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• Myrian Barbosa da Silva Mestre em Lingüística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Professora de Língua Portuguesa da Universidade Federal da Bahia LEIl'URA,ORma E FONOLOGIA • São Paulo, Editora Ática, 1981. F • • 2 INTRODUÇÃO b) Análise do sistema ortográfico em relação ao sistema fo- nológico de uma variedade do português e levantamento dos problemas gerados pela inadequação daquele a esse. Nosso objetivo, nessa parte do trabalho, não é formular crí- ticas à ortografia vigente, mas chamar atenção sobre as dificuldades que poderão se colocar para o alfabetizando. Portanto, nossa intenção é, tão-somente, tornar mais clara a situação pedagógica e fornecer ao autor de materiais didáticos uma análise científica, da qual possa lançar mão durante o seu trabalho. Para isso, formularemos regras de equivalência fonológico- -ortográfica, cujo domínio constitui requisito indispensável no pro- cesso da leitura. Procuramos sempre determinar o ambiente orto- gráfico, com o qual o leitor tem contato direto, só apelando para o ambiente fonológico quando isso for absolutamente necessário. Consideramos, para o estabelecimento dessas regras, uma enti- dade ortográfica - a letra - e uma entidade fonológica - o fone. O fone é, neste trabalho, a entidade fonológica que se dis- tingue pelos seus traços fonéticos mais relevantes. Isto é, os traços que constituem um fone são considerados de uma maneira aproxi- mada, sem levar em conta a variação de realizações, posto que 'nenhuma emissão é idêntica a outra. Na fixação dos traços de cada fone, usamos o critério articulatório. A formulação de regras, tomando por base essa entidade fono- lógica, não enquadrará a nossa análise em nenhuma corrente lin- güística específica, mas, aproximando-se mais da realidade física da fala, promoverá oportunidade de se discutir melhor o problema pedagógico e facilitará a compreensão por parte de professores e outros interessados que desconheçam teoria lingüística. I A LEITURA - O PROCESSO DE APRENDIZAGEM SOB O PONTO DE VISTA LINGVtSTICO: SUAS FASES SEGUNDO FRIES A maioria dos defeitos que comprometem as nossas cartilhas, conseqüentemente a aprendizagem, deriva da não compreensão da natureza lingüística do processo da leitura. Os autores de cartilhas, geralmente muito preocupados com métodos norteados por princípios psicológicos e pedagógicos, nem mpre têm em mente que o processo de aprendizagem da leitura essencialmente um processo lingüístico. Freqüentemente encontra- mos nos prefácios das cartilhas ou nos manuais de orientação ao professor uma explicação detalhada do método e de suas bases icopedagógicas, mas não descobrimos no corpo do trabalho os redutos de interesse efetivo com o material da língua. A ordem apresentação e até mesmo a seleção do conteúdo seguem cri- t6rios extralingüísticos, quando não seguiam pela intuição do autor ou por sua tradição escolar. O trecho seguinte ilustra o que dis- mos, revelando o critério extralingüístico de apresentação do material: As palavras desta cartilha são sempre as mais comuns ou as mais usadas em todas as regiões do país. A ordem de apresentação das letras atende à possibilidade de formação destas palavras. I Na introdução de outra cartilha 2, o autor explica o método ser utilizado e distribui em unidades pedagógicas as letras do líubeto ("fonemas", para ele) e as palavras onde se inserem. fila discriminação, entretanto, refere-se apenas às consoantes. As I AllcNur de afirmar que o vocabulário escolhido é o mais usado em todo II Illl(~, não consta que se baseie em nenhuma pesquisa de frequência. A urdem de apresentação das letras, na realidade, só se refere às con- IIIl1l11fl'~,pois as vogais são apresentadas, nas duas primeiras lições, isoladas 1111 combinadas com outras vogais, enfim, sem obedecer a nenhuma progra- mll~l\o (LoURENÇO FILHO, M. B. Cartilha do povo, 2089. ed. São Paulo, M"lhornmentos, 1970. p. 2.). WI'IINECK, Vera Yolanda Pacheco. Nossa amiguinha Sílvia. I.a série. "Iv('i~ I c 2, 1. ed. Rio de Janeiro, Livros e Cadernos, s.d. p. 5. 4 A LEITURA - O PROCESSO DE APRENDIZAGEM ••. vogais e as seqüências de vogais são deixadas de lado (não são consideradas "fonemas"?) e sua introdução ocorre sem nenhuma .ordenação aparente. Basta considerar as "palavras-centro" que os alunos devem fixar na primeira unidade (mamãe, veio, dia, alva) para comprovar o nosso comentário. Todavia, percebe-se nessa cartilha um embrião de planejamento dos dados lingüísticos, ausente na outra. A seleção de palavras de uma cartilha comprometida com objetivos outros que não os do ensino da leitura (campanhas religiosas, políticas, de saúde, etc.) dificulta e prejudica a orga- nização dos dados lingüísticos. Observe-se, no texto abaixo, a lista de palavras escolhidas para introduzir a leitura, bem como o critério utilizado: Os cartazes apresentam vários aspectos das necessidades básicas, principais, do homem. Essas necessidades básicas são as indispen- sáveis, as essenciais para que tenha uma vida digna e construtiva. As palavras que representam essas necessidades são: vida, saúde, pão, trabalho, mão, casa, amor, fé, bola, dinheiro, violão, povo. 3 Essa cartilha segue a filosofia educacional de Paulo Freire, que vê na alfabetização um meio e não um fim, embora se afaste dela na metodologia e na seleção do vocabulário. Freire, embora subordine o ensino da leitura a seus objetivos, demonstra uma preocupação com "as dificuldades da linguagem" 4, que nos parece ausente no material didático citado. Outro problema muito comum às nossas cartilhas, não mais referente à apresentação do material Iingüístico, mas ao próprio método, é a subordinação do ensino da leitura ao da escrita, como se fossem processos idênticos. Encontramos, num volume destinado ao professor, o texto que transcrevemos abaixo: O aluno aprenderá a ler escrevendo. Ler é reconhecer a palavra escrita. Se o aluno reconhece o que escreve, evidentemente estará lendo. 5 3 CUNHA, Vilma & VAZ, Maria Dulce C. Pires. Roteiro; alfabetizador. Mi- nistério da Educação e Cultura. Movimento Brasileiro de Alfabetização. Rio de Janeiro, Bloch, s.d. p. 20. 4 CARDOSO,Aurenice. Conscientização e alfabetização. Estudos Universi- tários; revista de cultura da Universidade do Recife, n. 4, abr./jun. 1963. p. 74. . 5 KRUEL, Yolanda Bentim Paes Leme. Guia da professora aliabetlzadora. 1. ed. Porto Alegre, Globo, 1969. p. 3. A LEITURA - o PROCESSO DE APRENDIZAGEM. .• 5 Certamente muitos terão sido alfabetizados desse modo. Não obstante, terão percorrido o caminho mais longo e mais difícil, pois se esforçaram por vencer simultaneamente duas fases distintas: a fase da percepção (compreensão da idéia transmitida através de sinais) e a fase da produção (transmissão desta idéia através dos mesmos sinais). O homem, ao aprender a falar, respeita estas duas fases. Num período anterior ao início da fala (codificação do pensamento para a comunicação), a criança começa a compreender os sinais emitidos pelos que a rodeiam (decodificação da mensagem alheia). O mesmo se pode afirmar da aprendizagem de uma língua estran- geira: a fase de compreensão antecede a da produção, e o conhe- cimento passivo da língua é sempre maior que o ativo. Isso acon- tece porque as regras que levam um indivíduo a compreender a mensagem são mais simples que as regras que o levarão a pro- duzi-la 6. Tomemos um exemplo. Para alguém compreender a mensa- gem transmitida pela palavra copo será necessário que associe a imagem desse objeto à imagem acústica correspondente. Para emi- tir as mesmas ondas sonoras, será preciso mais que simples asso- ciação. Ele terá de aprender a utilizar seus órgãos vocais de tal forma que produza a mesma sensação auditiva no ouvinte, o que vale dizer que terá de aprender a produzir várias modificações nos órgãos da fala em uma seqüência determinada.Da mesma forma, o processo de aprender a ler implica um conjunto de regras diferentes das que levarão o indivíduo a es- crever. As regras para a leitura serão mais simples, pois são regras de reconhecimento. Por que, então, iniciar a alfabetização pela escrita, se este constitui o caminho mais difícil e portanto mais longo? A leitura e a percepção dos sons da fala são, como vimos, atividades paralelas, ambas processo de decodificação. Contudo, uma difere da outra pelos símbolos a decodificar. O ouvinte de- codifica símbolos do sistema fonológico; o leitor, símbolos do sistema ortográfico. Aprender a ler não significa adquirir um novo sistema lin- güístico, mas um novo sistema de sinais. O alfabetizando já do- mina as regras do léxico, da sintaxe, da morfologia e da fono- logia de sua língua nativa. Para aprender a ler não precisará de novos conhecimentos neste campo. Seu trabalho será apenas de o Ver, por exemplo, seção 2.1.3.4. 6 A LEITURA - O PROCESSO DE APRENDIZAGEM... aprender as regras ortográficas que, na escrita, substituem as regras fonológicas. A diferença fundamental entre a modalidade oral e a escrita da língua está, portanto, no meio físico condutor da mensagem: os símbolos vocais ou os símbolos gráficos. A transferência do meio sonoro (já conhecido) para o meio visual (desconhecido) constitui a primeira fase do processo de aprendizagem da leitura. Essa transferência será tanto mais fácil, quanto mais simples for a relação entre as regras fonológicas e as regras ortográficas, e quanto maior for a compreensão das dificuldades provenientes dessa relação, pelo alfabetizador. A segunda e a terceira fase da leitura, de que oportuna- mente nos ocuparemos, referem-se a traços da fala não codificados pela escrita. 