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GENOCÍDIO DE RUANDA: O VALOR DO SANGUE AFRICANO Karine Arnemann 1 Eliete Vanessa Schneider 2 RESUMO O presente artigo irá analisar o processo de instauração do Sistema Regional Africano de Proteção dos Direitos Humanos, tendo como objetivo central o genocídio de Ruanda ocorrido em 1994, tentando compreender o motivo pelo qual não foi possível evita-lo mesmo após a criação da ONU em 1945 e da Organização da Unidade Africana em 1963. Ainda, se busca uma explicação quanto a atuação omissa da comunidade internacional frente ao grande massacre, bem como uma justificativa pelo desrespeito das tribos africanas à sua Carta de Direitos Humanos que entrou em vigor no ano de 1986. Palavras-Chave: África; Carta de Banjul; Direitos Humanos; Genocídio; Ruanda. 1 INTRODUÇÃO A ideia de direitos humanos ganhou demasiada importância ao longo da história, tendo em vista que seus pressupostos e princípios têm como finalidade a observância e proteção da dignidade da pessoa humana de maneira universal. Diante disso, se afirma que uma pessoa não vale mais nem menos que outra. Ainda, quando se fala que todos são iguais, não nos referimos a questão física, intelectual ou psicológica, pois cada um tem sua individualidade, sua personalidade, sua cultura e seu próprio modo de ver as coisas. Mas, mesmo que cada um tenha sua individualidade continuam sendo iguais como seres humanos, tendo as mesmas necessidades e faculdades essenciais, sendo esta a base da existência dos direitos fundamentais. O que se quer deixar claro nesse primeiro momento é a importância da pessoa humana e de sua dignidade, pois apesar de suas características individualizadas e peculiaridades culturais, no fim todos somos iguais como pessoa humana. 1 Acadêmica do Curso de Graduação em Direito da UNIJUÍ, karinearnemann@hotmail.com 2 Mestre em Direito, Docente da UNIJUÍ, Advogada, eliete.schneider@unijui.edu.br A tutela dos Direitos Humanos se deu através de muito trabalho e luta por aqueles que desejavam consolidar as garantias fundamentais da vida e a dignidade humana. Nesse contexto de construção dos direitos humanos cita-se os principais marcos históricos que contribuíram para o reconhecimento e evolução de tais direitos, quais sejam: Convenção de Genebra; Liga das Nações; e a Organização Internacional do Trabalho – OIT. A partir destes marcos, a maneira como cada Estado trata seus cidadãos não é mais competência sua, mas passa a ser de interesse internacional. Ainda, não se pode deixar de citar a Segunda Guerra Mundial, que foi o marco histórico mais desumano já visto até hoje, foi o ápice da desconsideração da dignidade humana (PIOVESAN, 2004). O sistema internacional de proteção dos direitos humanos insere – se no lento e gradual processo de positivação das garantias dos direitos humanos iniciado nas Declarações Liberais de Direitos. Foram, porém, os perversos acontecimentos da Era Hitler e da Segunda Guerra Mundial que colocaram os direitos humanos na pauta de preocupações mais urgentes das nações, levando-as à necessidade de adoção de medidas realmente efetivas para sua proteção no âmbito internacional. Nesse contexto, surge o sistema global de proteção aos direitos humanos e paralelamente os sistemas regionais de proteção a esses direitos. Cada sistema regional de proteção apresenta um aparato jurídico próprio. O Sistema europeu conta com a Convenção Europeia de Direitos Humanos, que estabelece a Comissão e a Corte Europeia de Direitos Humanos. Já o sistema africano apresenta como principal instrumento a Carta Africana de Direitos Humanos de 1981, que, por sua vez, estabelece a Comissão Africana de Direitos Humanos. O sistema interamericano tem como principal instrumento a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, que estabelece a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana. Por fim, como quarto sistema regional, embora de forma insipiente, tem-se o Sistema Árabe de proteção aos direitos humanos, que conta com a Carta Árabe de proteção (PIOVESAN, 2004). O presente artigo tem como objetivo analisar o Genocídio de Ruanda, um pequeno país localizado no continente africano, pois diante de toda a exploração por parte dos Europeus no período colonial, os africanos, mesmo após conquistar sua independência, continuaram divididos em tribos. Diante disso se questiona: será que essa divisão dificultou a implantação