Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Caderno de Artigos: infâncias, adolescências, juventudes e famílias – desafios contemporâneos 33 Artigo II A IMPortânCIA dA SoCIoloGIA dA InFânCIA E AS PrátICAS PEdAGóGICAS: A CrIAnçA CoMo SUJEIto hIStórICo E dE dIrEItoS Cláudia Valente Cavalcante1 resumo: Este texto tem como objetivo apresentar uma breve síntese do nascimento do conceito de criança e do sentimento de infância a partir do século VI e VII até os dias atu- ais. Pretende-se, também, evidenciar como essas concepções perpassaram as atividades relacionadas a esses sujeitos em diferentes esferas da sociedade, em especial, no que se refere à educação, e mais precisamente, nas práticas pedagógicas nas escolas em dife- rentes momentos. Para tanto, serão apresentadas diferentes visões em relação à infância e a contribuição teórica da Sociologia da Infância para uma prática pedagógica que visa assegurar o direito da criança à educação. Palavras-chave: Criança. Infância. Sociologia da Infância. Prática pedagógica. 1 Introdução Este texto tem como objetivo principal apresentar as contribuições da Sociologia da Infância na construção do sentimento de criança e de infância e sua importância para a educação. Uma vez que é inegável a ne- cessidade da criança ser compreendida como sujeito histórico e de direito, e que é impossível generalizar a infância, tendo em vista que existem dife- rentes infâncias, sendo esta variedade determinada pelos contextos onde esta categoria se constitui. 1 Jornalista pela Universidade Federal de Goiás, Pedagoga, Mestre em Educação e atualmente Dou- toranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-Goiás). Faz parte do grupo de pesquisa inscrito no CNPQ Juventude e Educação e do grupo de pesquisa Desigualdade Educativa e aprendizagem. Caderno de Artigos: infâncias, adolescências, juventudes e famílias – desafios contemporâneos34 Da mesma forma que a concepção de criança e de infância deter- mina a forma como a sociedade lida com as crianças, a concepção dos educadores em relação à criança e à infância conduz de que forma sua prática pedagógica será construída e desenvolvida junto a esta categoria, determinando se será impositiva ou colaborativa com os alunos. Para a construção de uma prática pedagógica na perspectiva con- temporânea da Sociologia da Infância, é necessário que os professores uti- lizem metodologias interpretativas e etnográficas com o objetivo de ultra- passar as barreiras do seu próprio adultocentrismo, dispostos, de fato, a ouvir o que as crianças têm a dizer sobre a relação pedagógica preparada para elas, estando dispostos também a considerá-la como ator histórico na reconstrução dessa prática. Como foi mencionado, a forma como os professores compreen- dem a infância e o conceito de criança são definidores do tipo de prá- tica pedagógica que construirão com e para seus alunos. E como esta construção se dá historicamente faz-se necessário apresentar um breve histórico da elaboração do conceito de criança e de infância para que se entenda melhor o que encontramos hoje sobre a questão. Para tanto, esse percurso será iniciado no período da Idade Média, passando pela Idade Moderna, até a Idade Contemporânea, destacando a importante contribuição de estudiosos da Sociologia, mais especificamente, da So- ciologia da Infância. Dessa maneira, a criança até os sete anos de idade é considerada na Idade Média como incapaz de se expressar com racionalidade, tem comportamentos inadequados; é irracional. Ou seja, infância é sinônimo de irracionalidade. Após os sete anos, a criança é considerada um adul- to, passando a ser inserida na vida social como um adulto em miniatura (ROCHA, 2002). Na Idade Moderna, a forte influência da Igreja Católica faz com que a criança seja considerada de forma diferente pela sociedade. Desperta- -se para a necessidade de melhorar sua condição de vida e de organizar instituições adequadas para o cuidado e preparo dela. Dessa forma, na Modernidade dá-se início ao desejo de controle da infância por meio da educação em instituições criadas, com o objetivo de formar o futuro adulto (ROCHA, 2002). Com o intuito de controlar e formar o futuro adulto, na Idade Con- temporânea, há o aprimoramento na maneira de organizar e oferecer edu- cação à sociedade. A idade, e somente ela, passa a ser o critério utilizado Caderno de Artigos: infâncias, adolescências, juventudes e famílias – desafios contemporâneos 35 como regulador na organização da sociedade. Assim, os indivíduos são separados por faixa etária, sendo crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos (ARIÉS, 1981). Após apresentar este breve histórico da construção do conceito de criança e de infância, algumas contribuições da Sociologia da Infância para a educação são apresentadas e defendidas, com a finalidade de reforçar a necessidade de se considerar a criança como sujeito histórico e de direitos, capaz de participar da construção das relações sociopolíticas e culturais, entre essas a educação. A construção do conceito de criança e de infância da Idade Média à Idade Moderna Não existem sociedades sem infância. Nesse sentido, pode-se afir- mar que ela é uma categoria permanente. Entretanto, esta categoria é resultado de uma construção biopsicossocial, o que significa que em dife- rentes espaços/tempos existem diferentes infâncias, como pode ser ates- tado pelos estudos de diferentes autores, entre eles Ariès. Para realizar seus estudos, o historiador francês Phillip Ariès2 (1981) recorreu à fonte historiográfica - a iconografia religiosa e leiga na Idade Média; documentos que evidenciam diferentes representações sobre este período da vida dos seres humanos por meio da produção artística, literária e cultural da época. A partir da análise desse material, esse autor considera que o sentimento de infância surgiu apenas na Mo- dernidade, no século XVII, junto e a partir do interesse em formar o adulto necessário para atender o modelo de sociedade da época. Nesse período considerava-se que: [...] a primeira idade é a infância que planta os dentes, e essa idade come- ça quando nasce, e dura até os sete anos, e nessa idade aquilo que nasce é chamado de enfant (criança), que quer dizer não falante, pois nessa idade a pessoa não pode falar bem nem formar perfeitamente suas palavras [...] (ARIÈS, 1981, p. 36). 2 O pesquisador francês Philippe Ariès, em sua obra História Social da Criança e da Família, publi- cada em 1960, evidencia que a ideia ou o conceito que a sociedade tem da infância é historica- mente construído e que, por muito tempo, a criança não foi vista como um ser em desenvolvimen- to, com características e necessidades próprias, mas como um adulto em miniatura. Essa obra é considerada referência para a história da infância ocidental. Caderno de Artigos: infâncias, adolescências, juventudes e famílias – desafios contemporâneos36 Nessa perspectiva, as crianças eram consideradas como incapazes de falar coerentemente sobre qualquer assunto que fosse, eram vistas como portadoras de comportamentos irracionais, opostos aos da vida adulta, ou seja, apenas os adultos eram capazes de pensar racionalmente e transformar a sociedade. As crianças eram consideradas incapazes, im- produtivas e a infância uma fase a ser superada. Superação que passou a ser almejada, segundo Ariès (1981), pelos moralistas que desejavam o mundo das crianças separado do mundo dos adultos. Uma vez que as crianças se vestiam como adultos e participavam de todos os acontecimentos sociais, culturais da época, como as festas noturnas, as brincadeiras adultas e até práticas sexuais, as pessoas não acreditavam na inocência pueril ou que houvesse diferença entre adultos e crianças. Criticando as ideias defendidas por Ariès (1981) de que o senti- mento de infância não existia na Idade Média ou em temposmais antigos, Kuhlmann Jr. (1998) argumenta que seria um equívoco pensar assim, já que outros estudos apontam que aquele autor considerou somente as fontes de famílias abastadas, deixando de fora as fontes históricas popu- lares, defendendo que o sentimento de amor pelas crianças tenha surgido primeiramente no interior dessas famílias. mesmo em abordagens que tomam a infância em sua referência etimológi- ca, como os sem-voz, sugerindo uma certa identidade com as perspectivas da história vista de baixo, a história dos vencidos, essa visão monolítica permanece e mantém um preconceito em relação às classes subalternas, desconsiderando a sua presença interior nas relações sociais. Embora re- conhecendo o papel preponderante que os setores dominantes exercem sobre a vida social, as fontes disponíveis, como, por exemplo, o diário de Luís XIII, utilizado por Ariès, geralmente favorecem a interpretação de que essas camadas sociais teriam monopolizado a condução do processo de promoção do respeito à criança. (KUHJMANN, 1998, P. 24). As crianças pobres não participavam das relações sociais daquele período? Kuhlmann Jr.