1.1 Fase da transferência Descrevemos a fase da transferência como o período em que o alfabetizando transporá o seu conhecimento da modalidade oral da língua para a modalidade escrita. Vale dizer que, nessa fase, ele será não só levado a observar que os sinais sonoros têm equi- valência gráfica (embora imprecisa), e portanto a mensagem po- derá ser recebida também por meio de sinais escritos, mas tam- bém será treinado a decodificar esses sinais, ou seja, a ler. Não reconhecer esta ponte entre os dois sistemas, fonológico e ortográfico, tem constituído um dos maiores enganos das nossas cartilhas. A aprendizagem da leitura tem sido considerada como a aquisição de um novo conhecimento. Ensina-se a letra ou, mais modernamente, a palavra e a frase, ao contrário da atitude recomendável: apresentar ao aluno o sinal escrito que representa a palavra que ele reconhece quando expressa oralmente, introduzir a novidade com base no conhecimento já adquirido. Desavisadamente, alguém poderia objetar que autores mais atualizados visam, no seu planejamento, ao fonema e não à letra em si. Inicialmente, de pouca valia será fazer um planejamento em termos apenas da entidade fonológica. Se tal ocorresse, cairía- mos no inverso da atitude tradicional, que só considerava a enti- dade ortográfica, e igualmente não estaríamos dando nenhuma contribuição para o ensino da leitura. Para facilitar o trabalho de alfabetização, será necessário considerar ambas as entidades: FASE DA TRANSFERÊNCIA 7 a que o aluno já conhece e a que lhe será apresentada pelo pro- fessor. Porém, na maioria dos casos, nem um fato nem outro vem ocorrendo, como poderia parecer. O que realmente acontece é um uso impróprio da terminologia técnica para denominar a enti- dade ortográfica 7. Na verdade, pouco ou nada mudou em relação ao material lingüístico das cartilhas: é a letra 8 ou a palavra o elemento apre- sentado e não a representação de elementos fonológicos a serem transferidos. Não há programação em termos de elementos fono- lógicos 9 mas de elementos ortográficos, abstraídos das suas rela- ções com as entidades fônicas. A palavra tijolo, por exemplo, é utilizada, numa cartilha 10 preparada no início da década de 70, como o primeiro cantata que o aluno terá com a palavra escrita e já apresenta a letra º com dois valores distintos: [o] e [u]. Fato semelhante, talvez mais grave, pode ser verificado em outra car- tilha 11, também da mesma época: a letra ç é apresentada em uma única lição com o valor de [k] e [s]. Decorre desta concepção do ensino da leitura a perda de tempo, o insucesso e a perda de motivação para aprender a ler, o que tem levado um grande número de semi-alfabetizados a desis- tirem da empresa. Imaginemos a confusão do aluno que tem diante de si uma forma gráfica ora lida como [o l, ora lida como [u], ou ainda de outra que pode ser lida de duas formas: como [k] e como [s]; sem que lhe seja dada a oportunidade de descobrir (não de se informar sobre) a regra. 7 Ver WERNECK, op. cito Embora demonstre uma visão clara com respeito às consoantes (letras), ao considerar seus múltiplos valores fonológicos em ambiente determinado, esquece-se, inexplicavelmente, das vogais, o que nos leva a concluir que é pouco rigorosa a organização do material didático, mesmo revestindo-se de uma nomenclatura especializada. 8 Ver, por exemplo, LOURENço FILHO, op. cit., p. 3. 9 Conhecemos apenas' uma cartilha em língua portuguesa que faz exceção ao que dissemos. Trata-se da Cartilha ABC, produzida por um grupo de lingüistas para o MEC, no que eles denominaram "Programa de Emergên- cia"; foi publicada nas oficinas da revista O Cruzeiro e por esta distribuída. O material lingüístico da referida cartilha baseia-se nos resultados de uma pesquisa realizada no Estado de Minas Gerais (Levantamento lingüístico de Leopoldina. Educação e Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 3(9), dez. 1968). 10 SILVA, José Carlos Monteiro da et alii. Livro de leitura; alfabetização. Ministério da Educação e Cultura. Fundação Movimento Brasileiro de Alfa- betização - MOBRAL. São Paulo, Abril Cultural, s.d. p. 4. 11 CuNHA, Vilma. Op. cit., p. 17. 8 A LEITURA - O PROCESSO DE APRENDIZAGEM .•• Para que a fase da transferência seja vencida sem desperdício de esforço ou tempo, temos de programar o material lingüístico de tal forma que a aquisição das regras da leitura seja facilitada. Nessa programação três fatores se revelam importantes: 1) os elementos do sistema fonológico que são substituídos por sinais gráficos e, portanto, que devem ser transfe- ridos; 2) o material lingüístico utilizado como meio de transferir tais elementos; 3) os critérios na organização do material lingüístico para a preparação de cartilhas. 1.1.1 Elementos da transferência Na fase da transferência, a tarefa essencial é estabelecer há- bitos de resposta pronta diante do novo meio estimulador (as formas gráficas), partindo dos hábitos de resposta diante de formas fónicas, já plenamente adquiridos. Por meio desses, chegaremos àqueles. O sistema fonológico ainda pode conter traços que não têm equivalência na escrita 12. Por sua vez, a escrita pode conter sinais sem equivalência fonológica como as aspas, o travessão, o pará- grafo, ·etc. 13. Em seu já citado livro, Charles Fries dá acentuada impor- tância a três aspectos na correspondência do sistema fonológico e do sistema gráfico: 1) a seqüência dos elementos representativos do signo lin- güístico nos dois sistemas; a forma física utilizada como veículo da mensagem; o padrão da palavra e o padrão ortográfico - as pala- vras são identificadas, na fala, por padrões (word-pat- terns) que se constituem de uma seqüência única de sons. Na língua escrita, tais padrões são representados por "padrões ortográficos" (spelling-patterns) formados por seqüência de letras. Assim, a tarefa de aprender a ler é "desenvolver hábitos ( ... ) de pronto reconhecimento dos traços identificadores dos padrões 2) 3) 12Yer seções 2.1.3.2 e 2.4. 13Yer seções 2.1.3.4 e 2.4. FASE DA TRANSFERÊNCIA 9 ortográficos que representam os padrões vocabulares que ele co- nhece"14. Caberia, desse modo, aos autores de material de leitura ana- lisar a correspondência entre os padrões, a fim de descrever os traços identificadores que serão a matéria das cartilhas. Consideremos, de início, dois elementos a transferir: 1.0) a seqüência temporal da fala para a seqüência espaço- -direcional da escrita, de que nos fala Fries; 2.°) a forma sonora da fala para a forma gráfica da es- crita, o que, de um modo geral, constitui os itens 2 e 3 apontados acima. 1 . 1 . 1 . 1 A seqüência temporal e a seqüência espaço-dírecíenal Possivelmente pouquíssimos professores e autores de cartilhas já pensaram em dedicar algum tempo do seu programa de leitura ao treinamento da direção em que os padrões lingüísticos se dispõem na área visual. Esta questão vem sendo ignorada, como se a seqüência es- paço-direcional (na nossa língua: horizontal, da esquerda para a direita, começando de cima para baixo) fosse conseqüência da natureza física do indivíduo, como o é estar de olhos abertos para poder ler. A seqüência no espaço seguindo uma determinada direção não provém de nenhuma necessidade física do homem. Os olhos estão aptos a correr o papel não só da esquerda para a direita, como da direita para a esquerda; tanto no' sentido horizontal, quanto no vertical. Para' comprovar isto, basta lembrar os povos orientais, que escrevem em outras direções: na escrita árabe con- serva-se o sentido horizontal, mas escreve-se da direita para a es- querda; entre os chineses a escrita é feita em colunas de cima para baixo a partir da direita. Por ser um elemento introduzido arbitrariamente na escrita, a direção é matéria de aprendizagem e portanto deverá ser objeto de treinamento. A seqüência no tempo e no espaço é elemento indispensável à comunicação lingüística. Se enumerarmos os fones da palavra galo em outra seqüência, poderemos obter palavras como lago, gula. Se usarmos em outra seqüência as letras que representam estas palavras, podemos ainda ter gola. Todavia, não somente a direção particular a cada língua de seqüenciar seus elementos grá- 14 FRIES, op. eit., p. 170. 10 A LEITURA - O PROCESSO DE APRENDIZAGEM ..• ficos justifica este treinamento. Trocar a direção das letras, das sílabas, são casos comuns entre os alunos neo-alfabetizados. Não raro, também, a insegurança no reconhecimento da direção das formas provoca um retardamento no ritmo da leitura. O aluno tem de habituar-se a considerar a direção das formas um fator relevante na escrita, como já aprendeu a considerar, na fala, a seqüência da forma fônica. Portanto, como observa Fries, criar o hábito de ver as formas escritas e as partes das formas escritas numa determinada direção é uma das primeiras tarefas de um programa de leitura. Para o estabelecimento destes hábitos, Fries sugere exercícios de que falaremos na seção seguinte. 1.1.1.2 A fonna sonora na fala e a fonna gráfica na escrita Para transferir a forma sonora para a forma gráfica, temos de abordar três aspectos distintos do sistema fonológico e deter- minar sua correspondêricia na escrita: o aspecto físico da corrente da fala (o som propriamente dito); o som como elemento signi- ficativo, no sistema de comunicação (as entidades segmentáveis); traços que incidem sobre a corrente da fala modificando a men- sagem (as entidades supra-segmentais). A forma física do som se relaciona com a letra, forma física da escrita. Esse relacionamento pode levar a uma atitude peda- gógica muito difundida entre os nossos antepassados e, ainda hoje, utilizada: o ensino de letras isoladas 15. Com muita razão, técnicos em educação têm repudiado este método. Embora o elemento fonológico em questão deva ser trans- ferido para a escrita, não será esta a maneira recomendável de realizar a transferência, desde que o fone isolado, como a letra na mesma condição, não tem significado para o aluno 16. Fries propõe, não obstante, que não se abandone totalmente o ensino das letras. Ele aconselha iniciar-se a alfabetização com 15 "É preciso que o aluno adulto saiba - e o alfabetizador deve dizer-lhe _ que todo som é representado graficamente, isto é, tem uma 'escrita', correspondendo a um sinal ou vários sinais gráficos. Assim: o som a se 'escreve' (representa) a o som e se 'escreve' (representa) e etc." (CUNHA, Vilma. Op. cit., p. 20-1.). 