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Partimos do pressuposto de que a evolução da Moral para um plano cultural acabou por relegar ao próprio autor do agir, o agir por dever. Assim, em face da fragilidade de uma Moral estruturada na personalidade, dependente das inclinações e interesses do indivíduo, o Direito se impõe e se institucionaliza. As normas de ação, por essa perspectiva, passaram, então, a ser regidas por comandos externos ao próprio indivíduo, o que o alivia, na medida em que ele “não precisa carregar o peso cognitivo da formação do juízo moral próprio” (HABERMAS, 1997). Tomásio Na obra de Fundamentos, ainda que nela permanece a influência do barroco e do luteranismo de seus primeiros anos, Thomasius, como foi dito anuncia já a Ilustração e desenvolve com sua distinção entre Direito e Moral a convicção, que se ia consolidando, de que o Estado e seu Direito não eram o instrumento adequado para realizar a concepção do bem de uma Igreja ou confissão, com o que anunciava, além da separação do Estado da religião, também a distinção entre ética pública e ética privada, tão decisiva para a compreensão do conceito de dignidade humana, que é um dos pilares da atual teoria dos direitos fundamentais. O que realmente elucida sua doutrina de separação entre Moral e Direito é a afirmação de que a obrigação jurídica é essencialmente coativa: como o direito regula as ações externas e somente o externo pode chegar a ser objeto da coação (questões de ética pública), somente essa obrigação é coativa, sem que a coação possa, em câmbio, alcançar ao forum internum da consciência, que é onde se produzem os atos regulados pela Moral (questões de ética privada). Segundo Antonio Fernández-Galiano é possível que esta tese de Thomasius tivesse uma finalidade bem prática, no sentido de criar um reduto – o foro da consciência – no qual o homem se encontraria a salvo da ação onipotente do Estado, titular da força coativa, que teria assim limitada sua eficácia ao foro meramente externo; mas seja assim ou não, o certo é que a afirmação teve consequências importantes para o conceito de direito natural. Uma vez que a coação externa resulta ter um caráter essencialmente jurídico, o direito natural, como consequência do afirmado não é, ou não dever ser considerado como Direito, senão simples conselho. Neste sentido Thomasius textual e categoricamente afirma: “(…) la ley natural y divina pertenece más a los consejos que a los mandatos y la ley humana propiamente dicha no se refiere sino a normas imperativas”[46]. Se o direito natural não é Direito, ficará em simples ideal inspirador do único e autêntico Direito que é o positivo. Com um excessivo esquematismo, na opinião de Antônio Blanco González, Thomasius distingue três ordens ou sistemas normativos do obrar humano, que tendem uniformemente a conseguir a felicidade na vida, para qual se há de viver honesta, decorosa e justamente, que se referem as três ordens normativas: o moral, o político e o jurídico respectivamente. A Moral e a Política originam deveres imperfeitos. O Direito cria deveres perfeitos, distinção que Thomasius segue a Pufendorf. Blanco González traduz a essência da clássica distinção dos fundamentos de Thomasius caracterizados nos planos do honesto (honestum), do decoroso (decorum) e do justo (iustum)[49]: “O honesto, identificado ao moral ou ético, provem do princípio faz a ti o quê queiras que os demais façam a si mesmos. Esta forma de comportamento é reflexiva; nasce e reverte no sujeito mesmo, carece de relação intersubjetiva ou alteridade; regula o campo das ações humanas das ações humanas boas, tendentes a alcançar a felicidade interna, motivo pelo qual gera mais que uma obrigação também interna que ninguém, mais que o próprio sujeito, pode exigir. O decoroso, sinônimo de político, se nutre do princípio faz aos demais o quê queiras que os demais façam contigo. Esta norma de comportamento é de caráter transitivo e biunívoco; requere a existência de, ao menos, duas partes relacionadas entre si, pelo que seu caráter essencial é a bilateralidade. Esta norma regula as relações com os demais e tende a alcançar