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Comitê Científico Internacional da UNESCO para Redação da História Geral da África HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA • VIII África desde 1935 UNESCO Representação no BRASIL Ministério da Educação do BRASIL Universidade Federal de São Carlos EDITOR ALI A. MAZRUI EDITOR ASSISTENTE C. WONDJI HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA • Viii África desde 1935 Comitê Científico Internacional da UNESCO para Redação da História Geral da África Coleção História Geral da África da UNESCO Volume I Metodologia e pré-história da África (Editor J. Ki-Zerbo) Volume II África antiga (Editor G. Mokhtar) Volume III África do século VII ao XI (Editor M. El Fasi) (Editor Assistente I. Hrbek) Volume IV África do século XII ao XVI (Editor D. T. Niane) Volume V África do século XVI ao XVIII (Editor B. A. Ogot) Volume VI África do século XIX à década de 1880 (Editor J. F. A. Ajayi) Volume VII África sob dominação colonial, 1880-1935 (Editor A. A. Boahen) Volume VIII África desde 1935 (Editor A. A. Mazrui) (Editor Assistente C. Wondji) Os autores são responsáveis pela escolha e apresentação dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opiniões nele expressas, que não são necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organização. As indicações de nomes e apresentação do material ao longo deste livro não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte da UNESCO a respeito da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região ou de suas autoridades, tampouco da delimitação de suas fronteiras ou limites. Comitê Científico Internacional da UNESCO para Redação da História Geral da África HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA • Viii África desde 1935 EDITOR AlI A. MAzRuI Editor AssistEntE ChristophE Wondji Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura C A P Í T U L O 2 8 1003A África e as regiões em vias de desenvolvimento A ascensão das nações em desenvolvimento, igual e geralmente denominadas “Terceiro Mundo” ou, por vezes, “Sul”, consiste, incontestavelmente, em um dos fenômenos mais significativos advindos durante a segunda metade do século XX. As três denominações são todas aceitáveis, mas neste capítulo, utilizar- -se -á, preferencialmente, o termo “Terceiro Mundo”, não somente em virtude de evocar uma identidade assumida de forma mais consciente, mas sobretudo por manter o nome genérico através do qual habitualmente designa -se as nações e os povos da África, da Ásia, da América Latina e do Caribe1. Ao que tudo indica, legitimar -se -ia especialmente considerar este fenômeno, relativo à ascensão de uma identidade terceiro -mundista no domínio da história contemporânea, tanto mais, se levarmos em conta as seguintes evidências: nos anos 1940, o “Terceiro Mundo”, como tal, era desconhecido; nos anos 1950, não existiam nem o “Movimento dos Não Alinhados”, nem o “Grupo dos Setenta e 1 O Movimento dos não Alinhados, lançado formalmente em 1961, é o principal meio de expressão política do Terceiro Mundo (ver tabela 28.4); o Grupo dos Setenta e Sete, mais numeroso, é a principal unidade de negociação terceiro -mundista (ver tabela 28.5). Se o conceito relativo a fazer ou não parte do Terceiro Mundo for definido como a identificação consciente, de Estados independentes, a um destes dois grupos ou a ambos, dele fariam parte: todos os Estados africanos, com exceção da África do Sul; a maior parte dos Estados da região asiática – Oriente Médio -Pacífico (nele incluído Chipre, pertencente a ambos os grupos e excluindo -se China, Israel, Japão, Turquia, Austrália e Nova Zelândia); todos os Estados da América Latina e do Caribe; uma porção de Estados europeus, tais como Iugoslávia e Malta (membros de ambos os grupos) e a Romênia (aderente ao Grupo dos Setenta e Sete). A África e as regiões em vias de desenvolvimento Locksley Edmondson 1004 África desde 1935 Sete”; e nos anos 1960, a expressão “nova ordem econômica internacional” sequer estava em uso. No que diz respeito à África, antes dos anos 1960, as suas relações com a Ásia, a América Latina e o Caribe eram, muito amiúde, controladas pelas potências coloniais instaladas nestas regiões ou ocorriam com a intermediação destas