16Discutiremos mais longamente este assunto na seção 1. 1 .2 deste trabalho. FASE DA TRANSFERÊNCIA 11 um treinamento que leve o' aluno a distinguir as formas gráficas entre si, porém sem relacioná-las com seu valor fonológico. Insiste em distingui r sua proposta do método tradicional: Devo insistir vigorosamente que, nesta prática de desenvolver há- bitos automáticos de reconhecimento das formas das letras, não deve haver nenhuma tentativa de relacionar as letras com os sons. 17 :É, portanto, a forma física das letras que o preocupa. Ele considera treinar o reconhecimento da forma das letras uma etapa importante que "evitará a confusão e a lentidão na leitura". De acordo com o citado autor, deveriam ser organizados exercícios com este objetivo, considerando primeiro as letras maiúsculas sem adorno 1R. As minúsculas e as do tipo manuscrito deveriam ser adiadas até o processo de leitura estar encaminhado. Mesmo entre aquelas deveria subsistir uma ordenação: I.O) as formadas apenas de barras; 2.0) as formadas de barras e círculos; 3.0) as formadas de círculos ou parte deles. O contraste se faria, então, primeiro, pelo número de barras, depois, pela sua posição (vertical, horizontal ou inclinada) e pelo tamanho relativo da parte do círculo combinado com as barras. Esses exercícios têm como objetivo levar os alunos a perce- berem a diferença entre as formas das diversas letras e a direção peculiar da escrita de sua língua. Atentos para tais diferenças, os alunos estariam mais aptos a perceberem, por exemplo, o con- traste entre formas como bola e bota, habilidade que, certamente, favorecerá a aprendizagem da leitura. Inicialmente, duas letras são apresentadas aos alunos que devem ser treinados a reconhecer se são idênticas ou não (exer- cício A). Os exercícios que se seguem a este treinamento jogam não somente com a identificação das formas, mas também com a direção da escrita. Constam de dois grupos (ou mais) de duas (ou mais) letras (exercícios B e C). Os alunos deverão identi- ficar os grupos que são iguais ·na forma e na ordem de suas figuras. Para evitar a previsibilidade na resposta, algumas vezes as combinações se repetem. 17 FRlES, op. cit., p. 194. 18Letras maiúsculas conhecidas como tipo bastão. 12 A LEITURA - O PROCESSO DE APRENDIZAGEM .•• Vejamos alguns exemplos dos exercícios formulados por Fries 19: Ex. A Ex. B Ex. C I I IF IT FIT TIF T T TF TT FIF FIE I I TF FT 1FT IFF T I TT FF LEF IFE F T IT TI FEl FEl F F FT TF EFT TFE E F EF FE ElE ETE o único elemento lingüístico que tal treinamento possibilita transferir é a seqüência temporal de que nos ocupamos na seção anterior. Posto que nos referidos exercícios não se faz correlação dos sinais gráficos com o sistema fonológico, não se pode atri- buir a eles a função de uma outra transferência. A distinção das formas gráficas é, todavia, uma etapa que o aluno deve vencer. Também para aprender a língua na sua modalidade oral precisa-se distinguir a forma física do som, o que, nessa fase, se faz comparando formas cheias de significado (palavras) . Evidentemente que, se esta etapa já tiver sido vencida ao iniciar-se a alfabetização propriamente dita, a transferência do sistema fonológico para o sistema ortográfico será facilitada. A partir daí, cabe aos pedagogos observar a viabilidade de tais exercícios do ponto de vista didático e modificá-los de forma a não se tornar tarefa enfadonha para os alunos. 1 . 1 . 1 . 2 .1 O sistema fonológico e o sistema ortográfico Sob este título abordaremos o segundo aspecto dacorrente sonora de que falamos acima: o som como elemento significativo no sistema de comunicação. O sistema ortográfico pretende substituir a corrente sonora. Pretende codificar o sistema lingüístico como o faz a fala. De acordo com o elemento lingüístico tomado como a menor unidade 19 FRIES, op. cit., p. 192. FASE DA TRANSFERÊNCIA 13 representável, temos diversos tipos de escrita: a palavra (unidade conceptual), a sílaba, o fone ao e o fonema. A escrita logográfica toma a palavra como a unidade menor de representação. A cada palavra corresponde um símbolo. A escrita é aí uma lista interminável de símbolos. Esse sistema é apenas parcialmente utilizado pela nossa escrita. Os símbolos em- pregados para representar os numerais não se referem a sons da língua, mas diretamente à sua denominação: 1 (um), 8 (oito) , X (dez), etc. As formalizações de operações também utilizam este método: = (igual), -7- (dividido por), etc. Há ainda a possibilidade de se formular uma escrita simbo- lizando parte menor da fala: o som. Se o sistema representa todas as diferenças físicas do som da fala, temos uma escrita fonética. Um alfabeto dessa natureza, por exemplo, registraria a palavra casa com quatro símbolos dife- rentes, pois anotaria a diferença entre os sons [a 1 e [~l, um mais aberto que o outro. Um alfabeto fonêmico representaria esses dois elementos fo- nológicos por um só símbolo, pois os considera variantes de um mesmo fonema ~l. Nesse tipo de escrita, o ótimo ortográfico con- siste em estabelecer um só símbolo para um e somente um fonema. Essa concepção do ótimo ortográfico foi, por muito tempo, aceita. Hoje, porém, ela é posta em questão com uma nova proposta: não registrar as operações fonológicas, ao contrário do que se faria do ponto de vista da escrita fonêmica. Tomemos um exemplo do português, que esclarecerá ambas as posições: O morfema rapaz tem três realizações possíveis. Convencio- nemos que z, s e j representem [z l, [s 1 e [z 1 respectivamente e teremos uma- escrita para cada realização: rapaz, rapas e rapaj (por exemplo, rapazes ou rapaz amigo, rapas feio, rapaj bonito). Tal solução é, por si só, antieconômica e redundante, de vez que teríamos três escritas para um mesmo morfema e que a mudança se realiza, para o falante, automaticamente, como se verifica tam- bém na operação [t] ~ [\] / _ [ i 1 (por exemplo, bato, bati). Observamos, então, que o mesmo princípio que aconselha a registrar a primeira mudança (porque [z l, [s 1 e [z] são conside- rados fonemas distintos da língua portuguesa) proíbe a represen- 20 Ao usarmos fone nesta seção, referimo-nos a qualquer som vocal. ~1 Para conceituação ver: PIK.E, Kenneth. Phonemics; a technique for redu- cing languages to writing. Ann Arbor, The University of Michigan Press. 1968. 14 A LEITURA - O PROCESSO DE APRENDIZAGEM..• tação da última (pois [\ J e [t J são meras variantes de um só fonema). A ortografia atual dá a esses casos específicos a mesma solução: não registra nenhuma mudança. Vejamos: { [ z J} rapaz amigo ~ ~ [s J rapaz feio [ z J rapaz bonito 1~ {[tJ}[n bato bati Morris Halle discute tal problema sob o ponto de vista mor- fofonêmico e propõe um princípio com algumas limitações. Diz ele: As ortografias não devem conter símbolos que reflitam a operação de regras fonológicas. 22 Não obstante, há dois casos em que considera melhor violar o princípio: 1) quando a mudança se opera por uma determinação de fronteiras outras que não as de morfema; 2) quando o contexto condicionador não pode ser demons- trado na ortografia. Outros ainda têm-se mostrado favoráveis a essa nova visao: Paul Powlison 23 considera desejável que a ortografia não registre as mudanças morfofonêmicas, caso sejam previsíveis pelo ambiente fonológico ou sintático, principalmente quando se trata de uma assimilação ao ponto de articulação. Os símbolos I! ou m, quando não representam as consoantes nasais 24, se colocam bem como ilustração de não obediência a esse princípio. Comentando o artigo de Powlison, Sarah Gudschinsky 25 con- sidera o referido procedimento "uma opção viável". Halle 26, que dedica um artigo a discutir esse problema, ainda não o considera solucionado. Admite a necessidade de estudos experimentais com vários tipos de ortografias para decidir a vali- dade de suas especulações e para ampliá-las. 22 HALLE, Morris. Some thoughts on spelling. (Cópia mimeografada, s.d.) 23 POWLlSON, Paul S. Bases on formulating an efficient orthography. The Bible Translator, 19(2), abro 1968. 24 Ver regra fonológica 4, seção 2.3.2. 25 GUDSCHINSKY,Sarah C. More on formulating efficient orthographies. The Bible Translator, 21 (1), jan. 1970. 26HALLE, op. cito FASE DA TRANSFERÊNCIA 15 Fries 27 não examina nenhuma dessas questões, mas critica os que consideram confuso o alfabeto do inglês, dizendo que desa- visadamente assim o fazem por terem em mente um critério íonê- mico. Acrescenta ainda que o padrão ortográfico contém traços identificadores do padrão vocabular, possíveis de serem estabele- cidos por análise 28. Por exemplo, o traço ortográfico que indi- caria a qualidade da primeira vogal em palavras como hate, [ate, etc., em contraste com hat, fat, etc., seria o ~ final das primeiras. Reportando-nos ao português, vimos, pelos exemplos cita- dos, que seu sistema ortográfico varia de comportamento diante das operações fonológicas. Examinaremos com mais detalhes o sistema ortográfico nas seções 2. 1 e 2. 