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SILVA, Myriam Barbosa da - Leitura, Ortografia, Fonologia

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• Myrian Barbosa da Silva
Mestre em Lingüística pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Professora de Língua Portuguesa da
Universidade Federal da Bahia
LEIl'URA,ORma
E FONOLOGIA
•
São Paulo, Editora Ática, 1981.
F
•
•
2 INTRODUÇÃO
b) Análise do sistema ortográfico em relação ao sistema fo-
nológico de uma variedade do português e levantamento
dos problemas gerados pela inadequação daquele a esse.
Nosso objetivo, nessa parte do trabalho, não é formular crí-
ticas à ortografia vigente, mas chamar atenção sobre as dificuldades
que poderão se colocar para o alfabetizando.
Portanto, nossa intenção é, tão-somente, tornar mais clara a
situação pedagógica e fornecer ao autor de materiais didáticos uma
análise científica, da qual possa lançar mão durante o seu trabalho.
Para isso, formularemos regras de equivalência fonológico-
-ortográfica, cujo domínio constitui requisito indispensável no pro-
cesso da leitura. Procuramos sempre determinar o ambiente orto-
gráfico, com o qual o leitor tem contato direto, só apelando para
o ambiente fonológico quando isso for absolutamente necessário.
Consideramos, para o estabelecimento dessas regras, uma enti-
dade ortográfica - a letra - e uma entidade fonológica - o fone.
O fone é, neste trabalho, a entidade fonológica que se dis-
tingue pelos seus traços fonéticos mais relevantes. Isto é, os traços
que constituem um fone são considerados de uma maneira aproxi-
mada, sem levar em conta a variação de realizações, posto que
'nenhuma emissão é idêntica a outra. Na fixação dos traços de cada
fone, usamos o critério articulatório.
A formulação de regras, tomando por base essa entidade fono-
lógica, não enquadrará a nossa análise em nenhuma corrente lin-
güística específica, mas, aproximando-se mais da realidade física
da fala, promoverá oportunidade de se discutir melhor o problema
pedagógico e facilitará a compreensão por parte de professores e
outros interessados que desconheçam teoria lingüística.
I A LEITURA - O PROCESSO DE APRENDIZAGEM SOB
O PONTO DE VISTA LINGVtSTICO:
SUAS FASES SEGUNDO FRIES
A maioria dos defeitos que comprometem as nossas cartilhas,
conseqüentemente a aprendizagem, deriva da não compreensão
da natureza lingüística do processo da leitura.
Os autores de cartilhas, geralmente muito preocupados com
métodos norteados por princípios psicológicos e pedagógicos, nem
mpre têm em mente que o processo de aprendizagem da leitura
essencialmente um processo lingüístico. Freqüentemente encontra-
mos nos prefácios das cartilhas ou nos manuais de orientação ao
professor uma explicação detalhada do método e de suas bases
icopedagógicas, mas não descobrimos no corpo do trabalho os
redutos de interesse efetivo com o material da língua. A ordem
apresentação e até mesmo a seleção do conteúdo seguem cri-
t6rios extralingüísticos, quando não seguiam pela intuição do autor
ou por sua tradição escolar. O trecho seguinte ilustra o que dis-
mos, revelando o critério extralingüístico de apresentação do
material:
As palavras desta cartilha são sempre as mais comuns ou as mais
usadas em todas as regiões do país. A ordem de apresentação das
letras atende à possibilidade de formação destas palavras. I
Na introdução de outra cartilha 2, o autor explica o método
ser utilizado e distribui em unidades pedagógicas as letras do
líubeto ("fonemas", para ele) e as palavras onde se inserem.
fila discriminação, entretanto, refere-se apenas às consoantes. As
I AllcNur de afirmar que o vocabulário escolhido é o mais usado em todo
II Illl(~, não consta que se baseie em nenhuma pesquisa de frequência. A
urdem de apresentação das letras, na realidade, só se refere às con-
IIIl1l11fl'~,pois as vogais são apresentadas, nas duas primeiras lições, isoladas
1111 combinadas com outras vogais, enfim, sem obedecer a nenhuma progra-
mll~l\o (LoURENÇO FILHO, M. B. Cartilha do povo, 2089. ed. São Paulo,
M"lhornmentos, 1970. p. 2.).
WI'IINECK, Vera Yolanda Pacheco. Nossa amiguinha Sílvia. I.a série.
"Iv('i~ I c 2, 1. ed. Rio de Janeiro, Livros e Cadernos, s.d. p. 5.
4 A LEITURA - O PROCESSO DE APRENDIZAGEM ••.
vogais e as seqüências de vogais são deixadas de lado (não são
consideradas "fonemas"?) e sua introdução ocorre sem nenhuma
.ordenação aparente. Basta considerar as "palavras-centro" que
os alunos devem fixar na primeira unidade (mamãe, veio, dia,
alva) para comprovar o nosso comentário. Todavia, percebe-se
nessa cartilha um embrião de planejamento dos dados lingüísticos,
ausente na outra.
A seleção de palavras de uma cartilha comprometida com
objetivos outros que não os do ensino da leitura (campanhas
religiosas, políticas, de saúde, etc.) dificulta e prejudica a orga-
nização dos dados lingüísticos. Observe-se, no texto abaixo, a
lista de palavras escolhidas para introduzir a leitura, bem como
o critério utilizado:
Os cartazes apresentam vários aspectos das necessidades básicas,
principais, do homem. Essas necessidades básicas são as indispen-
sáveis, as essenciais para que tenha uma vida digna e construtiva.
As palavras que representam essas necessidades são: vida, saúde,
pão, trabalho, mão, casa, amor, fé, bola, dinheiro, violão, povo. 3
Essa cartilha segue a filosofia educacional de Paulo Freire,
que vê na alfabetização um meio e não um fim, embora se afaste
dela na metodologia e na seleção do vocabulário. Freire, embora
subordine o ensino da leitura a seus objetivos, demonstra uma
preocupação com "as dificuldades da linguagem" 4, que nos parece
ausente no material didático citado.
Outro problema muito comum às nossas cartilhas, não mais
referente à apresentação do material Iingüístico, mas ao próprio
método, é a subordinação do ensino da leitura ao da escrita,
como se fossem processos idênticos.
Encontramos, num volume destinado ao professor, o texto
que transcrevemos abaixo:
O aluno aprenderá a ler escrevendo.
Ler é reconhecer a palavra escrita. Se o aluno reconhece o que
escreve, evidentemente estará lendo. 5
3 CUNHA, Vilma & VAZ, Maria Dulce C. Pires. Roteiro; alfabetizador. Mi-
nistério da Educação e Cultura. Movimento Brasileiro de Alfabetização.
Rio de Janeiro, Bloch, s.d. p. 20.
4 CARDOSO,Aurenice. Conscientização e alfabetização. Estudos Universi-
tários; revista de cultura da Universidade do Recife, n. 4, abr./jun. 1963.
p. 74. .
5 KRUEL, Yolanda Bentim Paes Leme. Guia da professora aliabetlzadora.
1. ed. Porto Alegre, Globo, 1969. p. 3.
A LEITURA - o PROCESSO DE APRENDIZAGEM. .• 5
Certamente muitos terão sido alfabetizados desse modo. Não
obstante, terão percorrido o caminho mais longo e mais difícil,
pois se esforçaram por vencer simultaneamente duas fases distintas:
a fase da percepção (compreensão da idéia transmitida através de
sinais) e a fase da produção (transmissão desta idéia através dos
mesmos sinais).
O homem, ao aprender a falar, respeita estas duas fases. Num
período anterior ao início da fala (codificação do pensamento
para a comunicação), a criança começa a compreender os sinais
emitidos pelos que a rodeiam (decodificação da mensagem alheia).
O mesmo se pode afirmar da aprendizagem de uma língua estran-
geira: a fase de compreensão antecede a da produção, e o conhe-
cimento passivo da língua é sempre maior que o ativo. Isso acon-
tece porque as regras que levam um indivíduo a compreender a
mensagem são mais simples que as regras que o levarão a pro-
duzi-la 6.
Tomemos um exemplo. Para alguém compreender a mensa-
gem transmitida pela palavra copo será necessário que associe a
imagem desse objeto à imagem acústica correspondente. Para emi-
tir as mesmas ondas sonoras, será preciso mais que simples asso-
ciação. Ele terá de aprender a utilizar seus órgãos vocais de tal
forma que produza a mesma sensação auditiva no ouvinte, o que
vale dizer que terá de aprender a produzir várias modificações
nos órgãos da fala em uma seqüência determinada.Da mesma forma, o processo de aprender a ler implica um
conjunto de regras diferentes das que levarão o indivíduo a es-
crever. As regras para a leitura serão mais simples, pois são
regras de reconhecimento. Por que, então, iniciar a alfabetização
pela escrita, se este constitui o caminho mais difícil e portanto
mais longo?
A leitura e a percepção dos sons da fala são, como vimos,
atividades paralelas, ambas processo de decodificação. Contudo,
uma difere da outra pelos símbolos a decodificar. O ouvinte de-
codifica símbolos do sistema fonológico; o leitor, símbolos do
sistema ortográfico.
Aprender a ler não significa adquirir um novo sistema lin-
güístico, mas um novo sistema de sinais. O alfabetizando já do-
mina as regras do léxico, da sintaxe, da morfologia e da fono-
logia de sua língua nativa. Para aprender a ler não precisará de
novos conhecimentos neste campo. Seu trabalho será apenas de
o Ver, por exemplo, seção 2.1.3.4.
6 A LEITURA - O PROCESSO DE APRENDIZAGEM...
aprender as regras ortográficas que, na escrita, substituem as regras
fonológicas.
A diferença fundamental entre a modalidade oral e a escrita
da língua está, portanto, no meio físico condutor da mensagem:
os símbolos vocais ou os símbolos gráficos.
A transferência do meio sonoro (já conhecido) para o meio
visual (desconhecido) constitui a primeira fase do processo de
aprendizagem da leitura. Essa transferência será tanto mais fácil,
quanto mais simples for a relação entre as regras fonológicas e
as regras ortográficas, e quanto maior for a compreensão das
dificuldades provenientes dessa relação, pelo alfabetizador.
A segunda e a terceira fase da leitura, de que oportuna-
mente nos ocuparemos, referem-se a traços da fala não codificados
pela escrita.
1.1 Fase da transferência
Descrevemos a fase da transferência como o período em que
o alfabetizando transporá o seu conhecimento da modalidade oral
da língua para a modalidade escrita. Vale dizer que, nessa fase,
ele será não só levado a observar que os sinais sonoros têm equi-
valência gráfica (embora imprecisa), e portanto a mensagem po-
derá ser recebida também por meio de sinais escritos, mas tam-
bém será treinado a decodificar esses sinais, ou seja, a ler.
Não reconhecer esta ponte entre os dois sistemas, fonológico
e ortográfico, tem constituído um dos maiores enganos das nossas
cartilhas. A aprendizagem da leitura tem sido considerada como
a aquisição de um novo conhecimento. Ensina-se a letra ou,
mais modernamente, a palavra e a frase, ao contrário da atitude
recomendável: apresentar ao aluno o sinal escrito que representa
a palavra que ele reconhece quando expressa oralmente, introduzir
a novidade com base no conhecimento já adquirido.