(1998) defende que sim, destacando que havia dualidade na forma como as crianças participavam da e na sociedade. En- quanto os meninos ricos eram enclausurados para serem preparados para a vida adulta, aprendendo as regras de etiqueta exigidas pela sociedade. A dança, a música, a leitura eram ensinadas por seus preceptores. As crianças pobres (filhas de camponeses e artesãos) aprendiam convivendo em espaços compartilhados por todos, participando de todas as ativida- Caderno de Artigos: infâncias, adolescências, juventudes e famílias – desafios contemporâneos 37 des sociais, ficando a sua educação sob a responsabilidade de seus pais. O que significa considerar que havia uma educação das crianças pobres, mesmo que fosse de maneira diferente da educação das crianças ricas. Segundo Kuhlmann Jr. (1998), independente da classe social, havia dife- rentes formas de aprendizagem em todas as famílias. Dessa forma, não é possível negar a existência biológica das crian- ças, entretanto, a consciência social não considera a criança como uma categoria diferente de um adulto e, aos sete anos, as crianças eram inse- ridas no mundo adulto. Sendo assim, na Idade Média não havia a divisão territorial e de atividades de acordo com as idades dos indivíduos. Outro problema destacado por Ariès em seus estudos é a ausência de cuidados com a higiene e a saúde das crianças. Havia alto número de mortalidade infantil e, ainda, de infanticídios cometidos pelas famílias que almejavam crianças mais saudáveis e resistentes, que correspondessem às expectativas dos pais. O sentimento materno não existia, a família ti- nha formação social e não sentimental, o que pode ser evidenciado com o texto a seguir: [...] Uma vizinha, mulher de um relator, tranquiliza assim uma mulher in- quieta, mãe de cinco ‘pestes’, e que acabara de dar à luz: ‘Antes que eles te possam causar muitos problemas, tu terás perdido a metade, e quem sabe todos [...] (ARIÈS, 1981, p. 56). A morte das crianças não era considerada uma perda para a família, mas, em muitos casos, como um alívio. Entregar as crianças para que outras famílias educassem também era uma prática comum na época e, ao completarem sete anos de idade, as crianças retornavam à sua família pronta para ser integrada à vida familiar e ao trabalho, caso não morresse até esta idade. Em relação ao cuidado com as crianças, no século XVII, o poder pú- blico, respondendo às exigências da Igreja Católica em não aceitar mais o in- fanticídio passivamente, cria o sentimento de proteção e manutenção da vida das crianças. Tarefa atribuída às mulheres (amas e parteiras), que seriam as protetoras dos bebês. A alma da criança é descoberta. Segundo Ariès, é [...] como se a consciência comum só então descobrisse que a alma da criança também era imortal. É certo que essa importância dada à personali- dade da criança se ligava a uma cristianização mais profunda dos costumes [...] (ARIÈS, 1981, p. 61). Caderno de Artigos: infâncias, adolescências, juventudes e famílias – desafios contemporâneos38 Para tanto, medidas foram tomadas no que se refere à higiene e à saúde das crianças para que a mortalidade infantil fosse reduzida. A família passa a ter maior zelo com a criança, surgindo o sentimento de infância, classificado por Ariès em dois períodos: o da paparicação e pos- teriormente o do apego. Nesse primeiro sentimento, as crianças passam a ser tratadas pelos adultos como uma espécie de entretenimento, como um bichinho de estimação que deve ser preservado para continuar dando satisfação aos adultos com seus gracejos, suas brincadeiras e com seu jeito de falar. No século XVII, surge o sentimento de apego pelas crianças como um tipo de manifesto da sociedade moderna contra o sentimento de pa- paricação para com as crianças. Inicia-se, então, o desejo de formar as crianças dentro dos padrões culturais da sociedade adulta. A educação é o meio de se conseguir o controle da infância, inicialmente, na família e, posteriormente, nas instituições de ensino criadas com o objetivo de preparar o futuro adulto, o novo homem moderno. com a evolução nas relações sociais que se estabelecem na Idade Moder- na, a