3 deste trabalho. A questão está, assim, aberta para novas investigações lin- güístico-pedagógicas. Desde que o nosso sistema ortográfico apre- senta os dois tipos de solução, o professor poderá contribuir obser- vando qual dos dois é mais facilmente assimilável. Mas não são somente dessa natureza os problemas que po- dem advir da relação entre ortografia e sistema fonológico na fase de transferência. As soluções ortográficas mostram-se, muitas vezes, redundantes por se manterem fiéis ao sistema fonológico da língua num estágio anterior ou por razões puramente etimoló- gicas. Faz-se necessária, então, uma análise das relações entre a ortografia e a fonologia, não somente para conhecer-lhes a natu- reza, mas também para determinar o material lingüístico de trans- ferência e diagnosticar problemas de outra espécie. 1.1.1.2 .2 Traços supra-segmentais O problema pedagógico dos traços supra-segmentais difere dos tratados anteriormente. Estes elementos não têm sido regis- trados na escrita de vários idiomas, e lingüistas têm mesmo con- testado as vantagens pedagógicas de codificá-los, embora não des- conheçam o seu papel na linguagem oral. Powlison 29, por exemplo, opina contra representá-los na es- crita, em favor de maior simplicidade do sistema ortográfico. Ele argumenta que os traços supra-segmentais trazem, geralmente, informações que os segmentais já carregam, para sobrepor-se ao ruído ambiente. E, desde que este fator não tem influência sobre a escrita, a redundância não se justificaria. 27 FRlES, op. cit. 28Ver seção 1. 1. 1 . 2H POWLlSON, op. cit. 16 A LEITURA - O PROCESSO DE APRENDIZAGEM .•• Sarah Gudschinsky 110 discorda de Powlison, cuja afirmação julga "injustificável" e "não provada". Considera que tal posição colabora com a "nossa tendência preguiçosa" de não simbolizar na ortografia os elementos da língua que são difíceis de escutar e analisar. Para o ensino da leitura das línguas com ortografia já esta- belecida, esta discussão é, de certo modo, inútil, pois todo o pro- blema pedagógico vai depender da posição adotada por aquele sistema, marcando ou não os traços supra-segmentais. Quando eles são marcados, temos mais um elemento de transferência. No caso contrário, os alunos terão de aprender a supri-los, apoiando- -se nos elementos que a ortografia oferece. Reservamos para a segunda parte deste trabalho a tarefa de verificar o comportamentodo sistema ortográfico do português diante desses elementos do sistema fonológico. 1.1.2 O material lingüístico das cartilhas Os elementos de transferência não podem ser introduzidos isoladamente aos alunos, pois são, por si só, vazios de significado. As cartilhas que procedem desobedecendo a esse princípio espe- ram de seus alunos um grau de abstração absurdo e um seccio- namento da corrente da fala só justificável como um artifício 31 para representar a língua oral. A menor unidade lingüística que o alfabetizando, adulto ou criança, reconhece é o vocábulo. Tentar impor uma divisão da palavra em partes menores é contraproducente para o rendimento da aprendizagem, pois constitui uma abstração, carga extra, des- necessária na mente do aluno. Através de outros caminhos (as ciências psicopedagógicas), professores chegaram à mesma conclusão: a palavra é o menor ~O GUDSCHINSKY, op. cito at "Um ato (unidade) da fala é uma série de distúrbios no meio condutor, uma série de mudanças musculares e nervosas. Uma vez executado o ato, ele termina para sempre. Não podemos segmentá-lo mais que podemos seg- mentar o nascer do sol. O que podemos fazer é registrar o acontecimento com vários graus de aproximação de uma réplica idealmente completa (e por isso impossível). O registro pode ser de dois tipos. Pode ser uma série de fotografias de raios X, uma gravação, um espectrograma. Ou, em vez de um registro físico, como o precedente, pode ser uma representação sim- bólica do acontecimento. Em qualquer dos casos é somente o registro do ato de falar que pode ser segmentado e manipulado." (BACH, Emmon. An introduction to transformational grammar, New York, Holt, Rinehart and Winston, 1964.) (O grifo é nosso.) FASE DA TRANSFERÊNCIA 17 elemento lingüístico capaz de motivar o aluno. Apesar disso, muitas cartilhas ainda apresentam vogais e consoantes, sílabas, noções de grupos vocálicas, etc., antes mesmo que os alunos man- tenham o seu primeiro contato com a palavra escrita. Para ilustrar, numa dessas cartilhas a2, as letras do alfabeto - divididas em vogais e consoantes -, os diacríticos e os sinais de pontuação são sistematizados nas seis primeiras lições. Somente na sétima aula aparece um texto com significado, aproveitando as vogais que os alunos já "sabem escrever" (a leitura é depen- dente da escrita), juntando as consoantes que ora aprendem. Transcrevemos abaixo alguns trechos da sexta aula da cartilha em questão: Hoje vamos aprender os ditongos. Vocês sabem que cada vêz (sic) que abrimos a bôca (sic) para dizer uma palavra, é uma sílaba. Ex. CA- VA-LO esta tem 3 sílabas. LATA esta tem 2 sílabas. VI-a-LA, 3 sílabas. Como hoje não temos letra nova para aprender vamos conhecer alguns acentinhos e sinais de pontuação que ajudam a compreen- são da leitura. Este (sic) Ao chama-se circunflexo - serve para fechar o som. Ex. vovô - vê - você. :~a Não obstante, seria ineficaz o trabalho de alfabetização que se restringisse a treinar o reconhecimento da palavra escrita sem proporcionar aos alunos condições necessárias para perceber mais rapidamente o mecanismo da escrita alfabética, ou seja, o relacio- namento dos símbolos gráficos com partes menores da fala. O material ideal seria aquele que pusesse em evidência as diferenças gráficas entre as palavras resultando na mudança de significado. Imaginemos, por exemplo, um material cujas primeiras pa- lavras fossem pó e vela+', que os alunos aprenderiam a distin- guir pela extensão da forma gráfica. Juntando a esse conjunto a palavra sala, obrigar-se-ia o aluno a deter a sua observação sobre uma parte menor da palavra (a sílaba), pois, para distinguir vela de sala, terá de observar a diferença formal das duas primeiras :12SoUZA, Darcílea Silva e. O vale do saber; cartilha moderna para a cam- panha de alfabetização. I. ed. São Paulo, Fundação Carlos Chagas, 1969. :1:1Ibid., p. 22. ::~ Essas palavras apenas ilustram o problema em questão. Outros aspectos devem ser considerados na escolha do léxico de uma cartilha. 18 A LEITURA - O PROCESSO OE APRENDIZAGEM ..• sílabas: ve/sa. O mesmo procedimento levaria o aluno a rela- cionar a letra ao fone: contrastando as palavras anteriores com outras, cuja diferença fosse apenas uma letra. O quadro abaixo facilitará a visualização do que expusemos: Primeira etapa Segunda etapa Terceira etapa Reconhecimento em Reconhecimento Reconhecimento por termos da extensão" através da forma diferenciação de um da forma gráfica gráfica da sílaba símbolo gráfico PÓ VEn TW~E~VELA SALA VELA VALA lJ~OSALA PÉ A primeira etapa se justifica por ser o primeiro contato do aluno com a forma escrita. É o momento em que ele perceberá o relacionamento de uma forma gráfica com a forma sonora que já conhece. Não é um período extremamente necessário nas comunidades onde o contato com os símbolos gráficos é facilitado pelos órgãos de imprensa. Nas outras fases, o aluno é levado a distinguir progressivamente unidades menores da fala e da escrita, sem recorrer à abstração do som isolado, vazio de significado. Algumas cartilhas têm preferido dar início ao programa de alfabetização com a frase, elemento lingüístico de carga signifi- cativa mais completa, mas de forma mais complexa. Pedindo-se aos alfabetizandos que distingam frases, exige-se deles que dis- tingam as várias palavras formadoras destas frases, empresa bem mais difícil do que a proposta acima. Para conciliar essa atitude com a anterior, uma alternativa seria a de lançar mão, no início da alfabetização, de "palavras- -frase" acompanhadas de gravuras que fornecessem o contexto social. Por exemplo, uma gravura representando um incêndio, tendo escrita a palavra fogo como fazem as revistas em quadrinhos para indicar a fala dos personagens. Nada impede, aliás, que se use o método das estórias em quadrinhos para criar o contexto. Parece-nos que a dificuldade de pôr em prática esta solução con- ciliatória seria somente encontrar o número necessário de pala- vras-frase que se prestassem à transferência dos elementos fono- lógicos. FASE DA TRANSFERÊNCIA 19 Ainda nos resta focalizar dois aspectos da língua indispen- sáveis à organização do livro de leitura na fase de transferência: os padrões silábicos e o léxico. 1.1.2.1 O padrão siláb~co Como já tivemos oportunidade de observar, cada texto de um programa de alfabetização, no nível que estamos discutindo, deve, através do treinamento apropriado, visar à transferência de um elemento lingüístico. Tal elemento, porém, pode ocorrer na língua em condições mais simples ou mais complexas, isto é, em padrões silábicos mais ou menos complexos. Portanto, também os padrões silábicos devem ser considerados, e não só quanto ao seu grau de complexidade, mas também quanto às mudanças fono- lógicas que podem promover. Observe-se que a tarefa de levar os alunos a perceber a rela- ção entre letra e fone, sugerida na seção anterior, será tanto mais fácil, quanto mais simples for o padrão silábico das palavras no início da aprendizagem. Assim, os alunos terão de identificar me- nor número de elementos que se distinguem por maior número de traços (como a consoante e a vogal do padrão CV de uma das sílabas da palavra batata, por exemplo). Também a relação entre certas entidades gráficas e a posi- ção onde ocorrem nos aconselhará a ordenar a apresentação dos padrões silábicos. Muitas vezes é a posição da letra dentro da sílaba que determinará a sua leitura. O R, em um grande número de dialetos do português, por exemplo, deverá ser lido como consoante lateral alveolar, se ocupar no padrão C1VC2 a posição Ch como em lar, e como semivogal posterior, se ocupar a posi- ção C2 35, como em mal. Situação paralela é encontrada nos sím- bolos gráficos i e y, cuja leitura vai depender da sua posição no núcleo ou na margem, como vogal ou semivogal ê". Embora, em muitos casos, a posição da letra no padrão orto-gráfico não determine o seu valor fonológico, não se pode es- perar que o aluno, tendo relacionado o símbolo gráfico a um fone em uma dada fase da fonação, mantenha essa relação em outra. É o que reconhecem as cartilhas tradicionais ao apresen- tarem séries como ra, re, ri, ro, ru e ar, er, ir, or, ur, apenas condenáveis por serem destituídas de significado. 