de um sistema de proteção aos Direitos Humanos nesse continente que tanto sofreu com a escravidão? Mesmo com a criação da ONU em 1945 e da Organização da Unidade Africana (atual UA) em 1963, como não foi possível evitar o genocídio de Ruanda em 1994? Ainda, sobre o genocídio de Ruanda, porque as tribos africanas não respeitaram a Carta Africana de Direitos Humanos que entrou em vigência no ano de 1986, “Carta de Banjul”? É inadmissível que mesmo após a formação de um Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos tais direitos continuem sendo violados. Ainda, como entender que o Continente que possui uma Organização e uma Carta de Direitos Humanos, não consegue evitar a morte de mais de 800 mil pessoas em menos de 100 dias, durante a ocorrência do fato que ficou conhecido como “Genocídio de Ruanda”? A reposta a este questionamento justifica a realização do presente artigo. 2. O SISTEMA REGIONAL AFRICANO DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS A África foi colonizada e sofreu o mais brutal crime contra a humanidade que foi a escravidão. Mas pouco se sabe da história desse continente com uma cultura tão rica, têm-se apenas registros da história dos europeus na África, assim conhecemos menos da história desse continente do que de qualquer outra parte do mundo. Todos identificamos a África como um País subdesenvolvido, com escassez de recursos básicos para a sobrevivência, mas apesar de tudo, sua cultura é vasta e expressivamente extensa. A África é um grande continente, onde estudiosos acreditam ser o berço da humanidade. 2.1 Período Pré-Colonial e Colonial da história africana No período pré-colonial da história africana, as relações entre as cidades independentes eram baseadas na soberania e cooperação. Para o povo africano os valores se encontravam na família ou na tribo, a terra pouco importava. Viviam de maneira diferenciada, quando comparado aos padrões ocidentais, pois eles não se viam como indivíduos, sua única preocupação era com o seu papel na sociedade, sempre preocupados com o grupo. Além disso, as decisões políticas eram tomadas através de consenso comunitário, e a riqueza era automaticamente redistribuída, não havia propriedade privada (ANDRADE, 1993/1994). O colonialismo na África surgiu aproximadamente na década de 1880 e estendeu-se até os anos de 1935, sendo que esta dominação colonial pode ser dividida em três períodos. O primeiro iria de 1880 a 1919, chamado de período da defesa da soberania e da independência africana. O segundo iria de 1919 a 1935, é o período de adaptação. E, o terceiro, com início em 1935, é o período dos movimentos de independência (SILVÉRIO, 2013). Não houve, no geral, preocupação por parte dos Estados colonizadores quanto ao desenvolvimento econômico de suas colônias – pelo menos até o início da Segunda Grande Guerra, quando as exigências do estado de beligerância forçaram uma consideração mais racional de seus recursos (ANDRADE, 1993/1994, p. 3). Diante do fato de ser colonizada pelas potências europeias, a África viu-se direta e indiretamente envolvida na Primeira Guerra Mundial. A consequência imediatadesta guerra, para a África, foi a invasão das colônias alemãs pelos Aliados. Após os acontecimentos desumanos da Primeira Guerra Mundial, a população africana começou a apresentar formas de resistência à autoridade europeia, sendo que a principal causa dessa revoltas foi o recrutamento forçado de soldados e de carregadores. Além disso, as restrições econômicas causadas pela guerra impulsionaram esse movimento de resistência às autoridades coloniais. Múltiplas razões explicam os levantes: desejo de recuperar a independência; ressentimento contra as medidas de guerra, como o recrutamento obrigatório e o trabalho forçado; oposição religiosa, nomeadamente pan-islâmica, à guerra. Reação às restrições econômicas geradas pela guerra; descontentamento com certos aspectos do regime colonial, cuja natureza se desvendou nitidamente durante os anos de guerra. (SILVÉRIO, 2013, p. 379). A dominação e influência estrangeira teve um impacto muito grande no continente africano. Algumas das consequências desse período colonial foram: a redução da participação da África no cenário internacional; a ridicularização do conceito de que a vida humana era sagrada; e, o respeito pela dignidade humana passou a significar respeito pelo homem branco (ANDRADE, 1993/1994). O período colonial diminuiu, senão extinguiu por completo, os direitos humanos, não houve respeito algum aos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e muito menos culturais. Após esse período de colonização, mais precisamente após a Segunda Guerra Mundial, muitos países africanos conseguiram sua independência, e começaram a participar ativamente no âmbito internacional, dando a oportunidade de se estabelecer uma organização regional nos moldes já existentes em outros continentes. 