuperação física, quando começa a ganhar peso. Nesse ponto, em alguns casos, ela olha-se no espelho, rejeita a sua imagem (acha-se terrivelmente gorda) e pode pensar em suicídio. Por esta e outras razões, todo tratamento com bulímica precisa de acompanhamento psicológico. Anorexia nervosa A palavra anorexia vem do grego an-orexis, sem apetite. A anorexia nervosa é um transtorno que se caracteriza pela deliberada perda de peso, induzida ou mantida pela paciente, que em total distorção de proporção, percebe-se gorda. A princípio come de forma apenas insuficiente, mas aos poucos vai diminuindo as quantidades. O organismo que, 24 naturalmente, busca compensar a ausência de elementos nutrientes, começa a habituar-se à falta dos alimentos e vai diminuindo a emissão de sinais da carência alimentar. Dessa forma, a paciente cada vez mais sente diminuir a intensidade da fome, redundando em uma sensação falsa de que não precisa comer, embora o seu organismo esteja se debilitando a olhos vistos. Um dos ganhos secundários no comportamento anoréxico e o despertamento da atenção dos outros. Françoise Dolto em “A imagem inconsciente do corpo” chama a atenção para o fato de que a menina pode aderir ao comportamento anoréxico em um processo de resistência ao crescimento físico e, mais especificamente, ao amadurecimento sexual. O desejo de não se tornar mulher, mantendo uma condição sexual regredida e imatura, leva a menina a buscar o corpo desnutrido e desprovido de sensualidade, um corpo ausente de características próprias ao amadurecimento sexual. A gravidade da doença pode ser exemplificada no caso da cantora Karen Carpenter, que morreu vítima de anorexia nervosa em 1983, no auge da sua carreira. Muitos anoréxicos podem chegar à morte, se não conseguirem ajuda a tempo. Anteriormente, era uma doença associada à elite. Como exemplo, lembramos que uma desilusão amorosa levou a Princesa 25 Vitória, herdeira da coroa sueca, a um quadro de anorexia em 1998. A Princesa Diana, falecida em acidente automobilístico na década de 90, sofreu em meados da década de 80, de anorexia e bulimia. Atualmente, porém, esta doença começa a fazer vítimas na periferia e até no sertão do Brasil, numa clara demonstração de que há muito deixou de ser um problema exclusivamente das camadas de maior poder aquisitivo, é já começa a despontar como um sério problema de saúde. Desde os primeiro meses de vida, a alimentação ocupa uma parte bastante importante na dinâmica psicológica da criança. Uma das formas de se avaliar a troca afetiva entre a mãe e o bebê e entre os membros de um grupo familiar é a observação da forma pela qual eles se relacionam com a comida. Provavelmente uma das formas de se prevenir os transtornos alimentares é procurar não estabelecer, durante os primeiros anos de educação da criança, uma relação direta entre alimento e virtudes, obrigações ou compromissos. Ou seja, há o perigo de a criança assimilar um ensinamento mais ou menos permanente de que por meio do ato de comer ela pode agradar ou desagradar a mãe, alegrar ou entristecer as pessoas. Definindo assim, ela passa 26 a usar a comida como instrumento de comunicação e intermediação afetiva. A anorexia nervosa, que costuma surgir por volta dos nove anos, aparece justamente em uma idade em que a criança (ou pré- adolescente) começa a afirmar a sua personalidade, a tentar mostrar que tem controle sobre as suas opções, e que sabe e pode decidir. O que decorrem daí são comportamentos típicos de uma rebeldia que nada mais pretende que ensaiar uma certa “independência” e mostrar força. Durante a infância (zero a oito anos) a criança foi alimentada e regulada, sendo instruído todo o seu comportamento alimentar. Aos nove anos, já pré-adolescente, ela tenderá a mostrar de alguma forma que está começando a criar códigos de conduta, próprios e independentes. A anorexia poderá, portanto, ser oriunda de um comportamento escolhido, simbolicamente, pela criança para se independer. Depende de algumas tendências predisponentes e da ausência de uma detecção precoce, a evolução de um simples comportamento escolhido até anorexia nervosa. Se o alimento assumiu o lugar de instrumentode comunicação, coerção e troca afetiva ao longo desses oito 27 primeiros anos, possivelmente essa pré-adolescente o elegerá como meio de comunicar suas insatisfações, carência e dúvidas. Pode surgir dessa maneira o comportamento anoréxico que mais tarde se manifestaria na forma de bulimia. Na verdade há um entrecruzamento de anorexia com bulimia, sendo comum que se misturem comportamentos típicos de ambos os transtornos: para não engordar, a jovem vomita o que come. E depois, para não vomitar, deixa de comer. A anorexia nervosa não é um caminho em direção à morte, mas sim, paradoxalmente, rumo à vida. No fundo não há nada a fazer senão criar condições para que as pessoas anoréxicas possam chegar muito perto da morte, para assim poderem retornar à vida (ROBELL, 1997). Diagnóstico, etiologia, complicações clínicas Critérios Diagnósticos DSM III R para anorexia nervosa e bulimia nervosa (Associação Psiquiátrica Americana, 1987). Anorexia Nervosa 1. Recusa em manter o peso do corpo de acordo com o mínimo normal, conforme a idade e a altura; por exemplo, perda de peso levando à manutenção de um peso corporal 15% abaixo do esperado; ou incapacidade de alcançar um ganho de peso 28 esperado durante o período de crescimento, levando o peso corporal a 15% abaixo do esperado. 2. Medo intenso de ganhar peso ou de engordar, apesar de estar abaixo do peso. 3. Perturbação do modo como o peso, o tamanho ou a forma do corpo são percebidos; por exemplo, a pessoa queixa-se de “estar gorda” mesmo quando macilenta, e acredita que uma parte do corpo está “muito gorda” mesmo quando obviamente abaixo do peso. 4. Em mulheres, a ausência de pelo menos três ciclos menstruais consecutivos quando se espera que ocorram de outra maneira (amenorréia primária ou secundária) - considera-se que uma mulher tem amenorréia se os seus ciclos só ocorrerem após a administração de hormônios (por exemplo, o estrogênio). Bulimia Nervosa Bulimia é uma palavra de origem grega, junção de bous (boi) com limo (fome), resultando na expressão “fome como de um boi”, tecnicamente conhecida, porém, como hiperorexia, cinorexia ou polifagia. A bulimia ocorre com episódios periódicos de compulsão a comer, acompanhados da sensação de perda da capacidade de evitar este ato ou de interrompê-lo uma vez iniciado. 