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Repensando a interpretação constitucional - Inocencio Coelho

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Ano I – vol. I – n º. 5 – agosto de 2001 – Salvador – Bahia – Brasil 
 
 
 
 
REPENSANDO A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL∗∗∗∗ 
 
 
 
 
 Prof. Inocêncio Mártires Coelho 
Professor de Direito Constitucional. Presidente do Instituto Brasiliense de 
Direito Público. 
 
 
I - Compreensão e pré-compreensão. Memórias jurídicas e pós-
compreensão profissional 
 
 
Um dos mais ricos achados da hermenêutica filosófica contemporânea 
foi a descoberta de que a compreensão do sentido de uma coisa, de um 
acontecimento ou de uma situação qualquer pressupõe um pré-conhecimento 
daquilo que se quer compreender. Disso resulta que toda interpretação é 
guiada pela pré-compreensão do intérprete, como afirmou Martin Heidegger, 
em lição que nos parece definitiva: 
 
“A interpretação de algo como algo funda-se, essencialmente, numa 
posição prévia, visão prévia e concepção prévia. A interpretação nunca 
é a apreensão de um dado preliminar, isenta de pressuposições. Se a 
concreção da interpretação, no sentido da interpretação textual exata, se 
compraz em se basear nisso que “está” no texto, aquilo que, de 
imediato, apresenta como estando no texto nada mais é do que a 
opinião prévia, indiscutida e supostamente evidente, do intérprete. Em 
todo princípio de interpretação, ela se apresenta como sendo aquilo que 
a interpretação necessariamente já “põe”, ou seja, que é 
preliminarmente dado na posição prévia, visão prévia e concepção 
prévia”.1 
 
∗ Exposição realizada em Salvador, no dia 3/08/2001, por ocasião da aula inaugural da 
quarta turma do Curso de Especialização em Direito Público da Universidade Salvador 
(UNIFACS), coordenado pelo Prof. Paulo Modesto. 
 
 
 
 
 2 
 
Aceito esse ponto de partida, de que o ser do intérprete − como o de 
todo homem −, é o seu existir ou o seu modo de estar no mundo, um dado de 
realidade que limita a nossa cosmovisão, tornando-a necessariamente parcial, 
porque restrita à nossa perspectiva no momento da compreensão; e se isso for 
verdadeiro, como nos parece que o seja em linha de princípio, então 
acreditamos que uma análise realista do processo de interpretação e aplicação 
do direito − como, de resto, do processo cognitivo em geral − exige uma 
reflexão sobre os elementos ou fatores constitutivos da personalidade e do 
modo de ser dos sujeitos da interpretação, desses animais interpretativos cuja 
realidade radical, que tudo condiciona, é a sua própria vida, do jeito que ela é 
tocada em cada lugar, em cada hora. 
 
Nessa ordem de preocupações, começaríamos lembrando, com Ortega 
y Gasset, que o Eu do intérprete, de qualquer intérprete, é uma síntese que 
integra e supera os elementos que o constituem, i.e., o eu originário de cada 
um e o seu entorno ou circunstância, o mundo real em que todos se inserem e 
levam a sua vida, nessa complexa interação do que no homem é biografia e 
biologia, do que nele é história e natureza, como dizia com elegância o 
saudoso Daniel Coelho de Souza em suas aulas seminais de Filosofia do 
Direito, na Universidade Federal do Pará. 2 
 
Ainda com o autor das Meditaciones del Quijote, recordaríamos que o 
ponto de vista individual é o único ponto de vista a partir do qual nós podemos 
verdadeiramente olhar o mundo, porque a realidade − precisamente por ser 
realidade e se achar fora das nossas mentes individuais − se nos apresenta 
tão-somente em perspectivas e só pode chegar até nós multiplicando-se em mil 
faces.3 
 
Por isso, para não nos iludirmos e não tomarmos o todo pela parte − um 
pecado elementar que estamos condenados a cometer até nos darmos conta 
de que não possuímos o divino dom ubiqüidade e que a nossa visão das 
coisas, por mais abrangente que seja, será apenas mais uma entre tantas 
outras formas de encarar o mundo −, para não incorrermos nesse infantil 
equívoco existencial, devemos duvidar das evidências não refletidas e 
humildemente somar à nossa a perspectiva do Outro, pois só assim lograremos 
apreender a totalidade do real, uma tarefa que há de ser cumprida sob a lógica 
 
1 Ser e Tempo. Petrópolis, Vozes, 2ª ed., 1988, Parte I, pág. 207; Nota Explicativa 51, 
pág.23. 
2 Para uma visão interdisciplinar do fenômeno da interpretação, ver Jean-Michel 
Salanskis et all. Herméneutique: textes, sciences. Paris, PUF, 1997. Para uma análise dos 
fatores − biológicos, psíquicos e socioculturais − e do modo como eles interagem, dando 
origem à personalidade concreta de cada indivíduo como totalidade relativamente organizada e 
dinâmica, e para uma compreensão exata da frase de Ortega y Gasset: Yo soy yo y mi 
circunstancia, ver Luís Recaséns Siches. Tratado General de Filosofia del Derecho. Mexico, 
Porrua, 1965, págs.127/130 e 257/259 ; e Tratado de Sociologia. Rio, Editora Globo, 1965, 
trad. João Baptista Pinheiro de Aguiar, vol. I, págs. 143/150. 
3 Ortega y Gasset. Verdad y Perspectiva, in El Espectador. Obras Completas, cit., 
Tomo II, 1963, págs. 18/19. 
 
 
 
 3 
e mesmo a ética da diferença e da busca cooperativa da verdade, como 
preconiza o mesmo Ortega y Gasset: 
 
 
“La verdad, lo real, el universo, la vida − como queráis llamarlo −, se 
quiebra en facetas innumerables, en vertientes sin cuento, cada una de 
las cuales da hacia un individuo. Si éste há sabido ser fiel a su punto de 
vista, si há resistido a la eterna seducción de cambiar su retina por otra 
imaginaria, lo que ve será un aspecto real del mundo. 
 
Y viceversa: cada hombre tiene una misión de verdad. Donde está mi 
pupila no está otra: lo que de la realidad ve mi pupila no lo ve otra. 
Somos insustituíbles, somos necesarios: ‘ Sólo entre todos los hombres 
llega a ser vivido lo Humano’ − dice Goethe. Dentro de la humanidad 
cada raza, dentro de cada raza cada individuo, es un órgano de 
percepción distinto de todos los demás y como un tentáculo que llega a 
trozos de universo para los otros inasequibles. 
 
La realidad, pues, se ofrece en perspectivas individuales. Lo que para 
uno está en último plano, se halla para otro en primer término. El paisaje 
ordena sus tamaños y sus distancias de acuerdo com nuestra retina, y 
nuestro corazón reparte los acentos. La perspectiva visual y la 
intelectual se conplican con la perspectiva de la valoración. En vez de 
disputar, integremos nuestras visiones en generosa colaboración 
intelectual, y como las riberas independientes se aunan en la gruesa 
vena del río, compongamos el torrente de lo real.”4 ( 0s grifos são 
nossos ). 
 
 
Se a tudo isso adicionarmos o complicador ideologia, em qualquer dos 
seus diferentes sentidos e funções5; se iluminarmos esse fator no conjunto dos 
componentes sociais e culturais da personalidade individual concreta do 
intérprete-aplicador do direito; enfim, se pusermos os olhos nessa direção, 
definitivamente nos daremos conta da extrema complexidade que envolve o 
processo de atualização dos modelos jurídicos, um campo de manobra cheio 
de ciladas e de armadilhas, via de regra não percebidas pelas suas vítimas, 
porque ao fim e ao cabo somos todos animais ideológicos, como ideológica é a 
sociedade em que vivemos.6 
 
4 Op. cit., pág. 19. 
5 Sobre as origens sociais do pensamento, Karl Mannheim. Ideologia e Utopia. Rio, 
Zahar, 1968; Karl Mannheim, Wright Mills e Robert Merton. Sociologia do Conhecimento. Rio, 
Zahar, 1967; Robert Merton. La Sociologia del Conocimiento, in Sociologia del Siglo XX. 
Georges Gurvitch & Wilbert E. Moore. Barcelona, El Ateneo, 2ª ed., 1965, Tomo I, págs. 
337/373; Franco Crespi & Fabrizio Fornari. Introdução à Sociologia do Conhecimento.Bauru-
SP, EDUSC, 2000; Adam Schaff. História e Verdade. São Paulo, Martins Fontes, 4ª ed., 1987; 
sobre os diversos sentidos e funções de ideologia, Luis Villoro. El concepto de ideologia. 
México, Fondo de Cultura Económica, 1985; sobre a pré-compreensão na experiência 
hermenêutica, Hans-Georg Gadamer. Verdad y Método. Salamanca, Sígueme, 1993, 
págs.331/377; e sobre a impossibilidade antropológica do juiz “asséptico”, Eugenio Raúl 
Zafaroni. Estructuras Judiciales. Buenos Aires, Ediar, 1994, págs.199/205. 
 
 
 
 
 4 
Num plano mais elevado, no da filosofia da história, lembraríamos as 
advertências de Jaspers e Gadamer, a nos dizerem que não existe um ponto 
arquimédico exterior à história, nem tampouco caminhos que contornem o 
mundo ou a história, senão caminhos através do mundo e através da história7, 
um ensinamento que nos alerta para a ingenuidade de pretendermos analisar 
objetivamente as coisas do espírito, quando tal objetividade não se sustenta 
sequer entre as ciências exatas.8 
 
Pois bem, se observarmos todos esses “conselhos” também no ensino 
do direito constitucional, poderemos constatar, desde logo, que a sua 
compreensão, embora não determinada, será inevitavelmente condicionada9 
por fatores aparentemente aleatórios, que dirigem e modelam a nossa visão 
inicial sobre a matéria, o mesmo valendo, obviamente, para a compreensão do 
direito, em geral, enquanto instrumento ordenador de situações existenciais 
que, de alguma forma, já foram vivenciadas por nós e, precisamente por isso, 
guiarão nossos passos na caminhada da reflexão. 
 