próprias nações hegemônicas. Contudo, não é supérfluo relembrar que “não se poderia discernir a realidade do Terceiro Mundo através de uma análise limitada aos dados contemporâ- neos”, tendo em vista que o “Terceiro Mundo constitui um fenômeno histórico, parte integrante de um processo, no transcurso do qual se manifesta a atual ordem mundial”, cuja “gênese” remonta, no mínimo2, “a algo em torno de 200 anos”. Muito embora ela exceda a abrangência do capítulo ora iniciado, torna -se conveniente manter viva na lembrança esta mais ampla perspectiva histórica, sobretudo após o fenômeno caracterizado como “declínio da fronteira colonial”, após a Segunda Guerra Mundial, circunstância esta que, segundo a magistral análise de Pr Hans Morgenthau, representa “um dos grandes pontos de inflexão na história do mundo3”. Seguindo todavia os passos de Morgenthau, este estado de coisas devia -se à inextrincável ligação deste processo de descolonização com o declínio da Europa, à qual houvera sido possível estabelecer este domínio sem partilha, apoiando -se internamente sobre o sistema colonial e, externamente, sobre o moderno sistema internacional. Perseverando com este raciocínio, como notória e importante consequência desta descolonização para o sistema internacional, subjaz como obra desta mesma ordem colonial, a concretização de uma situação histórica a permitir à imensa maioria dos povos do mundo, até então politica- mente subjugados, o estabelecimento de relações bilaterais e multilaterais ofi- ciais. Este quadro tanto levantou questionamentos no tocante às regras básicas, fundamentais e tradicionais, das relações internacionais, quanto e de modo determinante, conduziu a uma reestruturação das suas modalidades de aplicação e das próprias instituições responsáveis pela sua elaboração. Este capítulo visa, sob o prisma africano, expor as maneiras pelas quais e, em certa medida, por que esta contestação, emanada do Terceiro Mundo, nasceu e ampliou -se após a Segunda Guerra Mundial (mais especificamente, a partir dos anos 1950) até 1980. Ele se dedica a discernir as grandes tendências e os processos maiores, sob uma perspectiva histórica, através da qual, revelam -se a ampliação e o aprofundamento dos vínculos entre a África e o restante do 2 I. SABRI -ABDALLA, 1980, p. 32. 3 H. J. MORGENTHAU, 1973, p. 351. 1005A África e as regiões em vias de desenvolvimento Terceiro Mundo, assim como a presença e o papel africano na criação e no desenrolar dos processos de colaboração estabelecidos entre o conjunto dos países terceiro -mundistas. Lugar e papel da África no Terceiro Mundo Para melhor apreender o significado que convém atribuir à situação e à ação da África no cenário do Terceiro Mundo, aqui abordaremos determinadas carac- terísticas objetivas de ordem política, econômica, racial e cultural, da condição africana, passada e presente. Este significado está ligado aos traumatismos espe- cíficos do Terceiro Mundo, representados caricaturalmente na condição africana mas igualmente conecta -se ao impulso proporcionado pela África à mobilização do Terceiro Mundo, com o objetivo de questionar o statu quo internacional. Duas considerações políticas afloram imediatamente à mente. A primeira diz respeito à coincidência (talvez melhor valesse dizer a sua catalisação) do movimento de descolonização na África − por ocasião do novo patamar atingido com a conquista da independência de Gana, em 1957, primeiro acontecimento na África desta ordem de valor − com a decolagem do movimento terceiro- -mundista, nascido durante a Conferência Afro -Asiática, realizada em Bandung(Indonésia), no mês de abril de 1955 (doravante chamada “Conferência de Bandung”) (tabela 28.3). Em segundo lugar e como consequência do processo de descolonização, a multiplicação de Estados africanos vindos à cena atribuiu, nas instituições do Terceiro Mundo e em outras instituições internacionais, uma imponente presença numérica do continente, concedendo dimensão mundial às preocupações propriamente africanas, expressas no contexto terceiro -mundista. A tabela 28.1 ilustra muito bem este último ponto, através da análise numé- rica, por região, da composição da Organização das Nações Unidas, de 1945 até 1980. Os Estados africanos eram 3, no ano de 1945 (ou