Desavisadamente, alguém poderia objetar que autores mais
atualizados visam, no seu planejamento, ao fonema e não à letra
em si. Inicialmente, de pouca valia será fazer um planejamento
em termos apenas da entidade fonológica. Se tal ocorresse, cairía-
mos no inverso da atitude tradicional, que só considerava a enti-
dade ortográfica, e igualmente não estaríamos dando nenhuma
contribuição para o ensino da leitura. Para facilitar o trabalho
de alfabetização, será necessário considerar ambas as entidades:
FASE DA TRANSFERÊNCIA 7
a que o aluno já conhece e a que lhe será apresentada pelo pro-
fessor.
Porém, na maioria dos casos, nem um fato nem outro vem
ocorrendo, como poderia parecer. O que realmente acontece é
um uso impróprio da terminologia técnica para denominar a enti-
dade ortográfica 7.
Na verdade, pouco ou nada mudou em relação ao material
lingüístico das cartilhas: é a letra 8 ou a palavra o elemento apre-
sentado e não a representação de elementos fonológicos a serem
transferidos. Não há programação em termos de elementos fono-
lógicos 9 mas de elementos ortográficos, abstraídos das suas rela-
ções com as entidades fônicas. A palavra tijolo, por exemplo, é
utilizada, numa cartilha 10 preparada no início da década de 70,
como o primeiro cantata que o aluno terá com a palavra escrita e
já apresenta a letra º com dois valores distintos: [o] e [u]. Fato
semelhante, talvez mais grave, pode ser verificado em outra car-
tilha 11, também da mesma época: a letra ç é apresentada em
uma única lição com o valor de [k] e [s].
Decorre desta concepção do ensino da leitura a perda de
tempo, o insucesso e a perda de motivação para aprender a ler,
o que tem levado um grande número de semi-alfabetizados a desis-
tirem da empresa. Imaginemos a confusão do aluno que tem diante
de si uma forma gráfica ora lida como [o l, ora lida como [u],
ou ainda de outra que pode ser lida de duas formas: como [k]
e como [s]; sem que lhe seja dada a oportunidade de descobrir
(não de se informar sobre) a regra.
7 Ver WERNECK, op. cito Embora demonstre uma visão clara com respeito
às consoantes (letras), ao considerar seus múltiplos valores fonológicos em
ambiente determinado, esquece-se, inexplicavelmente, das vogais, o que nos
leva a concluir que é pouco rigorosa a organização do material didático,
mesmo revestindo-se de uma nomenclatura especializada.
8 Ver, por exemplo, LOURENço FILHO, op. cit., p. 3.
9 Conhecemos apenas' uma cartilha em língua portuguesa que faz exceção
ao que dissemos. Trata-se da Cartilha ABC, produzida por um grupo de
lingüistas para o MEC, no que eles denominaram "Programa de Emergên-
cia"; foi publicada nas oficinas da revista O Cruzeiro e por esta distribuída.
O material lingüístico da referida cartilha baseia-se nos resultados de uma
pesquisa realizada no Estado de Minas Gerais (Levantamento lingüístico de
Leopoldina. Educação e Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 3(9), dez. 1968).
10 SILVA, José Carlos Monteiro da et alii. Livro de leitura; alfabetização.
Ministério da Educação e Cultura. Fundação Movimento Brasileiro de Alfa-
betização - MOBRAL. São Paulo, Abril Cultural, s.d. p. 4.
11 CuNHA, Vilma. Op. cit., p. 17.
8 A LEITURA - O PROCESSO DE APRENDIZAGEM .••
Para que a fase da transferência seja vencida sem desperdício
de esforço ou tempo, temos de programar o material lingüístico
de tal forma que a aquisição das regras da leitura seja facilitada.
Nessa programação três fatores se revelam importantes:
1) os elementos do sistema fonológico que são substituídos
por sinais gráficos e, portanto, que devem ser transfe-
ridos;
2) o material lingüístico utilizado como meio de transferir
tais elementos;
3) os critérios na organização do material lingüístico para
a preparação de cartilhas.
1.1.1 Elementos da transferência
Na fase da transferência, a tarefa essencial é estabelecer há-
bitos de resposta pronta diante do novo meio estimulador (as
formas gráficas), partindo dos hábitos de resposta diante de formas
fónicas, já plenamente adquiridos. Por meio desses, chegaremos
àqueles.
O sistema fonológico ainda pode conter traços que não têm
equivalência na escrita 12. Por sua vez, a escrita pode conter sinais
sem equivalência fonológica como as aspas, o travessão, o pará-
grafo, ·etc. 13.
Em seu já citado livro, Charles Fries dá acentuada impor-
tância a três aspectos na correspondência do sistema fonológico
e do sistema gráfico:
1) a seqüência dos elementos representativos do signo lin-
güístico nos dois sistemas;
a forma física utilizada como veículo da mensagem;
o padrão da palavra e o padrão ortográfico - as pala-
vras são identificadas, na fala, por padrões (word-pat-
terns) que se constituem de uma seqüência única de sons.
Na língua escrita, tais padrões são representados por
"padrões ortográficos" (spelling-patterns) formados por
seqüência de letras.
Assim, a tarefa de aprender a ler é "desenvolver hábitos ( ... )
de pronto reconhecimento dos traços identificadores dos padrões
2)
3)
12Yer seções 2.1.3.2 e 2.4.
13Yer seções 2.1.3.4 e 2.4.
FASE DA TRANSFERÊNCIA 9
ortográficos que representam os padrões vocabulares que ele co-
nhece"14.
Caberia, desse modo, aos autores de material de leitura ana-
lisar a correspondência entre os padrões, a fim de descrever os
traços identificadores que serão a matéria das cartilhas.
Consideremos, de início, dois elementos a transferir:
1.0) a seqüência temporal da fala para a seqüência espaço-
-direcional da escrita, de que nos fala Fries;
2.°) a forma sonora da fala para a forma gráfica da es-
crita, o que, de um modo geral, constitui os itens 2 e
3 apontados acima.
1 . 1 . 1 . 1 A seqüência temporal e a seqüência espaço-dírecíenal
Possivelmente pouquíssimos professores e autores de cartilhas
já pensaram em dedicar algum tempo do seu programa de leitura
ao treinamento da direção em que os padrões lingüísticos se
dispõem na área visual.
Esta questão vem sendo ignorada, como se a seqüência es-
paço-direcional (na nossa língua: horizontal, da esquerda para a
direita, começando de cima para baixo) fosse conseqüência da
natureza física do indivíduo, como o é estar de olhos abertos para
poder ler.
A seqüência no espaço seguindo uma determinada direção
não provém de nenhuma necessidade física do homem. Os olhos
estão aptos a correr o papel não só da esquerda para a direita,
como da direita para a esquerda; tanto no' sentido horizontal,
quanto no vertical. Para' comprovar isto, basta lembrar os povos
orientais, que escrevem em outras direções: na escrita árabe con-
serva-se o sentido horizontal, mas escreve-se da direita para a es-
querda; entre os chineses a escrita é feita em colunas de cima
para baixo a partir da direita. Por ser um elemento introduzido
arbitrariamente na escrita, a direção é matéria de aprendizagem
e portanto deverá ser objeto de treinamento.
A seqüência no tempo e no espaço é elemento indispensável
à comunicação lingüística. Se enumerarmos os fones da palavra
galo em outra seqüência, poderemos obter palavras como lago,
gula. Se usarmos em outra seqüência as letras que representam
estas palavras, podemos ainda ter gola. Todavia, não somente a
direção particular a cada língua de seqüenciar seus elementos grá-
14 FRIES, op. eit., p. 170.
10 A LEITURA - O PROCESSO DE APRENDIZAGEM ..•
ficos justifica este treinamento. Trocar a direção das letras, das
sílabas, são casos comuns entre os alunos neo-alfabetizados. Não
raro, também, a insegurança no reconhecimento da direção das
formas provoca um retardamento no ritmo da leitura. O aluno
tem de habituar-se a considerar a direção das formas um fator
relevante na escrita, como já aprendeu a considerar, na fala, a
seqüência da forma fônica.
Portanto, como observa Fries, criar o hábito de ver as formas
escritas e as partes das formas escritas numa determinada direção
é uma das primeiras tarefas de um programa de leitura. Para
o estabelecimento destes hábitos, Fries sugere exercícios de que
falaremos na seção seguinte.
1.1.1.2 A fonna sonora na fala e a fonna gráfica na escrita
Para transferir a forma sonora para a forma gráfica, temos
de abordar três aspectos distintos do sistema fonológico e deter-
minar sua correspondêricia na escrita: o aspecto físico da corrente
da fala (o som propriamente dito); o som como elemento signi-
ficativo, no sistema de comunicação (as entidades segmentáveis);
traços que incidem sobre a corrente da fala modificando a men-
sagem (as entidades supra-segmentais).
A forma física do som se relaciona com a letra, forma física
da escrita. Esse relacionamento pode levar a uma atitude peda-
gógica muito difundida entre os nossos antepassados e, ainda hoje,
utilizada: o ensino de letras isoladas 15.
Com muita razão, técnicos em educação têm repudiado este
método. Embora o elemento fonológico em questão deva ser trans-
ferido para a escrita, não será esta a maneira recomendável de
realizar a transferência, desde que o fone isolado, como a letra
na mesma condição, não tem significado para o aluno 16.
Fries propõe, não obstante, que não se abandone totalmente
o ensino das letras. Ele aconselha iniciar-se a alfabetização com
15 "É preciso que o aluno adulto saiba - e o alfabetizador deve dizer-lhe
_ que todo som é representado graficamente, isto é, tem uma 'escrita',
correspondendo a um sinal ou vários sinais gráficos.
Assim:
o som a se 'escreve' (representa) a
o som e se 'escreve' (representa) e
etc." (CUNHA, Vilma. Op. cit., p. 20-1.).
16Discutiremos mais longamente este assunto na seção 1. 1 .2 deste trabalho.
FASE DA TRANSFERÊNCIA 11
um treinamento que leve o' aluno a distinguir as formas gráficas
entre si, porém sem relacioná-las com seu valor fonológico. Insiste
em distingui r sua proposta do método tradicional:
Devo insistir vigorosamente que, nesta prática de desenvolver há-
bitos automáticos de reconhecimento das formas das letras, não
deve haver nenhuma tentativa de relacionar as letras com os sons. 17
:É, portanto, a forma física das letras que o preocupa. Ele
considera treinar o reconhecimento da forma das letras uma etapa
importante que "evitará a confusão e a lentidão na leitura".
De acordo com o citado autor, deveriam ser organizados
exercícios com este objetivo, considerando primeiro as letras
maiúsculas sem adorno 1R. As minúsculas e as do tipo manuscrito
deveriam ser adiadas até o processo de leitura estar encaminhado.
Mesmo entre aquelas deveria subsistir uma ordenação:
I.O) as formadas apenas de barras;
2.0) as formadas de barras e círculos;
3.0) as formadas de círculos ou parte deles.