35Ver regras 36 e 38, seção 2.1.2.3.2.1. 36 Ver regras 12 a 18, seção 2.1.2.3.2.1. 20 A LEITURA - O PROCESSO DE APRENDIZAGEM ..• Outros problemas podem ser ainda levantados, levando em conta o padrão silábico do português e suas relações com a orto- grafia. Basta-nos, aqui, mostrar a importância que sua ordenação tem na preparação do material. Na seção 2. 5 discutiremos mais o assunto, abordando especificamente o português. 1 .1.2 .2 O léxico Esse tem sido, talvez, entre os nossos autores, o elemento que mais lhes tenha merecido a atenção. Eles têm procurado utilizar o vocabulário que pressupõem ser comum aos alunos a quem dirigem a sua cartilha, como um meio de motivá-los à aprendi- zagem da leitura. Não discutiremos a atitude pedagógica até que, em sua defesa, sejam incluídas palavras que impliquem em situa- ções lingüísticas condenáveis. A lista de "palavras geradoras" preparada para Tiriri, colônia agrícola da Sudene, pela equipe do Prof. Paulo Freire 37, nos for- nece uma ilustração de interferência desse tipo na organização do material lingüístico. Consta desta lista de palavras mais comuns naquela região a palavra cacimba, que, embora fosse considerada adequada sob o ponto de vista pedagógico, apresenta um incon- veniente lingüístico: a letra ç aparece com seus dois valores fono- lógicos, [k] e [s]. A atitude contrária seria a do organizador de material que, demasiadamente preocupado com a transferência dos elementos lingüísticos, usasse um vocabulário desconhecido para os alíabe- tizandos, portanto vazio de significado para eles. Essa atitude corresponderia a ensinar os sons em sílabas soltas, ou mesmo isola- damente. Conviria, então, na transferência dos elementos lingüísticos, utilizar tanto quanto possível o vocabulário mais comum aos alu- nos, e nunca sobrecarregar essa fase da aprendizagem com um léxico estranho ao seu universo vocabular. Mesmo entre as palavras conhecidas pelo alfabetizando há uma classe a evitar, pelo menos no início do programa. Trata-se das palavras de significação relacional, isto é, palavras que, em- bora familiares aos alunos, só têm sentido dentro da frase. Como a introdução de unidades sintáticas mais complexas compreende uma etapa posterior no período da transferência, a utilização de palavras como de, e, é, etc. deverá ser adiada para tal ocasião. 37 CARDOSO,op. cit., p. 74. FASE DA TRANSFERÊNCIA 21 Outro fato r importante na escolha do vocabulário de uma cartilha é a freqüência das palavras, de que falaremos na seção seguinte, quando abordaremos os critérios gerais para a organi- zação do material de leitura. 1.1.3 Critérios na organização do material lingüístico para efeito do ensino da leitura Não basta analisar o material lingüístico para elaborar uma boa cartilha. É necessário ainda estabelecer critérios para a sua organização. Quando, em nossas cartilhas, os elementos lingüísticos são levados em conta (embora, como já vimos, precariamente), sua apresentação é feita em ordem mais ou menos alfabética 38, sepa- rando vogais e consoantes, ou considerando fatores como a sim- plicidade dos símbolos gráficos ou o grau de freqüência que os autores lhes atribuem. Verificamos, por exemplo, que os sím- bolos gráficos compostos (dígrafos) nunca são introduzidos nas primeiras lições, porém um símbolo como !" cujo valor fonológico é duplo, pode ser ordenado antes de f, que mantém relação biu- nívoca com o fone [f] 39. Os critérios de simplicidade e freqüênc1a não têm sido consi- derados, contudo, em toda a sua extensão. A ordenação dos elementos deve efetuar-se, observando o grau de simplicidade, não somente do símbolo gráfico, mas também da relação entre enti- dade fônica e entidade ortográfica. Por exemplo, devemos orde- nar, no material de leitura, os elementos de relações biunívocas antes dos demais e procurar entre estes os de relação mais sim- ples 40 do ponto de vista do leitor. Apesar da importância de apresentar os elementos de rela- ção mais simples no início do material didático, esta ordem deve, algumas vezes, ser alterada em favor de outras vantagens peda- gógicas. Isto pode ocorrer quando os elementos mais simples são pouco produtivos em relação a outros mais complexos. Dizemos que os elementos são mais produtivos, quando de sua aprendi- zagem resulta maior domínio da leitura por parte do alfabeti- zando, pela freqüência elevada no sistema de escrita 41. 38 Esse critério pressupõe o ensino de sons isolados, que já discutimos na seção l. l. 2. 39 Ver LOURENÇO FILHO, op. cit., p. 16 e 25. 40 Nas seções 2.1 e 2.2 faremos um estudo das relações apontando as mais simples. H Ver, por exemplo, comentário feito aos padrões silábicos V e VC na seção, 2. 5. 22 A LEITURA - O PROCESSO DE APRENDIZAGEM ••• A freqüência é um critério já utilizado na organização das cartilhas, embora de maneira empírica e incompleta 42. Além disso, em nossas cartilhas, esse critério vem sendo utilizado apenas para selecionar o vocabulário ou as letras a serem apresentadas, o que evidentemente é insuficiente. O organizador do material de lei- tura deve ter em mãos dados em termos de ambos os sistemas, fonológico e ortográfico. O que importa não é o número de vezes em que ocorre a letra Q ou o fone [u], mas o número de vezes em que 2 representa [u]. Tomemos, para ilustrar, o seguinte problema: corresponden- do a letra g aos fones [f] e [w], qual das duas relações deve ser primeiramente introduzida? A solução variará de acordo com o grau de simplicidade e freqüência das relações. Suponhamos que a relação mais freqüente seja ! ~ [f]. Sendo também a mais simples, ela deveria pre- ceder a outra. O mesmo se concluiria se ambos tivessem o mesmo índice de ocorrência. Se, contudo, a relação g ~ [f] fosse de freqüência muito baixa na língua, a regra g ~ [w] deveria ser apresentada primeiramente, apesar de mais complexa. Isso vale dizer que o elemento de relação mais simples só deverá ser intro- duzido depois do mais complexo se, ao contrário deste, tiver freqüência muito baixa na língua. Outra situação a ser considerada relaciona-se com o método de apresentação das entidades lingüísticas. Na elaboração do material de leitura, é aconselhável apre- sentar, sempre que possível, os elementos lingüísticos jogando com o contraste e a semelhança das formas, a fim de que se evidenciem os elementos formais indicadores da mudança fonológica. Supo- nhamos um material de leitura que, numa de suas fases, tenha programadas as seguintes regras de transferência: 1) ~~ [s] 2) ~~ [sy-{~} e que já tenha apresentado a regra s -> [k li- U }. 42 Fazemos exceção à Cartilha ABC, a que nos referimos na nota 9 deste capítulo. FASE DA LEITURA PRODUTIVA 23 As regras acima deveriam ser apresentadas uma a uma, em exercícios semelhantes 4~ aos que se vêem abaixo: 1) A faca caco coca acuda B faça caço coça açude 2) I A I faca caco cubo B face cace recibo No grupo A se encontram palavras já conhecidas pelo aluno, que serviram na transferência de regras anteriores; no B, as palavras-veículo da nova transferência. A leitura deve sempre proceder em sentido horizontal, a fim de não confundir os alunos nesta fase. Porém, pode-se efetuar o treinamento, comparando os pares na vertical, até que a regra seja induzida, isto é, até que o aluno perceba a diferença formal ou o ambiente onde o símbolo adquire o valor fonológico em questão. Note-se que, em certos casos, torna-se difícil encontrar um par de vocábulos cuja única diferença resida no elemento quese quer transferir. Nesse caso, deve-se apelar para pares semelhantes, cha- mando a atenção para a sílaba onde se efetua o contraste. Por esse procedimento, a aprendizagem se realizará como em cadeia, em pequenos passos interligados: a regra a ser introduzida deve ter por base uma outra, anteriormente transferida. Na ordenação dos elementos de transferência, assim como na seleção do voca- bulário, a possibilidade de usar do contraste para facilitar a apren- dizagem deve ser considerada como um fator de grande impor- tância na organização do material de leitura. 1 .2 Fase da leitura produtiva Esse período tem lugar quando o aluno já domina as regras de correspondência ortográfico-fonológica, ou melhor, quando a decodificação dos sinais gráficos se realiza automaticamente, dis- pensando sua total atenção. ~H Os exercícios podem ter, na cartilha, outra configuração para torná-los mais atraentes, desde que fique inalterada a possibilidade de visualização dos contrastes. 24 A LEITURA - O PROCESSO DE APRENDIZAGEM •.. o aluno, nesse estágio, deverá ser treinado a suprir, na lei- tura, os traços fonológicos que a escrita não codificar, como o acento frasal e a entoação 44. Os referidos traços serão recolocados na leitura oral com base: 1) em alguns sinais da escrita. que, embora não os represen- tem, distinguem os vários tipos de sentença e carregam parte da informação: o ponto, o ponto-de-interrogação, o ponto-de-exclamação, as reticências, o travessão, os pa- rênteses, etc.; 2) na compreensão pelo aluno da maior parte do texto. Tendo recebido, por exemplo, 90% da mensagem por meio dos sinais gráficos, os 10% restantes serão apreen- didos sem grandes dificuldades, pela situação já estabe- lecida, pelo "contexto". Se, no estágio anterior, o alfabetizando aprendeu a depreen- der a informação pelos símbolos gráficos, neste, ele deve ser aler- tado para o fato de que parte dela não está representada e por- tanto deve ser por ele suprida. 