a benevolência alheia, é dizer, normatiza aquelas noções medias que nem promovem nem perturbam a paz externa, uma vez que em si mesmas não podem ser coativas. O justo, equiparável ao Direito, provem do princípio não faças aos demais o quê não queiras que façam contigo. Esta norma, igualmente, é transitiva, biunívoca e, ademais, proibitiva, e se refere àquelas relações externas e intersubjetivas que tendem a assegurar a paz externa e que, por afetar a tranqüilidade social, são coercíveis.” (grifos no original). Desta forma em Thomasius encontramos plenamente situada a fundamental distinção entre Direito e Moral, ao separar o iustum, objeto do Direito, tanto do honestum, objeto da moral individual, como do decorum, objeto da moral social. Neste sentido, com um maior grau de maturidade que os iusnaturalistas anteriores, o autor alemão em sua etapa de Halle, formula a distinção entre o objeto da ciência jurídica e o objeto da teologia moral com a citada descrição das ações humanas referentes às respectivas esferas do iustum e do honestum, e a categorização das chamadas ações medianas, aquelas irrelevantes à consecução seja da paz externa como da paz interna, as que pertencem à órbita do decorum[50]. O honestum se refere à paz interna (a satisfação da íntima consciência) e o iustum à paz externa (a pacífica convivência social). O Direito limitá-se ao campo do iustum, e consiste no respeito aos demais e a abstenção para que cada um goze de seus próprios direitos. Com isto desenvolve-se a categoria autônoma da juridicidade, por seu caráter intersubjetivo e seu caráter coativo. É dizer, o Direito se refere e é competente unicamente nas ações exteriores que relacionam aos homens entre si e que se podem impor coativamente. Com esta afirmação, se produz a autonomia respectiva do Direito e da Moral, e praticamente se favorece – diante das Igrejas intolerantes e também diante do Estado – a liberdade de pensamento e a liberdade religiosa, posto que somente as ações externas podem ser objeto de coação. Toda esta construção tem uma finalidade bem clara no sentido de que o Estado deve limitar-se a garantir a chamada paz externa. Além do que, a distinção entre Direito e Moral que Wolf completará mais tarde, será a base da concepção kantiana do Direito de cujas categorias vivemos ainda atualmente. A filosofia do Direito, nas palavras de Ernest Bloch, com a contribuição de Thomasius perde assim completamente sua vinculação com a teologia, uma vinculação que, de uma maneira ou de outra, todavia havia sido mantida por Pufendorf e os demais autores iusnaturalistas anteriores. Kant 2. Direito e moral na filosofia de immanuel kant: a autonomia da vontade como possibilidade de moralidade Tecidas as considerações preliminares, cabe agora passar ao exame dos critérios pertinentes ao Direito e a Moral expostos na filosofia kantiana. Importante tratar de um dos conceitos centrais da filosofia de Kant, para a devida apreensão do tema: a autonomia da vontade. A autonomia da vontade significa a capacidade de optar por uma determinada conduta independentemente das paixões, impulsos e carências, isto é, independente de todo fundamento sensível. Assim, em Kant o agir segundo a aptidão de escolher sua conduta livre de pressupostos sensíveis implica na afirmação da autonomia da vontade como corolário da razão prática. A vontade não está determinantemente condicionada à experiência sensível, pelo contrário, o sujeito não está aprisionado à uma modalidade do agir orientada somente por leis da natureza, mas pode representar a si mesmoleis que serão o elemento constitutivo de sua liberdade. Portanto, “[...] a origem da moral encontra-se na autonomia, na auto legislação da vontade” (HÖFFE, 2005, p. 219).Na filosofia kantiana, a vontade não representa uma face obscura e irracional do sujeito, mas retirando sua essência da razão, pode ser tomada como a própria razão com respeito à ação ou prática, daí falar-se de uma “razão prática pura”. Compreendendo a vontade de maneira estrita, todavia, não extinguindo os impulsos naturais, Kant nos dirá que a vontade tem o condão de converter-se em princípio-guia para