29 O paciente come excessivamente, buscando o empaturramento, vindo depois a purga (provocação de vômito) para tentar eliminar os efeitos de ganho de peso e para buscar alívio diante da sensação angustiante que a ingesta excessiva lhe conferiu. Como método de purga alguns pacientes utilizam-se de laxantes, e com eles tentam acelerar o processo digestivo, impedindo que o mesmo se complete em seu processo natural. Quando usam diuréticos eliminam grande quantidade de água do organismo, forçando a perda de algum peso. O medo doentio de engordar, adicionado à fome e à necessidade de alívio emocional (por aborrecimento, depressão, ansiedade ou irritação) é que leva o paciente a empaturrar-se de alimentos, sem saboreá-los. A suspensão dessa ingestão se dá devido à distensão abdominal, interrupção externa, recuperação do controle emocional ou sonolência pós-prandial. A bulimia é um transtorno alimentar que atinge mulheres em 90% dos casos, sendo a principal manifestação entre as demais compulsões alimentares. Em nossa prática clínica notamos que três vezes mais mulheres tem bulimia nervosa em comparação com as que apresentam anorexia nervosa . 30 O cotidiano do bulímico é organizado, obsessivamente, em torno do comer e do vomitar. Geralmente, o bulímico confere o seu peso diversas vezes ao dia, principalmente depois que come muito e depois que consegue vomitar o que comeu em excesso. As pacientes bulímicas são mais egodistônicas do que as anoréxicas, sendo mais ávidas para livrarem-se de seus sintomas. Assim, essas pacientes estão mais inclinadas a buscar ajuda. Entretanto, podem demorar em média cinco anos para buscar tratamento, fazendo-o por volta dos vinte e cinco anos, quando já se encontram bastante perturbadas pelo comportamento ou apresentam complicações físicas das práticas bulímicas. Essa latência na busca do tratamento decorre freqüentemente de sentimentos de culpa e vergonha, associados à imposição sociocultural dos padrões de beleza. Na maioria das vezes, as famílias moderadamente disfuncionais das pacientes não estão cientes do problema, pois os comportamentos ocorrem em segredo e não há perda de peso importante. Bulimia Nervosa 1. Episódios recorrentes de excessos alimentares (rápido consumo de uma grande quantidade de comida em um período descontínuo de tempo). 31 2. Sensação de falta de controle sobre o comportamento alimentar, durante os episódios de excessos alimentares. 3. Para não engordar, a pessoa regularmente recorre ao vômito induzido, ao uso de laxantes ou diuréticos, ao regime rigoroso, ao jejum ou a exercícios extenuantes. 4. Uma média mínima de dois episódios de excessos alimentares por semana por pelo menos três meses. 5. Preocupação excessiva e persistente com relação ao peso e à forma corporal. Critérios diagnósticos para anorexia nervosa - DSM IV 1. Recusa em manter o peso corporal em, ou acima de, um peso minimamente normal para a idade e altura; 2. Medo intenso de ganhar peso ou engordar, mesmo estando abaixo do peso normal; 3. Distúrbio no modo como a forma ou o peso corporal são experienciados, influência indevida da forma ou do peso corporal na auto-avaliação, ou negação da seriedade do atual peso corporal baixo; 32 4. Em mulheres na pós-menarca, amenorréia, isto é, ausência de pelo menos três ciclos menstruais consecutivos.(A mulher é considerada amenorréica se suas menstruações ocorrem somente em conseqüência da administração de hormônios, por exemplo, o estrógeno). Obs. - Ainda segundo o DSM-IV, à anorexia nervosa poderiam ser associados quadros de depressão. Esta, no entanto, pode ser secundária às seqüelas fisiológicas da semi-subnutrição. Características obsessivo-compulsivas, relacionadas ou não à comida, costumam estar presentes. E apesar de o DSM-IV preocupar-se em estabelecer uma distinção entre anorexia nervosa e bulimia nervosa, episódios bulímicos, como vimos, podem ocorrer dentro de um quadro de anorexia nervosa. Normalmente, é na adolescência que os transtornos alimentares têm início, e atribui-se à bulimia dois momentos de maior risco de surgimento - aos quatorze e aos dezoito anos - podendo alcançar a variação dos doze aos vinte e cinco anos. Já a anorexia nervosa costuma aparecer em meninas a partir dos nove anos de idade. Alguns autores consideram a bulimia como uma forma de cronificação da anorexia nervosa. A bulimia nervosa, como transtorno alimentar, confere às pacientes perfis socioculturais, psicológicos e biológicos bem característicos, 33 compondo um modelo desses indivíduos. Assim, é importante que os profissionais de saúde, em qualquer área que atuem, possam atentar para sinais característicos em suas pacientes que os levarão ao reconhecimento dessa doença. Ressalta-se que as pacientes bulímicas geralmente originam-se de famílias que apresentam altos níveis de obsessividade, preocupação excessiva com comidas, peso corporal, dietas restritivas, distúrbios de ansiedade e depressão. Há evidências de fatores genéticos e familiares influenciando a etiologia comum de depressão maior e bulimia nervosa. Igualmente importante é salientar que raramente um transtornoalimentar desenvolve-se em pacientes sem outras condições psiquiátricas prévias. Algumas doenças orgânicas se apresentam com uma hiperfagia que chama a atenção, por exemplo, o hipertireoidismo, o diabetes, alguns tumores hipotalâmicos, a síndrome de Prader Willi (forma de obesidade congênita) e algumas afecções não- tumorais do sistema nervoso, com comprometimento da região hipotalâmica. Algumas outras situações fisiológicas como o desenvolvimento puberal, especialmente nos homens, podem provocar ingestões copiosas. Estes casos são diferentes da bulimia. 