criança passa a ter um papel central nas preocupações da família e da sociedade. A nova percepção e organização social fizeram com que os laços entre adultos e crianças, pais e filhos, fossem fortalecidos. A partir deste momento, a criança começa a ser vista como indivíduo social, dentro da coletividade, e a família tem grande preocupação com sua saúde e sua educação. Tais elementos são fatores imprescindíveis para a mudança de toda a relação social (ROCHA, 2002, p. 57). A partir de então, a relação entre adulto e criança é modificada. Há por parte do adulto a preocupação em proteger a criança, conside- rada pela sociedade como um sujeito fraco e dependente de cuidados. Dessa forma, só ultrapassam essa fase, considerada a primeira idade da vida, os indivíduos que conseguissem superar este estado de dependência (NASCIMENTO; BRANCHER; OLIVEIRA, 2011). Segundo esses autores, até o séc. XVII a ciência desconhecia a infância, uma vez que não havia diferenciação entre ser adulto e ser criança. Nesse contexto, o desejo pelo controle da infância surge com a necessidade de preparar a criança para ingressar de modo satisfatório na sociedade. A palavra de ordem é controle. Controle do corpo e da mente das crianças por meio de uma rígida disciplina infantil, tanto no seio fa- miliar, quanto na escola. Caderno de Artigos: infâncias, adolescências, juventudes e famílias – desafios contemporâneos 39 sabemos também que a ideia contemporânea de infância, como categoria social, emerge com a Modernidade e tem como principal berço a escola e a família. [...] junto com a emergência da escola de massas, a nucleariza- ção da família e a constituição de um corpo de saberes sobre a criança, a Modernidade elaborou um conjunto de procedimentos configuradores de uma administração simbólica da infância (grifos da autora). (MÜLLER, 2006, p. 554) Em um momento em que a sociedade anseia por igualdade, frater- nidade e liberdade, princípios da Revolução Francesa, a criança torna-se alvo de preocupações de outros estudiosos como, por exemplo, Durkheim (1978, apud MÜLLER, 2006), que defende o controle dos “humores endoidecidos” das crianças, sugerindo o desenvolvimento da moral da criança inscrevendo três elementos na subjetividade delas, quais sejam: espírito de disciplina, o espírito de abnegação e a autonomia da vontade. Dessa forma, são elaboradas normas e prescrições com o intuito de coagir os comportamentos das crianças na sociedade, já que antes não havia separação. A partir da Idade Moderna, ascrianças devem obedecer à delimi- tação de lugares, à alimentação considerada adequada, horas de partici- pação da vida coletiva e ao horário de recolhimento. Com isso, o que se observa é a administração simbólica da infância que se configurou em um oficio de criança (CHAMBOREDON; PRÉVOT, 1986 & SARMENTO, 2000, 2001apud MÜLLER, 2006). Idade Contemporânea: educação, escola e conceito de infância Como pode ser percebido, o conceito de criança e de infância está em processo de construção histórica, identificando na Idade Média, a ine- xistência social e cultural de infância. Na Idade Moderna, a modificação desse sentimento para o de fraqueza e necessidade de proteção, e na Ida- de Contemporânea, com a criação das escolas, o desenvolvimento de uma pedagogia específica para as crianças com o objetivo de escolarizá-las. Na esteira destas ideias, a organização da sociedade ocidental contem- porânea se dá por meio de segmentação tendo como regulador a idade dos indivíduos. Em seus vários espaços, os indivíduos são separados por faixa etária (crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos) e somente na família há o encontro físico de gerações. Concomitante ao processo de mo- Caderno de Artigos: infâncias, adolescências, juventudes e famílias – desafios contemporâneos40 dificação do sentimento de infância acontece a invenção do estatuto para a criança, com valores morais e com expectativas de condutas consideradas adequadas para esta faixa etária (MÜLLER, 2006). Ao nascer, a criança é inserida, na maioria das vezes, em uma família. Entretanto, desde muito cedo, é encaminhada à escolarização. Ingressam em creches ou em maternais de escolas públicas ou particu- lares a partir dos seis meses de idade, muitas vezes, para que os pais trabalhadores possam realizar suas atividades. Outras vezes, por outros motivos. O fato é que