distanciar o agir de impulsos condicionados Pode-se inferir do exposto, que só se torna possível dar-me uma lei que a mim mesmo represento, distanciando-me de pressupostos sensíveis, por meio da existência de uma vontade autônoma. Aqui, verifica-se a existência de tal possibilidade: a de se representar uma lei que só pode ser entendida em seu verdadeiro sentido como razão prática pura. Na elucidação de Kant: “Autonomia da vontade é a qualidade que a vontade tem de ser lei para si mesma (independentemente de uma qualidade qualquer dos objetivos do dever)” (KANT, 1960, p. 85). Neste ponto reside o âmago da autonomia da vontade: a existência de uma vontade autônoma que não é destinatária de um animus qualquer torna factível a faculdade de representar a si mesmo leis que se escolhe e assim, funda- se o agir moral, isto é a moralidade. Cumpre ressaltar, portanto, que a vontade autônoma é o princípio fundante da Moralidade. A vontade moral (autônoma) é ela mesma a razão prática pura. 2.1. Da moralidade e da legalidade: o imperativo categórico e o imperativo hipotético, a legislação interna e a legislação externa Sabe-se que a possibilidade da existência de uma moralidade em Kant, funda-se em uma vontade autônoma, entretanto, a pergunta se coloca é: qual conteúdo desta moralidade? Immanuel Kant elabora a resposta sobre o questionamento do conteúdo da moralidade na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (KANT, 1960), onde conceitua o elemento constitutivo da moralidade. Nos dizeres do filósofo: “Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade”(KANT,1960, p. 16). Esta boa vontade, diga-se ilimitadamente, boa, assume a forma daquela vontade incondicionada de quaisquer estímulos sensíveis ou objetivos interessados: ela é boa em si, constituindo um fim em si mesma. Sendo tal vontade caracterizada como um fim em si mesma, encontra-se depurada de quaisquer aspectos de experiência sensível. O que a torna ilimitadamente boa, portanto, é o âmbito de autonomia que deixa ao sujeito, a fim de que a ação possa ter nela sua medida pelo puro respeito ao dever para fomentar liberdade. Assim, o que é simplesmente e ilimitadamente bom em Kant, pode ser definido como aquilo que não pertencendo ao universo dos interesses condicionados por estímulos sensíveis pode respeitar a lei do dever, por conseguinte, só pode haver dever onde há autonomia da vontade, pois só posso dar-me uma lei que a mim mesmo represento se tenho uma vontade autônoma, desembaraçada de estímulos sensíveis e onde há uma boa vontade, ou seja, uma vontade que é um fim em si mesma. Destarte, verifica-se que o fundamento da moralidade consiste na autonomia da vontade, ao passo que a moralidade em si permanece ligada à boa vontade kantiana. Assim, claro está que a moralidade se desenvolve no campo do móbil da ação, isto é, da consciência do agir em detrimento de interesses que rondam o mundo fático da conduta. Coloca-se em evidência a persistente atenção de Kant voltada para a origem da vontade - aspecto interno e subjetivo do sujeito. Portanto, pode-se tomar alguns parâmetros substanciais de distinção entre moralidade e legalidade sintetizando-os em dois critérios: A) A moralidade é a ação dirigida em pleno respeito ao dever; B) A legalidade se mistura aos estímulos sensíveis obtendo seu cumprimento na mera conformidade ao dever; não se importa com móbil que dá origem à conduta, apenas exige que está lhe esteja conforme. Para elucidar no que consiste tal dever, Kant elabora o conceito de imperativo categórico. Assim, o imperativo categórico é uma instância subjetiva que exorta a um agir moral. É, portanto, o dever ser que expressa fórmulas ou preceitos sustentados pela lei que o sujeito representa a si mesmo; é justamente a exortação a um agir moral na forma do “Age!”