1.3 Fase da leitura .emotivo-interpretativa Até então, só se treinou o aluno a compreender a palavra escrita, ou seja, a correlacionar as formas ortográfica e fonoló- gica com mensagem. Tendo vencido essas duas etapas, o aluno entrará num es- tágio de interpretação da informação e de depreensão de traços emocionais. O treinamento se fará em torno da leitura interpre- tativa (através de textos puramente informativos) e da leitura emotiva (através de textos literários), quando o aluno aprende a reconstituir os traços emocionais do texto. É necessário salientar, portanto, que, exigindo esta fase um amadurecimento maior por parte do aluno, ela não deve ser ini- ciada antes que as duas precedentes sejam perfeitamente vencidas. 44 Ver seção 2.4. 1 2 O SISTEMA ORTOGRÁFICO DO PORTUGUttS, SUAS RELAÇÕES COM A FONOLOGIA E SUAS CONSE- QOttNCIAS PARA O ENSINO DA LEITURA Até agora, temo-nos ocupado da problemática da leitura, dis- cutindo os seus conceitos básicos, analisando situações lingüís- ticas, mas considerando o português apenas como exemplo. No presente capítulo, as relações entre os sistemas fonológico e ortográfico do português brasileiro contemporâneo (exemplifi- cado pelo falar da autora deste trabalho) entram como objeto de investigação, não mais como ilustração. Para facilitar a exposição, consideraremos em tópicos as rela- ções entre os sistemas ortográfico e fonológico. Primeiramente, oporemos os segmentos de ambos os sistemas: a letra e o fone. Em seguida, trataremos destes elementos em seqüências da mesma natureza (seqüências vocálicas ou seqüências consonantais), de suas modificações diante da barreira morfológica e de sua ocor- rência dentro da sílaba. Finalmente, nos ocuparemos dos traços supra-segmentais e sua relação com os sinais da escrita. 2 .1 Segmento ortográfico e segmento fonológico A letra é uma figura cujos limites são bem definidos. Ela constitui a menor unidade segmental ortográfica. O mesmo não podemos dizer do fone. Impossível estabelecer exatamente os seus limites, quer acústicos, quer articulatórios. Baseando-nos antes em nossa percepção acústica de falante na- tivo que em medição científica, consideraremos o fone o menor elemento segmentai fónico. Distinguiremos, por exemplo, como qualquer falante, os segmentos [p] e [b], [t] e [d], [\] e [4] e outros. Abstrairemos outros traços que só seriam notados por pessoas especialmente treinadas. Neste caso estão as emissões des- locadas do seu ponto de articulação (i. e., l> t] [t<]), o ensur- decimento das vogais átonas antes de pausa ([ 'pahtl ]), etc. 26 o SISTEMA ORTOGRÁFICO DO PORTUGUÊS, SUAS RELAÇÕES ... o fone, neste trabalho, é, portanto, uma entidade fônica esta- belecida por nossa percepção acústica de falante nativo para fins de comparação com a entidade gráfica. Nos próximos tópicos, separaremos em grupos letras e fone, conforme a espécie de relação que mantêm entre si, para tornar mais clara e econômica a análise a que nos propomos. 2 .1 .1 Relações biunívocas entre letra e fone Neste grupo estão as letras cujos fones só têm uma repre- sentação, a qual só a eles corresponde. São elas: Regra J1 p -+ [p]: pá, pé, pó, pia, pua; - sapato, topete, capoeira, apito, república. Regra 2 º ~ [b]: babá, belo, bicho, bola, bula;cobalto, sabe, sabido, cebola, abutre. Regra 3 f ~ [f]: faca, fere, fica, foca, furo; garrafa, afeto, safira, reforma, parafuso. Regra 4 Y ~ [v]: vaca, vê, vila, vovó, vulto; carvão, caveira, revista, revolta, avulso. Regra 5 nh 2 ~ [fi]: nhandu, nhambi, nhanduti; manhã, ninho. Como demonstram as regras acima, a representação ortográ- fica do português apresenta-se coerente nos dois sentidos. Essa é a relação mais simples e a ideal do ponto de vista pedagógico, salvo se existirem implicações com alternância morío- fonêmica 3. A aprendizagem desse grupo se resumirá em relacionar um único fone a um único símbolo ortográfico, que não tem ne- nhum outro valor. Se, porém, essa relação for mantida quando 1Numeraremos, a partir daqui, as regras que descrevem a equivalência fono- lógica dos símbolos gráficos. 2 Embora esta entidade ortográfica, por seu caráter digráfico, não se en- .qu1Ídre bem na presente seção, achamos por bem introduzi-la aqui, porque ela também estabelece com o fone uma relação biunívoca. Os problemas que a complexidade do símbolo acarretará para a leitura serão tratados oportunamente (ver seção 2. 1. 3 . 1). 3 Ver seção 1.1. 1.2 . 1, para a discussão do problema. SEGMENTO ORTOGRÁFICO E SEGMENTO FONOLÓGICO 27 se realiza uma operação fonológica, talvez li condição ideal esteja comprometida. 2 .1.2 Entidades fonológicas com representação cruzada Entendemos por representação ortográfica cruzada a reunião de duas possibilidades diferentes de relação entre a letra e o fone: a) fones com múltipla representação, b) símbolos gráficos de valor fonológico múltiplo. De início, separaremos fones e letras ligados por cada uma das relações, para depois reuni-los em grupos de problemas comuns, numa visão mais completa. Vejamos, então, o inventário destes elementos ligados pelas relações mencionadas. 2. 1 .2 .1 Fones com múltipla representação li i ~~[f] u ~---...[ g].>« ~>[u]lli/ g~ i m ~~[y] ~[W] rr ~---[z]-------r h] :/ y/ r----- l~º :~ s QY~[k] ~>[Zl ~----- ss ~ ~[Sl z ~~[S]-.>~ ch 28 o SISTEMA ORTOGRÁFICO DO PORTUGUÊS, SUAS RELAÇÕES •.. A multiplicidade de símbolos gráficos para representar um único elemento fônico se prende, na maioria das vezes, a razões etimológicas, naturalmente desconhecidas pelos candidatos à alfa- betização. Sendo assim, advém dessas relações grande perda de tempo decorrente da necessidade de condicionar a um fone um nú- mero de símbolos maior que o requerido para a comunicação. Entretanto, há dois casos em que essa complexidade se justi- fica: primeiro, quando um símbolo gráficoé criado para desfazer uma ambigüidade 4; segundo, quando esta relação não constitui um fenômeno geral, mas particular a uma área dialetal ". -l É o caso do grupo :~ [ k L cujo aparecimento evita a seguinte relação [k l! {'"}ambígua: c__"""'" ---~[sl i (ver regras 45, 46, 47 e 51, seção 2.1.2.3.2.3). 5 Se reduzíssemos os dados do português às regras 12, 13, 14 e 21 (seção 2. 1.2.3 .2. 1), teríamos um exemplo. De acordo com estas regras, cons- tatamos que a relação aqui mencionada só se estabelece em nosso dialeto. Vejamos: Dia/eto em estudo: (Ver regras 12, 13 e 14) r , - ..,."[i 1 (Ver regra 21) ~__..".. Outro dialeto: (Ver regras 12, 13 e 14) i ~ [i 1 (Ver nota 25, p. 42) ~ -+ [e 1 Conservando-se este cruzamento, evita-se a criação de uma ortografia de aplicação regional. O mesmo comentário se justifica, se a relação for inversa. Observemos o valor fonológico do símbolo ~ em duas variedades: Dia/eto em estudo: __.,..[ i 1 (Ver regra 21) e - ---....[ e 1 (Ver regra 22) Outro dia/eto: ~ -+ [e 1 (Ver nota 25 e regra 22) SEGMENTO ORTOGRÁFICO E SEGMENTO FONOLÓGICO 29 2 .1. 2 .2 SÚDbolos gráficos com valor fonológico múltiplo a_______""[ a ] -~[ã] [y] '~[i] !~[i] )~:~ ~?[i] ~[e] \[~] [ é] d[U][w]Q~[U] ~ ~[o] [ ~ ] [õ] [w] u/[U] - ~[ií] /[w] p?---[ p] -~['] [~ ] t~[t] - -----r \] d~[d] - ------- [ ~ ] [ r ] r~[h] -~[~] [ n ] ~[vn] n~ n-\:- [~,] "'-[vy] [ m] /[~m]m-V -"'[Vl;)] [gu] gu/[gW] -~[g] g~[g] -~[z] c [k ] -----.....[s] [ s ] s/[Z] -~[S] z»>" r z] -------r s] /[S ] x?--[ z ] -~[S ] [ks] /[kU] 9!!-[ kw] ~[k] Do ponto de vista da leitura, esse é o grupo que pode trazer mais dificuldades aos alfabetizandos, pois um mesmo símbolo pode ser traduzido em diversos fones. Não obstante, a possibilidade de ler-se de várias maneiras um mesmo elemento ortográfico decorre, muitas vezes, da necessidade de ignorar operações fonológicas pre- visíveis e, não raro, de caráter dialetal 6. Se isso não faz diminuir G Ver nota anterior. 30 o SISTEMA ORTOGRÁFICO DO PORTUGUÊs, SUAS RELAÇÕES ••• a dificuldade pedagógica, pelo menos se justifica em termos de evitar escritas dialetais. 2. 1. 2 .3 Grupos de representação A separação feita acima oferece a falsa impressão de que todos os problemas têm o mesmo grau de complexidade no pro- cesso de aprendizagem. Ela elimina a possibilidade de visualizar- mos os problemas advindos de cruzamentos de representações, que só serão atenuados pela formulação de regras que determinem a leitura. De um modo geral, os casos serão mais simples, se for possível estabelecer regras baseadas no ambiente ortográfico e fonológico, ou mesmo apenas no ortográfico. Serão mais com- plexos, se somente o ambiente fonológico for o elemento condicio- nador. A ausência total de regra para determinar a leitura será o grau máximo na escala de dificuldades. Para ajustar o enfoque, reuniremos ambos os casos, ordenando-os de acordo com o tipo de relações envolvidas e, em seguida, analisaremos cada um, esta- belecendo regras de leitura. Inicialmente chegamos a dois grandes grupos. Primeiro grupo: de elementos que só envolvem o segundo tipo de relação, ou seja, grupos de símbolos gráficos de valor fonológico múltiplo. São eles: a r a] ----rã] 1------[ t] -------r t] ~ [d] ----[d , ] Segundo grupo: de elementos que retêm ambas as relações, isto é, um elemento fônico com várias representações gráficas e um elemento gráfico com diversos valores fonológicos 7. Esse gru- po se constitui dos quatro seguintes subgrupos: 7 Teoricamente caberia aqui mais um caso: o de elementos fonológicos rela- cionados com várias formas gráficas que só a eles representam. Não há, porém, este grupo de relações entre a ortografia e a fonologia do português. SEGMENTO ORTOGRÁFICO E SEGMENTO FONOLÓGICO 31 Primeiro: [ n ] . [vn]~l j~-[i) [V~--------------- n [ y ] [l~ I / [ e ] [m] / ~~[;] ~m ~[e] [Vm]~ j [1] p ~o-[~] l~-.