O contraste se faria, então, primeiro, pelo número de barras,
depois, pela sua posição (vertical, horizontal ou inclinada) e pelo
tamanho relativo da parte do círculo combinado com as barras.
Esses exercícios têm como objetivo levar os alunos a perce-
berem a diferença entre as formas das diversas letras e a direção
peculiar da escrita de sua língua. Atentos para tais diferenças,
os alunos estariam mais aptos a perceberem, por exemplo, o con-
traste entre formas como bola e bota, habilidade que, certamente,
favorecerá a aprendizagem da leitura.
Inicialmente, duas letras são apresentadas aos alunos que
devem ser treinados a reconhecer se são idênticas ou não (exer-
cício A). Os exercícios que se seguem a este treinamento jogam
não somente com a identificação das formas, mas também com
a direção da escrita. Constam de dois grupos (ou mais) de duas
(ou mais) letras (exercícios B e C). Os alunos deverão identi-
ficar os grupos que são iguais ·na forma e na ordem de suas
figuras. Para evitar a previsibilidade na resposta, algumas vezes
as combinações se repetem.
17 FRlES, op. cit., p. 194.
18Letras maiúsculas conhecidas como tipo bastão.
12 A LEITURA - O PROCESSO DE APRENDIZAGEM .••
Vejamos alguns exemplos dos exercícios formulados por
Fries 19:
Ex. A Ex. B Ex. C
I I IF IT FIT TIF
T T TF TT FIF FIE
I I TF FT 1FT IFF
T I TT FF LEF IFE
F T IT TI FEl FEl
F F FT TF EFT TFE
E F EF FE ElE ETE
o único elemento lingüístico que tal treinamento possibilita
transferir é a seqüência temporal de que nos ocupamos na seção
anterior. Posto que nos referidos exercícios não se faz correlação
dos sinais gráficos com o sistema fonológico, não se pode atri-
buir a eles a função de uma outra transferência.
A distinção das formas gráficas é, todavia, uma etapa que
o aluno deve vencer. Também para aprender a língua na sua
modalidade oral precisa-se distinguir a forma física do som, o
que, nessa fase, se faz comparando formas cheias de significado
(palavras) .
Evidentemente que, se esta etapa já tiver sido vencida ao
iniciar-se a alfabetização propriamente dita, a transferência do
sistema fonológico para o sistema ortográfico será facilitada.
A partir daí, cabe aos pedagogos observar a viabilidade de
tais exercícios do ponto de vista didático e modificá-los de forma
a não se tornar tarefa enfadonha para os alunos.
1 . 1 . 1 . 2 .1 O sistema fonológico e o sistema ortográfico
Sob este título abordaremos o segundo aspecto dacorrente
sonora de que falamos acima: o som como elemento significativo
no sistema de comunicação.
O sistema ortográfico pretende substituir a corrente sonora.
Pretende codificar o sistema lingüístico como o faz a fala. De
acordo com o elemento lingüístico tomado como a menor unidade
19 FRIES, op. cit., p. 192.
FASE DA TRANSFERÊNCIA 13
representável, temos diversos tipos de escrita: a palavra (unidade
conceptual), a sílaba, o fone ao e o fonema.
A escrita logográfica toma a palavra como a unidade menor
de representação. A cada palavra corresponde um símbolo. A
escrita é aí uma lista interminável de símbolos. Esse sistema é
apenas parcialmente utilizado pela nossa escrita. Os símbolos em-
pregados para representar os numerais não se referem a sons da
língua, mas diretamente à sua denominação: 1 (um), 8 (oito) ,
X (dez), etc. As formalizações de operações também utilizam este
método: = (igual), -7- (dividido por), etc.
Há ainda a possibilidade de se formular uma escrita simbo-
lizando parte menor da fala: o som.
Se o sistema representa todas as diferenças físicas do som
da fala, temos uma escrita fonética. Um alfabeto dessa natureza,
por exemplo, registraria a palavra casa com quatro símbolos dife-
rentes, pois anotaria a diferença entre os sons [a 1 e [~l, um
mais aberto que o outro.
Um alfabeto fonêmico representaria esses dois elementos fo-
nológicos por um só símbolo, pois os considera variantes de um
mesmo fonema ~l. Nesse tipo de escrita, o ótimo ortográfico con-
siste em estabelecer um só símbolo para um e somente um fonema.
Essa concepção do ótimo ortográfico foi, por muito tempo, aceita.
Hoje, porém, ela é posta em questão com uma nova proposta:
não registrar as operações fonológicas, ao contrário do que se
faria do ponto de vista da escrita fonêmica.
Tomemos um exemplo do português, que esclarecerá ambas
as posições:
O morfema rapaz tem três realizações possíveis. Convencio-
nemos que z, s e j representem [z l, [s 1 e [z 1 respectivamente
e teremos uma- escrita para cada realização: rapaz, rapas e rapaj
(por exemplo, rapazes ou rapaz amigo, rapas feio, rapaj bonito).
Tal solução é, por si só, antieconômica e redundante, de vez que
teríamos três escritas para um mesmo morfema e que a mudança
se realiza, para o falante, automaticamente, como se verifica tam-
bém na operação [t] ~ [\] / _ [ i 1 (por exemplo, bato, bati).
Observamos, então, que o mesmo princípio que aconselha a
registrar a primeira mudança (porque [z l, [s 1 e [z] são conside-
rados fonemas distintos da língua portuguesa) proíbe a represen-
20 Ao usarmos fone nesta seção, referimo-nos a qualquer som vocal.
~1 Para conceituação ver: PIK.E, Kenneth. Phonemics; a technique for redu-
cing languages to writing. Ann Arbor, The University of Michigan Press.
1968.
14 A LEITURA - O PROCESSO DE APRENDIZAGEM..•
tação da última (pois [\ J e [t J são meras variantes de um só
fonema). A ortografia atual dá a esses casos específicos a mesma
solução: não registra nenhuma mudança. Vejamos:
{
[ z J} rapaz amigo
~ ~ [s J rapaz feio
[ z J rapaz bonito
1~ {[tJ}[n
bato
bati
Morris Halle discute tal problema sob o ponto de vista mor-
fofonêmico e propõe um princípio com algumas limitações. Diz
ele:
As ortografias não devem conter símbolos que reflitam a operação
de regras fonológicas. 22
Não obstante, há dois casos em que considera melhor violar
o princípio:
1) quando a mudança se opera por uma determinação de
fronteiras outras que não as de morfema;
2) quando o contexto condicionador não pode ser demons-
trado na ortografia.
Outros ainda têm-se mostrado favoráveis a essa nova visao:
Paul Powlison 23 considera desejável que a ortografia não
registre as mudanças morfofonêmicas, caso sejam previsíveis pelo
ambiente fonológico ou sintático, principalmente quando se trata
de uma assimilação ao ponto de articulação. Os símbolos I! ou m,
quando não representam as consoantes nasais 24, se colocam bem
como ilustração de não obediência a esse princípio.
Comentando o artigo de Powlison, Sarah Gudschinsky 25 con-
sidera o referido procedimento "uma opção viável".
Halle 26, que dedica um artigo a discutir esse problema, ainda
não o considera solucionado. Admite a necessidade de estudos
experimentais com vários tipos de ortografias para decidir a vali-
dade de suas especulações e para ampliá-las.
22 HALLE, Morris. Some thoughts on spelling. (Cópia mimeografada, s.d.)
23 POWLlSON, Paul S. Bases on formulating an efficient orthography. The
Bible Translator, 19(2), abro 1968.
24 Ver regra fonológica 4, seção 2.3.2.
25 GUDSCHINSKY,Sarah C. More on formulating efficient orthographies. The
Bible Translator, 21 (1), jan. 1970.
26HALLE, op. cito
FASE DA TRANSFERÊNCIA 15
Fries 27 não examina nenhuma dessas questões, mas critica
os que consideram confuso o alfabeto do inglês, dizendo que desa-
visadamente assim o fazem por terem em mente um critério íonê-
mico. Acrescenta ainda que o padrão ortográfico contém traços
identificadores do padrão vocabular, possíveis de serem estabele-
cidos por análise 28. Por exemplo, o traço ortográfico que indi-
caria a qualidade da primeira vogal em palavras como hate, [ate,
etc., em contraste com hat, fat, etc., seria o ~ final das primeiras.
Reportando-nos ao português, vimos, pelos exemplos cita-
dos, que seu sistema ortográfico varia de comportamento diante
das operações fonológicas. Examinaremos com mais detalhes o
sistema ortográfico nas seções 2. 1 e 2. 3 deste trabalho.
A questão está, assim, aberta para novas investigações lin-
güístico-pedagógicas. Desde que o nosso sistema ortográfico apre-
senta os dois tipos de solução, o professor poderá contribuir obser-
vando qual dos dois é mais facilmente assimilável.
Mas não são somente dessa natureza os problemas que po-
dem advir da relação entre ortografia e sistema fonológico na fase
de transferência. As soluções ortográficas mostram-se, muitas
vezes, redundantes por se manterem fiéis ao sistema fonológico
da língua num estágio anterior ou por razões puramente etimoló-
gicas. Faz-se necessária, então, uma análise das relações entre a
ortografia e a fonologia, não somente para conhecer-lhes a natu-
reza, mas também para determinar o material lingüístico de trans-
ferência e diagnosticar problemas de outra espécie.
1.1.1.2 .2 Traços supra-segmentais
O problema pedagógico dos traços supra-segmentais difere
dos tratados anteriormente. Estes elementos não têm sido regis-
trados na escrita de vários idiomas, e lingüistas têm mesmo con-
testado as vantagens pedagógicas de codificá-los, embora não des-
conheçam o seu papel na linguagem oral.
Powlison 29, por exemplo, opina contra representá-los na es-
crita, em favor de maior simplicidade do sistema ortográfico. Ele
argumenta que os traços supra-segmentais trazem, geralmente,
informações que os segmentais já carregam, para sobrepor-se ao
ruído ambiente. E, desde que este fator não tem influência sobre
a escrita, a redundância não se justificaria.
27 FRlES, op. cit.
28Ver seção 1. 1. 1 .
2H POWLlSON, op. cit.
16 A LEITURA - O PROCESSO DE APRENDIZAGEM .••
Sarah Gudschinsky 110 discorda de Powlison, cuja afirmação
julga "injustificável" e "não provada". Considera que tal posição
colabora com a "nossa tendência preguiçosa" de não simbolizar
na ortografia os elementos da língua que são difíceis de escutar
e analisar.
Para o ensino da leitura das línguas com ortografia já esta-
belecida, esta discussão é, de certo modo, inútil, pois todo o pro-
blema pedagógico vai depender da posição adotada por aquele
sistema, marcando ou não os traços supra-segmentais. Quando
eles são marcados, temos mais um elemento de transferência. No
caso contrário, os alunos terão de aprender a supri-los, apoiando-
-se nos elementos que a ortografia oferece.
Reservamos para a segunda parte deste trabalho a tarefa de
verificar o comportamentodo sistema ortográfico do português
diante desses elementos do sistema fonológico.