34 Mas a bulimia pode resultar em diversos problemas físicos e é importante que haja um acompanhamento clínico. Entre as mais importantes complicações físicas geradas pelo comportamento bulímico, citamos a hipocalemia que refere-se à baixa de potássio no sangue e a hipocalcemia que é a deficiência de cálcio no sangue. Muitas outras complicações físicas podem ser causadas, desde as relacionadas com a baixa de magnésio e sódio no sangue, até os problemas odontológicos como a perda de esmalte e dentina pela descalcificação e dissolução do esmalte por efeito químico do ácido gástrico. Também se verificam aumento das glândulas parótidas, feridas nos cantos da boca, bradicardia, mudanças ortostáticas da pressão arterial, erosões e calosidades nas mãos (sinal de Rusell) e complicações cardiovasculares em função de hipotensão arterial causada pela perda excessiva de líquidos e eletrólitos. Os transtornos psiquiátricos mais freqüentemente associados com os transtornos alimentares são: transtornos do humor; transtornos de ansiedade; transtornos por uso de substâncias e transtornos da personalidade. Dentre os transtornos do humor, destacam-se depressão maior e transtorno bipolar, especialmente tipo II, em pacientes com quadros de bulimia graves e crônicos. 35 Dentre os transtornos por abuso de substâncias, estão o abuso de álcool e abuso de estimulantes, perfazendo um terço das pacientes com bulimia nervosa. Há alta frequência de transtornos de personalidade em pacientes com bulimia nervosa. A metade das pacientes bulímicas por nós atendidas apresentavam algum transtorno de personalidade. As pacientes com essa comorbidade podem ter desinibição, instabilidade afetiva, impulsividade e dificuldades temperamentais desde a infância. Além das características apresentadas, salienta-se a forte associação entre comportamentos severos do controle de peso e ideação e tentativas de suicídio. Nesse espectro, refere-se a correlação entre bulimia nervosa e comportamento autodestrutivo impulsivo e compulsivo. Sugere-se que o comportamento purgativo das bulímicas possa ser considerado autodestrutivo. Os vômitos estão associados a atos compulsivos, pela ritualização e repetitividade, pela necessidade egodistônica das pacientes bulímicas e pela liberação da ansiedade provocada pelo ataque bulímico. Ao contrário, o uso de laxativos e diuréticos encontra-se em uma dimensão de comportamento impulsivo, associado ao abuso de substâncias, cortes auto-inflingidos e tentativas de 36 suicídio. Há associação relatada entre várias comorbidades psiquiátricas e bulimia nervosa, em pacientes que sofreram abuso sexual na infância, tanto pelos aspectos emocionais traumáticos, quanto pelo envolvimento de neurotransmissores permanentemente alterados a partir de tal ocasião. A desregulação neuroquímica associa-se à alteração na conduta alimentar e ao desenvolvimento de comorbidades psiquiátricas nessas pacientes. Diferenças entre a bulímica e a anoréxica Percebemos algumas distinções importantes na forma como, em geral, se apresentam os estados internos da bulímica e da anoréxica. A anoréxica tem alextimia, dificuldade em perceber seus estados e sentimentos; por outro lado é mais capaz de exercitar a vontade para controlar as ânsias de comer. Ela sofre de uma espécie de anedonia que é a falta de prazer com as coisas. Contrariamente, as bulímicas tem maior consciência dos seus estados internos e também menor capacidade de controlar seus impulsos. 37 As pacientes bulímicas têm, algumas vezes, transtornos de conduta associados, como: furtos, tendência à manipulação das pessoas, abuso de álcool ou drogas, e gestos automutiladores. Notamos que as anoréxicas costumam possuir antecedentes de terem sido meninas exemplares, até a instalação da doença. Com freqüência a bulímica é uma pessoa sexualmente ativa e, às vezes, até promíscua. A anoréxica tende a ser sexualmente inativa e sem desejo sexual. A bulímica tem iniciativa na busca de ajuda profissional, a anoréxica não. A bulimia pode evoluir anos sem tratamento, porque é ocultada a sua sintomatologia, já a anorexia apresenta sintomas de maior visibilidade. Diferentemente da anoréxica, a bulímica costuma ter um aspecto mais saudável e, entretanto, pode ter uma parada cardíaca por desequilíbrio eletrolítico. A causa de morte mais comum entre pacientes anoréxicas, no entanto, é arritmia cardíaca, originada pela desnutrição. Sabemos que as pacientes bulímicas tenderão a utilizar os empaturramentos como um meio de aliviar o mal-estar emocional, enquanto as anoréxicas se entregam à manutenção do esvaziamento não só do corpo, mas da alma, da vontade, da ação. 38 Tanto a bulimia quanto a anorexia são transtornos que agregam considerável quantidade de problemas psicológicos, identificados no conjunto de comportamentos presentes nesses distúrbios. Quanto aos relacionamentos, a palavra que impera na anorexia é omissão, na bulimia manipulação. Quanto ao corpo, impera na anorexia a negação, na bulimia a distorção. Ao mesmo tempo em que a bulímica venera o seu corpo, também o despreza. A adoração se identifica na obsessão pelo corpo de beleza perfeita, de estética admirável e irrepreensível em uma silhueta irretocável em seus milímetros. Já o desprezo não é somente ao corpo, mas à própria vida, quando se auto-impede de ter uma nutrição mínima para manter-se viva e saudável. 