No âmbito específico da hermenêutica constitucional, Konrad Hesse nos 
faz advertência idêntica, ao dizer que o intérprete não pode compreender o 
conteúdo da norma de um ponto situado fora da existência histórica, por assim 
dizer, arquimédico, senão somente na situação histórica concreta em que se 
encontra, e cuja maturação enformou seus conteúdos de pensamento e 
determina seu saber e seu (pré)-juízo. 
 
Em suma, o intérprete entende o conteúdo da norma a partir de uma ( 
pré )-compreensão, que primeiramente lhe torna possível olhar a norma com 
certas esperanças, projetar-se um sentido do todo e chegar a um anteprojeto 
que, então, em penetração mais profunda, carece de confirmação, correção e 
revisão, até que se determine, univocamente, a unidade de sentido, como 
resultado de permanentes aproximações entre os projetos revisados e o objeto 
que, por meio deles, se intenta compreender.10 
 
Por isso é que, aderindo aos ensinamentos de Heidegger − para quem 
todo questionamento é uma procura, que retira do procurado sua direção 
 
6 A propósito, esta instigante provocação de Paul Ricoeur: “ Ora, o que me surpreende 
nas discussões contemporâneas não é somente − ou não é tanto − o que nelas se diz sobre a 
ideologia, mas a pretensão de fazê-lo de um lugar não-ideológico chamado de ciência”. 
Interpretação e Ideologias. Rio, Francisco Alves, 1988, pág. 77; cf., também, Franco Crespi & 
Fabrizio Fornari, Introdução, cit., pág. 208. 
7 Karl Jaspers. Origen y Meta de la Historia. Madrid, Revista de Occidente, 3ª ed., 
1965, trad. Fernando Vela, págs.348 e 352; Hans-Georg Gadamer. Verdad y Método, cit., pág. 
454. 
8 Hilton Ferreira Japiassu. O mito da neutralidade científica. Rio de Janeiro, Imago 
Editora, 1975, e Introdução ao Pensamento Epistemológico. Rio, Francisco Alves Editora, 
1975. 
9Viktor E. Frankl. O Homem Incondicionado. Coimbra, Arménio Amado Editor, 1968, 
trad. Guilherme de Oliveira, pág. 164. 
 
10 Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto 
Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, págs.61/62. 
 
 
 
 5 
prévia11 −, Miguel Reale observa que qualquer pergunta já envolve, de certa 
forma, a intuição do perguntado12, enquanto Larenz acentua que o texto nada 
diz a quem não entenda já alguma coisa daquilo de que ele trata, e só fala ou 
só responde àquele que compreende a sua linguagem e o interroga 
corretamente.13 
 
Em termos próprios do vocabulário de Ludwig Wittgenstein14, dir-se-ia 
que para nos situarmos no mundo do direito e compreendermos o significado 
dos conceitos jurídicos, para termos acesso a essa esfera do real, devemos 
participar do seu jogo de linguagem, cuja compreensão, de sua vez, pressupõe 
certas vivências-chave, até porque o elemento normativo não se pode mostrar 
de modo palpável, como se mostram os objetos perceptíveis pelos sentidos 15. 
 
A propósito do termo jogo de linguagem, que é da maior importância 
para todos os campos do conhecimento e, precisamente por isso, não deve ser 
malbaratado, impõe-se atentarmos para esta advertência de Larenz: 
 
“A expressão jogo de linguagem não pode ser incorretamente 
compreendida, como se se aludisse com ela simplesmente a um jogo 
com a linguagem, a um fazer malabarismos com palavras. Um jogo de 
linguagem, tal como aqui deve ser entendido, é o modo especial como − 
adentro de uma determinada linguagem − se fala de determinado setor 
de coisas ou âmbito de experiência. Tais setores são, por exemplo, a 
natureza inanimada e a natureza viva, a técnica, a arte, ou mesmo o 
Direito. Numa linguagem, fala-se sempre sobre algo. A compreensão por 
intermédio da linguagem é compreensão de uma coisa que é trazida à 
linguagem. A coisa de que se fala na linguagem normativa da 
Jurisprudência é a coisa Direito”16. 
 
Aplicando esse precioso instrumental hermenêutico ao ensino do direito 
constitucional – especialmente o achado filosófico da pré-compreensão – 
Gomes Canotilho assinala que os estudantes chegam à universidade 
carregados de memórias constitucionais, de lembranças que se traduzem num 
conhecimento difuso, feito de imagens, representações e idéias, digamos, 
irracionais, sobre os principais problemas com que se defrontam a teoria e a 
práxis constitucionais, noções vagas e imprecisas que serão ordenadas ao 
longo da sua formação acadêmica 17. 
 
 
11 Idem, idem, pág. 30. 
12 Lições Preliminares de Direito. São Paulo, Saraiva, 1986, 13ª ed., pág. 1. 
13 Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa, Gulbenkian, 1989, 2ª ed., pág. 377 
e 444. 
14 Ludwig Wittgenstein. Investigações Filosóficas. Lisboa, Gulbenkian, 1995, pág. 177; 
Dicionário Wittgenstein. Rio, Zahar, 1998, págs.225/229. 
15 Karl Larenz, op. cit., págs.236/239 . 
 
16 Op. cit., pág. 238. 
17 Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra, Almedina, 1998, págs. 
23/24. 
 
 
 
 6 
Na mesma linha, desta feita nos domínios da ciência política, essa pré-
compreensão institucional foi descrita por Georges Burdeau em linguagem tão 
sugestiva que não cometeríamos excesso se a reputássemos uma das mais 
didáticas introduções ao estudo dos problemas Estado: 
 
“Ninguém jamais viu o Estado. Não obstante, quem poderia negar que 
se trata de uma realidade? O lugar que ocupa em nossa vida cotidiana é 
tão importante, que não poderia ser eliminado dela sem que, por sua 
vez, se vissem comprometidas nossas possibilidades vitais. A ele 
atribuímos todas as paixões humanas: é generoso ou ladrão, engenhoso 
ou estúpido, cruel ou benévolo, discreto ou invasor. E porque o 
consideramos sujeito a esses movimentos da mente ou do coração 
humanos, a ele dedicamos os mesmos sentimentos que nos inspiram as 
pessoas: confiança ou temor; admiração ou desprezo; ódio muitas 
vezes; porém, em certas ocasiões, um tímido respeito ou uma adoração 
atávica e inconsciente do poder se misturam com a necessidade de 
acreditar que nosso destino, embora misterioso, não é um joguete do 
acaso. Se a história do Estadoresume nosso passado, sua existência 
atual parece prefigurar nosso futuro. Se às vezes o maldizemos, logo 
nos damos conta de que, para o bem ou para o mal, estamos ligados a 
ele”.18 
 
No caso particular dos cursos de especialização, cujos alunos já 
transformaram a sua pré-compreensão estudantil em pós-compreensão 
profissional − em verdade uma nova pré-compreensão, embora mais 
requintada, que lhes balizará os passos seguintes, e assim sucessivamente19 
−, nesse contexto ideológico sobe de importância o papel dessas vivências e 
memórias, porque todos os participantes estão afeitos ao jogo de linguagem do 
direito, e seus conhecimentos demandam, quando muito, apenas 
aprimoramentos conceituais e/ou refinamentos teóricos, uns e outros só 
plenamente alcançáveis na troca de idéias e de experiências entre os diversos 
interlocutores.20 
 
Por outras palavras, tendo em vista o propósito que inspira os seus 
protagonistas − questionar seus próprios dogmas profissionais, que 
espontaneamente se dispõem a colocar sob suspeita − afigura-se 
indispensável, para torná-los fecundos, que os debates se travem em 
condições lingüísticas ideais; no âmbito de um auditório que de direito se possa 
considerar universal 21 e onde todos estejam sinceramente dispostos ao 
diálogo e à busca cooperativa da verdade; em situações discursivas nas quais 
os interlocutores sejam tratados como pessoas ou sujeitos livres e iguais; onde 
 
 
18 El Estado. Madrid, Seminarios y Ediciones, S.A., 1975, pág. 9; Traité de Science 
Politique. Paris, L.G.D.J., 1980, tomo II, págs. 180/183. 
19 Jürgen Habermas. Dialética e Hermenêutica. Porto Alegre, L&PM, 1987, pág. 29. 
20 Jürgen Habermas. Teoria de la acción comunicativa. Madrid, Taurus, 1988, Tomo I, 
pág. 46 . 
 
21 Chaïm Perelman & Lucie Olbrechts-Tyteca. Tratado da Argumentação. São Paulo, 
Martins Fontes, 1996, págs.34/39. 
 
 
 
 7 
os argumentos de autoridade e violências afins cedam lugar à persuasão 
racional; em ambientes nos quais estejam proscritas todas as formas de 
coação, salvo a coerção sem coerções que exerce o melhor argumento; num 
espaço, enfim, verdadeiramente aberto, pluralista e democrático − 
ideologicamente arejado, portanto − onde a busca do consenso não interdite o 
dissenso, mesmo sabendo-se que esse acordo pragmático, que se alcança 
exclusivamente pela mediação retórica, poderá ser (des)qualificado, desde 
logo, como um prejuízo unitário ou um grande preconceito coletivo.22 
 
Trata-se, evidentemente, de um processo puramente formal e fictício – 
tão imaginário quanto o contrato social, como observa Arthur Kaufmann 23 – 
mas que nem por isso devemos descartar de plano, em nome de um cínico 
realismo existencial, que não nos proporciona resultados melhores e acaba 
legitimando posições de força ou desvios de persuasão. 
 