1.1.2 O material lingüístico das cartilhas
Os elementos de transferência não podem ser introduzidos
isoladamente aos alunos, pois são, por si só, vazios de significado.
As cartilhas que procedem desobedecendo a esse princípio espe-
ram de seus alunos um grau de abstração absurdo e um seccio-
namento da corrente da fala só justificável como um artifício 31
para representar a língua oral.
A menor unidade lingüística que o alfabetizando, adulto ou
criança, reconhece é o vocábulo. Tentar impor uma divisão da
palavra em partes menores é contraproducente para o rendimento
da aprendizagem, pois constitui uma abstração, carga extra, des-
necessária na mente do aluno.
Através de outros caminhos (as ciências psicopedagógicas),
professores chegaram à mesma conclusão: a palavra é o menor
~O GUDSCHINSKY, op. cito
at "Um ato (unidade) da fala é uma série de distúrbios no meio condutor,
uma série de mudanças musculares e nervosas. Uma vez executado o ato,
ele termina para sempre. Não podemos segmentá-lo mais que podemos seg-
mentar o nascer do sol. O que podemos fazer é registrar o acontecimento
com vários graus de aproximação de uma réplica idealmente completa (e
por isso impossível). O registro pode ser de dois tipos. Pode ser uma série
de fotografias de raios X, uma gravação, um espectrograma. Ou, em vez
de um registro físico, como o precedente, pode ser uma representação sim-
bólica do acontecimento. Em qualquer dos casos é somente o registro do
ato de falar que pode ser segmentado e manipulado." (BACH, Emmon. An
introduction to transformational grammar, New York, Holt, Rinehart and
Winston, 1964.) (O grifo é nosso.)
FASE DA TRANSFERÊNCIA 17
elemento lingüístico capaz de motivar o aluno. Apesar disso,
muitas cartilhas ainda apresentam vogais e consoantes, sílabas,
noções de grupos vocálicas, etc., antes mesmo que os alunos man-
tenham o seu primeiro contato com a palavra escrita.
Para ilustrar, numa dessas cartilhas a2, as letras do alfabeto
- divididas em vogais e consoantes -, os diacríticos e os sinais
de pontuação são sistematizados nas seis primeiras lições. Somente
na sétima aula aparece um texto com significado, aproveitando
as vogais que os alunos já "sabem escrever" (a leitura é depen-
dente da escrita), juntando as consoantes que ora aprendem.
Transcrevemos abaixo alguns trechos da sexta aula da cartilha
em questão:
Hoje vamos aprender os ditongos.
Vocês sabem que cada vêz (sic) que abrimos a bôca (sic) para dizer
uma palavra, é uma sílaba. Ex. CA- VA-LO esta tem 3 sílabas.
LATA esta tem 2 sílabas. VI-a-LA, 3 sílabas.
Como hoje não temos letra nova para aprender vamos conhecer
alguns acentinhos e sinais de pontuação que ajudam a compreen-
são da leitura.
Este (sic) Ao chama-se circunflexo - serve para fechar o som. Ex.
vovô - vê - você. :~a
Não obstante, seria ineficaz o trabalho de alfabetização que
se restringisse a treinar o reconhecimento da palavra escrita sem
proporcionar aos alunos condições necessárias para perceber mais
rapidamente o mecanismo da escrita alfabética, ou seja, o relacio-
namento dos símbolos gráficos com partes menores da fala. O
material ideal seria aquele que pusesse em evidência as diferenças
gráficas entre as palavras resultando na mudança de significado.
Imaginemos, por exemplo, um material cujas primeiras pa-
lavras fossem pó e vela+', que os alunos aprenderiam a distin-
guir pela extensão da forma gráfica. Juntando a esse conjunto
a palavra sala, obrigar-se-ia o aluno a deter a sua observação sobre
uma parte menor da palavra (a sílaba), pois, para distinguir vela
de sala, terá de observar a diferença formal das duas primeiras
:12SoUZA, Darcílea Silva e. O vale do saber; cartilha moderna para a cam-
panha de alfabetização. I. ed. São Paulo, Fundação Carlos Chagas, 1969.
:1:1Ibid., p. 22.
::~ Essas palavras apenas ilustram o problema em questão. Outros aspectos
devem ser considerados na escolha do léxico de uma cartilha.
18 A LEITURA - O PROCESSO OE APRENDIZAGEM ..•
sílabas: ve/sa. O mesmo procedimento levaria o aluno a rela-
cionar a letra ao fone: contrastando as palavras anteriores com
outras, cuja diferença fosse apenas uma letra.
O quadro abaixo facilitará a visualização do que expusemos:
Primeira etapa Segunda etapa Terceira etapa
Reconhecimento em Reconhecimento Reconhecimento por
termos da extensão" através da forma diferenciação de um
da forma gráfica gráfica da sílaba símbolo gráfico
PÓ VEn TW~E~VELA SALA VELA VALA
lJ~OSALA PÉ
A primeira etapa se justifica por ser o primeiro contato do
aluno com a forma escrita. É o momento em que ele perceberá
o relacionamento de uma forma gráfica com a forma sonora que
já conhece. Não é um período extremamente necessário nas
comunidades onde o contato com os símbolos gráficos é facilitado
pelos órgãos de imprensa. Nas outras fases, o aluno é levado a
distinguir progressivamente unidades menores da fala e da escrita,
sem recorrer à abstração do som isolado, vazio de significado.
Algumas cartilhas têm preferido dar início ao programa de
alfabetização com a frase, elemento lingüístico de carga signifi-
cativa mais completa, mas de forma mais complexa. Pedindo-se
aos alfabetizandos que distingam frases, exige-se deles que dis-
tingam as várias palavras formadoras destas frases, empresa bem
mais difícil do que a proposta acima.
Para conciliar essa atitude com a anterior, uma alternativa
seria a de lançar mão, no início da alfabetização, de "palavras-
-frase" acompanhadas de gravuras que fornecessem o contexto
social. Por exemplo, uma gravura representando um incêndio,
tendo escrita a palavra fogo como fazem as revistas em quadrinhos
para indicar a fala dos personagens. Nada impede, aliás, que se
use o método das estórias em quadrinhos para criar o contexto.
Parece-nos que a dificuldade de pôr em prática esta solução con-
ciliatória seria somente encontrar o número necessário de pala-
vras-frase que se prestassem à transferência dos elementos fono-
lógicos.
FASE DA TRANSFERÊNCIA 19
Ainda nos resta focalizar dois aspectos da língua indispen-
sáveis à organização do livro de leitura na fase de transferência:
os padrões silábicos e o léxico.
1.1.2.1 O padrão siláb~co
Como já tivemos oportunidade de observar, cada texto de
um programa de alfabetização, no nível que estamos discutindo,
deve, através do treinamento apropriado, visar à transferência de
um elemento lingüístico. Tal elemento, porém, pode ocorrer na
língua em condições mais simples ou mais complexas, isto é, em
padrões silábicos mais ou menos complexos. Portanto, também
os padrões silábicos devem ser considerados, e não só quanto ao
seu grau de complexidade, mas também quanto às mudanças fono-
lógicas que podem promover.
Observe-se que a tarefa de levar os alunos a perceber a rela-
ção entre letra e fone, sugerida na seção anterior, será tanto mais
fácil, quanto mais simples for o padrão silábico das palavras no
início da aprendizagem. Assim, os alunos terão de identificar me-
nor número de elementos que se distinguem por maior número
de traços (como a consoante e a vogal do padrão CV de uma
das sílabas da palavra batata, por exemplo).
Também a relação entre certas entidades gráficas e a posi-
ção onde ocorrem nos aconselhará a ordenar a apresentação dos
padrões silábicos. Muitas vezes é a posição da letra dentro da
sílaba que determinará a sua leitura. O R, em um grande número
de dialetos do português, por exemplo, deverá ser lido como
consoante lateral alveolar, se ocupar no padrão C1VC2 a posição
Ch como em lar, e como semivogal posterior, se ocupar a posi-
ção C2 35, como em mal. Situação paralela é encontrada nos sím-
bolos gráficos i e y, cuja leitura vai depender da sua posição no
núcleo ou na margem, como vogal ou semivogal ê".
Embora, em muitos casos, a posição da letra no padrão orto-gráfico não determine o seu valor fonológico, não se pode es-
perar que o aluno, tendo relacionado o símbolo gráfico a um
fone em uma dada fase da fonação, mantenha essa relação em
outra. É o que reconhecem as cartilhas tradicionais ao apresen-
tarem séries como ra, re, ri, ro, ru e ar, er, ir, or, ur, apenas
condenáveis por serem destituídas de significado.
35Ver regras 36 e 38, seção 2.1.2.3.2.1.
36 Ver regras 12 a 18, seção 2.1.2.3.2.1.
20 A LEITURA - O PROCESSO DE APRENDIZAGEM ..•
Outros problemas podem ser ainda levantados, levando em
conta o padrão silábico do português e suas relações com a orto-
grafia. Basta-nos, aqui, mostrar a importância que sua ordenação
tem na preparação do material. Na seção 2. 5 discutiremos mais
o assunto, abordando especificamente o português.
1 .1.2 .2 O léxico
Esse tem sido, talvez, entre os nossos autores, o elemento que
mais lhes tenha merecido a atenção. Eles têm procurado utilizar
o vocabulário que pressupõem ser comum aos alunos a quem
dirigem a sua cartilha, como um meio de motivá-los à aprendi-
zagem da leitura. Não discutiremos a atitude pedagógica até que,
em sua defesa, sejam incluídas palavras que impliquem em situa-
ções lingüísticas condenáveis.
A lista de "palavras geradoras" preparada para Tiriri, colônia
agrícola da Sudene, pela equipe do Prof. Paulo Freire 37, nos for-
nece uma ilustração de interferência desse tipo na organização do
material lingüístico. Consta desta lista de palavras mais comuns
naquela região a palavra cacimba, que, embora fosse considerada
adequada sob o ponto de vista pedagógico, apresenta um incon-
veniente lingüístico: a letra ç aparece com seus dois valores fono-
lógicos, [k] e [s].
A atitude contrária seria a do organizador de material que,
demasiadamente preocupado com a transferência dos elementos
lingüísticos, usasse um vocabulário desconhecido para os alíabe-
tizandos, portanto vazio de significado para eles. Essa atitude
corresponderia a ensinar os sons em sílabas soltas, ou mesmo isola-
damente.
Conviria, então, na transferência dos elementos lingüísticos,
utilizar tanto quanto possível o vocabulário mais comum aos alu-
nos, e nunca sobrecarregar essa fase da aprendizagem com um
léxico estranho ao seu universo vocabular.
Mesmo entre as palavras conhecidas pelo alfabetizando há
uma classe a evitar, pelo menos no início do programa. Trata-se
das palavras de significação relacional, isto é, palavras que, em-
bora familiares aos alunos, só têm sentido dentro da frase. Como
a introdução de unidades sintáticas mais complexas compreende
uma etapa posterior no período da transferência, a utilização de
palavras como de, e, é, etc. deverá ser adiada para tal ocasião.