39 SEGUNDA PARTE OS “TRANSTORNOS ALIMENTARES” SOB A ESCUTA PSICANALITICA II – A FUNÇÃO DA RECUSA NA ANOREXIA As contribuições de Freud Com as descobertas da psicanálise, surge uma nova concepção de homem a partir dos ensinamentos de Freud. Habitado por um novo saber do qual ele tem notícias a partir dos sonhos, atos falhos e sintoma, o homem não possui mais a primazia da consciência, surgindo uma nova instância psíquica que determina de forma peculiar seus atos e pensamentos: o inconsciente. Dando voz às histéricas, Freud vai tomando contato com as leis que regem o inconsciente, com as características deste, e com a presença de um sofrimento naquele que fala. O sintoma passa a ter um estatuto diferente do vigente no saber médico, onde aparece como um sinal de que algo no corpo não está funcionando conforme o esperado organicamente, requerendo, assim, medicação e eliminação imediata. O sintoma freudiano tem valor de enigma, sendo uma formação do inconsciente que 40 expressa uma relação de compromisso entre as exigências pulsionais e o julgamento crítico. É, sobretudo, uma satisfação pulsional, uma mensagem onde atuam o deslocamento e a condensação das representações inconscientes. Os sintomas sobre os quais nos debruçamos são os ditos transtornos alimentares, sobretudo a anorexia e a bulimia. Na verdade, veremos que dificilmente esses sintomas se apresentam separadamente, sendo já bastante usada a terminologia anorexia-bulimia para abordá-los. A anorexia foi primeiramente definida por Naudeau, em 1789, como “uma doença nervosa acompanhada de uma repulsa extraordinária pelos alimentos” (apud Bidaud 1998, p.11). Já entre 1868 e 1873, o termo anorexia nervosa aparece nas obras do inglês William Gull “definida como privação – em caráter privado – do apetite” (id). É interessante observarmos que o método utilizado como tratamento nesses casos era o isolamento terapêutico. A paciente era retirada de casa e internada em um quarto onde permanecia sozinha, só tendo contato com o médico. Por que era justamente a separação da paciente de seu meio o tratamento mais indicado? Eis uma questão que nos intrigou desde o início de nossa pesquisa: aquela da relação entre a anorexia e a separação. 41 A anorexia mata 15% dos jovens acometidos por essa sintomatologia, sendo a doença compulsiva que mais mata no mundo (Fux, 2002). A compulsão aí presente é emagrecer a qualquer custo, e, muitas vezes, ela parece não se constituir como uma mensagem endereçada ao Outro, possuindo a mudez própria da pulsão de morte. Apostamos, porém, que desse sofrimento pode surgir uma demanda endereçada ao analista, movimento que se faz necessário para a realização do tratamento analítico. E a questão que colocamos é, então: como dar voz a ela. Sabemos que através do discurso social, as palavras anorexia e bulimia fornecem ao sujeito a possibilidade de que ele se identifique com o significante “sou anoréxica” ou “sou bulímica”, mascarando a relação particular que ele possui com seu sintoma. A partir de um olhar analítico destacamos que a anorexia- bulimia, ao menos a que se apresenta como um sintoma dentro da estrutura neurótica, coloca em cena o corpo tanto em sua relação com o desejo como com o gozo. O estudo do nada, um dos representantes possíveis do objeto a, permite essa articulação, visto que o mesmo possui tanto uma face desejante, - é o objeto causa de desejo -, como uma relação com o gozo, - através de sua função demais-de-gozar. 42 A relação entre a anorexia e o nada foi retirada de algumas passagens do ensino de Jacques Lacan. Dentre estas, citamos a seguinte definição, presente ainda no início do seu ensino: “a anorexia mental não é um não comer, mas um comer nada” (Lacan, 1956/57, p.188, grifo do autor). O nada ganha forma de objeto e, investido como tal, passa a ter um lugar prioritário na economia libidinal do sujeito. Especificamente em relação à anorexia-bulimia, o que se destaca é o comer e o saber nada. Comendo nada ou devorando tudo – outro lado da moeda de um movimento onde o sujeito também se depara com o nada – o sujeito mantém uma posição de nada saber sobre a impossibilidade da relação sexual, deixando à mostra a paixão pela ignorância como destaca Lacan (1972-73, p.164). Em resposta a um vínculo parasitário com o Outro, que muitas vezes oferece a possibilidade de um gozo sempre à disposição, o sujeito elege o nada como um atalho, uma vía que, mesmo trágica, tenta salvar o sujeito da catástrofe de sua total alienação. “Graças a este nada, ela (a criança) faz a mãe depender dela” (Lacan, 1956-57, p.189), em uma manobra que inverte a relação inicial de dependência do sujeito em relação ao Outro materno. O nada que a anoréxica-bulímica come é peculiar, tem uma espessura particular, derivada da consistência do desejo. 43 Nosso intuito não é fazer generalizações nem criar fórmulas que definem o sujeito, seu sintoma e seu tratamento; já há um discurso que caminha nesse sentido. Os artigos médicos abordam a anorexia e a bulimia como um distúrbio alimentar, uma disfunção orgânica na qual o sujeito não estaria implicado, e cujo tratamento na maioria dos casos é a obrigatoriedade de comer (através de internação) juntamente com uma ação medicamentosa (antidepressivos e ansiolíticos) e a indicação de um trabalho terapêutico. O DSM-IV - Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais organizado pela Associação Americana de Psiquiatria (2004) – guia da clínica médica –, traz classificações diferentes para anorexia nervosa e bulimia. Em relação à anorexia nervosa, o manual afirma que suas características essenciais consistem no rechaço de manter um peso corporal mínimo normal (IMC entre 18 e 25), em um medo intenso de ganhar peso e em uma alteração significativa da percepção da forma ou tamanho do corpo. Afirma ainda que há uma mortalidade de 10% em pacientes hospitalizados cujas causas maiores são: suicídio, inanição e desequilíbrio eletrolítico. Já a bulimia se apresenta em 3% das mulheres e tem como características as crises de “comilança” com a utilização de 44 métodos compensatórios inapropriados para evitar o ganho de peso como o uso de laxantes, vômitos, excesso de exercícios e restrição alimentar severa. Para poder realizar o diagnóstico, tais crises devem produzir-se ao menos duas vezes na semana durante um período de três meses. Apesar da classificação médica clássica abordar a anorexia de forma separada da bulimia, Recalcati (2004) aponta que a lógica que inspira a anorexia e a bulimia é uma só, chegando a usar a fórmula “anorexia-bulimia” para designar esse sintoma, afirmando que elas dificilmente se apresentam em ‘estados puros’. Adotaremos também essa terminologia sem excluirmos a possibilidade da anorexia e da bulimia se apresentarem isoladamente na clínica, nem nos furtarmos a explorar as mesmas separadamente na teoria. Buscaremos na elaboração freudiana elementos que nos esclareçam essa intrigante relação entre o sujeito e seu sintoma, entre o sujeito e a