as crianças desde muito cedo são internadas em instituições de ensino e ali estabelecem contato com adultos, que têm a função de cuidar e, teoricamente, educá-las. Dessa forma, as relações sociais de outrora são agora substituídas pelas relações profissionais e familiares. Entretanto, segundo Nascimento; Brancher e Oliveira (2011, p. 9), é necessário destacar que [...] esse não é um fenômeno generalizado: enquanto alguns têm sua infân- cia delimitada pelo ciclo escolar, outros ainda se “transformam” em adultos sem ter condições para isso (crianças de rua, trabalho infantil, etc). Visando estudar esta nova configuração da sociedade e os proble- mas provocados por essas mudanças, a partir da década de 1990, os estudos sobre a infância tomam corpo, em diferentes instituições, como escolares, familiares e jurídicas. Com os trabalhos pioneiros de Sirota (2001) e Montandon (2001), a Sociologia da Infância se constitui como nova ramificação dentro da Sociologia. Contribuições da sociologia da infância para as práticas pedagógicas e para assegurar o direito à educação Não é nova a preocupação em estudar a criança a partir das pos- sibilidades teóricas da Sociologia. O que é consideravelmente recente é a inversão na concepção de criança e de infância, que passam a ser percebidas como possíveis de serem estudadas a partir de suas próprias vozes e não mais por meio do que um adulto diz sobre ela, ou das me- mórias de um adulto sobre sua infância. Dessa forma, a Sociologia da Infância defende que seja estudado o presente, ou seja, a própria criança deve ser ouvida, uma vez que ela é considera interlocutora competente, Caderno de Artigos: infâncias, adolescências, juventudes e famílias – desafios contemporâneos 41 capaz de falar sobre si, sobre o que preparam para ela (seja na família ou na escola). Nessa perspectiva, criança3 é considerada um sujeito histórico e de direitos, uma categoria social específica que atua a partir de suas especi- ficidades, de sua visão de mundo, em suas experiências, em suas relações com os adultos. Sendo que, [...] a infância deve ser compreendida como uma construção social ou cul- tural, e as diferenças entre os adultos e crianças não podem ser interpreta- das diretamente como biológicas, tais como tamanho físico ou maturidade (PROUT, 2000 apud FINCO, 2011, p. 160). Concordando com esse autor, Kuhlman (1997 apud DELGADO, 2011, p. 196) afirma que é preciso “considerar a infância como uma condição de criança, pois o conjunto de experiências vividas por elas em diferentes lugares históricos, geográficos e sociais é muito mais do que uma representação dos adultos sobre esta fase da vida”. Assim, faz-se necessário que o adulto (os educadores) compreenda de que forma a criança aprende, uma vez que, saber é a apropriação do conhecimento, transformada e assimilada pelo sujeito de forma singular e intransferível. A construção do saber é um processo individual e solitário; é o próprio sujeito que faz. Independentemente da idade do indivíduo, “a educação é uma produção de si por si mesmo, mas essa autoprodução só é possível pela mediação do outro e com a sua ajuda” (CHARLOT, 2000, p. 53). Nesse sentido, o processo de aprendizagem do aluno é individual e cada um apreende as situações propostas pelo professor com as características que provêm do seu próprio saber, dos seus hábitos de pensar e de agir (POSTIC, 1995, p. 16). E, ainda, aprender é compreender, ou seja, trazer comigo parcelas do mundo exterior, integrá- -las em meu universo e assim construir sistemas de representação cada vez mais aprimorados, isto é, que me ofereçam cada vez mais possibilidades de ação sobre esse mundo. Refugiando-me incessantemente em mim mesmo, não encontrarei nem mesmo os meios para compreender-me, pois sou do mundo tanto quanto de mim mesmo e não posso resolver os meus proble- mas se não me compreender dentro do mundo (MEIRIEU, 1998, p. 37). 3 O Estatuto da criança e do adolescente, em seu Art. 2º, rege que:“Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos [...]”