Essa a razão pela qual − conscientes de que o processo do 
conhecimento, além de uma relação onto-gnosiológica ou subjetivo-objetiva, é 
também uma atividade inter-subjetiva, que envolve pessoas e gerações; e 
convencidos, ademais, de que a interação professor-aluno é da essência da 
aprendizagem como valor compartilhado e mutuamente adquirido24 −, 
reconhecemos o diálogo e a ética no discurso como formas genuínas de busca 
da verdade, uma atitude intelectual que, de resto, reflete o ensinamento dos 
mais importantes pensadores contemporâneos, entre os quais merece 
destaque a figura de Karl-Otto Apel, de quem registramos esta severa lição: 
 
“Para que haja comunicação é necessário que o Outro fale e reconheça 
o que eu falo. Nesse eixo já existe a assunção mínima de que há um 
campo democrático e de respeito na argumentação sem o qual não 
existe comunicação. É por isso que afirmo que é um tipo de 
racionalidade que demanda um outro tipo de binômio cognitivo: 
sujeito/co-sujeito e não sujeito/objeto, como nas teorias solipsistas 
modernas. É uma validade epistemológica intersubjetiva e não uma 
busca de objetividade ingenuamente neutra, como nos propõe uma 
ciência cega. 
 
Os cientistas estão imersos em uma comunidade comunicacional real, 
do contrário não conseguem nem mesmo fazer a hipótese ‘acontecer’. 
Se um grupo de pessoas discute algo com a intenção de chegar a uma 
conclusão, quem roubar no jogo destrói a argumentação. Não se trata 
de uma ‘adesão’ volitiva irracional de tipo popperiano, mas de uma 
adesão racional cognitiva: se roubarmos no jogo, acaba a 
 
22 Fritjof Haft, apud Norbert Hoerster, in En Defensa del Positivismo Jurídico. 
Barcelona, Gedisa Editorial, 1992, pág.106. 
23 Filosofia del Derecho. Bogotá, Universidad Externado de Colombia, 1999, pág. 487. 
24 Earl V. Pullias & James Douglas Young. A Arte do Magistério. Rio, Zahar, 1970, pág. 
196: “ O professor se expande e aprende à medida que experimenta idéias com estudantes, 
que, por sua vez, estão-se expandindo sob a influência de novo conhecimento; quando começa 
a compreender o que os estudantes sabem a respeito dos objetos e conceitos e percebe o 
quanto eles diferem em compreensão, seus próprios conceitos serão ampliados com idéias que 
não lhe tinham ocorrido antes”. 
 
 
 
 8 
argumentação, e a cognição buscada se desfaz. Sem esse campo 
democrático de respeito, toda fala é blablablá... É a argumentação que 
deve ser o modelo transcendental (sentido kantiano) para a fundação de 
uma ética atualmente (o que chamo de ética da discussão), em um 
mundo pós-metafísico, sem Deus e cheio de almas mortais que se inter-
relacionam não mais dentro de esquemas culturais grupais fechados 
(que sustentavam a ética solidária no passado), mas por meio de 
gigantescas redes tecnológicas e comerciais impessoais.”25 
 
Com esse propósito aqui estamos para trocar idéias com todos quantos 
se disponham a fazê-lo sem preconceitos, inclusive discutindo os modelos e o 
papel da jurisdição constitucional, enquanto derradeira e privilegiada instância 
de leitura da constituição. 
 
 
II −−−− A distinção entre princípios e regras e sua importância para a 
interpretação constitucional 
 
 
Das mais relevantes para prática do direito, sobretudo em âmbito 
constitucional, essa distinção tem como base a estrutura normativo-material 
dos preceitos que integram a parte dogmática das constituições, com enormes 
reflexos na sua interpretação e aplicação, como se verá adiante. 
 
Inicialmente, embora nos desobrigando de discutir uma como que 
diferença ontológica entre regras e princípios, até porque essa suposta 
ontologia não resiste ao teste da experiência nos diferentes quadrantes do 
mundo jurídico26, dispensando-nos desse esforço essencialista, afirmaremos, 
com Marcel Stati, que “aquilo que caracteriza particularmente o princípio − e 
isto constitui sua diferença com a regra de direito (...) − é, de um lado, a falta de 
precisão e, de outro, a generalização e abstração lógica...” 27 
 
Sob perspectiva um tanto diversa, Josef Esser distingue aquelas duas 
espécies normativas dizendo que “os princípios jurídicos, diferentemente das 
normas [regras] de direito, são conteúdo em oposição a forma, embora o uso 
dessas categorias aristotélicas − adverte − não nos deva induzir a pensar que a 
forma seja o acessório de algo essencial”, até porque “ histórica e 
efetivamente, a forma, entendida processualmente como meio de proteção do 
direito ou materialmente como norma, é sempre o essencial, o único que pode 
conferir realidade e significação jurídica àquele conteúdo fundamental ainda 
não reconhecido como ratio.” 28 
 
 
25 Entrevista a Luiz Felipe Pondé, Caderno Mais!, da “Folha de S.Paulo”, ed. de 
26/9/99. 
26 Cf., por todos, Josef Esser. Principio y norma en la elaboración jurisprudencialdel 
derecho privado. Barcelona, Bosch, 1961, especialmente as págs.113/179. 
27 Le Standard Juridique. Paris, LJAM, 1927, pág. 56 
28 Princípio y norma, cit., pág.65. 
 
 
 
 9 
Se, por outro lado, adotarmos o critério de Ronald Dworkin, diremos que 
a diferença entre regras e princípios é de natureza lógica e que decorre dos 
respectivos modos de aplicação29. 
 
Com efeito, em razão da sua estrutura normativo-material − se A, deve 
ser B −, as regras são aplicadas à maneira de proposições disjuntivas, isto é, 
se ocorrerem os fatos descritos na sua hipótese de incidência e se elas forem 
normas válidas, de acordo com a regra de reconhecimento30 do sistema a que 
pertencem, as suas prescrições incidirão necessariamente sobre esses fatos, 
regulando-os na exata medida do que estatuírem e afastando − como inválidas 
− outras regras, que, eventualmente, possam concorrer ou entrar em conflito 
com elas. 
 
Noutras palavras, em se tratando de regras de direito, sempre que a sua 
previsão se verificar numa dada situação de fato concreta, valerá para essa 
situação exclusivamente a sua conseqüência jurídica, com o afastamento de 
quaisquer outras que dispuserem de maneira diversa, porque no sistema não 
podem coexistir normas incompatíveis. 
 
Se, ao contrário, aqueles mesmos fatos constituírem hipótese de 
incidência de outras regras de direito, estas e não as primeiras é que regerão a 
espécie, também integralmente e com exclusividade, afastando-se − por 
incompatíveis − as conseqüências jurídicas previstas em quaisquer outras 
regras pertencentes ao mesmo sistema jurídico. 
 
Daí se dizer que, na aplicação aos casos ocorrentes, disjuntivamente as 
regras valem ou não valem, incidem ou não incidem, umas afastando ou 
anulando as outras, sempre que as respectivas conseqüências jurídicas forem 
antinômicas ou reciprocamente excludentes. 
 
Como o Direito, pelo menos enquanto ordenamento ou sistema, não 
tolera antinomias ou contradições, ao longo dos séculos de interpretação das 
leis a jurisprudência foi elaborando algumas regras, de aceitação generalizada, 
para resolver os conflitos entre normas, pelo menos aqueles simplesmente 
aparentes, já que as antinomias reais permanecem insolúveis ou têm a sua 
resolução confiada ao poder discricionário do intérprete, como assinala 
Norberto Bobbio.31 
 
 
29 Los derechos en serio. Barcelona, Ariel, 1995, pág. 74 e segs. 
30 Herbert Hart. El concepto de Derecho. Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1968, págs. 
117/118. 
31 Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília, Editora da UnB/Polis, 1989, pág.100. 
Embora formulada em contexto diverso, merece registro esta observação de Manuel Calvo 
García sobre a racionalidade das leis: "Frente a uno de los postulados más característicos de la 
concepción metodológica tradicional, las teorías de la argumentación defienden que el 
legislador real no es racional o, lo que es igual, que no hace leyes perfectas que prevean 
soluciones claras y no contradictorias para cualquier caso hipotético que pueda producirse, y 
que, por lo tanto, quines tienen que ser racionales son los juristas, quienes interpretan y aplican 
la ley." Los fundamentos del método jurídico: una revisión crítica. Madrid, Tecnos, 1994, pág. 
217. 
 
 
 
 10 
Fruto desse trabalho jurisprudencial, a que não faltou suporte 
doutrinário, são os chamados critérios cronológico, hierárquico e da 
especialidade, usualmente enunciados em latim − lex posterior derogat priori; 
lex superior derogat inferiori; lex specialis derogat generali −, em verdade 
simples regras técnicas que, na generalidade dos casos, ao serem utilizadas 
dão-nos a nítida sensação de que resolveram falsos problemas. 
 
É que, efetivamente, a incidência de uma norma afasta a incidência da 
outra, de tal sorte que, no mais das vezes, as chamadas regras de solução de 
conflitos são invocadas pelos aplicadores do direito, menos para resolver do 
que para declarar inexistentes supostos defeitos lógicos nos ordenamentos em 
que operam. 
 
Afinal de contas, parece-lhes intuitivo que aquelas regras, precedendo a 
promulgação das normas jurídicas, previnam ou evitem o surgimento de 
contradições entre elas, as quais, precisamente por isso, podem ser 
descartadas como simplesmente aparentes. 
 