anorexia. O que Freud nos traz sobre a pulsão oral e a sexualidade? O que pode esclarecer sobre a relação mãe- filha, que vemos aparecer com tanta freqüência no discurso desses pacientes? Seria o “retorno ao inanimado”, presente no psiquismo através da ação da pulsão de morte, que o definhamento do corpo coloca em ato? 45 É nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905) que a pulsão sexual faz sua entrada formal na obra de Freud. Em um primeiro momento, não fica claro se a pulsão é psíquica ou somática, pois Freud afirma que ela resulta de estímulos constantes oriundos do corpo, e que, ao mesmo tempo, só temos acesso a ela através de um representante psíquico. É em 1915, em um acréscimo ao texto de 1905, que Freud situa a pulsão, indicando que se trata de um conceito que articula o psíquico e o somático. Localiza a fonte da pulsão em processos excitatórios nos órgãos corporais, concebe sua força como constante, e seu objeto como o mais variável possível na finalidade de obter satisfação. A vida sexual do sujeito aparece, sobretudo, a partir de organizações que privilegiam zonas corporais como a boca, o ânus e o genital. São meios de obter satisfação que atuam independentemente um do outro e buscam um alvo sexual exclusivo. Uma questão, contudo, permanece: a excitação sexual se origina de onde? Além de estar metapsicologicamente localizada no corpo, Freud nos diz que a excitação sexual também se localiza na tentativa de reviver uma satisfação com a estimulação da zona erógena (Freud, 1905). Ou seja, a excitação está remetida a uma primeira satisfação que se perdeu, havendo, portanto, uma defasagem nesse jogo. 46 A primeira expressão da sexualidade ocorre através da oralidade, que é experimentada no ato da alimentação e traz consigo a marca de uma experiência prazerosa na qual os lábios se comportam como uma zona erógena, área do corpo capaz de ser investida libidinalmente. Em um primeiro momento,a satisfação da zona erógena fica associada ao alimento. “A atividade sexual apóia-se primeiramente numa das funções que servem à preservação da vida, e só depois se torna independente delas” (Freud, 1905, p.171). Freud afirma ainda que os órgãos responsáveis pela alimentação e excreção “têm particular facilidade de se tornarem veículos de excitação sexual” (Freud, 1917 [1916-17]b, p.361). A partir dessa experiência prazerosa com o objeto da alimentação, há um deslocamento do sugar um objeto externo para o sugar uma parte do próprio corpo, instalando-se o que Freud denomina de chuchar sensual. Faz, porém, a ressalva de que esse comportamento não é observado em todas as crianças, mas naquelas em que “a significação erógena da zona labial for constitucionalmente reforçada” (Freud, 1905, p.171). Acrescenta ainda que, se o investimento mantiver a mesma intensidade, há uma maior tendência para a bebida e o fumo: mas se o recalque incidir aí, ocorrerão vômitos histéricos e o nojo do 47 alimento. Seria isso o que acontece na anorexia? Um reforço erógeno na zona oral de origem constitucional, com posterior ação do recalque? Talvez seja cedo para afirmarmos que a causalidade desse sintoma esteja situada apenas na constituição do sujeito, apesar de compreendermos que a constituição em Freud não está ligada somente ao determinismo orgânico, e, sim, aos “efeitos secundários de experiências vividas pelos ancestrais no passado; e que também elas foram adquiridas” (Freud, 1917[1916-17c], p.422). Embora a origem e o caráter de tais experiências não sejam precisados, é certo que não se trata aí de hereditariedade. As diversas organizações sexuais geram um prazer parcial e local, assim denominado por não haver ainda a unificação das pulsões para a obtenção do prazer genital. Isso não quer dizer que haja a possibilidade de um prazer pleno, quando o sujeito é despertado para a pulsão genital. A era do “genitalismo” normativo demonstrou o equívoco de alguns leitores de Freud, que enxergaram em sua obra a possibilidade de se ascender a uma sonhada satisfação, com a conseqüente eliminação dos problemas que o sujeito vive em relação ao sexo. Quando esse prazer inicial, oriundo das zonas erógenas, é intenso, há o risco de que algo que seria um meio de obter prazer na excitação se transforme no alvo 48 em si. Para que isso aconteça, é necessário que, já durante a infância, tenha ocorrido uma obtenção de prazer incomum. Nesses anos anteriores à organização genital, a escolha de objeto toma a direção do primeiro objeto do prazer oral, ou seja, o seio, e, conseqüentemente, a mãe. “A mãe é o primeiro objeto de amor” (Freud, 1917 [1916-17]b, p.385). A satisfação mais primitiva, apesar de ser auto-erótica, tem como objeto o seio. Isso ocorre porque a criança não consegue diferenciar o seio como sendo dela ou do outro. Lacan afirma no Seminário 10 (1962/63) que o corte, a separação, não ocorre entre a criança e o seio, e sim entre a mãe e o seio. Indica, então, que “função original da mama. Esta se apresenta como algo entre o rebento e a sua mãe. Portanto, convém concebermos que é entre a mama e o próprio organismo materno que reside o corte” (Lacan, 62/63, p. 256). A perda do seio é efetivada com a representação da imagem daquele que vem satisfazer a criança, o seio é perdido, portanto, a partir da separação que ocorre com a diferenciação entre o sujeito e o outro. A perda desse objeto de satisfação é fundamental para que outras zonas e outros objetos sejam investidos, deixando marcas na relação do sujeito com o outro através dos processos de identificação, ambivalência e diferenciação. A partir daí, poderíamos afirmar que, desde o 49 início, é o seio, associado com a alimentação, que traz uma das primeiras marcas de separação entre o sujeito e o Outro, e que, em um momento posterior, a cada ativação dessa marca, a partir das perdas que o sujeito sofre em relação a seus objetos, entra em jogo um movimento de separação em torno do alimento. Vale a pena retomar a citação segundo a qual “sugar ao seio materno é o ponto de partida de toda vida sexual, o protótipo inigualável de toda satisfação sexual ulterior, ao qual a fantasia retorna