. Caderno de Artigos: infâncias, adolescências, juventudes e famílias – desafios contemporâneos42 Tendo isso em vista, é importante entender que as estruturas de pensamento se organizam em um processo contínuo que inclui desde organizações sensoriais e motoras até organizações lógicas sofisticadas, que ao longo do desenvolvimento produzem as informações necessárias para lidar e participar no mundo, bem como as formas de interpretar essas informações (SISTO, 2001, p. 121). Daí a compreensão de que a aprendizagem é também um processo interno e solitário. Nessa perspectiva, Charlot (2000, p. 54) diz que os professores são os sujeitos responsáveis na mediação de seus alunos para que estes se mobilizem para a aprendizagem, ou seja, para que os alunos colo- quem seus recursos internos em movimento (de dentro para fora), que se aproximem da subjetividade dos alunos com o objeto de conhecer seus desejos, as suas histórias e a sua linguagem. Para tanto, é neces- sário que o professor compreenda o processo de aprendizagem de seus alunos para mediá-los na construção de sua autonomia e na relação que eles estabelecem com o saber, de forma que a figura do professor seja paulatinamente menos importante ao aluno. Charlot (2000) considera que se o professor não tiver essa consciência ao organizar as ativida- des de aprendizagem todo o restante do processo ficará comprometido, o que significa que etapas poderão ser queimadas, fazendo com que os obstáculos, que são necessários para o progresso da aprendizagem, fiquem praticamente intransponíveis e, posteriormente, transformados em dificuldades. Segundo Müller (2006), uma prática pedagógica elaborada na pers- pectiva da Sociologia da Infância considera a criança como um ator social dotado de pensamento crítico e reflexivo, não a vê como um ser irres- ponsável, irracional, a-moral, a-cultural, incompetente, imaturo, passivoreceptáculo de uma ação de socialização. Ressalta-se, então, que a forma como o educador vê e considera a criança determina de que forma ele se relaciona com ela. Assim, ao reconhecer que a criança é um ser inteligente, socialmente competente, o educador, ao ouvir sua voz, se tornará seu intérprete e tradutor. a Sociologia da Infância com os seus estudos das crianças deseja contribuir para o alargamento do campo das Ciências da Educação e das Ciências Sociais, não tanto por via do seu espartilhar om o acréscimo de mais uma disciplina e de um objeto, mas antes pelo participar na sua recomposição, uma vez que se considera que a sua inclusão obriga ao exercício crítico da própria sociologia, em particular, da sociologia da educação[...]. Trata-se Caderno de Artigos: infâncias, adolescências, juventudes e famílias – desafios contemporâneos 43 também de realizar estudos não apenas sobre as crianças, de como é que os adultos disseram as crianças, mas agora, com crianças para descobrir o actor-criança e a sua agência “escondida”, dando-lhes voz, isto é: reco- nhecê-las como produtoras de sentido, com o direito de se apresentarem como sujeitos de conhecimento e assumir como legítimas as suas formas de comunicação e relação (FERREIRA, 2002, p. 2). Nessa perspectiva, ouvir as crianças pode ser uma das estratégias eficazes para a sua permanência na escola, garantindo não apenas o aces- so à educação formal, mas também garantindo o direito à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer como preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), pois toda criança e adolescente têm direito ao desen- volvimento pleno de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho. A criança no ambiente escolar deve ter condições de igualdade de condições de acesso e permanência na escola e ser respeitada pelos educadores. Portanto, a escola, os professores e toda comunidade escolar precisam entender o processo pedagógico com- preensivo às necessidades da criança e mantê-las inseridas na escola, primando pela qualidade do ensino a fim de garantir o direito à educação. E os pais devem compreender esses processos para também garantir a essa criança a escolarização. Considerações finais A Sociologia da Infância contribui de forma decisiva na investigação sobre a construção do sentimento de criança e de infância. É inegável a necessidade de compreender a criança como um sujeito histórico e de direito, e que é impossível generalizar a infância, uma vez que existem diferentes infâncias, variando de acordo com os contextos onde esta ca- tegoria acontece. A concepção dos educadores em relação à criança e à infância de- termina de que forma sua prática pedagógica será construída, se imposi- tiva ou colaborativa com seus alunos. Para a construção de uma prática pedagógica na perspectiva da