seja, menos de 6%), em um total de 51 membros fundadores das Nações Unidas, passando a 50 em 1980, ou seja, 32,5% do total de 154 membros da instituição4. A composição de outras organizações internacionais é, igualmente, extrema- mente reveladora. Por exemplo, em 1961, a África estava muito bem represen- tada quando da primeira Conferência de Chefes de Estado e de Governos dos Países Não Alinhados, na qual os Estados áfricos totalizavam 11, do total de 25 4 A África do Sul governada pelos brancos, membro -fundador da Organização das Nações Unidas, não figura neste total de Estados africanos presentes na ONU. 1006 África desde 1935 participantes (44%) plenamente credenciados; por ocasião da sexta Conferên- cia, em 1979, o continente ocupava o posto mais elevado dentre os países não alinhados, ou seja, 50 delegações áfricas reunindo 54% do total de 92 membros credenciados (tabela 28.4). A representação da África no Grupo dos Setenta e Sete permaneceu em nível sensivelmente constante, aproximadamente 41%, com 32 países junto aos 77 membros fundadores, em 1964, e 50 representantes em meio a 122 membros do Grupo em 1980 (tabela 28.5). No entanto, além dos índices quantitativos, expressões da absoluta impor- tância da África no Terceiro Mundo, é indispensável creditar os relevantes aspectos qualitativos desta influência primaz. Impera abordá -los sob a ótica da economia internacional, pois, aqui e justamente, concentram -se as principais preocupações do Terceiro Mundo, assim como, porque dela derivam, de forma nítida, se lançarmos um olhar sobre a África pós -colonial, os traumatismos, os dilemas e as graves dificuldades, causas do sofrimento imposto aos povos do terceiro -mundistas. Resultado compacto impõe -se: o continente áfrico agrupa, como pode -se depreender da tabela 28.2, o maior número de países classificados junto aos menos avançados (PMA). Segundo a Organização para a Unidade Africana (OUA), estes são “os efeitos das promessas não realizadas de estratégias globais de desenvolvimento, mais profundamente sentidas na África, comparativamente aos demais continentes do mundo5”. Tais são os termos apresentados no primeiro parágrafo do preâmbulo ado- tado pela OUA, em 1980, deste desde então histórico Plano de Ação de Lagos para o Desenvolvimento Econômico da África, 1980 -2000. Após considerar que “o subdesenvolvimento da África não constitui uma fatalidade” e que este estado de coisas seja, de fato, “paradoxal, se computados os imensos recursos humanos e naturais do continente”, a OUA identifica, em seguida, as causas deste atraso, ligadas em grande parte à estrutura da exploração internacional: “No entanto, a África, a despeito de todos os esforços manifestados pelos seus dirigentes, permanece sendo o continente menos desenvolvido. Ele conta com 20 dentre os 31 países menos avançados do mundo. O continente está exposto às consequên- cias desastrosas das calamidades naturais e às mais cruéis doenças endêmicas, é vítima da exploração colonial, vestígio do colonialismo, bem como do racismo e do apartheid. Com efeito, a África foi diretamente explorada durante o período colonial e durante os dois últimos decênios; esta exploração persistiu pela inter- 5 OUA, 1981, parágrafo 1. 1007A África e as regiões em vias de desenvolvimento TABeLA 28.1 CoMPoSIÇão PoR ReGIão DA oRGANIZAÇão DAS NAÇõeS UNIDAS, 1945-1980 Ano África1 Ásia2 Caribe3 América Latina América do Norte Europa4 Oceania5 Total 1945 4 9 3 17 2 14 2 51 1950 4 16 3 17 2 16 2 60 1955 5 21 3 17 2 26 2 76 1959f 10 23 3 17 2 26 2 82 1965 37 28 5 17 2 27 2 118 1970 42 30 7 18 2 27 2 127 1975 47 37 10 17 2 29 2 144 1980 51 40 13 17 2 29 2 154 1. Os quatro membros fundadores eram o Egito, a Etiópia, a Libéria e a África do Sul. 2. Incluindo o Oriente Médio e as ilhas do Pacífico; incluindo igualmente Chipre e a Turquia. 3. As ilhas das Antilhas, acrescentando os “prolongamentos” políticos continentais independentes da Guiana e do Suriname. 4. A entrada de 9 Estados já independentes da Europa em 1955 resultava de um acordo global que resolvia as dissensões Leste-Oeste, no tocante aos países aliados da Alemanha ao longo da Segunda Guerra Mundial e a alguns novos regimes comunistas instaurados na Europa Oriental após a Guerra. A RFA e a RDA foram aceitas separadamente em 1973. 