2.2 A independência dos Estados Africanos e a Organização da União Africana (OUA) Após a colonização, inicia-se a fase de independência dos países africanos, tendo como ponto de partida o ano de 1935, momento em que se iniciou a Segunda Guerra Mundial para os Africanos e que posteriormente impulsionou a independência de seus Estados. “Os anos decorridos desde 1935 constituem, em particular, um período da história durante o qual o mundo ocidental relembrou aos africanos, involuntariamente, a sua identidade pan-africana.” (SILVÉRIO, 2013, p. 456). Ainda, o movimento do pan-africanismo nasceu nos séculos XVIII e XIX em favor da luta dos negros pela libertação e contra a dominação e a exploração dos brancos, tinha como objetivo libertar e unir a África, assim como a Organização da União Africana (OUA). Após a Segunda Guerra Mundial, alguns Estados Africanos adquiriram sua independência, mudando a situação política no continente. Assim, surgiu a oportunidade de estabelecer uma organização no continente. Nesse momento pós-guerra houve a adoção da Carta das Nações Unidas, e apenas quatro Estados africanos eram independentes, quais sejam: Egito, Libéria, Etiópia e África do Sul. Mas conforme os Estados iam conquistando suas independências manifestavam a adesão a todos os instrumentos globais, pois assim inseriam- se no cenário mundial, porém raramente respeitavam tais instrumentos (ANDRADE, 1993/1994). A Organização da Unidade Africana (OUA), foi fundada em 25 de maio de 1963 na Etiópia, através da assinatura de sua constituição por representantes de 32 países africanos independentes, era composta por 53 membros, porém em 1985 o Marrocos se afastou da organização em protesto a entrada da "República Árabe Sarauí Democrática", atual Saara Ocidental (ANDRADE, 1993/1994). A Organização da Unidade Africana (OUA) instituída em 1963 com sede em Adis Abeba, na Etiópia, foi substituída, através do Ato Constitutivo de 11 de julho de 2000, pela União Africana (UA). Esta iniciou suas atividades em 2001 e é composta, atualmente, por todos os países do continente africano, exceto Marrocos. No contexto conturbado de emancipação e afirmação política, o pan-africanismo tomou força, fazendo com que fosse adotada em maio de 1963, durante a Conferência dos Chefes de Estado e de Governo Africanos, a Carta da Organização da Unidade Africana, além disso, também foi discutida a proposta de uma Convenção Africana de Direitos Humanos (ANDRADE, 1993/1994). Decorridos anos após a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e mesmo depois da OUA adotar a sua própria carta dos direitos humanos e dos povos ocorreram ainda de forma generalizada violações dos direitos humanos em muitas partes da África. 2.3 A Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos “Carta de Banjul” Com a adoção da carta africana dos direitos humanos e dos povos, a qual entrou em vigor em 21 de outubro de 1986, contendo 68 artigos, o continente africano passou a ser uma das três regiões do mundo com uma convenção de direitos humanos própria. Especificamente, a formação do Sistema Africano de Direitos Humanos ocorreu mais de três décadas após a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, cujo marco é a assinatura da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos em 1981. Esse foi o primeiro tratado africano de direitos humanos, fruto de um longo processo histórico nunca antes presenciado pela África (LUCION, WERMUTH, 2015, p. 204). Conhecida também como Carta de Banjul, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Direitos dos Povos procura preservar as características da cultura e da história africana, assegurando garantias essenciais condizentes com a realidade de violação de direitos humanos na África, como determina o artigo 2º da Carta: Artigo 2º - Toda a pessoa tem direito ao gozo dos direitos e liberdades reconhecidos e garantidos na presente Carta, sem nenhuma distinção, nomeadamente