37 CARDOSO,op. cit., p. 74.
FASE DA TRANSFERÊNCIA 21
Outro fato r importante na escolha do vocabulário de uma
cartilha é a freqüência das palavras, de que falaremos na seção
seguinte, quando abordaremos os critérios gerais para a organi-
zação do material de leitura.
1.1.3 Critérios na organização do material lingüístico
para efeito do ensino da leitura
Não basta analisar o material lingüístico para elaborar uma
boa cartilha. É necessário ainda estabelecer critérios para a sua
organização.
Quando, em nossas cartilhas, os elementos lingüísticos são
levados em conta (embora, como já vimos, precariamente), sua
apresentação é feita em ordem mais ou menos alfabética 38, sepa-
rando vogais e consoantes, ou considerando fatores como a sim-
plicidade dos símbolos gráficos ou o grau de freqüência que os
autores lhes atribuem. Verificamos, por exemplo, que os sím-
bolos gráficos compostos (dígrafos) nunca são introduzidos nas
primeiras lições, porém um símbolo como !" cujo valor fonológico
é duplo, pode ser ordenado antes de f, que mantém relação biu-
nívoca com o fone [f] 39.
Os critérios de simplicidade e freqüênc1a não têm sido consi-
derados, contudo, em toda a sua extensão. A ordenação dos
elementos deve efetuar-se, observando o grau de simplicidade, não
somente do símbolo gráfico, mas também da relação entre enti-
dade fônica e entidade ortográfica. Por exemplo, devemos orde-
nar, no material de leitura, os elementos de relações biunívocas
antes dos demais e procurar entre estes os de relação mais sim-
ples 40 do ponto de vista do leitor.
Apesar da importância de apresentar os elementos de rela-
ção mais simples no início do material didático, esta ordem deve,
algumas vezes, ser alterada em favor de outras vantagens peda-
gógicas. Isto pode ocorrer quando os elementos mais simples são
pouco produtivos em relação a outros mais complexos. Dizemos
que os elementos são mais produtivos, quando de sua aprendi-
zagem resulta maior domínio da leitura por parte do alfabeti-
zando, pela freqüência elevada no sistema de escrita 41.
38 Esse critério pressupõe o ensino de sons isolados, que já discutimos na
seção l. l. 2.
39 Ver LOURENÇO FILHO, op. cit., p. 16 e 25.
40 Nas seções 2.1 e 2.2 faremos um estudo das relações apontando as
mais simples.
H Ver, por exemplo, comentário feito aos padrões silábicos V e VC na
seção, 2. 5.
22 A LEITURA - O PROCESSO DE APRENDIZAGEM •••
A freqüência é um critério já utilizado na organização das
cartilhas, embora de maneira empírica e incompleta 42. Além disso,
em nossas cartilhas, esse critério vem sendo utilizado apenas para
selecionar o vocabulário ou as letras a serem apresentadas, o que
evidentemente é insuficiente. O organizador do material de lei-
tura deve ter em mãos dados em termos de ambos os sistemas,
fonológico e ortográfico. O que importa não é o número de vezes
em que ocorre a letra Q ou o fone [u], mas o número de vezes
em que 2 representa [u].
Tomemos, para ilustrar, o seguinte problema: corresponden-
do a letra g aos fones [f] e [w], qual das duas relações deve
ser primeiramente introduzida?
A solução variará de acordo com o grau de simplicidade e
freqüência das relações. Suponhamos que a relação mais freqüente
seja ! ~ [f]. Sendo também a mais simples, ela deveria pre-
ceder a outra. O mesmo se concluiria se ambos tivessem o mesmo
índice de ocorrência. Se, contudo, a relação g ~ [f] fosse de
freqüência muito baixa na língua, a regra g ~ [w] deveria ser
apresentada primeiramente, apesar de mais complexa. Isso vale
dizer que o elemento de relação mais simples só deverá ser intro-
duzido depois do mais complexo se, ao contrário deste, tiver
freqüência muito baixa na língua.
Outra situação a ser considerada relaciona-se com o método
de apresentação das entidades lingüísticas.
Na elaboração do material de leitura, é aconselhável apre-
sentar, sempre que possível, os elementos lingüísticos jogando com
o contraste e a semelhança das formas, a fim de que se evidenciem
os elementos formais indicadores da mudança fonológica. Supo-
nhamos um material de leitura que, numa de suas fases, tenha
programadas as seguintes regras de transferência:
1) ~~ [s]
2) ~~ [sy-{~}
e que já tenha apresentado a regra s -> [k li- U }.
42 Fazemos exceção à Cartilha ABC, a que nos referimos na nota 9 deste
capítulo.
FASE DA LEITURA PRODUTIVA 23
As regras acima deveriam ser apresentadas uma a uma, em
exercícios semelhantes 4~ aos que se vêem abaixo:
1) A faca caco coca acuda
B faça caço coça açude
2)
I
A
I
faca caco cubo
B face cace recibo
No grupo A se encontram palavras já conhecidas pelo aluno,
que serviram na transferência de regras anteriores; no B, as
palavras-veículo da nova transferência.
A leitura deve sempre proceder em sentido horizontal, a fim
de não confundir os alunos nesta fase. Porém, pode-se efetuar o
treinamento, comparando os pares na vertical, até que a regra seja
induzida, isto é, até que o aluno perceba a diferença formal ou
o ambiente onde o símbolo adquire o valor fonológico em questão.
Note-se que, em certos casos, torna-se difícil encontrar um par
de vocábulos cuja única diferença resida no elemento quese quer
transferir. Nesse caso, deve-se apelar para pares semelhantes, cha-
mando a atenção para a sílaba onde se efetua o contraste. Por
esse procedimento, a aprendizagem se realizará como em cadeia,
em pequenos passos interligados: a regra a ser introduzida deve
ter por base uma outra, anteriormente transferida. Na ordenação
dos elementos de transferência, assim como na seleção do voca-
bulário, a possibilidade de usar do contraste para facilitar a apren-
dizagem deve ser considerada como um fator de grande impor-
tância na organização do material de leitura.
1 .2 Fase da leitura produtiva
Esse período tem lugar quando o aluno já domina as regras
de correspondência ortográfico-fonológica, ou melhor, quando a
decodificação dos sinais gráficos se realiza automaticamente, dis-
pensando sua total atenção.
~H Os exercícios podem ter, na cartilha, outra configuração para torná-los
mais atraentes, desde que fique inalterada a possibilidade de visualização
dos contrastes.
24 A LEITURA - O PROCESSO DE APRENDIZAGEM •..
o aluno, nesse estágio, deverá ser treinado a suprir, na lei-
tura, os traços fonológicos que a escrita não codificar, como o
acento frasal e a entoação 44. Os referidos traços serão recolocados
na leitura oral com base:
1) em alguns sinais da escrita. que, embora não os represen-
tem, distinguem os vários tipos de sentença e carregam
parte da informação: o ponto, o ponto-de-interrogação, o
ponto-de-exclamação, as reticências, o travessão, os pa-
rênteses, etc.;
2) na compreensão pelo aluno da maior parte do texto.
Tendo recebido, por exemplo, 90% da mensagem por
meio dos sinais gráficos, os 10% restantes serão apreen-
didos sem grandes dificuldades, pela situação já estabe-
lecida, pelo "contexto".
Se, no estágio anterior, o alfabetizando aprendeu a depreen-
der a informação pelos símbolos gráficos, neste, ele deve ser aler-
tado para o fato de que parte dela não está representada e por-
tanto deve ser por ele suprida.
1.3 Fase da leitura .emotivo-interpretativa
Até então, só se treinou o aluno a compreender a palavra
escrita, ou seja, a correlacionar as formas ortográfica e fonoló-
gica com mensagem.
Tendo vencido essas duas etapas, o aluno entrará num es-
tágio de interpretação da informação e de depreensão de traços
emocionais. O treinamento se fará em torno da leitura interpre-
tativa (através de textos puramente informativos) e da leitura
emotiva (através de textos literários), quando o aluno aprende
a reconstituir os traços emocionais do texto.
É necessário salientar, portanto, que, exigindo esta fase um
amadurecimento maior por parte do aluno, ela não deve ser ini-
ciada antes que as duas precedentes sejam perfeitamente vencidas.
44 Ver seção 2.4.
1
2 O SISTEMA ORTOGRÁFICO DO PORTUGUttS, SUAS
RELAÇÕES COM A FONOLOGIA E SUAS CONSE-
QOttNCIAS PARA O ENSINO DA LEITURA
Até agora, temo-nos ocupado da problemática da leitura, dis-
cutindo os seus conceitos básicos, analisando situações lingüís-
ticas, mas considerando o português apenas como exemplo.
No presente capítulo, as relações entre os sistemas fonológico
e ortográfico do português brasileiro contemporâneo (exemplifi-
cado pelo falar da autora deste trabalho) entram como objeto de
investigação, não mais como ilustração.
Para facilitar a exposição, consideraremos em tópicos as rela-
ções entre os sistemas ortográfico e fonológico. Primeiramente,
oporemos os segmentos de ambos os sistemas: a letra e o fone.
Em seguida, trataremos destes elementos em seqüências da mesma
natureza (seqüências vocálicas ou seqüências consonantais), de
suas modificações diante da barreira morfológica e de sua ocor-
rência dentro da sílaba. Finalmente, nos ocuparemos dos traços
supra-segmentais e sua relação com os sinais da escrita.
2 .1 Segmento ortográfico e segmento fonológico
A letra é uma figura cujos limites são bem definidos. Ela
constitui a menor unidade segmental ortográfica.
O mesmo não podemos dizer do fone. Impossível estabelecer
exatamente os seus limites, quer acústicos, quer articulatórios.
Baseando-nos antes em nossa percepção acústica de falante na-
tivo que em medição científica, consideraremos o fone o menor
elemento segmentai fónico. Distinguiremos, por exemplo, como
qualquer falante, os segmentos [p] e [b], [t] e [d], [\] e [4]
e outros. Abstrairemos outros traços que só seriam notados por
pessoas especialmente treinadas. Neste caso estão as emissões des-
locadas do seu ponto de articulação (i. e., l> t] [t<]), o ensur-
decimento das vogais átonas antes de pausa ([ 'pahtl ]), etc.
26 o SISTEMA ORTOGRÁFICO DO PORTUGUÊS, SUAS RELAÇÕES ...
o fone, neste trabalho, é, portanto, uma entidade fônica esta-
belecida por nossa percepção acústica de falante nativo para fins
de comparação com a entidade gráfica.
Nos próximos tópicos, separaremos em grupos letras e fone,
conforme a espécie de relação que mantêm entre si, para tornar
mais clara e econômica a análise a que nos propomos.
2 .1 .1 Relações biunívocas entre letra e fone
Neste grupo estão as letras cujos fones só têm uma repre-
sentação, a qual só a eles corresponde. São elas:
Regra J1
p -+ [p]: pá, pé, pó, pia, pua;
- sapato, topete, capoeira, apito, república.
Regra 2
º ~ [b]: babá, belo, bicho, bola, bula;cobalto, sabe, sabido, cebola, abutre.
Regra 3
f ~ [f]: faca, fere, fica, foca, furo;
garrafa, afeto, safira, reforma, parafuso.