5. Austrália e Nova Zelândia. 6. Em 1958 foi criada a República Árabe Unida, através da união do Egito e da Síria. Estes dois membros originais da ONU tornaram-se assim um único Estado membro, levado em conta no total dos Estados mem- bros em 1959 (82), porém não na divisão regional, na qual as suas duas partes aparecem separadamente, uma na África e a outra na Ásia. A Síria retomou em 1961 o seu estatuto de Estado membro distinto. venção das forças estrangeiras neocolonialistas, as quais tentavam influenciar as políticas e diretrizes dos Estados africanos6.” No bojo deste diagnóstico acerca da situação econômica africana inscrevem- -se, em filigrana, certas humilhações políticas, com os seus componentes raciais e culturais, infringidas à África no decorrer do período colonial e cujas sequelas estão ainda presentes, até os dias atuais, em especial com o apartheid na África do Sul. Temos aqui, portanto, outra dimensão importante da situação da África no cenário do Terceiro Mundo. Em seu discurso de fechamento na Conferência de Bandung, o primeiro- -ministro da Índia, Jawaharlāl Nehru, então reconhecido como um dos mais influentes dirigentes no âmbito do ascendente movimento terceiro -mundista, 6 Ibid., pp. 5 -6. 1008 África desde 1935 decididamente enfatizara os pesos político e racial, excepcionalmente fortes, suportados pela África, solicitando aos seus colegas asiáticos que estas conside- rações fossem inscritas, em lugar de destaque, entre as suas preocupações: “Nós votamos resoluções concernentes à situação de tal ou qual país. Mas, eu estimo que não haja nada mais terrível que o infinito drama sofrido pela África, há muitas centenas de anos. Todo o resto soçobra na insignificância quando imagino o drama imensurável da África, desde os tempos nos quais milhões de Africanos foram transportados como escravos para as Américas e a outras regiões, tanto mais se relembrarmos que metade dentre estes seres morria durante a travessia. Devemos todos assumir a responsabilidade por este drama, cada qual dentre nós, mesmo que dele não tenhamos participado diretamente. Contudo, infeliz e diferentemente, ainda hoje a tragédia da África, seja ela racial TABeLA 28.2 SITUAÇão GeoGRÁFICA DoS PAÍSeS MeNoS DeSeNVoLVI- DoS, 1981 África Ásia Caribe Total Benin Malaui Afeganistão Haiti Botsuana Mali Bangladesh Burkina Fasso Níger Butão Burundi Uganda Laos Cabo Verde República Maldivas Comores Centro-Africana Nepal Etiópia Ruanda República Gâmbia Somália Árabe do Iêmen Guiné Sudão Samoa Guiné-Bissau Tanzânia Iêmen (República Lesoto Chade Democrática Popular) Total 21 9 1 31 Fonte: H. Lopes e H. C. Tri, 1981. Estes autores indicam que os critérios adotados pela Assembleia das Nações Unidas em novembro de 1971 para definir os PMA eram: “Uma renda per capita muito baixa −apenas 200 dólares norte-americanos por pessoa e por ano em 1979 − comparativamente a valores médios equiva- lentes a 700 dólares para o conjunto dos países em desenvolvimento e a 8.000 dólares norte-americanos nos países industrializados de economia de mercado; um produto interno bruto (PIB) no qual a parte do setor industrial fosse inferior ou igual a 10% − em lugar dos 19% no conjunto dos países em desenvolvimento; uma taxa de analfabetismo inferior ou igual a 20%.” A primeira lista elaborada repertoriava 25 PMA, eles se tornariam 31 no início dos anos 1980. 1009A África e as regiões em vias de desenvolvimento ou política, ultrapassa aquela de qualquer outro continente. Compete à Ásia fazer o melhor possível para auxiliar a África, continentes irmãos que somos7.” As evocações do racismo, sensíveis desde os primeiros momentos do movi- mento afro -asiático − futuras bases de um movimento mais amplo do Terceiro Mundo − encontraram a sua origem na situação africana. A persistente arrogância da racista África do Sul conduziu esta dimensão racial à categoria de prioridade para o movimento terceiro -mundista, não tão somente em virtude do que objetivamente representa o apartheid, aos olhos de um Terceiro Mundo majoritariamente não branco, assim como, igualmente, em razão da ação diplomática africana se ter empenhado em garantir a proeminên- cia desta questão, no elenco de preocupações do Terceiro Mundo8. A Conferência de