de raça, de etnia, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou de qualquer outra opinião, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. A Carta de Banjul é dividia, após seu preâmbulo, em três partes, quais sejam: Dos direitos e dos deveres; Das medidas de salvaguarda; e, por fim, disposições diversas. A inclusão dos deveres individuais é um dos diferencias da Carta de Banjul, a referência dos deveres individuais já havia sido incluída na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, porém a Carta de Banjul é o único tratado relativo a direitos humanos que enuncia a noção de deveres individuais, seguindo a tradição africana de pensar na sociedade (TAVARES, [s.d.], p. 4). Com o objetivo de assegurar e promover os direitos humanos, a Carta Africana estabeleceu em 1987, a Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos, com a finalidade de promover os direitos humanos e monitorar o cumprimento das obrigações dos Estados Africanos no âmbito da Carta. Em junho de 1998, a Conferência de Chefes de Estado e de Governo estabeleceu a Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos, sendo que 30 Estados assinaram o Protocolo à Carta de Banjul. Ainda, a Corte não deve ser localizada no mesmo país da Comissão, e tem como função complementar a de reforçar o mandato de proteção da Comissão, sendo a sua jurisdição potencialmente ampla (ANDRADE, 1993/1994). Ao aprovar o protocolo à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, os Estados Membros da OUA estavam efetivamente consagrando o início do processo que levaria a criação do Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos, que tem como finalidade complementar e reforçar o mandato da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (TAVARES, [s.d.]). O protocolo entrou em vigor em 25 de janeiro de 2004,após a ratificação por mais de 15 países. O Tribunal iniciou oficialmente as suas atividades em Adis Abeba, na Etiópia, em novembro de 2006 (TAVARES, [s.d.]). Diante disso, se questiona como o Tribunal Africano dos Direitos Humanos complementa o mandato de proteção da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos? Como é que executa as suas competências no campo dos direitos humanos? A África irá superar os desafios que essa nova era apresenta no campo dos Direitos Humanos? A maioria dos africanos busca a resposta para estas questões, porém quantos sabem alguma coisa sobre o Tribunal africano? Quantas pessoas estão cientes dos seus direitos? Ainda, no contexto dos Direitos Humanos no continente africano, não se pode deixar de destacar um evento marcante que foi o Genocídio de Ruanda, uma das maiores atrocidades contra os direitos humanos já ocorridos no mundo, que em menos de cem dias, deixou mais de 800 mil mortos em uma guerra interna decorrente de conflitos étnicos. Porém, tal evento não teve a repercussão mundial esperada. O genocídio ocorrido em Ruanda não foi julgado pela Corte Africana, mas sim pelo Tribunal Penal Internacional organizado pela ONU (MACIEL, WERMUTH, 2015). 3. GENOCÍDIO DE RUANDA: O VALOR DO SANGUE AFRICANO O genocídio em Ruanda foi uma das maiores atrocidades do século XX, tendo vitimado milhares de pessoas, destruído a economia de um país, gerado uma crise de refugiados e miséria absoluta. 3.1 O crime de genocídio O termo genocídio (do grego genos= espécie, raça, tribo + latim cide= matar) foi sugerido pela primeira vez por Raphael Lemkin, advogado polonês, no ano de 1944 para descrever os crimes cometidos pelos nazistas (BUGARIB, 2009). A palavra genocídio foi criada apenas em 1944 pelo jurista estadunidense de origem polonesa Raphael Lemkin, em sua obra Axe’s Rule in Occupied Europe, portanto enquanto Auschwitz ainda funcionava e embora a informação confiável disponível sobre o que de fato ocorria na Europa nazista não fosse muita. Genocídio designa o processo de aniquilação de um povo. A palavra teria sido inspirada por um sentido biológico, mesmo genético, baseado na visão racial hitleriana. (VALENTE, 2015, p. 247). Essa nova expressão passou a ser utilizada para definir uma prática antiga, mas agora em um contexto moderno. Lemkin definiu genocídio como “o conjunto de ações destinadas à destruição das bases essenciais para a vida de um grupo, orientadas por um plano de aniquilamento desse grupo”. (LEMKIN apud NETO, 2008, p. 329). Logo após o encerramento da Segunda Guerra Mundial, os efeitos do