Regra 4
Y ~ [v]: vaca, vê, vila, vovó, vulto;
carvão, caveira, revista, revolta, avulso.
Regra 5
nh 2 ~ [fi]: nhandu, nhambi, nhanduti;
manhã, ninho.
Como demonstram as regras acima, a representação ortográ-
fica do português apresenta-se coerente nos dois sentidos.
Essa é a relação mais simples e a ideal do ponto de vista
pedagógico, salvo se existirem implicações com alternância morío-
fonêmica 3. A aprendizagem desse grupo se resumirá em relacionar
um único fone a um único símbolo ortográfico, que não tem ne-
nhum outro valor. Se, porém, essa relação for mantida quando
1Numeraremos, a partir daqui, as regras que descrevem a equivalência fono-
lógica dos símbolos gráficos.
2 Embora esta entidade ortográfica, por seu caráter digráfico, não se en-
.qu1Ídre bem na presente seção, achamos por bem introduzi-la aqui, porque
ela também estabelece com o fone uma relação biunívoca. Os problemas
que a complexidade do símbolo acarretará para a leitura serão tratados
oportunamente (ver seção 2. 1. 3 . 1).
3 Ver seção 1.1. 1.2 . 1, para a discussão do problema.
SEGMENTO ORTOGRÁFICO E SEGMENTO FONOLÓGICO 27
se realiza uma operação fonológica, talvez li condição ideal esteja
comprometida.
2 .1.2 Entidades fonológicas com representação cruzada
Entendemos por representação ortográfica cruzada a reunião
de duas possibilidades diferentes de relação entre a letra e o fone:
a) fones com múltipla representação,
b) símbolos gráficos de valor fonológico múltiplo.
De início, separaremos fones e letras ligados por cada uma das
relações, para depois reuni-los em grupos de problemas comuns,
numa visão mais completa.
Vejamos, então, o inventário destes elementos ligados pelas
relações mencionadas.
2. 1 .2 .1 Fones com múltipla representação
li
i
~~[f]
u
~---...[ g].>« ~>[u]lli/ g~
i m
~~[y] ~[W] rr ~---[z]-------r h]
:/ y/ r----- l~º
:~
s
QY~[k]
~>[Zl ~-----
ss ~
~[Sl z
~~[S]-.>~ ch
28 o SISTEMA ORTOGRÁFICO DO PORTUGUÊS, SUAS RELAÇÕES •..
A multiplicidade de símbolos gráficos para representar um
único elemento fônico se prende, na maioria das vezes, a razões
etimológicas, naturalmente desconhecidas pelos candidatos à alfa-
betização. Sendo assim, advém dessas relações grande perda de
tempo decorrente da necessidade de condicionar a um fone um nú-
mero de símbolos maior que o requerido para a comunicação.
Entretanto, há dois casos em que essa complexidade se justi-
fica: primeiro, quando um símbolo gráficoé criado para desfazer
uma ambigüidade 4; segundo, quando esta relação não constitui um
fenômeno geral, mas particular a uma área dialetal ".
-l É o caso do grupo :~ [ k L cujo aparecimento evita a seguinte relação
[k
l! {'"}ambígua: c__"""'" ---~[sl i
(ver regras 45, 46, 47 e 51, seção 2.1.2.3.2.3).
5 Se reduzíssemos os dados do português às regras 12, 13, 14 e 21 (seção
2. 1.2.3 .2. 1), teríamos um exemplo. De acordo com estas regras, cons-
tatamos que a relação aqui mencionada só se estabelece em nosso dialeto.
Vejamos:
Dia/eto em estudo:
(Ver regras 12, 13 e 14) r ,
- ..,."[i 1
(Ver regra 21) ~__.."..
Outro dialeto:
(Ver regras 12, 13 e 14) i ~ [i 1
(Ver nota 25, p. 42) ~ -+ [e 1
Conservando-se este cruzamento, evita-se a criação de uma ortografia
de aplicação regional.
O mesmo comentário se justifica, se a relação for inversa. Observemos
o valor fonológico do símbolo ~ em duas variedades:
Dia/eto em estudo:
__.,..[ i 1 (Ver regra 21)
e
- ---....[ e 1 (Ver regra 22)
Outro dia/eto:
~ -+ [e 1 (Ver nota 25 e regra 22)
SEGMENTO ORTOGRÁFICO E SEGMENTO FONOLÓGICO 29
2 .1. 2 .2 SÚDbolos gráficos com valor fonológico múltiplo
a_______""[ a ]
-~[ã]
[y]
'~[i]
!~[i]
)~:~
~?[i]
~[e]
\[~]
[ é]
d[U][w]Q~[U]
~
~[o]
[ ~ ]
[õ]
[w]
u/[U]
- ~[ií]
/[w]
p?---[ p]
-~[']
[~ ]
t~[t]
- -----r \]
d~[d]
- ------- [ ~ ]
[ r ]
r~[h]
-~[~]
[ n ]
~[vn]
n~ n-\:- [~,]
"'-[vy]
[ m]
/[~m]m-V
-"'[Vl;)]
[gu]
gu/[gW]
-~[g]
g~[g]
-~[z]
c [k ]
-----.....[s]
[ s ]
s/[Z]
-~[S]
z»>" r z]
-------r s]
/[S ]
x?--[ z ]
-~[S ]
[ks]
/[kU]
9!!-[ kw]
~[k]
Do ponto de vista da leitura, esse é o grupo que pode trazer
mais dificuldades aos alfabetizandos, pois um mesmo símbolo pode
ser traduzido em diversos fones. Não obstante, a possibilidade de
ler-se de várias maneiras um mesmo elemento ortográfico decorre,
muitas vezes, da necessidade de ignorar operações fonológicas pre-
visíveis e, não raro, de caráter dialetal 6. Se isso não faz diminuir
G Ver nota anterior.
30 o SISTEMA ORTOGRÁFICO DO PORTUGUÊs, SUAS RELAÇÕES •••
a dificuldade pedagógica, pelo menos se justifica em termos de
evitar escritas dialetais.
2. 1. 2 .3 Grupos de representação
A separação feita acima oferece a falsa impressão de que
todos os problemas têm o mesmo grau de complexidade no pro-
cesso de aprendizagem. Ela elimina a possibilidade de visualizar-
mos os problemas advindos de cruzamentos de representações, que
só serão atenuados pela formulação de regras que determinem a
leitura. De um modo geral, os casos serão mais simples, se for
possível estabelecer regras baseadas no ambiente ortográfico e
fonológico, ou mesmo apenas no ortográfico. Serão mais com-
plexos, se somente o ambiente fonológico for o elemento condicio-
nador. A ausência total de regra para determinar a leitura será
o grau máximo na escala de dificuldades. Para ajustar o enfoque,
reuniremos ambos os casos, ordenando-os de acordo com o tipo
de relações envolvidas e, em seguida, analisaremos cada um, esta-
belecendo regras de leitura.
Inicialmente chegamos a dois grandes grupos.
Primeiro grupo: de elementos que só envolvem o segundo
tipo de relação, ou seja, grupos de símbolos gráficos de valor
fonológico múltiplo. São eles:
a r a]
----rã]
1------[ t]
-------r t]
~ [d]
----[d , ]
Segundo grupo: de elementos que retêm ambas as relações,
isto é, um elemento fônico com várias representações gráficas e
um elemento gráfico com diversos valores fonológicos 7. Esse gru-
po se constitui dos quatro seguintes subgrupos:
7 Teoricamente caberia aqui mais um caso: o de elementos fonológicos rela-
cionados com várias formas gráficas que só a eles representam. Não há,
porém, este grupo de relações entre a ortografia e a fonologia do português.
SEGMENTO ORTOGRÁFICO E SEGMENTO FONOLÓGICO 31
Primeiro:
[ n ] .
[vn]~l j~-[i)
[V~--------------- n [ y ] [l~ I / [ e ]
[m] / ~~[;]
~m ~[e]
[Vm]~ j [1]
p ~o-[~]
l~-.-[f] [W)] /[ ü ] ---------I <,
[1'1 "<, .-/ _ [o]
j ,[9] Q ~ [u]
lh
Segundo:
rr [h]
[ ~ ]
!~[r]
Terceiro:
/[gU]
guL------[ gw]
~----[g]
1 [z]
32 o SISTEMA ORTOGRÁFICO DO PORTUGUÊs, SUAS RELAÇÕES .•.
Quarto:
/[kUl
qu r kw ]
-------- [ k ]
,Ç -----------
~ ~"
~
~~
s sç
_~[z] -t E
[t/~[k'l
ch
2.1.2.3.1 Grupos de símbolos gráficos de valor fonológico
múltiplo
Esses grupos apresentam dois tipos de relação entre a fono-
logia e a ortografia: quando essa reflete uma operação fonológica
e quando se mantém inalterada.
No primeiro caso, está [a] ==> [ã], que abordaremos na
seção 2. 1.2.3 .2 . 1 juntamente com as outras vogais nasais.
No segundo, estão [t ] e [~J representados por 1, [d ] e [ q. ]
representados por Q, como mostra a regra abaixo:
Regra 6
[~l--- C'l] ==> [;;:1 l_ri]r d]
gato tia dedo diaparta parte fada redeaté parti dela dedal
SEGMENTO ORTOGRÁFICO E SEGMENTO FONOLÓGICO 33
Embora a fala seja determinada por essa regra, os alunos
mio têm consciência dela e não perceberão a diferença, a menos
que sejam alertados. Desde que não há contraste possível na língua
entre os elementos da operação, a mudança é automática e realizar-
-se-á mesmo quando a fala for resultado de decodificação de um
único símbolo gráfico. Isso vale dizer que o aluno não precisa de
nenhuma indicação ortográfica, para realizar a operação de trocar,
por exemplo, o [t] por [~] em palavras como parti, pois l t l
nunca ocorre em outro ambiente, e [t] nunca ocorre nesse.
2 .1 .2 .3 .2 Grupos com dupla relação
Pela sua complexidade, esse parágrafo deverá ser dividido em
partes, para facilitar o comentário. Discutiremos, então, por grupos
que, a partir daqui, serão chamados núcleos problemáticos.
2 .1 .2 .3 .2 .1 Estudo do primeiro núcleo problemático
[n]
[vn~ ! _ [i]
V~ ..----------~~[~1 /[el
[ ] [y] ~-r~]
[m] ~ ~[e][v~r [fl
1. [w] Q.-[~]l~[fl [ÜJ~I ~l
[{l [~J ~[UJ
lh !!:::::-------
.
Consideremos, primeiramente, os símbolos m e fi com seus
múltiplos representados: a consoante nasal, a nasalisação da vogal
precedente, seguida de travamento nasalou de semivogal.
34 o SISTEMA ORTOGRÁFICO DO PORTUGUÊS, SUAS RELAÇÕES ...