Bandung de 1955 constitui o melhor ponto de partida para o exame das relações da África com as regiões em desenvolvimento, entre- tanto, esta emergência do movimento terceiro -mundista foi condicionada pela ação anterior de fatores e de forças, os quais dizem respeito, essencialmente, à situação geográfica da África e ao seu papel no sistema internacional, ao menos desde o início do século. Anteriormente, ao final do século XIX, a divisão da África eleva -se como um momento crucial, capaz de permitir a compreensão e o dimensionamento da dominação ocidental, a qual se desdobrou, à mesma época, naquilo justamente denominado, por Lênin, “a partilha do mundo”. Desta forma, a criação do Ter- ceiro Mundo – no sentido objetivo da sua subordinação estruturada, em oposi- ção ao seu reconhecimento subjetivo, como força de transformação consciente de si mesma – resulta diretamente do jogo de forças políticas, econômicas, culturais e raciais dominantes, cujo produto, ao final do século XIX, apresenta -se sem artifícios na submissão oficial da África, finalizando o processo de subordinação do conjunto do Terceiro Mundo. Perante esta situação histórica, não causa espécie que determinados círculos pan -africanos tenham previsto, muito antes do reconhecimento do “Terceiro Mundo” enquanto tal, o seu surgimento e a sua futura capacidade de contestação. No início da primeira Conferência Pan -africana, ocorrida em 1900, em Londres, declarava -se em discurso de saudação às nações do mundo: “Os homens de hoje devem absolutamente lembrar -se que, em um mundo cada vez mais interligado, os milhões de negros da África, das Américas e das ilhas, acrescidos de milhões de homens de pele morena e amarela, habitantes 7 J. NEHRU, 1964, p. 19. 8 M. EL -KHAWAS, 1971. 1010 África desde 1935 de outras partes, estão destinados a exercerem grande influência nos tempos futuros, tão simplesmente pela sua quantidade e pelo seu contato físico9.” Destarte, 10 anos antes da Conferência de Bandung, o quinto Congresso Pan -africano, ocorrido no mês de outubro de 1945, em Manchester (Grã- -Bretanha), antecipava não somente a ascensão do movimento terceiro -mundista mas, igualmente, formulava ideias anticcolonialistas e pós -colonialistas de liber- tação, semelhantes àquelas que inspirariam, posteriormente, as lutas do Ter- ceiro Mundo10. A Declaração aos Povos Colonizados Do Mundo representa um exemplo evidente desta realidade. Redigida por Kwame Nkrumah, um dos dois secretários políticos no congresso, ela incitava os operários, lavradores, intelec- tuais e quadros colonizados ao redor do mundo, a vencerem o imperialismo e pressionava “os povos colonizados e submetidos do mundo” a se unirem11. Uma resolução deste mesmo congresso de 1945 expressava, com ainda maior clareza, a ideia pan -africana relativa à solidariedade geral do Terceiro Mundo. Resumida por George Padmore, outro secretário político do congresso, ela foi formulada em linguagem que caracterizaria a fase de formação do Movimento dos Não Alinhados nos dez anos seguintes: “O Congresso expressou a esperança na breve quebra das cadeias centená- rias do colonialismo pelos povos da Ásia e da África. Pois que, na qualidade de nações livres, eles se uniriam para consolidar e preservar a sua independência, tanto no tangente ao imperialismo ocidental, quanto à ameaça do comunismo12.” Tais são os antecedentes, fatuais e ideológicos, da contribuição do continente áfrico pós -colonial para a formação do pensamento e para a ação terceiro- -mundista, anteriores à Conferência de Bandung. Analisando este período é certamente arriscado formular generalizações concernentes à orientação das relações internacionais e da política externa de numerosos Estados da África 9 Esta “Saudação” é retomada integralmente em V. P. Thompson, 1969, pp. 319 -321. Os aproximadamente trinta participantes, representantes da África e da diáspora africana durante esta primeira Conferência Pan -africana na qual foi empregado formalmente, pela primeira vez, o termo “pan -africano”, trataram da situação do mundo negro, de modo geral, e dedicaram especial atenção à consolidação da dominação colonial e racial europeia sobre o continente africano como um todo, e sobre a África do Sul, em parti- cular. 