Esse procedimento seria correto se − contra toda a evidência − existisse 
de fato o legislador racional32 e os sistemas jurídicos, fruto do seu trabalho, 
fossem logicamente consistentes ou imunes à ocorrência de conflitos reais, de 
situações em que duas normas (i) pertencentes ao mesmo ordenamento, (ii) 
dotadas de igual hierarquia, (iii) editadas simultaneamente e (iv) possuindo 
idêntico âmbito de validade, ainda assim estabelecem para um mesmo caso 
soluções que − pelo menos aos olhos do intérprete ! − parecem mutuamente 
incompatíveis.33 
 
Por isso, nesses casos modelares de contradições entre normas − 
hipóteses que Alf Ross aponta como de inconsistência total-total ou de 
incompatibilidade absoluta, no âmbito dos problemas lógicos de interpretação 
do Direito34 −, não se encontram soluções manejando os critérios cronológico, 
hierárquico e da especialidade, até porque eles são congenitamente 
insuficientes; podem entrar em contradição mútua; e, afinal, só “resolvem” 
mesmo os conflitos aparentes de normas. 
 
No campo da aplicação dos princípios, ao contrário, a maioria entende 
que não se faz necessária a formulação de regras de colisão, porque essas 
 
32 Sobre a ficção do legislador racional, ver Carlos Santiago Nino. Consideraciones 
sobre la Dogmática Jurídica. México, UNAM, Instituto de Investigaciones Jurídicas, 1974, págs. 
85/101. 
33 Carlos Santiago Nino. Notas de introducción al derecho, cit., pág.58; Norberto 
Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, cit., págs. 86/91. A propósito − para ressaltar a 
dificuldade na identificação das antinomias − registre-se a auto-crítica de Roberto J. Vernengo 
no sentido de que ainda são relativamente pobres os instrumentos de investigação semântica 
de que dispõem os juristas para testar o rigor dos seus métodos, e de que não existem critérios 
razoavelmente confiáveis de que se possam utilizar para dizer quando duas expressões 
normativas ordenam ou prescrevem um mesmo comportamento. La interpretación literal de la 
ley. Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1971, pág. 6. 
34 Sobre el derecho y la justicia. Buenos Aires, Editorial Universitária de Buenos Aires, 
4ª ed., 1977, págs.124/125. 
 
 
 
 11 
espécies normativas − por sua própria natureza, finalidade e formulação − 
como que não se prestam a provocar conflitos, criando apenas momentâneos 
estados de tensão ou de mal-estar hermenêutico, que o operador jurídico prima 
facie verifica serem passageiros e plenamente superáveis no curso do 
processo de aplicação do direito. 
 
 Daí esta precisa observação de Humberto Bergmann Ávila sobre a 
natural inapetência dos princípios para entrar em conflito quando manejados 
pelos seus intérpretes e aplicadores: 
 
 “A própria idéia de “conflito” deve ser repensada. Ora, se o conteúdo 
normativo de um princípio “depende” da complementação (positiva) e 
limitação (negativa) decorrente da relação dialética que mantém com 
outros princípios, como conceber a idéia de “colisão”? Tratar-se-ia de 
um conflito aparente e não-uniforme, já que a idéia de conflito pressupõe 
a identidade de hipóteses e campos materiais de aplicação entre as 
normas que eventualmente se contrapõem, o que no caso dos princípios 
é previamente inconcebível: os princípios são definidos justamente em 
função de não possuírem uma hipótese e uma conseqüência 
abstratamente determinadas. O problema que surgena aplicação reside 
muito mais em saber qual dos princípios será aplicado e qual a relação 
que mantêm entre si”. 35 
 
É que, diferentemente das regras, que possuem hipóteses de incidência 
fixas e conseqüências jurídicas determinadas − por isso elas estão sujeitas a 
conflitos e recíproca exclusão − os princípios não se apresentam como 
imperativos categóricos nem como ordenações de vigência, apenas 
enunciando motivos para que se decida num ou noutro sentido. Em palavras de 
Karl Larenz, diríamos que, em si mesmos, os princípios não são − ou ainda não 
são − regras suscetíveis de aplicação direta e imediata, mas apenas pontos de 
partida ou pensamentos diretores, que apontam para a norma a ser descoberta 
ou formulada pelo intérprete-aplicador à luz das exigências do caso.36 
 
Sem imporem aos seus operadores uma única decisão correta e justa 
(one right answer), eles admitem convivência e conciliação com outros 
princípios, igualmente válidos e eventualmente concorrentes, que ofereçam 
razão para soluções em sentido diverso, tudo isso num complexo jogo 
concertado que só se desenrola mediante complementações e restrições 
recíprocas; ou, se preferirmos, num processo essencialmente dialético, que se 
inicia no instante mesmo em que o intérprete-aplicador esboça a aplicação dos 
princípios às situações da vida, e que se conclui quando, logrando concretizá-
 
 
35 A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade, in 
Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, 215:151-179, jan.mar.1999 ( Nota 48, à pág. 
162 ). 
36 Derecho Justo. Fundamentos de Ética Jurídica. Madrid, Civitas, 1993, trad.Luis Díez-
Picazo, págs.33. 
 
 
 
 12 
los, ele dá fiel cumprimento a esses mandatos de otimização recebidos do 
legislador.37 
A sua gênese e o modo como são positivados nos textos constitucionais 
evidenciam, por outro lado, que os princípios jurídicos possuem, igualmente, 
uma importante dimensão institucional, como fatores de criação e manutenção 
de unidade política, à medida que, nos momentos constituintes, por exemplo, 
graças à amplitude e à indeterminação do seu significado, eles viabilizam 
acordos ou pactos de convivência sem os quais as disputas ideológicas seriam 
intermináveis, e os conflitos delas resultantes não permitiriam a promulgação 
consensual das leis fundamentais. 
 
É o que se recolhe em Vital Moreira, ao descrever o processo decisório 
− do qual participou como constituinte −, em torno dos princípios fundamentais 
que sintetizam a Constituição Portuguesa de 1976: 
 
“Mas os Princípios Fundamentais são uma imagem da Constituição 
ainda num outro sentido: é que, tal como a Constituição global, também 
eles configuram um compromisso entre as principais forças políticas que 
geraram a Constituição. Nos Princípios Fundamentais nenhum dos 
partidos que participaram na elaboração da Constituição se poderá rever 
integralmente, mas todos eles − naturalmente uns mais do que outros − 
contribuíram com algo de seu para o compromisso constitucional que 
naqueles se reflecte. Disso, aliás, se teve consciência durante a sua 
elaboração. Em declaração de voto relativa ao projecto que continha os 
futuros princípios fundamentais, o deputado Medeiros Ferreira (PS) 
afirmou na Assembleia Constituinte: 'Pode afirmar-se que os princípios 
fundamentais garantem a coabitação, numa mesma ordem 
constitucional, das várias correntes políticas, verdadeiramente 
representativas do povo português presentes nesta Assembléia' (Diário 
da Assembleia Constituinte, p. 607). Isso mesmo resulta também das 
respectivas votações na Assembléia. Assim, o projecto global não teve 
votos contra de qualquer dos quatro maiores partidos − apenas o PCP 
se absteve − e a quase totalidade dos artigos foi aprovada na 
especialidade sem votos contra desses partidos”.38 
 
A propósito da dimensão polissêmica dos princípios, da sua múltipla 
funcionalidade e do modo como se desenvolve o jogo da sua aplicação, o 
Supremo Tribunal Federal, numa decisão que se pode considerar 
paradigmática, deixou assentado que em face da Constituição, para conciliar o 
fundamento da livre iniciativa e o princípio da livre concorrência com os 
princípios da defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, 
em conformidade com os ditames da justiça social − valores que seriam 
 
37 Claus-Wilhelm Canaris. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência 
do Direito. Lisboa, Gulbenkian, 1989, págs. 88/99; Karl Larenz. Metodologia, cit, 1989, pág.579: 
“É decisivo, por outro lado, que o pensamento não procede aqui ‘linearmente’, só num sentido: 
o princípio esclarece-se pelas suas concretizações e estas pela sua união perfeita com o 
princípio”. 
38 Revisão Constitucional e “Princípios Fundamentais”, in Constituição e revisão 
constitucional. Coimbra, Editorial Caminho, 1980, pág. 73. 
 
 
 
 13 
inconciliáveis, se fossem tomados em sentido absoluto − diante disso tudo 
pode o Estado, por via legislativa, regular a política de preços de bens e de 
serviços, abusivo que é o poder econômico que visa ao aumento arbitrário dos 
lucros.39 
Trata-se, portanto, nunca é demasiado insistir, de uma espécie de 
convivência necessariamente amistosa − um jogo concertado −, que admite e 
até mesmo exige conciliações, menos pela natureza, digamos, pacífica dos 
princípios, do que pelo fato de as colisões entre eles não serem antinomias 
jurídicas propriamente ditas, embora possam dar lugar a regras 
incompatíveis40. 
 
Com efeito, na decisão acima referida, acolhendo os argumentos do 
Relator, a nossa corte constitucional mais não fez do que ponderar e relativizar 
o peso dos princípios concorrentes e, diante das circunstâncias do caso, 
legitimar a intervenção legislativa do Estado em determinado setor da atividade 
econômica, sem que assim decidindo tenha invalidado qualquer dos standards 
normativos em conflito, os quais, abstratamente considerados, conservaram a 
sua força normativa, assim como a sua relevância constitucional. 
 
Se e quando, à vista de um outro caso concreto, aqueles mesmos 
princípios voltarem a entrar em estado de tensão − e novamente a depender 
das circunstâncias −, o tribunal poderá levar a cabo um balanceamento diverso, 
atribuindo maior peso ao princípio que, na situação anterior, recebera menor 
ponderação. 
 