Sociologia da Infância, é necessário que os professores utilizem meto- dologias interpretativas e etnográficas com o objetivo de ultrapassar as barreiras do seu próprio adultocentrismo, dispostos, de fato, a ouvir o que as crianças têm a dizer sobre a relação pedagógica preparada para ela, Caderno de Artigos: infâncias, adolescências, juventudes e famílias – desafios contemporâneos44 estando dispostos também a considerá-la como ator histórico na recons- trução dessa prática. É preciso entender que as práticas pedagógicas pautadas na con- cepção de criança como sujeito de direito são fundamentais para garan- tir sua permanência na escola e prover as competências, habilidades e conteúdos necessários para o seu desenvolvimento integral para atuar no mundo. Nesse sentido, a escola é uma grande parceira para assegurar o direito da criança à educação formal e os processos pedagógicos como aliados nessa luta. referências Bibliográficas ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. 2. ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1981. CHARLOT, Bernard. A noção de relação com o saber: bases de apoio teórico e fundamentos antropológicos. In: ______ (Org.). Os jovens e o saber: perspectivas mundiais. Porto Alegre: Artes Médicas, 2001 p. 15 – 31. ______. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Trad. Bruno Magne. Porto Alegre: Artmed, 2000. CARVALHO, Maria Goretti Quintiliano. O professor e as dificuldades de apren- dizagem: concepções e práticas. Goiânia: PUC-Goiás, 2007. 163p. Dissertação Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Educação) – Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2007. DELALANDE, Lulie. As crianças na escola: pesquisas antropológicas. In: MAR- TINS FILHO, Altino José; PRADO, Patrícia Dias (Orgs.). Das pesquisas com crian- ças à complexidade da infância. Campinas. Autores Associados, 2011, p. 61-80. DELGADO, Ana Cristina Coll. Estudos socioantropológicos da infância no Brasil. In: MARTINS FILHO, Altino José; PRADO, Patrícia Dias (orgs.). Das pesqui- sas com crianças à complexidade da infância. Campinas. Autores Associados, 2011, p.159-180. FERREIRA, Manuela. Criança tem voz própria (pelo menos para a Sociologia da Infância). A Página da Educação. Porto: Portugal, Ano 11, n. 117, nov. 2002. Dis- ponível em: <http://www.apagina.pt/?aba=7&cat=117&doc=9121&mid=2>. Acesso em: 01 abr. 2013. Caderno de Artigos: infâncias, adolescências, juventudes e famílias – desafios contemporâneos 45 KUHLMANN, JR, Moysés. Infância e educação infantil: uma abordagem históri- ca. Porto Alegre: Mediação, 1998. MEIRIEU, Philippe. Aprender... Sim, mas como? 7. ed. Porto Alegre: Artes Mé- dicas, 1998. MONTANDON, Cléopâtre. Sociologia da infância: balanço dos trabalhos em língua inglesa. Cad. Pesqui. São Paulo, n. 112, Mar. 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.phpscrarttextpidS010015742001000100002>. Acesso em 21 de abr. 2013 MULLER, Fernanda. Infâncias nas vozes das crianças: culturas infantis, trabalho e resistência. Educ. Soc. Campinas, v. 27, n. 95, ago. 2006. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.http://dx.doi.org/10.1590/S0101-733020060002 00012>. Acesso em: 21 abrl. 2013. NASCIMENTO, Cláudia Terra do; BRANCHER, Vantoir Roberto; OLIVEIRA, Va- leska Fortes de. A construção social do conceito de infância: algumas interlocu- ções históricas e sociológicas. GEPEIS - Grupo de Estudos e Pesquisas em Edu- cação e Imaginário Social (UFSM), 2011. Disponível em: <http://coral.ufsm.br/ gepeis/wp-content/uploads/2011/08/infancias.pdf>. Acesso em: 05 mar. 2013. POSTIC, Marcel. Para uma estratégia pedagógica do sucesso escolar. Porto: Porto Editora, 1995. ROCHA, Rita de Cássia Luiz da. História da infância: reflexões acerca de algumas concepções correntes. Analecta. Guarapuava: Paraná, v. 3, n. 2, p. 51-63, jul/ dez. 2002. SIROTA, Régine. Emergência de uma sociologia da infância: evolução do objeto e do olhar. Cad. Pesqui., São Paulo, n. 112, Mar. 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.http://dx.doi.org/10.1590/S0100-157420010001 00001>. Acesso em: 21 abr. 2013. SISTO, Fermino Fernandes. Avaliação de dificuldade de aprendizagem: uma questão em aberto. In: ______; DOBRÁNSZKY, Enid Abreu; MONTEIRO, Alexan- drina (orgs.). Cotidiano escolar: questões de leitura matemática da aprendiza- gem. Bragança Paulista: USF, 2001.
Compartilhar