. A característica que confere maior substancialidade ao conceito de imperativo categórico é a sua universalidade, pois consiste em máximas universalizáveis. Contudo, importante ressaltar que o imperativo categórico é aquele que somente prescreve ações boas por si mesmas, pertencendo assim, à ordem da moralidade; reclama uma ação moral, ou seja, em respeito ao dever. Nos dizeres do filósofo: “Age de modo tal, como se a máxima de tua ação devesse tornar-se pela tua vontade lei universal da natureza”(HÖFFE, 2005, p. 57). O Imperativo categórico ganha maiores contornos de objetividade quando é desenvolvido para explicitar no que consiste a ação moral, ao que logo é conferida a resposta: “em máximas universalizáveis”. Por isso, a universalidade é válida como sinal distintivo da conduta moral. Ao lado do Imperativo categórico está o Imperativo hipotético. Este imperativo é dividido em técnicos e pragmáticos segundo a natureza de seus fins, se possível ou real. O Imperativo hipotético é aquele que formula uma ação que visa à obtenção de certa finalidade, como por exemplo: se não queres ser visto como mentiroso, então, não deves mentir. O Imperativo hipotético é, portanto, a ordem imperativa que prescreve uma ação boa/útil para alcançar determinado resultado. Suas regras são sempre heterônomas, pois está condicionado a pressupostos sensíveis (HÖFFE 2005, p. 72): Deste modo, tem-se que devido à presença de elementos dotados de heteronomia no Direito, pode-se considerar as leis jurídicas como componentes da esfera dos imperativos hipotéticos. Assim, demonstram-se os principais parâmetros de distinção entre moralidade e legalidade, sintetizando-os em dois critérios: A) A moralidade é a ação dirigida em pleno respeito ao dever; B) A legalidade se mistura com os estímulos sensíveis, obtendo seu cumprimento em conformidade ao dever; não se importa com a motivação que dá origem à conduta. Habermas 3. A fundamentação do direito a partir da relação de complementaridade entre direito e moral No campo prático-moral, o Direito Moderno herdou do Direito Natural Racional, a concepção dos homens como sujeitos de direitos, livres e iguais, criadores do Direito enquanto normas jurídicas universais. E, para que essas normas jurídicas sejam válidas, é necessário que as consequências e efeitos colaterais que resultem de sua observância universal, para a satisfação dos interesses de todo o indivíduo, possam ser aceitos sem coação por todos os concernidos (MOREIRA, 2002). Para Habermas, ao fazer a cisão entre a moralidade e a legalidade, o Direito moderno levanta a questão acerca da necessidade de justificação prática das normas jurídicas. A vinculação estabelecida, contudo, entre as normas de ação e as normas legais remete o Direito Moderno à fundamentação de seus conteúdos por meio de princípios morais. A estrutura pós-tradicional da esfera jurídica, na modernidade, demonstra que a fundamentação do Direito passa por uma questão de princípios. Habermas entende, em um primeiro momento de suas pesquisas, que haveria uma relação de complementaridade entre as normas morais e as normas jurídicas. Contudo, para o Autor, tanto as regras morais quanto as regrasjurídicas mantêm-se distintas da ética tradicional, ambas convivendo lado a lado (MOREIRA, 2002). Logo, a relação de complementaridade descrita por Habermas não deve ser interpretada como se houvesse entre as normas morais e as normas jurídicas uma relação de equivalência, “[...] como se se tratasse de uma mesma figura geométrica que apenas é projetada em níveis diferentes.” (MOREIRA, 2002). E, será a partir dessa constatação que Habermas conceberá uma fundamentação pós-convencional do direito utilizando-se do Princípio do Discurso. Considerações propedêuticas sobre a teoria do discurso À luz do Princípio do Discurso, o problema da validade das normas jurídicas passa pela seguinte pergunta: “são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis interessados poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais?” (HABERMAS, 1997, p. 142). Na tentativa de responder a esse questionamento, Habermas parte do pressuposto de que as razões decisivas devem poder ser aceitas, a priori, por todos. Para tal, utiliza-se do Princípio do Discurso como marco teórico para fundamentar imparcialmente as normas de ação. As razões decisivas, nesse contexto, somente poderiam ser aceitas porque este princípio considera simetricamente os interesses daqueles que participam do discurso e reconhece nesses questionamentos éticos-políticos as formas de vida estruturadas comunicativamente. É importante compreender que o Direito, no paradigma discursivo, desempenha o papel de medium, auto organizador de uma comunidade entendida enquanto associação voluntária de membros do direito livres e iguais. Como medium, o Direito deve permitir a participação de todos os seus membros. Nessa perspectiva, a construção da Teoria Discursiva, no âmbito jurídico, se desenvolveu a partir de três pressupostos. O primeiro, parte do rompimento com a razão prática, substituída pela razão comunicativa.