Por isso é que, diante das antinomias de princípios, quando em tese mais 
de uma pauta lhe parecer aplicável à mesma situação de fato, ao invés de se 
sentir obrigado a escolher este ou aquele princípio, com exclusão de todos os 
demais que, prima facie, ele reputa igualmente utilizáveis como norma de 
decisão, nesse momento o intérprete fará uma ponderação entre os standards 
concorrentes − obviamente se todos tiverem igual validade, pois só princípios 
válidos podem entrar em colisão41− optando, afinal, por aquele que, nas 
circunstâncias, e segundo a sua prudente avaliação, deva ter um peso 
relativamente maior em termos de otimização da justiça. 
 
Porque se trata de um método de ponderação de bens no caso concreto, 
é intuitivo que, pelo menos sob esse prisma, não exista uma hierarquia fixa, 
abstrata e apriorística, entre os diversos valores e/ou princípios constitucionais, 
ressalvada – porque axiologicamente fora de cotejo − a dignidade da pessoa 
humana como valor-fonte de todos os valores, valor fundante da experiência 
ética ou, se preferirmos, como princípio e fim de toda ordem jurídica.42 
 
39 ADIn 319/DF, Relator Ministro Moreira Alves, RTJ 149/666-692. 
40 Norberto Bobbio. Teoria General del Derecho. Bogotá, Temis, 1987, pág.190; 
Josef Esser, Princípio y norma, cit.,págs. 55/56. 
41 Robert Alexy. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid, Centro de Estudios 
Constitucionales, 1993, pág. 89. 
 
42 Cf., sobre a transcendentalidade do valor pessoa humana, Battista Mondin. A 
metafísica da pessoa como fundamento da Bioética, in Questões atuais de Bioética, Stanislav 
 
 
 
 14 
Considerando, como acentuamos acima, que em função do contexto a 
avaliação dos princípios pode mudar de sinal, o fato de se atribuir maior 
importância a um deles, em determinada situação, não invalida nem 
desqualifica a pauta que se deixou de aplicar, porque a sua preterição terá 
decorrido exclusivamente da análise das circunstâncias do caso, não valendo, 
por isso mesmo, sequer como precedente. É que, ao contrário das regras de 
direito –que se caracterizam como mandatos de realização – os princípios 
jurídicos são mandatos de otimização e, por isso, podem e devem ser 
aplicados na medida do possível e com diferentes graus de efetivação43. 
 
Nesta última característica – a de serem mandatos de otimização – é 
que ao ver de Alexy reside o atributo fundamental dos princípios jurídicos, 
permitindo-lhe afirmar que se trata de normas qualitativamente distintas das 
regras de direito: 
 
“O ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os 
princípios são normas que ordenam que algo se realize na maior medida 
possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, 
os princípios são mandatos de otimização, caracterizando-se pelo fato 
de que podem ser cumpridos em diferentes graus, e a medida do seu 
cumprimento não depende apenas das possibilidades reais, mas 
também das possibilidades jurídicas. O âmbito dessas possibilidades 
jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostos. As regras, ao 
contrário, só podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então 
há de se fazer exatamente o que ela exige, nem mais, nem menos. Por 
conseguinte, as regras contêm determinações no âmbito do que é fática 
e juridicamente possível. Isto significa que a diferença entre regras e 
princípios é qualitativa e não de grau. Toda norma ou é uma regra, ou é 
um princípio.”44. 
 
A despeito da grande aceitação que mereceu da doutrina, não são 
poucos os autores de expressão que opõem resistência a esse critério 
diferenciador, seja acentuando que não somente os princípios, mas também as 
regras, seriam mandatos de otimização, seja afirmando que não apenas as 
regras, mas também os princípios, podem entrar em colisão total, de sorte que, 
num caso concreto, a aplicação de determinado princípio afastaria os outros, 
eventualmente colidentes, como não pertencentes ao mesmo ordenamento 
jurídico. 45 
 
 
Ladusãns (Coord.). São Paulo, Edições Loyola, 1990, págs.147/174, e Definição filosófica da 
pessoa humana. Bauru-SP, EDUSC, 1998; Miguel Reale. Pluralismo e Liberdade. São Paulo, 
Saraiva, 1963, págs. 70/74, e Filosofia do Direito. São Paulo, Saraiva, 1982, págs. 211/214; 
Gregorio Peces-Barba. Los Valores Superiores. Madrid, Tecnos, 1986, págs. 112 e 121; 
Joaquín Arce y Flórez-Valdés. Los principios generales del Derecho y su formulación 
constitucional. Madrid, Civitas, 1990, págs. 144/151; e Edilsom Pereira de Farias. Colisão de 
Direitos. Porto Alegre, Sergio Fabris, 1996, págs.21/55. 
 
43 Robert Alexy. Derecho y razón práctica. México, Fontamara, 1993, págs. 12/14. 
44 Teoria de los Derechos Fundamentales, cit., págs.86/87. 
45 Humberto Bergmann Ávila, op. cit., págs. 163/164. 
 
 
 
 15 
Por isso, a idéia de mandato de otimização ao invés de servir de 
fundamento para uma diferença qualitativa entre regras e princípios, antes 
representaria uma simples técnica de argumentação, utilizável não somente na 
aplicação dos princípios, mas também na concretização de todo e qualquer 
standard normativo.46 
 
Apontando as diferenças usualmente indicadas entre regras e princípios, 
observa Gomes Canotilho tratar-se de uma tarefa particularmente complexa, 
mas que pode ser cumprida com base nos seguintes critérios: 
 
• grau de abstração: os princípios jurídicos são normas com um grau de 
abstração relativamente mais elevado do que o das regras de direito; 
 
• grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os 
princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações 
concretizadoras (e.g. do legislador ou do juiz), enquanto as regras são 
suscetíveis de aplicação direta; 
 
• caráter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito: os 
princípios são normas de natureza ou com um papel fundamental no 
ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes 
(e.g. os princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do 
sistema jurídico (e.g. o princípio do Estado de Direito); 
 
• proximidade da idéia de direito: os princípios são standards 
juridicamente vinculantes, radicados nas exigências de justiça (Dworkin) ou na 
idéia de direito (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com um 
conteúdo meramente funcional; 
 
• natureza normogenética: os princípios são fundamentos de regras, isto 
é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, 
desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante.47 
 
Vistas as coisas sob essa perspectiva, impõe-se reconhecer que a 
chamada interpretação especificamente constitucional, pelo menos enquanto 
hermenêutica diferenciada, está restrita à parte dogmática das constituições, 
àquele capítulo em que se compendiam os direitos fundamentais, e na exata 
medida em que os seus enunciados se apresentam como princípios, em 
linguagem aberta, indeterminada e polissêmica, carente portanto de 
concretização antes que de interpretação. 
 
Numa palavra, só podemos falar em interpretação especificamente 
constitucional com relação a princípios jurídicos e não também com referência 
a simples regras de direito, pois uma coisa é aplicar preceitos que possuem 
hipóteses de incidência e conseqüências jurídicas bem determinadas, e outra − 
 
46 Luis Prieto Sanchís. Sobre Princípios y Normas. Madrid, Centro de Estudios 
Constitucionales. 1992, págs.44/50. 
 
47 Direito Constitucional , cit., págs. 1034/1035. 
 
 
 
 16 
muito diversa − é emprestar força normativa a enunciados que não comportam 
aplicação direta, antes apenas mediatizada pelos operadores jurídicos, em 
razão da latitude e da fluidez com que essas pautas axiológicas aparecem nas 
constituições modernas. 
 
Dada, por outro lado, a singular dificuldade desse trabalho de 
concretização − e nisto, insista-se, consiste a interpretação especificamente 
constitucional − a doutrina e a jurisprudência desenvolveram os métodos e 
princípios adequados à matéria com que trabalham, de resto uma exigência 
epistemológica elementar, pois todo objeto impõe o método adequado à sua 
abordagem, em qualquer domínio do conhecimento. 
 
 
III - Métodos e princípios da interpretação constitucional 
 
 
Em primeiro lugar − citando o mesmo CANOTILHO − devemos salientar 
que, atualmente, a interpretação das normas constitucionais é um conjunto de 
métodos, desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência com base em 
critérios ou premissas ( filosóficas, metodológicas, epistemológicas) diferentes 
mas, em geral, reciprocamente complementares, o que realça o caráter unitário 
da atividade interpretativa, em geral.48 
 
Tais métodos, como referidos pelo ilustre constitucionalista português, 
são o jurídico ou clássico; o tópico-problemático; o hermenêutico-concretizador; 
o científico-espiritual; eo normativo-estruturante, cujos traços mais 
significativos podem ser resumidos nos termos seguintes: 
 
a) método jurídico: a Constituição é uma lei e, como tal, pode e deve ser 
interpretada segundo as regras tradicionais da hermenêutica, articulando-se, 
para revelar-lhe o sentido, os elementos filológico, lógico, histórico, teleológico 
e genético; 
b) método tópico-problemático : o caráter prático da interpretação 
constitucional, assim como a estrutura normativo-material aberta, fragmentária 
ou indeterminada da constituição, impõem se dê preferência à discussão dos 
problemas ao invés de se privilegiar o sistema, o que, afinal, transformaria a 
interpretação constitucional num processo aberto de argumentação; 
 
c) método hermenêutico-concretizador : a leitura de um texto 
constitucional, assim como a de qualquer outro texto normativo, inicia-se pela 
pré-compreensão do seu sentido através do intérprete, a quem compete 
concretizar a norma a partir de uma situação histórica igualmente concreta; a 
interpretação, que assim se obtém, realçará os aspectos subjetivos e objetivos 
da atividade hermenêutica − a atuação criadora do intérprete e as 
circunstâncias em que se desenvolve − relacionando texto e contexto e 
transformando o ato interpretativo “em movimento de ir e vir”, o chamado 
círculo hermenêutico; 
 
48 Direito Constitucional, cit., pág. 1084. 
 
 
 
 17 
 
d) método científico-espiritual : a interpretação constitucional deve levar 
em conta a ordem ou sistema de valores subjacente à constituição, assim 
como o sentido e a realidade que esta possui como elemento do processo de 
integração comunitária; 
 
e) método normativo-estruturante: na tarefa de concretização da norma 
constitucional, o intérprete-aplicador deve considerar tanto os elementos 
resultantes da interpretação do programa normativo, quanto os decorrentes da 
investigação do domínio normativo, a que correspondem, na doutrina 
tradicional, respectivamente, a norma propriamente dita e a situação normada, 
o texto e a realidade social que o mesmo intenta conformar. 
 