10 Diferentemente dos congressos ocorridos no entreguerras, os quais preconizavam um aperfeiçoamento do sistema colonial, o quinto Congresso Pan -africano pronunciou -se claramente pelo término do colo- nialismo. Dois dentre os seus mais eminentes participantes africanos foram Kwame Nkrumah e Jomo Kenyatta, futuros líderes dos processos de independência em seus respectivos países, Gana e Quênia. Ver G. PADMORE, 1963, para o resumo oficial dos debates durante o congresso. 11 K. NKRUMAH, 1962, pp. 44 -45, foi por nós sublinhado para ressaltar o fato da Declaração referir -se, em sua íntegra, ao colonialismo universal, sem mencionar a África, nem uma única vez, em particular. 12 G. PADMORE, 1956, pp. 168 -169. 1011A África e as regiões em vias de desenvolvimento independente. Porém alguns fatores, próprios às evoluções tratadas neste capí- tulo, particularmente atenuam esta dificuldade. Em especial, a formação de um grupo africano no interior da ONU, ao final dos anos 1950, e a criação da Organização para a Unidade Africana, em 1963, foram a um só tempo sintomas e fatores da busca, pelos Estados africanos, de posições comuns sobre questões pertinentes ao continente, em seu conjunto. Todavia, este processo não se deu sem obstáculos, como são testemunhas as clivagens e as divisões surgidas no interior da OUA, as quais, por vezes, ameaça- ram a sua sobrevivência. Manifestaram -se também divergências intra -africanas, menos importantes, referentes a polêmicas que colocavam em questão tanto os interesses da África, como região em desenvolvimento, quanto aqueles de outros países do Terceiro Mundo. Esta opinião é confirmada por um minucioso estudo de G. A. Nweke que concluiu: “tanto mais as grandes potências imiscuem -se nos conflitos africanos, menos entendimento se observa entre os Estados africanos”, mas, por outro lado, “a harmonização tende a ser mais robusta nas ocasiões em que os Estados afri- canos resistem juntos, com outros países do Terceiro Mundo, para negociarem contra as grandes potências ou os países industrializados13”. As inevitáveis divergências de opinião entre os Africanos sobreas ideolo- gias, as políticas e as prioridades aplicáveis às causas do Terceiro Mundo pesa- ram menos, em última análise, que as suas percepções comuns a respeito dos problemas e necessidades essenciais, conduzindo a uma visão global, sobre os interesses e sobre os comportamentos africanos, que alimenta a presente análise. A notável solidariedade africana no tocante à solução dos problemas essenciais do terceiro mundo constituiu, de fato, um dos pilares seguros do movimento terceiro -mundista. Ocorre que certas realidades objetivas da condição africana do passado e do presente são tão relevantes, em vista da situação geral do Terceiro Mundo, que elas constituem, em si mesmas, uma dimensão diferente da análise. Conside- rando estas realidades objetivas, trata -se de identificar as reações e as aspirações subjetivas às quais elas deram origem, estimulando a África independente a desenvolver os seus vínculos com outras regiões do Terceiro Mundo e a desem- penhar o seu papel na organização da ofensiva lançada por este mesmo conjunto de países contra o statu quo internacional. 13 G. A. NWEKE, 1980, pp. 263 e 265. 1012 África desde 1935 Os vínculos da África com outras regiões do Terceiro Mundo O afro -asianismo, como o próprio nome sugere, estabelece o ponto de par- tida lógico de qualquer investigação a respeito das conexões da África com outras regiões do Terceiro Mundo. Sobre este amplo pano de fundo afro -asiático delineiam -se, singular e claramente, as relações da África com o mundo árabe, caso que, como veremos, merece particular atenção. Enfim, mostrar -se -á que no despontar das interações entre a África, a América Latina e o Caribe foi assegurada uma incontestável identidade terceiro -mundista, transbordando os limites do seu núcleo afro -asiático original. O afro -asianismo na origem do Terceiro Mundo, do espírito de Bandung à solidariedade do Terceiro Mundo O movimento nascido antes da Primeira Guerra Mundial que conduziu, após a Segunda Guerra, “do império à nação”, para retomar o título de um livro de Rupert Emerson14, foi essencialmente um movimento “de afirmação dos povos asiáticos e africanos”. Esta crescente comunhão