muitíssimas vezes, em épocas de necessidade” (Freud, 1917 [1916-17], p.367). Ainda em relação ao seio, Freud afirma que “para a criança, a amamentação no seio materno torna-se modelar para todos os relacionamentos amorosos. O encontro do objeto é, na verdade, um reencontro” (Freud, 1905, p.210). As futuras escolhas amorosas estão apoiadas nos modelos infantis primitivos como tentativa de recuperar a suposta felicidade perdida, movimento de reinvestimento no traço deixado pela primeira experiência de satisfação. Além da amamentação, a relação da criança com a mãe é fonte de excitação e satisfação sexual. A mãe toma a criança como objeto sexual, acariciando-a e beijando-a, despertando no filho a pulsão sexual. Afirmamos assim que o ato de alimentar é um ato marcado pela sexualidade, pelo desejo da mãe em relação 50 à criança, o alimento sendo aí o objeto que encarna o investimento materno no sujeito. Freud ressalta que o excesso, tanto do lado da criança, que se mostra insaciável em relação à ternura parental, como também do lado dos pais, que exibem um cuidado desmedido em relação ao filho, serve de prenúncio à instalação de uma neurose na vida adulta. Isso porque há uma elevada adesividade das impressões deixadas pela vida sexual infantil. Tais impressões podem agravar- se “a ponto de produzirem uma repetição compulsiva e poderem prescrever por toda a vida os caminhos da pulsão oral” (Freud, 1905, p. 228). Podemos afirmar que, nos sujeitos que desenvolvem a anorexia e a bulimia, houve uma fixação na satisfação oral cujo resultado é o estabelecimento de uma relação especial entre a comida e a satisfação sexual. Freud, inventando a psicanálise, falou sobre a anorexia, sem que tenha escrito nenhum texto dedicado exclusivamente ao tema. Sempre que o aborda, coloca-o na vertente do sintoma. Ou seja, fala sobre o sintoma anoréxico, e não sobre as anoréxicas. Desde suas correspondências com Fliess, Freud se interroga a respeito desse sintoma, afirmando que “a neurose nutricional paralela à melancolia é a anorexia. A famosa anorexia nervosa (...) é uma melancolia em que a sexualidade não se 51 desenvolveu. (...) Perda do apetite – em termos sexuais, perda de libido” (Freud, 1895/1996, p. 247). Relacionando a perda de apetite e a perda de libido com uma perda objetal, encontramos o caminho pelo qual Freud articulou a anorexia com a melancolia. Ambas seriam resultado de uma dificuldade do sujeito em lidar com a perda do objeto. O processo anoréxico revela uma dificuldade em relação à perda, à realização de um luto. Nesse momento de sua obra, essa perda de libido pode ser entendida como uma deserotização da atividade oral, já que, aqui, a anorexia é articulada com a melancolia. Em nenhum outro momento, porém, Freud fará esse paralelo, passando a relacionar a anorexia com a histeria, e, conseqüentemente, com um aumento da erotização na zona oral que perturba as atividades aí situadas. Apesar de não nos determos na questão da melancolia, o que acarretaria um dispendioso desvio do tema, não deixa de ser interessante destacarmos a relação da melancolia com a anorexia, a qual também pode ser analisada através dessa configuração: ambas entretêm uma relação, cada uma a sua maneira, com o nada. Entre os casos que Freud cita a respeito da anorexia, há o de uma mãe que não conseguiaalimentar seu filho no peito, apresentando dores, vômitos e perda de apetite. Através da 52 hipnose, Freud elimina esse sintoma ao falar para a mãe que ela pode cuidar de seu filho muito bem. Associa esse comportamento à presença de idéias antitéticas, muito freqüentes na histeria. São idéias de contra-vontade que invadem o corpo e se tornam mais fortes que a intenção (Freud, 1892-93/1996).Prosseguindo em sua obra, destacamos o caso de Emmy Von N., a qual apresentava uma recusa de comer. Ao procurar o motivo dessa recusa, Emmy se lembra das vezes em que, quando pequena, era obrigada a comer carne fria e dura, o que gerava grande revolta na paciente. Nesse caso, “... o ato de comer, desde os primeiros tempos, se vinculara a lembranças de repulsa cuja soma de afeto jamais diminuíra em qualquer grau; e é impossível comer com prazer e repulsa ao mesmo tempo” (Freud, 1893-95/1996, p.118). Outro caso citado foi o de um menino de 12 anos que apresentou uma anorexia como efeito de uma investida sexual de outro homem. Este último pediu que o menino colocasse a boca em seu pênis. Essa idéia foi superinvestida de afeto e afastada da consciência, mas retornou através do sintoma de não conseguir colocar nada na boca (Freud, 1893-95/1996, p.232). Ressaltamos a importância do relato de Freud sobre esse caso, já que observamos, nos artigos trabalhados, uma unanimidade acerca da ocorrência da anorexia em mulheres, quando sabemos que, 53 mesmo sendo em um número muito pequeno, o sintoma anoréxico também se apresenta em homens, estando mais relacionado com a estrutura histérica (quando se apresenta na estrutura neurótica) e não com o sexo do sujeito. Com os casos citados, observamos que Freud localiza os vômitos crônicos e a anorexia (que pode chegar ao extremo da rejeição de todos os alimentos) entre os sintomas histéricos. Eles resultam de uma “emoção penosa” surgida durante a alimentação a qual foi suprimida pela ação do recalque, e retornou através de náuseas (Freud, id). Mesmo tendo estudado a anorexia até esse momento de sua obra (1904), é importante destacarmos que, nos artigos “O método psicanalítico de Freud” (1904-1903) e “Sobre psicoterapia” (1905-1904), Freud nos mostra quais os sintomas indicados para serem tratados pela psicanálise e deles exclui a anorexia. Segundo Freud, “não se deve requerer à psicanálise quando se trata de eliminar com rapidez fenômenos perigosos, como, por exemplo, na anorexia histérica” (1905-1904, p. 250); nesta clínica, a ênfase se coloca no ato de escutar o sintoma, e não de suprimi-lo. Sendo assim, todas as expressões somáticas da histeria, que exijam o pronto atendimento do médico para afastamento dos sintomas – dentre elas, a anorexia - precisaria 54 aguardar uma fase menos aguda para a intervenção do psicanalista (1904-1903, p. 