-[f] [W)] /[ ü ] ---------I <, [1'1 "<, .-/ _ [o] j ,[9] Q ~ [u] lh Segundo: rr [h] [ ~ ] !~[r] Terceiro: /[gU] guL------[ gw] ~----[g] 1 [z] 32 o SISTEMA ORTOGRÁFICO DO PORTUGUÊs, SUAS RELAÇÕES .•. Quarto: /[kUl qu r kw ] -------- [ k ] ,Ç ----------- ~ ~" ~ ~~ s sç _~[z] -t E [t/~[k'l ch 2.1.2.3.1 Grupos de símbolos gráficos de valor fonológico múltiplo Esses grupos apresentam dois tipos de relação entre a fono- logia e a ortografia: quando essa reflete uma operação fonológica e quando se mantém inalterada. No primeiro caso, está [a] ==> [ã], que abordaremos na seção 2. 1.2.3 .2 . 1 juntamente com as outras vogais nasais. No segundo, estão [t ] e [~J representados por 1, [d ] e [ q. ] representados por Q, como mostra a regra abaixo: Regra 6 [~l--- C'l] ==> [;;:1 l_ri]r d] gato tia dedo diaparta parte fada redeaté parti dela dedal SEGMENTO ORTOGRÁFICO E SEGMENTO FONOLÓGICO 33 Embora a fala seja determinada por essa regra, os alunos mio têm consciência dela e não perceberão a diferença, a menos que sejam alertados. Desde que não há contraste possível na língua entre os elementos da operação, a mudança é automática e realizar- -se-á mesmo quando a fala for resultado de decodificação de um único símbolo gráfico. Isso vale dizer que o aluno não precisa de nenhuma indicação ortográfica, para realizar a operação de trocar, por exemplo, o [t] por [~] em palavras como parti, pois l t l nunca ocorre em outro ambiente, e [t] nunca ocorre nesse. 2 .1 .2 .3 .2 Grupos com dupla relação Pela sua complexidade, esse parágrafo deverá ser dividido em partes, para facilitar o comentário. Discutiremos, então, por grupos que, a partir daqui, serão chamados núcleos problemáticos. 2 .1 .2 .3 .2 .1 Estudo do primeiro núcleo problemático [n] [vn~ ! _ [i] V~ ..----------~~[~1 /[el [ ] [y] ~-r~] [m] ~ ~[e][v~r [fl 1. [w] Q.-[~]l~[fl [ÜJ~I ~l [{l [~J ~[UJ lh !!:::::------- . Consideremos, primeiramente, os símbolos m e fi com seus múltiplos representados: a consoante nasal, a nasalisação da vogal precedente, seguida de travamento nasalou de semivogal. 34 o SISTEMA ORTOGRÁFICO DO PORTUGUÊS, SUAS RELAÇÕES ... As regras abaixo sistematizam as ocorrências: Regra 7 [:J [:::J /: mata cama nata cana metro remédio neto penetra medo temer neste ninei mito temi nisso tênis mola remoto nota panorama morto comover notei ninou mula tumular nulo minúsculo Vale notar, aqui, que esses símbolos acumulam a função de elemento nasalizador, posto que a ortografiajnão acrescenta ne- nhum símbolo para registrar a regra: V =::} V / _ Cn 8. As re- gras abaixo dão conta desse e de outros casos em que os sím- bolos em questão indicam a nasalidade da vogal precedente: Regra 8 V=::} V / {;}' 8 Também essa regra tem aplicação automática para o falante. Entretanto, não podemos concluir que, no processo de aprendizagem, ela seja tão simples como o é a regra 6, pois em português o traço de nasalidade é distintivo, ao contrário da diferença do ponto de articulação entre [ t 1 e [ t l, [d 1 e [<I l. Ignorando isso, autores de materiais de alfabetização pretendem que os alunos formem novas palavras onde a regra em questão seja aplicada, par- tindo de sílabas orais conhecidas. Por exemplo, os alunos que conhecessem as sílabas ÇiI e I!:lli com valor fonológico [kal e [ma 1 necessariamente esta- riam aptos a construir palavras como cama, segundo eles. 9 Ver, na regra anterior, a segunda e a quarta colunas de exemplos. SEGMENTO ORTOGRÁFICO E SEGMENTO FONOLÓGICO 35 Negra 9 [:1 [:::1/_. m# 10 assim tom atum rim som rum vim bom álbum Há, porém, duas situações em que m e fi não representam apenas a nasalização de uma vogal: quando são seguidos de uma consoante; quando, em posição final, depois de ª e 1<. Vejamos a descriçãodesses dois casos nas regras 10 e 11. Regra 10 mi I [rn j] /- [r~:llv I I~V r]!lJ L [n] campo ['kãmpu] canto ['kãntu] banco ['bã 1}ku ] tampa ['tãmpa ] tanto ['tãntu] zinco ~zII]ku ] tambor [tãm'boh] lenda ['lenda 1 mangar [mãl}'gah] sambar [sãm'bah] lançar [lan'sah] Congo rkõ~gu ] Quando essas entidades gráficas são seguidas de uma con- soante, elas representam também um travamento nasal, que de- pende do ponto de articulação da referida consoante. Esse caso é paralelo ao do item 2. 1 .2.3 . 1, pois, também aqui, não há oposição entre os vários tipos de travamento. Sendo assim, o falante não tem consciência das diversas emissões. Mas, ao con- trário do que acontece lá, a regra fonológica é levada em conta pela ortografia, embora só parcialmente. io O uso do diacrítico (,...,) é outra maneira de representar, na escrita, a vogal nasal (ver seção 2.4. 1). Sua ocorrência, contudo, se restringe às vogais ª e Q. 36 o SISTEMA ORTOGRÁFICO DO PORTUGUÊS, SUAS RELAÇÕES •.. Regra 1J [: 1~)] [[:YJ] /_ ti U[aw] hífen [ 'ifêy ] amém [ a'mêy ] amam ['ãmãw] hímen ['lmey] contém '[ kõn'tey] velam [ 'vélãw ] líquen [ 'likey ] ontem ['õntey] restam ['h#tãw] Nesse caso, m e 11 determinam a nasalização de uma vogal e representam o segundo elemento de um ditongo nasal que pode ser a semivogal anterior [y] ou a posterior [w]. As semivogais [ y ] e [ w ] ainda podem ser representadas pelos símbolos i e !l, que, por sua vez, têm outros valores. Detenhamo- -nos, entretanto, na ambivalência vogal ([ i ] e [u]) e semivogal ([y] e [w)). Quando o padrão silábico for (C)V(C) 12, a determinação da correspondência fonológica dos símbolos i e !! não constituirá problema para a aprendizagem da leitura, devido ao fato de a vogal e a semivogal ocuparem posições distintas dentro da sílaba: esta como margem, aquela como núcleo. Tal observação pode ser resumida em uma regra simples e fácil de ser assimilada: Regra 12 [ : 1 [ [i J 1 /(Cl _ (C)[ u ] cvc cv vc V pista apito ir i (a letra i.) sistema parti istmo ilustre carpir cito irmão ignorância curva suco urge u (a letra u.) curto urubu urtiga urubu cruz ·cru ustular usina 11 A dupla representação dos ditongos será abordada na seção 2.2. 1. 1 .2 deste trabalho. 12 C pode ser lido consoante ou grupo de consoantes. SEGMENTO ORTOGRÁFICO E SEGMENTO FONOLÓGICO 37 Mas o problema se estabelece quando pensamos em distinguir, nu escrita, os padrões (C)VX'(C) e CX'V(C) dos padrões (C)V - V2(C) e CV2 - V(C), respectivamente. No primeiro par, (C)VX'CC) / (C)V - V2(C), a orto- grafia prevê um diaérítico para marcar a V 2 ( I) do segundo padrão, exceto quando à V 2 se seguirem os símbolos 1.., !!!, !l, L, Ue?" com ela formando sílaba. Nos casos não marcados, temos vogal marginal, ou seja, no padrão (C)VY(C), um ditongo 13. As regras abaixo sistematizam a descrição: Regra 13 [:J ~[:j/~ " v-:.: CV-_ V-_s CV-_s aí Aída caí saíram ruído doído saúde juízes ruína Ir. reúna aís país saís egoísta caíste 13 Ver seção 2. 2 . 1. 1. l4 Esta regra poderia ter a seguinte formulação; que descreve melhor o am- biente em estudo: [~J L[~~J/ (C) V-_' (li) Tendo em vista o nosso objetivo, preferimos a regra anterior, porque descreve um ambiente mais simples para a determinação da leitura (o dia- crítico é suficiente para determiná-la). 15 Aos vocábulos ruína e reúna, assim como a todos em que m ou n siga a vogal acentuada, aplica-se. ainda a regra 9, que nasaliza a vogal citada. 38 Regra 14 [:] o SISTEMA ORTOGRÁFICO DO PORTUGUÊS, SUAS RELAÇÕES ... _---+ [[ i] ] /(C)V-_C +01 10 [u] CV-_-nh CV-_C+o cair cairmos Caim 17 ruim juiz 18 traiu traindo construindo Raul Regra 15 [ : J V ai oito eu ou v- C_ +0 CV- _-nh ainda Airton Ailton tainha bainha rainha [ ::JJ / (C)V_(~)- cv cai sai rui mau grau riu viu doido V_(s) CV_(S) caio ais pais aumento eis sais saúde tais RAU 19 dois partiu 20 paus comprei seis seus 1(1 C+o é qualquer símbolo gráfico da lista: !_, ~, ~, !' !' ~. 17 Ver nota 15. 18Observe-se que esta palavra, como outras da lista, será acentuada em outro ambiente ortográfico (ver a regra anterior). 10 RAU ['haw 1 (República Árabe Unida). 20 A ausência do ditongo [yu] (ver seção 2.2.1. I) em português dispensa que a ortografia marque a vogal. SEGMENTO ORTOGRÁFICO E SEGMENTO FONOLÓGICO 39 No segundo caso, os padrões C)(V(C) e CV2 - V(C) podem variar livremente se átonos e em final de palavra, numa linguagem enfática ou emocional. Entretanto, a regra abaixo descreve o com- portamento da ortografia em relação à fala normal, que determina o padrão C)(V(C) pela indicação gráfica da sílaba tônica. Regta 16 [:1~ réstia (s) cópia (s) insônia (s) sábia (s) ~:JJ / XC_V({:~ # ágüe (s) (m) tênue (s) água águam Esse padrão também é indicado pelo símbolo precedente: Regra 17 [:] quota 21 quase qualidade linguarudo {:} - V iii freqüente agüenta lingüista qüinquagésimo No padrão (C) V 2 - V (C), ao contrário do que ocorre com (C)V - V2(C), a V2 não é marcada pelo diacrítico: 21 Ver seção 2.2.1.1.1 para a variação entre o ditongo Iwe l e a vogal [j6 l. 40 o SISTEMA ORTOGRÁFICO DO PORTUGUÊS, SUAS RELAÇÕES ... Regra 18 [: 1 [;~J/ (C_q,~ _v({:} ia sabia (s,m) tia (s) cultue (s,m) ias copia ( s.m.r ) lia (s,m) indivíduo (s) iam partia (s,m) pia (s,m,r) copio pie (s,m) copie (s,m) Como se verifica, o sistema ortográfico é complicado. Essa complexidade se evidencia na necessidade freqüente de recorrer ao ambiente puramente gráfico para descrever o valor dos sím- bolos. Porém, a dificuldade pedagógica resultante daí será dimi- nuída se o material de ensino levar em conta essas regras. Não concluímos, neste ponto, as considerações sobre as vo- gais altas nem sobre as vogais marginais. Os fones [i] e [u ]" [ y] e [w] podem ainda ser representados por ~ e Q, e o segundo de cada par, também por f.. Esses símbolos gráficos, por outro lado, são também usados para representar outros fones, o que é ma- téria de consideração nos próximos parágrafos. Tratemos, inicialmente, do valor fonológico dos símbolos s e Q. Afirmamos, acima, que tais elementos ortográficos também se colocam para representar as semivogais. :É o que descrevem as regras abaixo: Regra 19 [ : 1 [ [YJ] [w] / 22 ~C)V_ (~) # XC_V(§) # 22 O nome próprio Caetano é o único vocábulo conhecido onde li: em posição não-final tem valor de semivogal. Nesta posição, o referido símbolo sempre representa uma vogal: baeta, por exemplo, que se lê [ba'eta]. SEGMENTO ORTOGRÁFICO E SEGMENTO FONOLÓGICO 41 , , CVy(S) (C)Vw(§) XCyV(.