Finalmente, a título de conclusão, merecem referência os chamados 
princípios da interpretação constitucional, os quais − à semelhança dos 
métodos acima apontados − também devem ser aplicados conjuntamente, 
como condição indispensável a que o ato de interpretação constitucional se 
revele em toda a sua extensão e complexidade. 
 
Tais princípios, para a generalidade dos autores, são fundamentalmente 
os seguintes: 
 
a) princípio da unidade da constituição: as normas constitucionais devem 
ser consideradas não como normas isoladas, mas sim como preceitos 
integrados num sistema interno unitário de regras e princípios; 
 
b) princípio do efeito integrador : na resolução dos problemas jurídico-
constitucionais deve-se dar primazia aos critérios ou pontos de vista que 
favoreçam a integração política e social e o reforço da unidade política, porque 
essa é uma das finalidades primordiais da constituição; 
 
c) princípio da máxima efetividade : na interpretação das normas 
constitucionais devemos atribuir-lhes o sentido que lhes empreste maior 
eficácia ou efetividade; 
 
d) princípio da conformidade funcional : o órgão encarregado da 
interpretação constitucional não pode chegar a resultados que subvertam ou 
perturbem o esquema organizatório-funcional constitucionalmente 
estabelecido, como o da separação dos poderes e funções do Estado; 
 
e) princípio da concordância prática ou da harmonização : os bens 
constitucionalmente protegidos, em caso de conflito ou concorrência, devem 
ser tratados de maneira que a afirmação de um não implique o sacrifício do 
outro, o que só se alcança na aplicação ou na prática do texto; 
 
f) princípio da força normativa da constituição : na interpretação 
constitucional devemos dar primazia às soluções que, densificando as suas 
normas, as tornem eficazes e permanentes; 
 
 
 
 
 18 
g) princípio da interpretação conforme a constituição: em face de normas 
infra-constitucionais polissêmicas ou plurissignificativas, deve-se dar 
prevalência à interpretação que lhes dê sentido compatível e não conflitante 
com a constituição, não sendo permitido ao intérprete, no entanto − a pretexto 
de conseguir essa conformidade − contrariar o sentido literal da lei e o objetivo 
que o legislador, inequivocamente, pretendeu alcançar com a regulamentação. 
 
Apresentados assim − ou, digamos, meramente enunciados − esses 
princípios revelam pouco ou quase nada do alcance, praticamente ilimitado, de 
que se revestem para a solução dos problemas que, a todo instante, são 
colocados aos aplicadores da Lei Maior por uma realidade constitucional em 
permanente transformação. 
 
 
IV −−−− A jurisdição constitucional e a interpretação da constituição 
 
 
Sobre a jurisdição constitucional já se disse praticamente tudo, seja para 
defendê-la, seja para criticá-la. Para o bem ou para o mal, parece que não 
podemos viver sem ela, pelo menos enquanto não descobrirmos alguma 
fórmula mágica que nos permita juridificar a política sem ao mesmo tempo, e 
em certa medida, politizar a justiça. 
 
Se o Estado é a forma por excelência de manifestação do poder político, 
e a Constituição o seu estatuto fundamental, então onde quer que se 
institucionalizem relações de mando, alguém terá que arbitrar os inevitáveis 
conflitos entre os fatores reais de poder. 
 
Integram esses embates políticos, obviamente, as permanentes 
contendas entre o Governo, que precisa implementar seus programas e assim 
cumprir as promessas de campanha, e a Oposição, que tendo perdido a 
disputa eleitoral, a todo instante bate às portas da Justiça na esperança de 
obter a sua ajuda para estorvar a ação governamental, que desde logo 
denuncia como atentatória aos preceitos da constituição. 
 
Relembrando palavras de Radbruch − porque de toda a pertinência para 
esta exposição − diríamos que no âmbito da sociedade política, se ninguém 
pode dizer o que é justo, é preciso que alguém defina, pelo menos, o que é 
jurídico, até porque a esta altura da história parece incogitável abandonar-se o 
Estado de Direito ou retornar-se à lei do mais forte. Quem decide, afinal, pouco 
importa, porque essa é uma questão de escolha nos diferentes ordenamentos 
jurídicos; o importante é que alguém decida por último e que essa decisão seja 
acatada por todos.49 
 
Todo ordenamento, por outro lado, é duplamente finito, porque não 
regride sem parar, nem progride indefinidamente. Num extremo, a norma 
 
 
49 Gustav Radbruch. Filosofia do Direito. Coimbra, Arménio Amado, 1961, vol. I, 
pág.210. 
 
 
 
 19 
fundamental, no outro a coisa julgada, a fecharem o sistema por necessidade 
lógica e mesmo axiológica 50. 
 
Logicamente, porque não seria concebível a sua construção sem 
começo, nem fim; do ponto de vista axiológico, porque sem um mínimo de 
segurança e de previsibilidade quanto ao desfecho dos conflitos humanos, 
seria de todo impossível a convivência social. Entre os dois pólos − a dinamizar 
o sistema − os órgãos e autoridades legitimados a dizer o direito, se necessário 
utilizando-se de sanções socialmente organizadas. Assim funciona o direito 
como técnica de organização social, independentemente do conteúdo das suas 
normas e de quem esteja habilitado a executá-las em nome de todos. 
 
Vistos os ordenamentos sob essa perspectiva − que não impede, antes 
recomenda, conceberem-se as constituições como sistemas abertos de regras 
e princípios que se movimentam e se atualizam a cada aplicação −, então a 
escolha fundamental reside em saber a quem atribuir a últimapalavra nesse 
universo normativo, uma opção politicamente dramática porque, ao fim e ao 
cabo, quer se queira, quer não, o poder de interpretar envolve o poder de 
legislar. 
 
É que o verdadeiro legislador, para todos os fins e propósitos − como 
dizia o bispo Hoadly, e foi relembrado por Kelsen51 − é aquele que dispõe de 
autoridade absoluta para interpretar quaisquer normas jurídicas, escritas ou 
faladas, e não a pessoa que por primeiro as escreveu ou transmitiu 
verbalmente, uma opinião de resto bem próxima daquela externada por 
Thomas Hobbes ao dizer que o legislador não é aquele por cuja autoridade as 
leis foram editadas inicialmente, mas aquele por cuja autoridade elas 
continuam a ser leis.52 
 
Se isso tudo for é verdadeiro − e a história parece não desmentir esses 
dois pensadores − então a escolha de quem falará por último, até por uma 
questão de bom senso, haverá de se fazer à luz da experiência histórica, como 
aconteceu na fundação da república norte-americana, quando os construtores 
da nacionalidade − principalmente Hamilton − invocando as lições do passado, 
lograram convencer os seus concidadãos de que eles estariam mais bem 
protegidos se os seus juizes fossem efetivamente independentes e se a eles 
fosse confiada a guarda da constituição.53 
 
Como se tratava de uma prerrogativa soberana − lembremos que 
Blackstone, por exemplo, chegou a dizer que era absoluto e despótico o poder 
do parlamento para fazer, confirmar, ampliar, restringir, rechaçar, revigorar e 
 
50 Sebastián Soler. Interpretación de la Ley. Barcelona, Ariel, 1962, págs. 95/96. 
51 Hans Kelsen. Teoría General del Derecho y del Estado. México, UNAM, 1969, págs. 
182/183. 
52 Leviatán. México, Fondo de Cultura Económica, 1996, 7ª reimpressão, pág.220. 
53 Alexander Hamilton. Os juizes como guardiões da Constituição. O Federalista. 
Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1984, págs. 575/582. 
 
 
 
 20 
interpretar as leis 54−, então essa escolha naturalmente acabou recaindo nos 
menos perigosos, naqueles agentes políticos que não empunham a espada, 
nem controlam a bolsa, precisamente nos juizes, muito embora, é verdade, o 
problema da guarda da constituição não tenha sido objeto de manifestação 
expressa dos convencionais de Filadélfia, nem exista no texto constitucional 
uma palavra sequer apontando nessa direção.55 
 
Daí a importância de que se reveste, no particular, uma leitura atenta, 
senão dos próprios documentos da Convenção − que, encerrados os trabalhos, 
foram colocados “à disposição do Congresso, se esse chegasse a ser formado, 
de acordo com a Constituição”56 − pelo menos, e com certeza, de O Federalista 
57 onde foram reunidos os célebres artigos de jornal que, sob o comum 
pseudônimo de Publius, Hamilton, Madison e Jay escreveram em defesa da 
Constituição. Escritos de circunstância, produzidos no calor dos debates com 
os adversários da proposta constitucional submetida à ratificação dos Estados, 
nem por isso esses textos de catequese política caíram no esquecimento. 
Muito ao contrário, pela profundidade com que analisaram aquela Carta e pelas 
verdadeiras regras de interpretação, que deles emergiram, esses panfletos até 
hoje são valiosos para a compreensão da lei fundamental dos Estados Unidos, 
e a tal ponto se integraram na sua história que muitos os consideram “quase 
como uma parte da própria Constituição”.58 
 
Mais ainda, como observa Benjamin Fletcher Wright, embora não 
pretendesse ser um tratado sistemático sobre filosofia política e constitucional, 
O Federalista − considerada a sua época − apresenta uma análise de suas 
idéias políticas e constitucionais melhor do que qualquer outro livro escrito na 
América.59 
 
Para ilustrar a relevância daqueles escritos na construção do edifício 
constitucional norte-americano, destaquemos algumas das reflexões de 
Alexander Hamilton − seguramente o mais destacado dos federalistas − sem 
que isso implique juízo de menor relevância sobre as idéias, também 
importantes, de James Madison e John Jay. 
 