[2] O segundo, diz respeito à possibilidade de o ordenamento jurídico e até mesmo os próprios procedimentos de normatização do Direito serem problematizados e revistos. E, por fim, o terceiro, trata da nova relação de co-originariedade entre o Direito e a Moral. A relação entre o Direito e a Moral, nessa medida, se estabelecerá de modo co- originário, porque o Princípio do Discurso afasta a normatividade imediata, possibilitando a criação de normas por meio de um procedimento discursivo deontologicamente neutro. Habermas entende que a legitimidade do ordenamento está, então, na vontade de seus cidadãos e que o processo democrático de criação do Direito seria a única fonte pós- metafísica da legitimidade. A pergunta acerca da validade do ordenamento jurídico é, desta feita, remetida ao plano do Processo Legislativo. Assim, a medida da legitimidade do Direito relaciona-se diretamente com a medida do espaço de liberdade reservado a cada sujeito de direito. Assim, as prescrições normativas passam a ter validade somente quando os destinatários dessas normas têm preservados a sua liberdade e autonomia. Em contrapartida, nos processos legislativos democráticos, sob o enfoque da teoria do discurso, a posição dos cidadãos como destinatários das normas jurídicas é substituída pela posição de co-autores do Direito. Habermas trabalha, ainda, a idéia de co-originariedade entre as normas morais e as normas jurídicas e como se dá essa relação. A proposição de co-originariedade entre normas deve ser entendida partindo-se da premissa de que entre as normas morais e as normas jurídicas não pode haver uma relação de subordinação. Ora, a legitimidade dos preceitos jurídicos, à luz da razão prática, era dada pela equiparação do Direito a uma dimensão moral que lhe era superior. Os conteúdos morais deveriam, assim, perpassar todo o ordenamento jurídico, conferindo-lhe validade. À luz da Teoria do Discurso, em contrapartida, a relação entre Direito e Moral, normas jurídicas e normas morais, deverá ser compreendida sob dois aspectos, quais sejam: o da simultaneidade na origem e o da complementaridade procedimental. No que tange à origem das normas morais e jurídicas, a aplicação do Princípio do Discurso neutro deontologicamente permite que, em sua origem, as normas jurídicas e as normas morais se mantenham independentes. Como Habermas abandona a razão prática para erigir sua teoria com base no Princípio do Discurso, abandona-se, também, a esfera legislativa que fornecia comandos imediatos à ação. Ora, como a razão comunicativa não é imediatamente legislativa, mas mediatamente legislativa, não se pode estabelecer o fundamento de uma apelando-se para a normatividade da outra, haja vista que ambas se originam simultaneamente através do agir comunicativo. Em contrapartida, a complementaridade pelo procedimento permite à Moral irradiar-se para além de suas fronteiras. É que através do procedimento legislativo, as razões morais fluem para o Direito, vinculando as decisões políticas legislativas aos conteúdos morais. A relação de complementaridade faz-se, assim, por meio de um procedimento. Habermas entende que a Moral insere-se em um campo do saber cultural e, como tal, não obtêm obrigatoriedade institucional. Enquanto isso, o Direito, além de uma forma de saber cultural é também um sistema de ação, com elevado grau de racionalidade. As proposições axiológicas contidas nas normas jurídicas, como sistema de ação, adquirem uma eficácia direta, o que, entretanto, não se verifica com as normas morais. Em vista do exposto, o Direito, como