As regras abaixo sistematizam as ocorrências:
Regra 7
[:J [:::J /:
mata cama nata cana
metro remédio neto penetra
medo temer neste ninei
mito temi nisso tênis
mola remoto nota panorama
morto comover notei ninou
mula tumular nulo minúsculo
Vale notar, aqui, que esses símbolos acumulam a função de
elemento nasalizador, posto que a ortografiajnão acrescenta ne-
nhum símbolo para registrar a regra: V =::} V / _ Cn 8. As re-
gras abaixo dão conta desse e de outros casos em que os sím-
bolos em questão indicam a nasalidade da vogal precedente:
Regra 8
V=::} V / {;}'
8 Também essa regra tem aplicação automática para o falante. Entretanto,
não podemos concluir que, no processo de aprendizagem, ela seja tão simples
como o é a regra 6, pois em português o traço de nasalidade é distintivo,
ao contrário da diferença do ponto de articulação entre [ t 1 e [ t l, [d 1 e [<I l.
Ignorando isso, autores de materiais de alfabetização pretendem que os
alunos formem novas palavras onde a regra em questão seja aplicada, par-
tindo de sílabas orais conhecidas. Por exemplo, os alunos que conhecessem
as sílabas ÇiI e I!:lli com valor fonológico [kal e [ma 1 necessariamente esta-
riam aptos a construir palavras como cama, segundo eles.
9 Ver, na regra anterior, a segunda e a quarta colunas de exemplos.
SEGMENTO ORTOGRÁFICO E SEGMENTO FONOLÓGICO 35
Negra 9
[:1 [:::1/_. m# 10
assim tom atum
rim som rum
vim bom álbum
Há, porém, duas situações em que m e fi não representam
apenas a nasalização de uma vogal: quando são seguidos de uma
consoante; quando, em posição final, depois de ª e 1<. Vejamos
a descriçãodesses dois casos nas regras 10 e 11.
Regra 10
mi I [rn j] /- [r~:llv I I~V r]!lJ L [n]
campo ['kãmpu] canto ['kãntu] banco ['bã 1}ku ]
tampa ['tãmpa ] tanto ['tãntu] zinco ~zII]ku ]
tambor [tãm'boh] lenda ['lenda 1 mangar [mãl}'gah]
sambar [sãm'bah] lançar [lan'sah] Congo rkõ~gu ]
Quando essas entidades gráficas são seguidas de uma con-
soante, elas representam também um travamento nasal, que de-
pende do ponto de articulação da referida consoante. Esse caso
é paralelo ao do item 2. 1 .2.3 . 1, pois, também aqui, não há
oposição entre os vários tipos de travamento. Sendo assim, o
falante não tem consciência das diversas emissões. Mas, ao con-
trário do que acontece lá, a regra fonológica é levada em conta
pela ortografia, embora só parcialmente.
io O uso do diacrítico (,...,) é outra maneira de representar, na escrita, a
vogal nasal (ver seção 2.4. 1). Sua ocorrência, contudo, se restringe às
vogais ª e Q.
36 o SISTEMA ORTOGRÁFICO DO PORTUGUÊS, SUAS RELAÇÕES •..
Regra 1J
[: 1~)] [[:YJ] /_ ti U[aw]
hífen [ 'ifêy ] amém [ a'mêy ] amam ['ãmãw]
hímen ['lmey] contém '[ kõn'tey] velam [ 'vélãw ]
líquen [ 'likey ] ontem ['õntey] restam ['h#tãw]
Nesse caso, m e 11 determinam a nasalização de uma vogal e
representam o segundo elemento de um ditongo nasal que pode
ser a semivogal anterior [y] ou a posterior [w].
As semivogais [ y ] e [ w ] ainda podem ser representadas pelos
símbolos i e !l, que, por sua vez, têm outros valores. Detenhamo-
-nos, entretanto, na ambivalência vogal ([ i ] e [u]) e semivogal
([y] e [w)).
Quando o padrão silábico for (C)V(C) 12, a determinação
da correspondência fonológica dos símbolos i e !! não constituirá
problema para a aprendizagem da leitura, devido ao fato de a
vogal e a semivogal ocuparem posições distintas dentro da sílaba:
esta como margem, aquela como núcleo. Tal observação pode
ser resumida em uma regra simples e fácil de ser assimilada:
Regra 12
[ : 1 [ [i J 1 /(Cl _ (C)[ u ]
cvc cv vc V
pista apito ir i (a letra i.)
sistema parti istmo ilustre
carpir cito irmão ignorância
curva suco urge u (a letra u.)
curto urubu urtiga urubu
cruz ·cru ustular usina
11 A dupla representação dos ditongos será abordada na seção 2.2. 1. 1 .2
deste trabalho.
12 C pode ser lido consoante ou grupo de consoantes.
SEGMENTO ORTOGRÁFICO E SEGMENTO FONOLÓGICO 37
Mas o problema se estabelece quando pensamos em distinguir,
nu escrita, os padrões (C)VX'(C) e CX'V(C) dos padrões
(C)V - V2(C) e CV2 - V(C), respectivamente.
No primeiro par, (C)VX'CC) / (C)V - V2(C), a orto-
grafia prevê um diaérítico para marcar a V 2 ( I) do segundo
padrão, exceto quando à V 2 se seguirem os símbolos 1.., !!!, !l, L,
Ue?" com ela formando sílaba. Nos casos não marcados, temos
vogal marginal, ou seja, no padrão (C)VY(C), um ditongo 13.
As regras abaixo sistematizam a descrição:
Regra 13
[:J ~[:j/~ "
v-:.: CV-_ V-_s CV-_s
aí
Aída
caí
saíram
ruído
doído
saúde
juízes
ruína Ir.
reúna
aís país
saís
egoísta
caíste
13 Ver seção 2. 2 . 1. 1.
l4 Esta regra poderia ter a seguinte formulação; que descreve melhor o am-
biente em estudo:
[~J L[~~J/ (C) V-_' (li)
Tendo em vista o nosso objetivo, preferimos a regra anterior, porque
descreve um ambiente mais simples para a determinação da leitura (o dia-
crítico é suficiente para determiná-la).
15 Aos vocábulos ruína e reúna, assim como a todos em que m ou n siga
a vogal acentuada, aplica-se. ainda a regra 9, que nasaliza a vogal citada.
38
Regra 14
[:]
o SISTEMA ORTOGRÁFICO DO PORTUGUÊS, SUAS RELAÇÕES ...
_---+ [[ i] ] /(C)V-_C +01
10
[u] CV-_-nh
CV-_C+o
cair
cairmos
Caim 17
ruim
juiz 18
traiu
traindo
construindo
Raul
Regra 15
[ : J
V
ai
oito
eu
ou
v- C_ +0 CV- _-nh
ainda
Airton
Ailton
tainha
bainha
rainha
[ ::JJ / (C)V_(~)-
cv
cai
sai
rui
mau
grau
riu
viu
doido
V_(s) CV_(S)
caio ais pais
aumento eis sais
saúde tais
RAU 19 dois
partiu 20 paus
comprei seis
seus
1(1 C+o é qualquer símbolo gráfico da lista: !_, ~, ~, !' !' ~.
17 Ver nota 15.
18Observe-se que esta palavra, como outras da lista, será acentuada em
outro ambiente ortográfico (ver a regra anterior).
10 RAU ['haw 1 (República Árabe Unida).
20 A ausência do ditongo [yu] (ver seção 2.2.1. I) em português dispensa
que a ortografia marque a vogal.
SEGMENTO ORTOGRÁFICO E SEGMENTO FONOLÓGICO 39
No segundo caso, os padrões C)(V(C) e CV2 - V(C) podem
variar livremente se átonos e em final de palavra, numa linguagem
enfática ou emocional. Entretanto, a regra abaixo descreve o com-
portamento da ortografia em relação à fala normal, que determina
o padrão C)(V(C) pela indicação gráfica da sílaba tônica.
Regta 16
[:1~
réstia (s)
cópia (s)
insônia (s)
sábia (s)
~:JJ / XC_V({:~ #
ágüe (s) (m)
tênue (s)
água
águam
Esse padrão também é indicado pelo símbolo precedente:
Regra 17
[:]
quota 21 quase
qualidade
linguarudo
{:} - V iii
freqüente
agüenta
lingüista
qüinquagésimo
No padrão (C) V 2 - V (C), ao contrário do que ocorre com
(C)V - V2(C), a V2 não é marcada pelo diacrítico:
21 Ver seção 2.2.1.1.1 para a variação entre o ditongo Iwe l e a vogal [j6 l.
40 o SISTEMA ORTOGRÁFICO DO PORTUGUÊS, SUAS RELAÇÕES ...
Regra 18
[: 1 [;~J/ (C_q,~ _v({:}
ia sabia (s,m) tia (s) cultue (s,m)
ias copia ( s.m.r ) lia (s,m) indivíduo (s)
iam partia (s,m) pia (s,m,r)
copio pie (s,m)
copie (s,m)
Como se verifica, o sistema ortográfico é complicado. Essa
complexidade se evidencia na necessidade freqüente de recorrer
ao ambiente puramente gráfico para descrever o valor dos sím-
bolos. Porém, a dificuldade pedagógica resultante daí será dimi-
nuída se o material de ensino levar em conta essas regras.
Não concluímos, neste ponto, as considerações sobre as vo-
gais altas nem sobre as vogais marginais. Os fones [i] e [u ]"
[ y] e [w] podem ainda ser representados por ~ e Q, e o segundo
de cada par, também por f.. Esses símbolos gráficos, por outro lado,
são também usados para representar outros fones, o que é ma-
téria de consideração nos próximos parágrafos.
Tratemos, inicialmente, do valor fonológico dos símbolos
s e Q.
Afirmamos, acima, que tais elementos ortográficos também
se colocam para representar as semivogais. :É o que descrevem
as regras abaixo:
Regra 19
[ : 1 [
[YJ]
[w]
/
22
~C)V_ (~) #
XC_V(§) #
22 O nome próprio Caetano é o único vocábulo conhecido onde li: em posição
não-final tem valor de semivogal. Nesta posição, o referido símbolo sempre
representa uma vogal: baeta, por exemplo, que se lê [ba'eta].
SEGMENTO ORTOGRÁFICO E SEGMENTO FONOLÓGICO 41
, ,
CVy(S) (C)Vw(§) XCyV(.§) XCwV(§)
põe (s) ao nívea (s) nódoa (s)
pães rio (s) lêndea (s) mágoa (s)
balões Rio (s) gêmeo (s) amêndoa (s)
mãe (s) cão núcleo (s)
cultue (s) 23 caos sangüíneo (s)
perdoe (s) balão
caçoe (s) pavão
Comparando essa regra com a de n.? 16, constatamos que,
no mesmo ambiente, (C)V_ (s). podem ocorrer .!< ou i e Q ou Y
para representar [y] e [w], respectivamente. Para a leitura, isso
significa perda de tempo, pois ao aluno deve-se ensinar duas regras
em vez de uma. Mas, se observarmos, pot exemplo, a alternância
morfofonêmica existente nas palavras mágoa e magoa (nome e
verbo), verificamos que tal afirmação se justifica apenas por um
lado.