Sobre a supremacia da constituição e a sua guarda pelo Judiciário, por 
exemplo, Hamilton ministrou lições que se tornaram definitivas não apenas em 
seu país, mas em todos quantos, igualmente inebriados pela filosofia da 
Ilustração e, mais especificamente, pelo constitucionalismo, deram-se 
constituições escritas e rígidas, nelas cristalizaram as suas decisões políticas 
fundamentais e, afinal, incumbiram os seus juizes de protegê-las contra a 
miopia das maiorias ocasionais. São desse pregador entusiasmado as palavras 
 
54 Apud Christopher Wolfe. La transformación de la interpretación constitucional. 
Madrid, Civitas, 1991, pág.130. 
55 Christopher Wolfe, op. cit. pág. 135. 
56 Carl Van Doren. O Grande Ensaio. História da Constituição dos Estados Unidos da 
América. Rio de Janeiro, Pongetti, 1952, pág. 118. 
57 O Federalista. Rio de Janeiro, Editora Nacional de Direito, 1959. 
 
58Carl Van Doren, op. cit., pág. 123. 
59 O Federalista. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, Introdução, pág. 20. 
 
 
 
 21 
transcritas a seguir, que imediatamente repercutiram na Suprema Corte dos 
Estados Unidos − relembre-se o raciocínio de Marshall nos casos Marbury v. 
Madison e Mac Culloch v. Maryland − e mais tarde se espalharam pelo mundo 
como língua materna das democracias ocidentais: 
 
“Não há proposição que se apoie sobre princípios mais claros que a que 
afirma que todo ato de uma autoridade delegada, contrário aos termos 
do mandato segundo o qual se exerce, é nulo. Portanto, nenhum ato 
legislativo contrário à Constituição pode ser válido. Negar isto 
eqüivaleria a afirmar que o mandatário é superior ao mandante, que o 
servidor é mais que seu amo, que os representantes do povo são 
superiores ao próprio povo e que os homens que trabalham em virtude 
de determinados poderes podem fazer não só o que estes não 
permitem, como, inclusive, o que proíbem. 
........................................................................................... 
 
Não é admissível supor que a Constituição tenha tido a intenção de 
facultar os representantes do povo para substituir a sua vontade à de 
seus eleitores. É muito mais racional entender que os tribunais foram 
concebidos como um corpo intermediário entre o povo e a legislatura, 
com a finalidade, entre várias outras, de manter esta última dentro dos 
limites atribuídos à sua autoridade. A interpretação das leis é própria e 
peculiarmente da incumbência dos tribunais. Uma Constituição é, de 
fato, uma lei fundamental e assim deve ser considerada pelos juizes. A 
eles pertence, portanto, determinar seu significado, assim como o de 
qualquer lei que provenha do corpo legislativo. E se ocorresse que entre 
as duas existisse uma discrepância, deverá ser preferida, como é 
natural, aquela que possua força obrigatória e validez superiores; em 
outras palavras, deverá ser preferida a Constituição à lei ordinária, a 
intenção do povo à intenção de seus mandatários. 
 
Esta conclusão não supõe de nenhum modo a superioridade do poder 
judicial sobre o legislativo. Somente significa que o poder do povo é 
superior a ambos e que onde a vontade da legislatura, declarada em 
suas leis, se acha em oposição com a do povo, declarada na 
Constituição, os juizes deverão ser governados pela última de 
preferência às primeiras. Deverão regular suas decisões pelas normas 
fundamentais e não pelas que não o são.”60 
 
Pois bem, já no ano de 1803, quando do julgamento do caso Marbury v. 
Madison, John Marshall começará o seu voto dizendo que a questão de saber-
se se uma resolução da legislatura incompatível com a Constituição pode 
tornar-se lei do país era uma questãoprofundamente interessante para os 
Estados Unidos, mas felizmente não apresentava nenhuma dificuldade 
proporcional à sua magnitude, bastando para resolvê-la o reconhecimento de 
certos princípios que foram longa e otimamente estabelecidos. E passa a expô-
los didaticamente. 
 
 
60 O Federalista, cit., pág. 314. 
 
 
 
 22 
“Que o povo tem direito originário de estabelecer para o seu futuro 
governo os princípios que se lhe antolharem mais concernentes a sua 
própria felicidade, são os alicerces sobre que se assenta o edifício 
americano. 
 
O exercício desse direito originário representa uma grande soma de 
esforços; não pode, não deve ser freqüentemente repetido. Os princípios 
assim estabelecidos são, pois, reputados fundamentais. E como é 
suprema a autoridade de onde eles dimanam, e raras vezes obra, são 
destinados a ser permanentes. 
 
A vontade originária e suprema organiza o governo e assina aos 
diversos departamentos seus respectivos poderes. E pode contentar-se 
com isso ou fixar certos limites para que não sejam ultrapassados por 
esses departamentos. 
 
Pertence a última classe o governo dos Estados Unidos. Os poderes da 
legislatura são definidos e limitados; e para que esses limites não 
possam se tornar confusos e apagados, a Constituição é escrita. 
........................................................................................... 
 
É uma proposição por demais clara para ser contestada, que a 
Constituição veta qualquer deliberação legislativa incompatível com ela; 
ou que a legislatura possa alterar a Constituição por meios ordinários. 
 
Não há meio termo entre estas alternativas. A Constituição ou é uma lei 
superior e predominante, e lei imutável pelas formas ordinárias; ou está 
no mesmo nível conjuntamente com as resoluções ordinárias da 
legislatura e, como as outras resoluções, é mutável quando a legislatura 
houver por bem modificá-la. 
 
Se é verdadeira a primeira parte do dilema, então não é lei a resolução 
incompatível com a Constituição; se a segunda parte é verdadeira, então 
as constituições escritas são absurdas tentativas da parte do povo para 
delimitar um poder por sua natureza ilimitável. 
 
Certamente, todos quantos fabricaram constituições escritas 
consideraram tais instrumentos como a lei fundamental e predominante 
da nação e, conseguintemente, a teoria de todo o governo, organizado 
por uma constituição escrita, deve ser que é nula toda a resolução 
legislativa com ela incompatível. 
........................................................................................... 
 
Assim, se uma lei está em oposição com a Constituição; se, aplicadas 
elas ambas a um caso particular, o Tribunal se veja na contingência de 
decidir a questão em conformidade da lei, desrespeitando a 
Constituição, ou consoante a Constituição, desrespeitando a lei, o 
 
 
 
 23 
Tribunal deverá determinar qual destas regras regerá o caso. Esta é a 
verdadeira essência do Poder Judiciário.”61 
 
Como visto, essa opção judiciarista não decorreu de nenhuma 
construção teórica, nem tampouco de nenhum projeto de engenharia política, 
antes consolidou-se ao sabor da própria experiência constitucional, num 
processo tão aleatório quanto o da formação do governo de gabinete na 
Inglaterra, por exemplo, que o sensitivo André Maurois atribuiu ao tempo, ao 
acaso, ao bom senso e ao compromisso.62 
 
E tão naturalmente foi se impondo esse governo dos juizes − vencidas 
algumas resistências iniciais, como as de Jefferson e Madison, por exemplo 63− 
que hoje em dia, salvo umas poucas opiniões em contrário, todos parecem 
concordar em que os norte-americanos vivem sob uma constituição, mas que 
essa carta política é aquilo que a Suprema Corte diz que ela é, uma conclusão 
abonada pelas sucessivas viragens de jurisprudência, que o tribunal 
conscientemente tem assumido nos seus mais de duzentos anos de leituras e 
releituras desse grande ensaio. 
 
Graças a essa atitude, de resto facilitada pela textura aberta dos seus 
enunciados, cumpriu-se a profecia de Marshall64 − a constituição norte-
americana atravessou os séculos, adaptou-se às várias crises dos negócios 
humanos e, afinal, possibilitou a construção de um grande país, em que pese a 
opinião dos que encaram os Estados Unidos como o Leviatã do terceiro 
milênio. 
 
Devaneios ou exageros à parte, essas novas leituras da constituição − 
as chamadas mutações constitucionais65 − resultam não apenas da peculiar 
estrutura das normas constitucionais − especialmente daquelas em que se 
definem os direitos fundamentais − mas também e sobretudo da natureza e das 
funções inerentes à jurisdição constitucional como instância privilegiada de 
interpretação das cartas políticas. 
 
Com efeito − acentua Cappelletti − situadas fora e acima da tradicional 
tripartição dos poderes estatais, as cortes constitucionais não podem ser 
 
 
61 Decisões Constitucionais de Marshall. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1903, 
págs.24/26. 
62 André Maurois. Histoire d’ Angleterre. Paris, Arthème Fayard et Cie, Éditeurs, 1937, 
pág. 523. 
63 Cf. Christopher Wolfe, op. cit., págs. 129/166. 
 
64 Mac Culloch v. Maryland, in Decisões Constitucionais de Marshall, cit., pág. 115. 
65 Cf. Georg Jellinek. Reforma e Mutación de la Constitución. Madrid, Centro de 
Estudios Constitucionales, 1991, pág. 7: “ Por reforma de la Constitución entiendo la 
modificación de los textos constitucionales producida por acciones voluntarias e intencionadas. 
Y por mutación de la Constitución, entiendo la modificación que deja indemne su texto sin 
cambiarlo formalmente que se produce por hechos que no tienen que ir acompañados por la 
intención, o consciencia, de tal mutación.” (destaques nossos). Ver, também, Uadi Lammêgo 
Bulos. Mutação Constitucional. São Paulo, Saraiva, 1997, e Anna Cândida da Cunha Ferraz. 
Processos informais de mudança da Constituição. São Paulo, Max Limonad, 1986. 
 