§) XCwV(§) põe (s) ao nívea (s) nódoa (s) pães rio (s) lêndea (s) mágoa (s) balões Rio (s) gêmeo (s) amêndoa (s) mãe (s) cão núcleo (s) cultue (s) 23 caos sangüíneo (s) perdoe (s) balão caçoe (s) pavão Comparando essa regra com a de n.? 16, constatamos que, no mesmo ambiente, (C)V_ (s). podem ocorrer .!< ou i e Q ou Y para representar [y] e [w], respectivamente. Para a leitura, isso significa perda de tempo, pois ao aluno deve-se ensinar duas regras em vez de uma. Mas, se observarmos, pot exemplo, a alternância morfofonêmica existente nas palavras mágoa e magoa (nome e verbo), verificamos que tal afirmação se justifica apenas por um lado. O símbolo Q, em sílaba tônica ou pretônica, pode ainda re- presentar [ w] em algumas palavras de uso freqüente na fala colo- quial. Isso acontece quando, precedido das consoantes g e ç (com valor de [k]), Q é seguido pelos símbolos ª ou ~. Formalizando temos: Regra 20 Q / C Ja L 24 [ W ] vel. _ L~f coalha [ 'kwa1a] coelho ['kweJu] coalhar [kwa'Íah] coelhal [kwe'Jaw] coalhada [kwa'lada] coentro [ 'kwê'ltru ] coara [ 'kwara] goela [ 'gwéla ] coaro [ 'kwaru] esgoelar [ izgwlt'lah ] coarar [kwa'rah] patacoada [ pata'kwada ] magoar [ma'gwah] magoativo[ magwa'tivu ] 23 Ver regra 21 e a respectiva nota. 24 Neste ambiente, porém, Q representa também [16], [o] ou [u], de acordo com as regras 26 e 27, que, embora sejam de aplicação mais freqüente, des- crevem ocorrências dentro de um vocabulário mais culto (com exceção da- queles onde º representa [u]). 42 o SISTEMA ORTOGRÁFICO DO PORTUGUÊS, SUAS RELAÇÕES ... Os símbolos ~ e Q também representam as vogais altas, quan- do em posição final átona: Regra 21 [ : J [ [i I 1 /~ 25#[u] e (conj.) o (art.) soe 26 habitue caio de do perdoe cultue saio parte parto amaldiçoe suo raio fale barro abençôo flutuo raie feche ralo vôo exíguo vaie berre carro ambíguo Encontramos ainda .e. e Q representando [;,] ou [e] e [~] ou [o], respectivamente. Para descrever os fatos, temos de con- siderar quatro situações distintas: - quando representam a vogal do ditongo; - quando em sílaba tônica; - quando em sílaba pretônica; - quando em sílaba postônica. No primeiro caso, estes símbolos, ~ e Q, representam [e] e [ o ], respectivamente, não importando a sua relação com a sílaba tônica do vocábulo. As regras que dão conta desta representação são simples, pois podem ser formuladas baseando-se no ambiente ortográfico. São elas: Regra 22 [:] [[e ]][ o ] /- t} r»- 2~ Numa .outra área dialetal a regra seria: [:] D:n / ~ # Tal variação sustenta a regra e justifica a ortografia. Um estudo sobre os dialetos mais falados no país seria de grande valia para a formulação de material para o ensino de leitura. 26 O grupo de ambiente CV ~ # permite a emissão descrita na regra 19, embora a aqui considerada seja talvez a mais comum. Entretanto, se a vogal precedente é nasal, a regra 19 torna-se obrigatória. Exemplo: põe, mãe. SEGMENTO ORTOGRÁFICO E SEGMENTO FONOLÓGICO 43 cu ['ew] ou ['ow] plebeu (s) [ple'bew] couve ['kowvi] 27 escondeu [ iskõn'dew ] outro [ 'owtru] ateu (s) [ a'tew] louça [' lowsa] reumatismo [ hewma'tizmu ] poupar [pow'pah] leucócito (s) [ lew'késitu ] roubar [how'bah] leucemia [ lewsê'mia ] doutor [dow'toh] hei [ 'ey ] boi [ 'boy] lei (s) [ 'ley ] coisa [ 'koyza] leitão [ley'tãw] moita ['moyta] feira [ 'feyra ] apoio [ a'poyu] queixada [ key'êada ] açoitar (asoy'tah] meiguice [mey'gisi] apoiar [ apoy'ah] leitor [ley'toh] amáveis [a'maveyê ] louváveis [ low'vaveyã ] responsáveis [ hfÍ~põn'saveys ] hábeis ['abeys] fósseis [ 'f~seys ] Quando, diante de i ou y em sílaba tônica, ~ representa [;,] e Q representa [p], esses símbolos são marcados pelo dia- crítico ( / ): Regra 23 [: ] [:::] / i: [(P]- as réu véu idéia européia carretéis ['h,w] [ 'v;,w ] [ i'déya ] [ ewré'peya ] [ kahé'téyâ ] dói corrói jóia Tróia apóio [ 'dey ) [k~'h9iy ] [ 'z~ya] [ 'treya ] [ a'peyu ] Quando ocorrem em sílaba tônica, [" I se opõe a [e], e [ !ti] a [ o]. A leitura passa a ser determinada, então, pelo conhe- 27 As semivogais de alguns dos vocábulos desta regra e da seguinte caem na linguagem coloquial, em ambiente determinado (ver seção 2.2. 1. 1 . 1). 28 Ver comentário sobre o diacrítico que recai sobre estas palavras na seção 2.4.1. 44 o SISTEMA ORTOGRÁFICO DO PORTUGUÊS, SUAS RELAÇÕES •.. cimento lexical e pelo contexto sintático 29. Vejamos a regra abaixo: Regra 24 [o] [ e] donde [~] [~] [,] selo (v.) gelo (v.) nego (v.) sossego (v.) este (n.) ele (n.) seta [ e ] selo (n.) gelo (n.) nego (n.) sossego (n.) este (pron.) ele (pron.) destro { [e ]} [ ~] { [o ]} [? ] =1= =1= **/ [e] [o] [ ~ ] acordo (v.) jogo (v.) bolo (v.) rolo (v.) choro (v.) lotus [ o ] acordo (n.) jogo (n.) bolo (n.) rolo (n.) choro (n.) roto cocus Quando i< e Q representam uma vogal pretônica, a qualidade dessa vogal é condicionada pelo ambiente fonológico, de acordo com dois processos: assimilação e dissimilação. Esses processos se alternam, conforme o ambiente fonológico ou conforme o am- biente morfológico. Haverá, portanto, a partir daqui, regras cujo ambiente ortográfico não bastará para dar conta dos casos. E dentro do mesmo ambiente fonológico, teremos, algumas vezes, vogais cuja qualidade será determinada por assimilação à quali- dade da vogal seguinte, outras em que será a dissimilação o pro- cesso atuante, e ainda outras em que assimilação e dissimilação se alternam livremente. No último caso, um dos processos corres- ponde à linguagem coloquial e o outro, à fala num registro tenso, de quem fala ao gravador, por exemplo. 29 No caso da homonímia, a ortografia previa, até 19 de janeiro de 1972, quando entrou em vigor um novo acordo ortográfico (Lei n.? 5765, san- cionada em 18 de dezembro de 1971), o emprego do diacrítico (A), indi- cando a vogal fechada em oposição à correspondente aberta não marcada. SEGMENTO ORTOGRÁFICO E SEGMENTO FONOLÓGICO 45 Essas ocorrências serão registradas pelas regras de corres- pondência ortográfica que se seguem. Levando em conta o fato de que nem sempre o ambiente fonológico é representado na escrita, algumas das regras citadas serão formuladas com base no ambiente fonológico e não no ortográfico, como tem ocorrido na maioria das vezes até aqui. Regra 25 [ : 1--~ [:::l/- Cª velar dispersar metade erado errado pelado reparar separação [vflah] [ qisp~h'sah ] [m~'ta4i ] [ e'radu ] [~'hadu ] [p,'ladu] [hepa'rah ] [ separa'sãw ] rolar cobrar colagem provação rotação covardia propagar colaborar Regra 26 [ s 1 [ [,1 Q [j3] [i] 1 / [u] ,_,. ,_, apear [ ape'ah ] campear [kãmpi'ah] realizada [ héali'zada ] enteada [m\i'ada] ,_, [ent~'ada] 31 geada [ zi'ada ] ,_, [z,'ada] beata [ bi'ata ] ,_, [ be'ata ] doação doava soava coaxo coagular coar coado coador [h~'lah ] [kçh'brah] [k~'lazey ] [ preva'sãw 1 [ héta'sãw ] [ kevah'dia 1 [ prepa'gah ] [ k~labli'J'rah] -ª [d~a'sãw ] [dl,b'ava] [s~'ava] 30 [k~'asu] 32 [ k~agu'lah ] [ku'ah] [ku'adu] [kua'doh] 30 O contraste entre [9 I e [u I conserva-se aqui pela existência de um homônimo na língua: suava [su'ava I. Admite-se, porém, a forma [so'ava I que quebra a regra por influência da forma tônica soa ['soa I. 31As transcrições postas em primeiro lugar correspondem sempre às emis- sões da fala coloquial. 82 O símbolo Q, neste ambiente, também pode ter o valor de [w I, o que resulta na modificação do acento (ver regra 20 e respectiva nota). Regra 27 46 o SISTEMA ORTOGRÁFICO DO PORTUGUÊS, SUAS RELAÇÕES .•. ~ º pegar Pelé Teté celeste reeditar reelogiar papelote pelota reproduzir velocímetro reorganizar geologia reordenar geografia Regra 28 33 [~] [9'] [u 11 CC) Vab 1-- CC) [9'~ l- CC) [~~[[ ~ 1 [p~'gah ] [ p~'l\t ] [ t~'t~ ] [ s~'l,s~i ] [ heedi'tah ] [ ht!ill~zi'ah ] ~ ,...., Totó [Wt!$ ] xodó [s(fd~ ] vovó [ vrp'v~] protótipo [ pre'tétípu ] coordenar [ keehdê'nah ] cooperar [ keepé'rah J cordel [k~h'd~w ] hotel [ rp't~w] moleque [ mu'lekí ] -- [ mé'léki ] colher [ ku'Iéh ] -- [k(n~h] poeta [ pu'eta ] -- [ pé'eta ] coerência [ k~frensia ] 34 coerção [ kçéh'sãw ] coeficiente [ kc1J~fisi'en\i] [ pape'Iéti ] [ pe'lcta ] [ hepredu'zih ] [ v~l(fsTm~tru] [ hééhgãni'zah ] [ zt~lu'zia ] [ hééhdê'nah ] [ z~~gra'fia ] [ ~ ] [['] 1 / -.Q [ ~ ] _ CV ** 85 33 Neste ambiente, encontramos apenas um exemplo em que [;. I e [i I va- riam: melhor [mi'l~h I ~ [mf1~h I. Podemos dizer o mesmo da variação [e I~ [i l, cuja única ocorrência é: leoa [li'oa I~[Ie'oa I (ver regra 30). Em ambos os casos, a primeira emissão corresponde ao registro coloquial. Essa variação, que ocorre também em outras regras (ver regras 26, 28, 30 e 31), não se restringe ao dialeto da autora e está por merecer estudos mais aprofundados. 34 O símbolo Q, neste ambiente, pode ter o valor de [w I (ver regra 20 e respectiva nota). 85 A presente regra pode. ser substituída
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