O símbolo Q, em sílaba tônica ou pretônica, pode ainda re-
presentar [ w] em algumas palavras de uso freqüente na fala colo-
quial. Isso acontece quando, precedido das consoantes g e ç (com
valor de [k]), Q é seguido pelos símbolos ª ou ~. Formalizando
temos:
Regra 20
Q
/
C Ja L 24
[ W ] vel. _ L~f
coalha [ 'kwa1a] coelho ['kweJu]
coalhar [kwa'Íah] coelhal [kwe'Jaw]
coalhada [kwa'lada] coentro [ 'kwê'ltru ]
coara [ 'kwara] goela [ 'gwéla ]
coaro [ 'kwaru] esgoelar [ izgwlt'lah ]
coarar [kwa'rah]
patacoada [ pata'kwada ]
magoar [ma'gwah]
magoativo[ magwa'tivu ]
23 Ver regra 21 e a respectiva nota.
24 Neste ambiente, porém, Q representa também [16], [o] ou [u], de acordo
com as regras 26 e 27, que, embora sejam de aplicação mais freqüente, des-
crevem ocorrências dentro de um vocabulário mais culto (com exceção da-
queles onde º representa [u]).
42 o SISTEMA ORTOGRÁFICO DO PORTUGUÊS, SUAS RELAÇÕES ...
Os símbolos ~ e Q também representam as vogais altas, quan-
do em posição final átona:
Regra 21
[ : J [ [i I 1 /~ 25#[u]
e (conj.) o (art.) soe 26 habitue caio
de do perdoe cultue saio
parte parto amaldiçoe suo raio
fale barro abençôo flutuo raie
feche ralo vôo exíguo vaie
berre carro ambíguo
Encontramos ainda .e. e Q representando [;,] ou [e] e [~]
ou [o], respectivamente. Para descrever os fatos, temos de con-
siderar quatro situações distintas:
- quando representam a vogal do ditongo;
- quando em sílaba tônica;
- quando em sílaba pretônica;
- quando em sílaba postônica.
No primeiro caso, estes símbolos, ~ e Q, representam [e] e
[ o ], respectivamente, não importando a sua relação com a sílaba
tônica do vocábulo. As regras que dão conta desta representação
são simples, pois podem ser formuladas baseando-se no ambiente
ortográfico. São elas:
Regra 22
[:] [[e ]][ o ] /- t} r»-
2~ Numa .outra área dialetal a regra seria:
[:] D:n / ~ #
Tal variação sustenta a regra e justifica a ortografia.
Um estudo sobre os dialetos mais falados no país seria de grande valia
para a formulação de material para o ensino de leitura.
26 O grupo de ambiente CV ~ # permite a emissão descrita na regra 19,
embora a aqui considerada seja talvez a mais comum. Entretanto, se a vogal
precedente é nasal, a regra 19 torna-se obrigatória. Exemplo: põe, mãe.
SEGMENTO ORTOGRÁFICO E SEGMENTO FONOLÓGICO 43
cu ['ew] ou ['ow]
plebeu (s) [ple'bew] couve ['kowvi] 27
escondeu [ iskõn'dew ] outro [ 'owtru]
ateu (s) [ a'tew] louça [' lowsa]
reumatismo [ hewma'tizmu ] poupar [pow'pah]
leucócito (s) [ lew'késitu ] roubar [how'bah]
leucemia [ lewsê'mia ] doutor [dow'toh]
hei [ 'ey ] boi [ 'boy]
lei (s) [ 'ley ] coisa [ 'koyza]
leitão [ley'tãw] moita ['moyta]
feira [ 'feyra ] apoio [ a'poyu]
queixada [ key'êada ] açoitar (asoy'tah]
meiguice [mey'gisi] apoiar [ apoy'ah]
leitor [ley'toh]
amáveis [a'maveyê ]
louváveis [ low'vaveyã ]
responsáveis [ hfÍ~põn'saveys ]
hábeis ['abeys]
fósseis [ 'f~seys ]
Quando, diante de i ou y em sílaba tônica, ~ representa [;,]
e Q representa [p], esses símbolos são marcados pelo dia-
crítico ( / ):
Regra 23
[: ] [:::] / i: [(P]- as
réu
véu
idéia
européia
carretéis
['h,w]
[ 'v;,w ]
[ i'déya ]
[ ewré'peya ]
[ kahé'téyâ ]
dói
corrói
jóia
Tróia
apóio
[ 'dey )
[k~'h9iy ]
[ 'z~ya]
[ 'treya ]
[ a'peyu ]
Quando ocorrem em sílaba tônica, [" I se opõe a [e], e
[ !ti] a [ o]. A leitura passa a ser determinada, então, pelo conhe-
27 As semivogais de alguns dos vocábulos desta regra e da seguinte caem
na linguagem coloquial, em ambiente determinado (ver seção 2.2. 1. 1 . 1).
28 Ver comentário sobre o diacrítico que recai sobre estas palavras na seção
2.4.1.
44 o SISTEMA ORTOGRÁFICO DO PORTUGUÊS, SUAS RELAÇÕES •..
cimento lexical e pelo contexto sintático 29. Vejamos a regra
abaixo:
Regra 24
[o]
[ e]
donde
[~]
[~]
[,]
selo (v.)
gelo (v.)
nego (v.)
sossego (v.)
este (n.)
ele (n.)
seta
[ e ]
selo (n.)
gelo (n.)
nego (n.)
sossego (n.)
este (pron.)
ele (pron.)
destro
{
[e ]}
[ ~]
{
[o ]}
[? ]
=1=
=1=
**/
[e]
[o]
[ ~ ]
acordo (v.)
jogo (v.)
bolo (v.)
rolo (v.)
choro (v.)
lotus
[ o ]
acordo (n.)
jogo (n.)
bolo (n.)
rolo (n.)
choro (n.)
roto
cocus
Quando i< e Q representam uma vogal pretônica, a qualidade
dessa vogal é condicionada pelo ambiente fonológico, de acordo
com dois processos: assimilação e dissimilação. Esses processos
se alternam, conforme o ambiente fonológico ou conforme o am-
biente morfológico. Haverá, portanto, a partir daqui, regras cujo
ambiente ortográfico não bastará para dar conta dos casos. E
dentro do mesmo ambiente fonológico, teremos, algumas vezes,
vogais cuja qualidade será determinada por assimilação à quali-
dade da vogal seguinte, outras em que será a dissimilação o pro-
cesso atuante, e ainda outras em que assimilação e dissimilação
se alternam livremente. No último caso, um dos processos corres-
ponde à linguagem coloquial e o outro, à fala num registro tenso,
de quem fala ao gravador, por exemplo.
29 No caso da homonímia, a ortografia previa, até 19 de janeiro de 1972,
quando entrou em vigor um novo acordo ortográfico (Lei n.? 5765, san-
cionada em 18 de dezembro de 1971), o emprego do diacrítico (A), indi-
cando a vogal fechada em oposição à correspondente aberta não marcada.
SEGMENTO ORTOGRÁFICO E SEGMENTO FONOLÓGICO 45
Essas ocorrências serão registradas pelas regras de corres-
pondência ortográfica que se seguem. Levando em conta o fato
de que nem sempre o ambiente fonológico é representado na
escrita, algumas das regras citadas serão formuladas com base no
ambiente fonológico e não no ortográfico, como tem ocorrido na
maioria das vezes até aqui.
Regra 25
[ : 1--~ [:::l/- Cª
velar
dispersar
metade
erado
errado
pelado
reparar
separação
[vflah]
[ qisp~h'sah ]
[m~'ta4i ]
[ e'radu ]
[~'hadu ]
[p,'ladu]
[hepa'rah ]
[ separa'sãw ]
rolar
cobrar
colagem
provação
rotação
covardia
propagar
colaborar
Regra 26
[
s 1 [ [,1
Q [j3]
[i] 1 /
[u]
,_,.
,_,
apear [ ape'ah ]
campear [kãmpi'ah]
realizada [ héali'zada ]
enteada [m\i'ada] ,_, [ent~'ada] 31
geada [ zi'ada ] ,_, [z,'ada]
beata [ bi'ata ] ,_, [ be'ata ]
doação
doava
soava
coaxo
coagular
coar
coado
coador
[h~'lah ]
[kçh'brah]
[k~'lazey ]
[ preva'sãw 1
[ héta'sãw ]
[ kevah'dia 1
[ prepa'gah ]
[ k~labli'J'rah]
-ª
[d~a'sãw ]
[dl,b'ava]
[s~'ava] 30
[k~'asu] 32
[ k~agu'lah ]
[ku'ah]
[ku'adu]
[kua'doh]
30 O contraste entre [9 I e [u I conserva-se aqui pela existência de um
homônimo na língua: suava [su'ava I. Admite-se, porém, a forma [so'ava I
que quebra a regra por influência da forma tônica soa ['soa I.
31As transcrições postas em primeiro lugar correspondem sempre às emis-
sões da fala coloquial.
82 O símbolo Q, neste ambiente, também pode ter o valor de [w I, o que
resulta na modificação do acento (ver regra 20 e respectiva nota).
Regra 27
46 o SISTEMA ORTOGRÁFICO DO PORTUGUÊS, SUAS RELAÇÕES .•.
~
º
pegar
Pelé
Teté
celeste
reeditar
reelogiar
papelote
pelota
reproduzir
velocímetro
reorganizar
geologia
reordenar
geografia
Regra 28
33
[~]
[9']
[u 11
CC) Vab
1-- CC) [9'~
l- CC) [~~[[ ~ 1
[p~'gah ]
[ p~'l\t ]
[ t~'t~ ]
[ s~'l,s~i ]
[ heedi'tah ]
[ ht!ill~zi'ah ]
~
,....,
Totó [Wt!$ ]
xodó [s(fd~ ]
vovó [ vrp'v~]
protótipo [ pre'tétípu ]
coordenar [ keehdê'nah ]
cooperar [ keepé'rah J
cordel [k~h'd~w ]
hotel [ rp't~w]
moleque [ mu'lekí ]
-- [ mé'léki ]
colher [ ku'Iéh ]
-- [k(n~h]
poeta [ pu'eta ]
-- [ pé'eta ]
coerência [ k~frensia ] 34
coerção [ kçéh'sãw ]
coeficiente [ kc1J~fisi'en\i]
[ pape'Iéti ]
[ pe'lcta ]
[ hepredu'zih ]
[ v~l(fsTm~tru]
[ hééhgãni'zah ]
[ zt~lu'zia ]
[ hééhdê'nah ]
[ z~~gra'fia ]
[ ~ ] [['] 1 / -.Q [ ~ ] _ CV ** 85
33 Neste ambiente, encontramos apenas um exemplo em que [;. I e [i I va-
riam: melhor [mi'l~h I ~ [mf1~h I.
Podemos dizer o mesmo da variação [e I~ [i l, cuja única ocorrência
é: leoa [li'oa I~[Ie'oa I (ver regra 30). Em ambos os casos, a primeira
emissão corresponde ao registro coloquial.
Essa variação, que ocorre também em outras regras (ver regras 26,
28, 30 e 31), não se restringe ao dialeto da autora e está por merecer estudos
mais aprofundados.
34 O símbolo Q, neste ambiente, pode ter o valor de [w I (ver regra 20 e
respectiva nota).
85 A presente regra pode. ser substituída

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