Estado Nazista foram revelados, diante disso, se viu a necessidade de punir os criminosos da guerra nazista, e para isso surge o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg. Quando foi criado o Tribunal, o termo genocídio ainda não era usado (COMPARATO, 2001). Inicialmente, embora tenha sido o crime mais abominável cometido pelo regime ditatorial da Alemanha, o genocídio não foi contemplado pelo Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg como crime de categoria autônoma. Encontrava- se inserido no rol de crimes contra a humanidade, classificado como exterminação ou perseguição por motivos de ordem racial. (LIMA, BRINA, 2006, p.106). Em 1946, a Assembleia Geral das Nações Unidas passou a utilizar o termo Genocídio ao aprovar a Resolução 96, datada de 11 de dezembro. Em 1948, às vésperas da adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Conselho Econômico e Social redigiu um projeto de convenção, visando a prevenção e a repressão do crime de genocídio, tratando este como um crime autônomo, não sendo necessário estar ligado a uma situação de guerra. “O crime de genocídio, declara o artigo 1º da Convenção, seja em tempo de paz ou em tempo de guerra, é um crime do Direito das Gentes”. (BUGARIB, 2009, p. 91). Portanto, em 1948 a ONU adotou a convenção para prevenção e punição do crime de genocídio, entrando em vigor no ano de 1951. A convenção faz parte do Estatuto de Roma que estabelece o Tribunal Penal Internacional. (LIMA, BRINA, 2006). Em seu artigo segundo, a convenção definiu o genocídio como os atos de destruição física, de lesões corporais ou mentais graves, medidas destinadas a impedir nascimentos, bem como a transferência forçada de menores de um grupo humano para outro (COMPARATO, 2001). Feita essa pequena retrospectiva histórica sobre o genocídio, se destaca outros casos desse crime, além daquele perpetrado pelo regime nazista, ocorridos no mundo. Na África, mais especificamente em Ruanda a guerra civil eclodiu em 1994, a tribo Hutu queria exterminar a tribo Tutsi e Hutus moderados (NETO, 2008). 3.2 O Genocídio de Ruanda Os ruandenses eram um só povo, falando a mesma língua tendo uma só cultura e vivendo em harmonia com a natureza. Quando os colonizadores chegaram, encontraram uma sociedade bem organizada, com as pessoas falando a mesma língua, com as mesmas crenças, mesma cultura. Sem diferenças. Existiam os hutus e os tutsis, mas eram apenas grupos sociais. Não eram etnias, e muito menos raças. Os alemães e, depois, os belgas, foram os colonizadores no início do século XX, porém os belgas passaram a controlar Ruanda depois da I Guerra Mundial, eles instituíram carteiras de identidade como parte da política de governo. E esse foi, basicamente, o momento em que os hutus e os tutsis que eram categorias mais flexíveis, sendo possível mudar entre elas se tornam fixas. Então, de repente fazia diferença a que grupo a pessoa pertencia (SILVÉRIO, 2013). A tribo dos hutus era composta pela maioria da população de Ruanda, porém ocupava as classes mais baixas da sociedade. Já os tutsis eram compostos por pessoas que possuíam o poder administrativo do país. Portanto, os tutsis mantinham o poder administrativo e econômico da África (MACIEL, WERMUTH, 2015). Os belgas apoiaram a liderança tutsi que estava no poder e reforçaram-na por muitos anos. Depois, na reta final para a independência, a comunidade internacional estava pressionando a Bélgica por permitir que uma minoria governasse o país, assim passaram a apoiar a maioria hutu. A guerra dos tutsis contra os hutus aconteceu por motivação dos colonizadores e de líderes locais que queriam o poder no novo regime (SILVÉRIO, 2013). Ruanda tornou-se independente em 1962, o seu primeiro presidente eleito era de natureza hutu, e ficou aproximadamente 11 anos no poder. Ente 1973 e 1994, o presidente do país foi um general que controlava o partido Movimento Revolucionário Nacional para o Desenvolvimento (MRND), este possuía fortes traços de totalitarismo. No ano de 1973, Juvenal Habyrimana se tornou presidente de Ruanda por meio de um golpe. Diante disso, os tutsis, exilados em Uganda participaram da Frente Patriótica de Ruanda, conhecida como RPF, liderada em 1994 pelo General Paul Kagame, presidente eleito do país (MACIEL, WERMUTH, 2015). Em 1990, teve início a guerra civil entre o governo e a Frente Patriótica de Ruanda, nesse momento começam a surgir rumores de