240). Ao nos perguntarmos sobre a justificativa da advertência freudiana, ressaltamos o quanto a psicanálise atenta para o sintoma da anorexia em sua gravidade e urgência. Freud está indicando que, ao lado do tratamento analítico, é necessário fazer um trabalho conjunto com outras práticas, como, por exemplo, a medicina e a nutrição. Em nenhum outro momento de sua obra essa colocação se repetiu, e isso não o impediu de continuar sua pesquisa sobre esse tema. No caso do homem dos lobos (Freud, 1918 [1914]), é analisada uma fobia – apresentada na infância do paciente – relativa àquele animal. O medo de ser comido pelo lobo ficou explicitado no sonho de angústia que teve ainda pequeno. Esse sonho, no qual sete lobos o fitavam imóveis em uma nogueira, foi analisado durante o tratamento, fazendo com que o paciente se recordasse da cena primária em que os pais mantinham relação sexual. O horror diante da visão do órgão genital da mãe fez com que ele se deparasse com a castração. A figura do lobo trazia traços que se assemelhavam à posição do pai durante a relação sexual. Além desse sintoma, o paciente também apresentou, quando pequeno, um distúrbio do apetite em que quase não aceitava comida. Freud concebe esse distúrbio como “uma 55 deficiência, por parte do organismo, no domínio da excitação sexual” (1918 [1914], p.113). Não sendo dominada, a excitação sexual aparece em funções que originalmente não seriam vias de sua expressão. Destacamos que o objetivo sexual da fase oral é devorar, e ele aparece no homem dos lobos a partir de um medo de ser comido pelo lobo. “O ser devorado dá expressão, em uma forma que sofreu degradação regressiva, a um terno impulso passivo de ser amado pelo pai num sentido erótico genital” (Freud, 1926-25, p.107). O medo de ser devorado pelo lobo é também uma expressão da angústia de castração. “Essa neurose terá que ser examinada em conexão com a fase oral da vida sexual” (Freud, 1918 [1914], p.113). Na menina, voltar o interesse para o pai não é apenas fazer uma troca de objeto. A separação da mãe é acompanhada por grande hostilidade. Uma parte desse ódio é recalcada e persiste no psiquismo, sendo que uma das formas de expressão dessa hostilidade é a reclamação de que a mãe lhe deu muito pouco leite, “censura que lhe é feita como falta de amor” (Freud, 1933-32b, p.122), expressando uma ligação entre comida e amor. Freud nos fala que essa reclamação não se justifica, ela está diretamente relacionada com a insaciabilidade da criança, e com sua dificuldade de lidar com a perda do seio materno. Em 1933, 56 Freud ressalta que o temor da castração não é o único motivo para que o recalque ocorra, já que as mulheres não têm medo de serem castradas, e sim de perder o amor, medo originado de uma ausência da mãe. O temor inicial é o do desamparo, relacionado com a imaturidade inicial do ego, e logo depois o temor se vincula à perda de um objeto (ou perda do amor), seguindo o medo de ser castrado (fase fálica) e o temor do superego (latência) (Freud, 1933-32, p.90). É nesse momento de sua obra que Freud analisa a fase oral como possuindo duas subfases: a primeira, onde há apenas a incorporação do objeto, sem a presença de ambivalência, e a segunda, caracterizada pelo morder, com o surgimento da ambivalência em relação ao objeto. Freud afirma que, tanto para a menina como para o menino, o primeiro objeto de amor é a mãe, aquela que cuida e nutre, estando os primeiros investimentos objetais ligados à satisfação das necessidades. Tal estágio preliminar de ligação com a mãe é muito rico, podendo “deixar atrás de si muitas oportunidades para fixações e disposições” (Freud, 1933-32b, p.120). O medo de ser assassinado ou envenenado é freqüente nos relatos analíticos dos pacientes de Freud, e ele o define como fantasias que se somam à fantasia de sedução, sendo o papel do sedutor dado à mãe. O temor de ser envenenado também está relacionado com o desmame, e a 57 mudança no estatuto do alimento que implica: do signo de amor para aquele que faz adoecer (Freud, 1933-32 b, p. 123). O alvo da pulsão sexual na fase oral consiste na incorporação do objeto, e servirá mais tarde de modelo para os mecanismos de identificação do sujeito. A identificação é uma etapa preliminar da escolha objetal, sendo a primeira forma pela qual o ego escolhe o objeto amoroso. Ela é ambivalente e se apresenta na fase oral, quando o eu deseja incorporar a si o objeto que lhe traz satisfação, devorando-o (Freud, 1917-15/1996). Comer é um processo de incorporação, de identificação do sujeito com os traços que o alimento traz em si. A recusa de se alimentar é, portanto, uma recusa a essa identificação com o traço do Outro inscritono alimento. Pensamos que na anorexia o alimento vem como símbolo da plenitude e da ausência de falta no Outro; o alimento é o objeto que o Outro demanda, e que o complementaria. Na organização oral, a libido é narcísica, e a fixação nessa fase está relacionada com uma dificuldade do sujeito em lidar com a perda do seio como ideal de completude, com a representação de um seio que não faz parte dele. Tal perda deixa uma marca, a qual é reativada sempre que o sujeito se depara com a sexualidade ou algo do sexual que traga uma diferenciação (Freud, id). 