sistema de ação alivia a moral do fardo de, por si só, realizar a integração social. O Direito, por pertencer tanto às esferas culturais e institucionais, compensa a fragilidade inerente à moral em obrigar a vontade do indivíduo, por meio de uma normatização institucional. Assim, retira-se do sujeito moral o peso das decisões individuais. O Direito, nessa perspectiva, desvincula-se de uma esfera moral e passa a obter sua fundamentação na vontade e na opinião discursiva dos cidadãos, através de procedimentos democráticos garantidores da participação de todos os homens livres e iguais. Por derradeiro, o Princípio da Democracia é construído como junção do Princípio do Discurso e da forma jurídica, o que culmina na afirmativa de que o Direito obtém sua legitimidade pela observância dos procedimentos democráticos construídos pela discursividade dos sujeitos de direitos que se reconhecem como destinatários e autores do ordenamento jurídico, numa relação entre Direitos Fundamentais e Soberania Popular. Bilateralidade atribuiva Durante muito tempo, os juristas, sob a influência da Escola Positivista, contentaram-se com a apresentação do problema em termos de coercitividade; em seguida, renunciaram à “teoria da coação em ato”, para aceitá-la “em potência”, ou seja, depois de verem o Direito como coação efetiva, passaram a apreciá-lo como possibilidade de coação mas nunca abandonaram o elemento coercitivo. Este permaneceu como critério último na determinação do Direito. Podemos dizer que o pensamento jurídico contemporâneo, com mais profundeza, não se contenta nem mesmo com o conceito de coação potencial, procurando penetrar mais adentro na experiência jurídica, para descobrir a nota distintiva essencial do Direito. Esta é a nosso ver a bilateralidade atributiva. A teoria da bilateralidade atributiva, a que tenho dado desenvolvimentos próprios, corresponde à posição de outros jusfilósofos contemporâneos. Assim, por exemplo, Del Vecchio diz que a Moral se distingue do Direito pelo elemento de “bilateralidade”, “alteridade” ou “intersubjetividade”, dando a esses termos um sentido talvez equivalente ao que enunciamos com o acréscimodo adjetivo “atributivo”. Um jurista polonês integrado na cultura russa do século XX, Petrazinski, emprega a expressão “imperatividade atributiva”. Por outro lado, não podemos olvidar os antecedentes da doutrina já contidos nos conceitos de relação de Aristóteles, de alteritas de Santo Tomás, de exterioridade desenvolvida por Christian Thomasius, na passagem do século XVII para o XVIII; e no de heteronomia exposto por Kant, ou no de querer entrelaçante de Stammler etc.[2]. Procurando caracterizar o que vem a ser “imperatividade atributiva”, Petrazinski dá-nos um exemplo, que reproduzimos com algumas alterações. Imaginemos que um homem abastado, ao sair de sua casa, se encontre com um velho amigo de infância que, levado à miséria, lhe solicita um auxílio de cinco rublos, recebendo uma recusa formal e até mesmo violenta. Em seguida, a mesma pessoa toma um coche para ir a determinado lugar. Ao terminar o percurso, o cocheiro cobra cinco rublos. A diferença de situação é muito grande entre o cocheiro que cobra cinco rublos e o amigo que solicitava a mesma importância. No caso do amigo, que pedia uma esmola, havia um nexo de possível solidariedade humana, de caridade, mas, no caso do cocheiro, temos um nexo de crédito resultante da prestação de um serviço. No primeiro caso, não há laço de exigibilidade, o que não acontece no segundo, pois o cocheiro pode exigir o pagamento da tarifa. Eis aí ilustrado como o Direito implica uma relação entre duas ou mais pessoas, segundo certa ordem objetiva de exigibilidade. Pelos estudos que temos desenvolvido sobre a matéria pensamos que há bilateralidade atributiva quando duas ou mais pessoas se relacionam segundo uma proporção objetiva que as autoriza a pretender ou a fazer garantidamente algo. Quando um fato social apresenta esse tipo de relacionamento dizemos que ele é jurídico. Onde não existe proporção no pretender, no exigir ou no fazer não há Direito, como inexiste este se não houver garantia específica para