genocídio, pois os hutus eram treinados e equipados pelo MRND e tinham como objetivo exterminar a população tutsi. Após um cessar fogo em 1993, parte da população hutu considerou isso uma concessão que ascendeu o ódio contra a população tutsi. Em 05 de abril de 1994, o avião em que se deslocava o presidente de Ruanda foi derrubado, e nesse dia teve início o genocídio (MACIEL, WERMUTH, 2015). Os presidentes de Ruanda e do Burundi morreram em um acidente de avião em 06 de abril, violentos combates entre as forças governamentais e os soldadosda Frente Patriótica Ruandense, os massacres Inter étnicos ganham a totalidade do país, cerca de um milhão de pessoas mortas (12 de abril-14 de junho). A FPR instala-se em Kigali (06 de julho). O pastor bizimungu é nomeado o presidente da República em 19 de julho (SILVÉRIO, 2013). O ódio imperava em Ruanda desde a colonização belga, sendo que a morte do presidente do país foi o que faltava para a eclosão da guerra. Assim, os hutus acusaram os tutsis pela morte do presidente, fazendo com que Ruanda passasse pela pior tragédia que um país pode viver. No ano de 1994, o país passou pelo inferno, muitos foram mortos, muitos saíram do país refugiados, e alguns voltaram após o massacre tentando reconstruir um “novo país” para Ruanda (SILVÉIRO, 2013). Somente em 22 de junho de 1994, o Conselho de Segurança da ONU autorizou os países a fazerem operações humanitárias em Ruanda por três meses. Assim, teve início a Operação Turquesa, organizada pela França, que encaminhou soldados para Ruanda, porém tal intervenção não obteve sucesso. No dia 20 de julho a FPR cessa fogo, após a formação do Governo Nacional da Unidade de Ruanda (MACIEL, WERMUTH, 2015). Após esse período de atrocidades o governo que tomou o poder em Ruanda, tentou mostrar o real sentido de Direitos Humanos, em que todos são iguais, independente de suas crenças e culturas. “O principal lema do governo instaurado no país, liderado por Paul Kagame, líder da FPR, era de que não existiam mais tutsis e hutus em Ruanda, apenas ruandeses, em uma tentativa de diminuição dos conflitos entre os grupos étnicos.” (MACIEL, WERMUTH, 2015, p. 226). 3.2.1 A atuação da comunidade internacional frente ao genocídio de Ruanda A Organização das Nações Unidas é fruto da Segunda Guerra Mundial e do processo de descolonização iniciado no pós-guerra. Porém, desde a sua formação a ONU desempenhou três papéis principais frente à África, quais sejam: o primeiro referente a uma potência imperial coletiva, herdado da Liga das Nações; aliado do movimento de libertação; e, por fim, parceiro no âmbito do desenvolvimento (SILVÉRIO, 2013). A comunidade internacional foi omissa frente ao genocídio de Ruanda. As nações unidas falharam em evitar o conflito, os países não se pronunciaram de maneira adequada, sendo que esse fato serviu para o aprimoramento do sistema internacional. Foi criado o Tribunal Penal Internacional, uma atuação da ONU mais voltada para questões humanitárias. Em 1994 enquanto havia o genocídio, as nações unidas discutiam se aquela situação configurava genocídio ou não, por uma questão técnica, se fosse genocídio e não um conflito interno, os Estados estariam violando a Declaração de 1948. Então, a discussão toda se pautou a classificar aquela situação de violência em decorrência de um senso feito pela Bélgica. Além disso, a comunidade internacional não conseguiu investigar, julgar e punir os responsáveis pelo genocídio, sendo criado então o Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR) em 1994, com sede em Arusha. O Tribunal tinha como função julgar os responsáveis pelo genocídio e violações da lei internacional em Ruanda ou por pessoas dessa nacionalidade nos países vizinhos. O Tribunal foi apenas o segundo desse tipo desde a Segunda Guerra Mundial, o primeiro foi criado cerca de um ano e meio após a Guerra, sendo denominado Tribunal Internacional para a antiga Iugoslávia (TPIY), ou seja, a criação de um tribunal dessa natureza não é um procedimento comum (LIMA, BRINA, 2006). Premida pela necessidade de dar uma satisfação à opinião pública, a ONU patrocinou a criação do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, que terminou sendo a principal resposta do mundo à crise humanitária ruandesa. Esta Corte não deveria ter sido a única medida da ONU e das potências mundiais em relação a Ruanda. O país ainda luta para sobreviver e suas instituições governamentais ainda merecer ser consolidadas. (PAULA, 2011, p. 135). Ambos os Tribunais citados foram criados como ad hoc, ou seja, com finalidades específicas, limitando-se aos atos cometidos em 1994 no território de Ruanda ou contra os cidadãos desse país. Para a criação desses Tribunais, o Conselho de Segurança da ONU observou magnitude, gravidade e persistência da violação dos direitos humanos, qualificando- as como ameaçadoras à organização internacional (LIMA, BRINA, 2006). 