58 Ressaltamos que a anorexia geralmente aparece no momento em que surgem os primeiros caracteres sexuais secundários, ou seja, na adolescência, como também no encontro do sujeito com o sexo. Os contornos do corpo, principalmente na menina, representam o afloramento da sexualidade e, conseqüentemente, trazem a reedição da separação materna. Em alguns casos emagrecer, é, assim, infantilizar o corpo, anular esses contornos que passam a ser vistos como um excesso. Ao abordarmos a anorexia através de sua relação com o desejo e o gozo, somos levados a retomar o caminho traçado por Freud acerca da experiência de satisfação e de das Ding. É no “Projeto para uma psicologia científica” (1950 [1895]) que Freud faz um primeiro esboço do que ele denomina desejo, ponto que será essencial retornar para iniciarmos o estudo lacaniano da articulação entre a necessidade, a demanda e o desejo. Ao formular uma primeira hipótese de funcionamento do aparelho psíquico, Freud postula a existência de estímulos endógenos. Estes são definidos como uma excitação interna que necessita de uma ação específica que atue sobre ela, já que nenhuma descarga – gritos e movimentos - pode produzir resultado aliviante. De acordo com o princípio de constância, qualquer aumento na excitação é sentido como desprazer, e este 59 desconforto – a fome no exemplo freudiano – requer para ser aplacado, a interferência de um agente externo. É necessário, então, uma alteração no mundo externo que, como ação específica, só pode ser promovida de determinadas maneiras. Freud atribuiu a essa experiência o complexo do ser humano próximo – Nebenmensch -, formado pela impressão deixada por essa ajuda alheia recebida. Esse complexo se divide em dois componentes: um deles produz uma impressão por sua “estrutura constante e permanece unido como uma coisa (Ding), enquanto o outro pode ser compreendido pela atividade de memória” (Freud, ibid, p.384), ou seja, pode ser representado. A partir do complexo do próximo – Nebenmensch -, Freud articulou em um só tempo o que é o ‘à parte’ e a similitude, como signo de separação e identidade. Das Ding é justamente a parte do complexo que é isolada pelo sujeito como estranho – Fremde -, desconhecido. Das Ding como estranho constitui esse primeiro exterior, em torno do qual se orienta todo o encaminhamento do sujeito, sua referência em relação ao mundo do desejo (Lacan, 1959/60, p.69). Com isso, destacamos que o desejo (Wunsch) não possui um estatuto de lei universal, mas toma a direção do particular, do subjetivo; está ligado à tentativa do sujeito de reaver 60 a sensação deixada pela primeira experiência de satisfação, de reviver essa marca. Em alemão, os termos usados para ‘coisa’, ou melhor, para ‘a coisa’ são das Ding e die Sache, apesar de apresentarem uma sutil diferença. Sache é um termo utilizado quando uma coisa é colocada em questão jurídica; quando, portanto, passou à ordem simbólica, como nos indica Lacan no Seminário 7 (1959/60), onde desenvolve pontos interessantes e esclarecedores sobre das Ding. Em Freud, o termo Sache aparece como representação da coisa – Sachvorstellung -, a qual se encontra presente no inconsciente e se distingue da representação palavra – Wortvorstellung -, pertencente ao pré-consciente. Os conceitos de coisa e palavra aparecem, pois, como um par. Ressaltamos, porém, que Freud nunca trabalhou Dingvorstellung como um conceito, indicando que das Ding está fora do campo da representação (Lacan, 1959/60, p.59). É em torno de das Ding que as Vorstellung, as representações, se articulam, estando o simbólico, aqui, representado por essas tramas que são guiadas pelo princípio de prazer e fazem funcionar o processo adaptativo do sujeito. Das Ding pode aparecer também como uma tendência de reencontro entre o sujeito e o objeto - traço oriundo da imagem mnêmica da 61 experiência de satisfação (Freud, 1925). É o princípio de prazer que guia a busca desse objeto e, ao mesmo tempo, mantém uma certa distância em relação a ele. Sendo assim, o elemento imaginário do objeto, ou seja, a crença na possibilidade de encontrarmos o objeto de nosso desejo, diz de um engodo que se apresenta como vital para impulsionar o movimento de busca desse objeto. Não nos esqueçamos, porém, que, por trás desse movimento em relação ao objeto do desejo, encontramos um traço mnêmico deixado pela primeira experiência de satisfação, ou seja, a marca de um objeto que não existe mais, o objeto perdido. Buscando as possíveis ligações entre das Ding e a representação materna, ponto imprescindível para essa pesquisa, destacamos que Freud situou a interdição do incesto como a lei mais fundamental, sendo este, ao lado do parricídio, o desejo mais antigo e poderoso (Freud, 1913 [1912-23], p.49), do qual derivam todos os desenvolvimentos culturais. Lacan nos diz que encontramos na lei do incesto uma relação com das Ding. “O desejo pela mãe não poderia ser satisfeito, pois ele é o fim, o término, a abolição do mundo inteiro da demanda, que é o que estrutura mais profundamente o inconsciente do homem” (Lacan, Op. cit., p.87). É nesse sentido que o princípio de prazer tem 62 como função a busca da aproximação, de um reencontro com esse objeto primordial sem, porém, jamais atingi-lo. Esse objeto possui o estatuto de ser perdido, e o encontro do sujeito com o objeto é sempre um reencontro, como nos diz Freud no texto de 1925. Além de fazermos esse retrospecto da pulsão em Freud, principalmente a pulsão oral, temos que tocar em outro ponto fundamental para entendermos o estatuto da anorexia: o desejo. Buscando a origem desse conceito em Freud, a partir da experiência de satisfação, Lacan toma um sonho relatado em “A Interpretação dos sonhos” (1900, p.180) como modelo para analisar a estrutura do desejo. Uma analisanda de Freud, que possuía conhecimento de seus desenvolvimentos teóricos, diz a seu analista que não entende como ele pode afirmar que o sonho é a realização de um desejo, se, em seu sonho, justamente o que não se realiza é o seu desejo. Relata, então, a paciente: “Queria oferecer uma ceia, mas não tinha nada em casa além de um pequeno salmão defumado. Pensei em sair e comprar alguma coisa, mas então me lembrei que era domingo à tarde e que todas as lojas estariam fechadas. Em seguida, tentei telefonar para alguns fornecedores, mas o telefone estava com defeito. Assim, tive que abandonar meu desejo de oferecer uma ceia (Freud, 1900, p. 181). 63 O desejo que Freud observa nesse sonho é o de ter um desejo insatisfeito. A partir das associações da paciente, outros elementos aparecem como o pedido que ela faz ao marido para não lhe trazer caviar, apesar de sua enorme vontade de comê-lo. Ou seja, ela pede que ele não a satisfaça. “O desejo da histérica de ter um desejo insatisfeito é significado por seu desejo de caviar: o desejo de caviar é seu significante” (Lacan, 1958/1998, p. 627). Além disso, não havia salmão defumado, prato predileto
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