de interesses entre a África e a Ásia colonizadas, esporadicamente manifestada no intervalo entre as duas guerras, como é pos- sível confirmar nos trabalhos de David Kimche15, surgiu no imediato posterior à Segunda Guerra Mundial. Em seguida, transcendeu a experiência colonial e lançou as bases pós -coloniais do movimento terceiro -mundista. O impacto do processo de descolonização da África e da Ásia sobre a gestação desta comunhão de interesses entre as duas regiões, apresenta -se em cinco níveis. Primeiramente, a simultaneidade das duas lutas anticolonialistas e a presença, em ambos os campos, de alguns intérpretes colonialistas determinantes (nota- damente, a Inglaterra e a França), necessariamente sensibilizaram os africanos e os asiáticos para os aspectos paralelos e comuns das suas situações. Desta forma, entende -se, por exemplo, “a saudação fraternal” do quinto Congresso pan -africano de 1945, dirigida às “massas de trabalhadores da Índia” e aos “povos 14 R. EMERSON, 1962. 15 D. KIMCHE, 1973, capítulo I, pp. 1 -16. 1013A África e as regiões em vias de desenvolvimento em luta da Indonésia e do Vietnã16”, bem como os compromissos de solida- riedade que ele tomou no tocante a estes países. Desta forma, compreende -se igualmente a imensa esperança depositada por este congresso em uma solida- riedade afro -asiática durável, anticcolonialista e pós -colonialista. Em segundo lugar, esta tomada de consciência, sobre as ligações existentes entre os colonizados da África e da Ásia, foi facilitada pela presença, em certas regiões da África Oriental e Meridional, sem mencionar as ilhas africanas do Oceano Índico, de grandes concentrações de populações de origem asiática, submetidas junto com as Africanas à dominação europeia. A melhor ilustração deste quadro é o racismo na África do Sul, experiência histórica prolongada que suscitou reações paralelas ou convergentes, no transcorrer do tempo, envolvendo os africanos e asiáticos, expressas tanto no interior quanto fora do continente africano. Foi dessa maneira que Mahatma Gandhi construiu a sua política de desobe- diência civil, a satyagraha, na África do Sul, onde viveu de 1893 a 1914. Ele apli- cou e refinou este método de luta durante o período de combate da comunidade indiana contra o racismo na África do Sul (1906 -1913), antes de introduzi -lo na Índia, onde terminou por solapar o sistema colonial. O protesto do governo indiano perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, em sua primeira sessão de 1946, contra determinadas medidas de cunho racista tomadas pelo governo da África do Sul em relação à comunidade indiana, pode ser considerado como outra importante etapa nesta longa experiência de opressão e de luta que os asiáticos e os africanos compartilharam na África do Sul. Aliás, o quinto Congresso Pan -africano de 1945 explicitamente reconhe- ceu esta situação comum de opressão, quando em sua resolução endereçada às Nações Unidas ele saudava o esperado protesto do governo da Índia e exigia “a justiça e a igualdade social para a comunidade indiana da África do Sul” que “suporta a discriminação da mesma forma” que os Africanos. Após dez anos, os participantes da conferência de Bandung endereçaram, com a mesma força e convicção, “a sua calorosa simpatia e o seu apoio à corajosa posição tomada pelas vítimas da discriminação racial, em particular, os povos de origem africana, indiana e paquistanesa na África do Sul”. Em terceiro lugar, como é simbolizado pelo título do ensaio de D. A. Low, A Ásia, Espelho da Independência da África Tropical, o anterior lançamento das lutas anticcolonialistas da Ásia e as vitórias delas resultantes, provocaram um pode- 16 G. PADMORE, 1963, p. 67. 