3.2.2 O julgamento do genocídio de Ruanda O primeiro julgamento do TPIR, por acaso, foi do acusado Jean Paul Akayesu, ele era o responsável pela manutenção da ordem pública e pela aplicação da lei em sua comunidade, foi preso em 10 de outubro de 1995. O julgamento de Jean Paul Akayesu durou 60 dias, sendo ouvidas 50 testemunhas de acusação e 13 de defesa, incluindo o acusado e alguns peritos. Na audiência preliminar o acusado declarou-se inocente, porém a câmara do TPIR o sentenciou à prisão perpétua, sendo esta a primeira sentença de condenação por crime de genocídio em toda a história humana (PAULA, 2011). Muitos foram julgados e condenados, entre estes se encontram líderes políticos e militares até profissionais da mídia. No ano de 2016, dois ex-prefeitos ruandenses foram julgados na França, e na data de 06 de julho de 2016 foram condenados à prisão perpétua. Ainda, há na França 26 casos sobre o genocídio de Ruanda em fase de instrução (G1). CONSIDERAÇÕES FINAIS Quando descoberta pelos Europeus, a África foi alvo de exploração, vista apenas como uma fonte de dinheiro pelos seus descobridores. O continente foi dividido e colonizado pelos europeus sem considerar as diferentes tribos, idiomas, religiões e culturas presentes. Os africanos eram vistos como inferiores pelos europeus e, devido a isto, muitos deles foram tomados como escravos, as riquezas naturais encontradas no continente eram extraídas e exportadas para as metrópoles não restando nada para os nativos. A diferenciação entre as tribos Hutu e Tutsi, foi feita pelos colonizadores, os quais começaram a dividir os indivíduos pela altura, aparência física, estrutura do nariz, tamanho do crânio. Para os colonizadores os Tutsis eram superiores, logo tiveram uma projeção social maior, e acabaram se tornando a elite africana. Porém, com o passar do tempo e com a miscigenação entre as duas etnias, a única coisa que os diferenciava era o seu documento. O genocídio é um conflito político pela busca do poder, que é movida por alguns, mas atinge a todos. O genocídio de Ruanda ocorreu por motivação dos colonizadores e líderes locais que queriam o poder. Esse massacre é um exemplo recente da violação aos direitos humanos, bem como demonstra a influência que o poder econômico e político tem no mundo. A cultura africana diminuiu seu povo. Mesmo depois de todas as explorações sofridas pelos colonizadores, a população deste continente não conseguiu promover a união entre as suas tribos, em virtude de que foram influenciados a buscar liderança e poder. A comunidade internacional foi omissa frente ao genocídio de Ruanda. As nações unidas falharam em evitar o conflito, pois as tropas enviadas foram insuficientes para conter o massacre, os países não se pronunciaram de maneira adequada. O genocídio de Ruanda demonstrou o abandono e descaso com o continente africano por parte do resto do mundo. Por fim, após os massacres e a intensa violação aos direitos consagrados na Carta de Banjul e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, houve um sentimento de consternação internacional ao ocorrido, sendo que a reconstrução de Ruanda foi custeada por outros países. Portanto, conclui-se que o massacre ocorreu principalmentepor motivação dos colonizadores que desde os primórdios disseminaram o sentimento de ganância valorizando sempre as riquezas econômicas, sendo estas consideradas sinônimo de poder e consequentemente felicidade. Mas, infelizmente, nunca pensaram ou valorizaram a maior riqueza, em todos os sentidos, que pode existir no mundo, qual seja: a paz entre os povos. REFERÊNCIAS ANDRADE, José H. Fischel de. A Proteção dos Direitos Humanos e dos Povos na África. Revista do centro de estudos africanos USP. São Paulo, 1993/1994, p. 23-53. BUGARIB, Pedro Wilson. O Crime de Genocídio. Revista juris da faculdade de direito. Vol. 2. São Paulo: FAAP, 2009. 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