 
 
 24 
enquadradas nem entre os órgãos jurisdicionais, nem entre os legislativos, nem 
muito menos entre os órgãos executivos. É que, prossegue o mestre italiano, a 
elas pertence de fato uma função autônoma de controle constitucional, que não 
se identifica com nenhuma das funções próprias de cada um dos poderes 
tradicionais, mas se projeta de várias formas sobre todos eles, para reconduzi-
los, quando necessário, à rigorosa obediência às normas constitucionais.66 
 
A toda evidência, essa arbitragem consubstancia prerrogativa 
essencialmente política − de nítido teor constituinte, aliás − porque, embora 
disfarçadas em trajes hermenêuticos, essas novas interpretações implicam 
também novas tomadas de decisão, de resto com eficácia erga omnes e efeito 
vinculante, sobre os espaços que os membros da corte − e não os que fizeram 
a constituição − venham a considerar adequados àqueles poderes. 
 
De outra parte, como que a facilitar a crescente expansão dessa 
prerrogativa excepcional, as normas com que trabalha a jurisdição 
constitucional − notadamente os princípios da constituição −, ao contrário dos 
preceitos jurídicos em geral, apresentam-se em fórmulas lapidares, numa 
linguagem tão aberta, indeterminada e plurissignificativa, que o ato de 
concretizá-las a rigor não conhece limites e só com extrema boa vontade − à 
Konrad Hesse, por exemplo − poderíamos dizer que isso ainda seja 
interpretação.67 
 
Daí a crítica, sempre repetida, de que em verdade essas cortes, que não 
dispõem de legitimidade para tanto, acabaram se transformando em terceira 
câmara dos parlamentos, em verdadeiras constituintes de plantão, como dizem 
os seus opositores mais ferrenhos. Mais ainda, os métodos e princípios de que 
se utilizam− as chamadas regras hermenêuticas − de contornos indefinidos, 
como que potencializam essa abertura e essa liberdade, e em tão larga 
medida, que não seria demasiado dizermos que nesse terreno, aparentemente 
imune a voluntarismos, também aí os sujeitos manipulam o objeto da 
interpretação. 
 
Afinal de contas, para que servem ou o que significam, objetivamente, 
expressões tais como unidade da constituição, concordância prática, exatidão 
funcional ou máxima efetividade, com que se rotulam os diferentes princípios 
da hermenêutica constitucional, se também essas locuções estão sujeitas a 
conflitos de interpretação? O que dizer, então, do multifuncional princípio da 
proporcionalidade, essa espécie de vara de condão com que as cortes 
constitucionais − e não apenas elas − operam verdadeiros milagres 
hermenêuticos, ministrando remédios para todos os males do comércio 
 
 
66 Mauro Cappelletti. O controle de constitucionalidade das leis no sistema das funções 
estatais. Revista de Direito Processual Civil. São Paulo, Saraiva, 1961, vol.3, pág. 38 
67 Konrad Hesse. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da 
Alemanha. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, pág. 421. Jürgen Habermas. 
Direito e Democracia entre faticidade e validade. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1997, págs. 
303/304. 
 
 
 
 25 
jurídico?68 O que fazer, enfim, com a velha tópica jurídica, se não existe acordo 
sequer sobre o que significam os tópicos e se todos os que a utilizam parecem 
fazê-lo na exata medida em que para qualquer problema ela contém 
enunciados contrapostos?69 
 
Por essas e outras é que Alexander Pekelis, diante da latitude do texto 
constitucional norte-americano e da conseqüente liberdade para interpretá-lo, 
chegou a dizer que os Estados Unidos, a rigor, não tinham uma constituição 
escrita. 
 
São desse jurista as palavras transcritas seguir, que se tornaram 
clássicas em tema de interpretação constitucional: 
 
“Devemos recordar que em certo sentido os Estados Unidos não têm 
uma constituição escrita. As grandes cláusulas da Constituição 
americana, assim como as disposições mais importantes das nossas leis 
fundamentais, não contêm senão um apelo à honestidade e à prudência 
daqueles a quem é confiada a responsabilidade da sua aplicação. Dizer 
que a compensação deve ser justa; que a proteção da lei deve ser 
igual; que as penas não devem ser nem cruéis nem inusitadas; que as 
cauções e as multas não devem ser excessivas; que as investigações 
ou as detenções hão de ser motivadas; e que a privação da vida, da 
liberdade ou da propriedade não se pode determinar sem o devido 
processo legal, tudo isso outra coisa não é senão autorizar a criação 
judicial do direito, e da própria Constituição, pois a tanto eqüivale deixar 
que os juizes definam o que seja cruel, razoável, excessivo, devido ou 
talvez igual.”70 
 
Para ilustrar essa liberdade de (re)elaboração constitucional, lembremos 
que entre nós, não faz muito tempo, por decisão consciente do legislador − Leis 
9.868/99 e 9.882/99 − conferiu-se ao STF a prerrogativa excepcional de 
graduar os efeitos das declarações de inconstitucionalidade e de 
descumprimento de preceito fundamental da constituição, sempre que, a juízo 
da corte, razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social − 
conceitos abertos a mais não poder − venham a justificar a sobrevida, 
temporária e anômala, de atos ou normas incompatíveis com a constituição, 
 
 
68 Xavier Philippe. Le contrôle de proportionnalité dans les jurisprudences 
constitutionnelle et administrative françaises. Paris, Economica, Presses Universitaires D’Aix –
Marseille, 1990; Georges Xynopoulos. Adele Anzon et al. Il principio di ragionevolezza nella 
giurisprudenza della Corte Costituzionale – Riferimenti comparatistici. Milano, Giuffrè, 1994. Le 
contrôle de proportionnalité dans le contentieux de la constitutionnalité et de la légalité. Paris, 
L.G.D.J, 1995. 
69 Theodor Viehweg. Tópica y Jurisprudencia. Madrid, Taurus, 1964, e Tópica y 
Filosofía del Derecho. Barcelona, Gedisa, 1991; Juan Antonio Garcia Amado. Teorías de la 
Tópica Jurídica. Madrid, Civitas, 1988, pág. 119/138; e José Luis Villar Palasí. La Interpretación 
y los Apotegmas Jurídico-Lógicos. Madrid, Tecnos, 1975, pág.151. 
70 Alexander Pekelis. La tecla para una ciencia jurídica estimativa. El actual 
pensamiento jurídico norteamericano. Buenos Aires, Editorial Losada, 1951, pág. 125. 
 
 
 
 26 
uma prerrogativa evidentemente política, mas que nem por isso é desprovida 
de razoabilidade, como registramos em estudo dedicado ao tema.71 
 
Em suma, quando se afirma que o sentido dessas constituições, 
conquanto se deva presumir objetivo, em verdade é aquele fixado pelas cortes 
constitucionais, o que se está a dizer, em verdade, é que nesses sistemas 
jurídicos, porque os tribunais constitucionais trabalham com fórmulas lapidares 
ou enunciados abertos e indeterminados; porque estão situados fora e acima 
da tradicional tripartição dos poderes estatais; e , afinal, porque desfrutam de 
singular autoridade, os juizes que os integram, enquanto intérpretes finais da 
constituição, acabam positivando ou constitucionalizando a sua própria 
concepção de justiça − rigorosamente a sua ideologia − que outra não é senão 
aquela da classe social, hegemônica, que eles integram e representam. 
 
No Brasil, há precisos sessenta anos, Francisco Campos expressou 
opinião semelhante, ao discursar na abertura dos trabalhos do STF, em 2 de 
fevereiro de 1941: 
 
“Juiz das atribuições dos demais Poderes, sois o próprio juiz das vossas. 
O domínio da vossa competência é a Constituição, isto é, o instrumento 
em que se define e se especifica o Governo. No poder de interpretá-la 
está o de traduzi-la nos vossos próprios conceitos. Se a interpretação, e 
particularmente a interpretação de um texto que se distingue pela 
generalidade, a amplitude e a compreensão dos conceitos, não é 
operação puramente dedutiva mas atividade de natureza plástica, 
construtiva e criadora, no poder de interpretar há de incluir-se, 
necessariamente, por mais limitado que seja, o poder de formular. O 
poder de especificar implica margem de opção tanto mais larga quanto 
mais lata, genérica, abstrata, amorfa ou indefinida a matéria de cuja 
condensação há de resultar a espécie.” 72 
 
Na Alemanha − após destacar a proximidade que existe entre as tarefas 
da jurisdição constitucional e as funções de direção e configuração políticas − o 
respeitado Konrad Hesse assinalou que essa jurisdição extraordinária tem de 
decidir questões com teor e alcance políticos em número muito maior do que 
as afetadas às jurisdições ordinárias; que as suas decisões podem acarretar 
conseqüências políticas de grande monta; que, muitas vezes, elas se 
avizinham de decisões políticas, na medida em que, regularmente, podem ser 
tomadas com base em critérios amplos e indeterminados da constituição; e 
que, enfim, a execução das suas decisões é de todo distinta do modo como se 
executam as decisões das outras jurisdições.73 
 
 
 
71 Inocêncio Mártires Coelho. As idéias de Peter Häberle e a abertura da interpretação 
constitucional no direito brasileiro. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 35, n° 137, 
jan/mar 1998, págs.157/164. 
72 O Poder Judiciário na Constituição de 1937. Direito Constitucional. Rio, Forense, 
1942, pág. 367. 
73 Elementos, cit., págs. 420/421. 
 
 
 
 27 
Dado o possível déficit de legitimidade democrática inerente a esse 
monopólio judiciarista de interpretação autêntica da constituição − uma 
carência congênita

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