tais atos. Bilateralidade atributiva é, pois, uma proporção intersubjetiva, em função da qual os sujeitos de uma relação ficam autorizados a pretender, exigir, ou a fazer, garantidamente, algo. Esse conceito desdobra-se nos seguintes elementos complementares: a) sem relação que una duas ou mais pessoas não há Direito (bilateralidade em sentido social, como intersubjetividade); b) para que haja Direito é indispensável que a relação entre os sujeitos seja objetiva, isto é, insuscetível de ser reduzida, unilateralmente, a qualquer dos sujeitos da relação (bilateralidade em sentido axiológico); c) da proporção estabelecida deve resultar a atribuição garantida de uma pretensão ou ação, que podem se limitar aos sujeitos da relação ou estender-se a terceiros (atributividade). É claro que poderíamos empregar outras expressões para designar a nota distintiva do Direito, como, por exemplo, proporção atributiva, mas o essencial é compreender a substância do assunto, captando-lhe o conceito em sua concreção. Não serão demais algumas considerações complementares, inclusive para desfazer alguns equívocos que rondam a matéria. Num contrato de corretagem, por exemplo, o proprietário e o intermediário se relacionam para efetuar a venda de um prédio, ficando o corretor autorizado a prestar o seu serviço com a garantia de uma retribuição proporcional ao preço avençado. Nesse, como nos demais enlaces contratuais, nenhuma das pessoas deve ficar à mercê da outra, pois a ação de ambas está subordinada a uma proporção transpessoal ou objetiva, que se resolve numa relação de prestações e contraprestações recíprocas. Não é, porém, essencial que a proporção objetiva siga o modelo da reciprocidade própria das relações contratuais. Basta que a relação se estruture segundo uma proporção que exclua o arbítrio (que é o não-Direito) e que represente a concretização de interesses legítimos, segundo critérios de razoabilidade variáveis em função da natureza e finalidade do enlace. Pode, por exemplo, um negócio ser aleatório, assumindo uma das partes, deliberadamente, o risco da operação acordada. Nem se diga que o conceito de bilateralidade ou proporção atributiva só é aplicável no plano das relações privadas, não sendo conforme com a estrutura das relações entre os particulares e o Estado, ou para caracterizar, por exemplo, as regras de organização de um serviço público. Dir-se-á que nesta espécie de normas não há nem proporção, nem atributividade, mas é preciso não empregar aquelas palavras em sentido contratualista. Na realidade, quando se institui um órgão do Estado ou mesmo uma sociedade particular, é inerente ao ato de organização a atribuição de competências para que os agentes ou representantes do órgão possam agir segundo o quadro objetivo configurado na lei. Há, por conseguinte, sempre proporção e atributividade. As normas jurídicas possuem uma estrutura imperativo-atributiva, isto é, ao mesmo tempo em que impõem um dever jurídico a alguém, atribuem um poder ou direito subjetivo a outrem. Daí se dizer que a cada direito corresponde um dever. Se o trabalhador possui direitos, o empregador possui deveres. A Moral apresenta uma estrutura mais simples, pois impõe deveres apenas. Perante ela, ninguém tem o poder de exigir uma conduta de outrem. Fica-se apenas na expectativa de o próximo aderir às normas. Assim, enquanto o Direito é bilateral, a Moral é unilateral. Chamamos a atenção para o fato de que este critério diferenciador não se baseia na existência ou não de vínculo social. Se assim o fosse, seria um critério ineficaz, pois tanto a Moral quanto o Direito dispõem sobre a convivência. A esta qualidade vinculativa, que ambos possuem, utilizamos a denominação alteridade, de alter, outro. À característica apontada do Direito, Miguel Reale prefere denominar bilateralidade atributiva.11 No quadro comparativo que apresenta sobre os campos da Ética, assinala a bilateralidade como característica da Moral. O autor distingue, portanto, a bilateralidade atributiva da simples bilateralidade, termo este que emprega no sentido de liame ou vínculo social
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