1014 África desde 1935 roso efeito sobre a África, pois “as insurreições recém -ocorridas na Ásia levaram a um enfraquecimento das forças imperiais na África tropical17” e os africanos reforçaram a sua autoconfiança relativamente ao nacionalismo africano. Em quarto lugar, durante ou logo após as suas lutas de liberação antico- lonialistas, foram estabelecidos os laços organizacionais entre os africanos e asiáticos inimigos do imperialismo. Um primeiro exemplo disso é dado pela conferência reunida no ano de 1927, em Bruxelas, pela Liga Contra o Impe- rialismo e o Colonialismo à qual aderiram numerosos nacionalistas asiáticos e africanos (dentre os quais o indiano Jawaharlāl Nehru, o vietnamita Hô Chi Minh e o senegalês Lamine Senghor). Não causa admiração que o presidente indonesiano Sukarno, em seu discurso de abertura da Conferência de Bandung, em 1955, tenha evocado esta conferência de Bruxelas de 1927, como um ante- cedente18, ideia defendida com rigor mais recentemente, por Kimche, para quem o encontro de Bruxelas foi “o pai da solidariedade afro -asiática, o precursor da Conferência de Bandung19”. Em quinto lugar, a aversão pela dominação colonial, comum aos africanos e asiáticos, não se esgotou com a conquista das suas respectivas independên- cias políticas. Não somente os países recém -independentes colaboraram para a supressão dos vestígios do colonialismo, em todas as regiões nas quais eles sub- sistissem, como inclusive organizaram -se para proteger a sua recém -conquistada independência, reforçá -la e garantir o seu futuro. Em 1950, a formação do grupo asiático -africano no interior da ONU (pos- teriormente rebatizado afro -asiático), a Conferência de Bandung, em 1955, e o lançamento da Organização de Solidariedade dos Povos Afro -Asiáticos, em 1957, foram os acontecimentos anunciadores e fundadores, sobre o plano afro- -asiático, de um mais amplo movimento terceiro -mundista que alçou o seu voono início dos anos 60. A análise deste movimento não pode encontrar melhor ponto de partida que a conferência de Bandung20. 17 D. A. LOW, 1982, p. 28. 18 Embora admitisse que a conferência de Bruxelas (da qual participaram muitos dos delegados presentes em Bandung) tenha dado “uma nova força ao seu combate pela independência”, Sukarno dedicou -se claramente a distinguir esta reunião anterior (ocorrida “em um país estrangeiro” e “convocada por neces- sidade”) daquela de Bandung (“reunida [...] por escolha, [...] em nossa própria casa”, por ex -colônias, “livres, soberanas e independentes”). Conferir o texto do discurso de Sukarno em R. ABDUL -GANI, 1981, pp. 169 -180. 19 D. KINCHE, 1973, p. 5. 20 Sobre o movimento geral das relações afro -asiáticas, culminantes em Bandung, conferir G. H. JANSEN, 196; P. QUEUILLE, 1965. Para maior detalhamento sobre as origens imediatas da conferência de Bandung e sobre as suas deliberações, consultar R. ABDULGANI, 1981; A. APPADORAI, 1956; G. 1015A África e as regiões em vias de desenvolvimento Como indicado na tabela 28.3, a Conferência Afro -Asiática reunida em abril de 1955, em Bandung, sob o patrocínio de 5 Estados asiáticos (Birmânia – atual Miamar −, Ceilão – atual Shri -Lanka −, Índia, Indonésia e Paquistão), agrupou representantes de 28 países, 6 africanos e 22 asiáticos. Neste encontro, foram os seguintes objetivos aqueles fixados pelos países organizadores, descritos no comunicado de dezembro de 1954: 1. promover a boa vontade e a cooperação entre as nações da Ásia e da África, explorar e fazer valer os seus interesses próprios e comuns, estabelecer e persistir com as relações de amizade e boa vizinhança; 2. abordar os problemas e relações de ordem social, econômica e cultural dos países representados; 3. abordar os problemas de especial interesse para os povos asiáticos e africanos, notadamente aqueles referentes à soberania nacional, assim como ao racismo e ao colonialismo; 4. examinar a posição no mundo contemporâneo da Ásia, da África e dos seus povos, identificando a sua possível contribuição para a promoção da paz e da cooperação no mundo. A identidade dos organizadores, o lugar da reunião e a variedade de par- ticipantes atribuíram à Ásia, um peso incontestavelmente preponderante em Bandung. A insuficiência da representação africana explica -se, nesta ocasião, pelo número excessivamente fraco de países africanos independentes. Aliás, as condições exigidas para a participação foram abrandadas para permitirem a recepção de duas colônias africanas – o Sudão e a Costa do Ouro (atual Gana) – que recém haviam conquistado a sua independência, concessão sem a qual a presença africana teria sido ainda menor – quatro países ao invés de seis. Certas deliberações tendenciosas da conferência reduziram drasticamente a representa- ção africana, considerando novos membros “africanos” apenas três participantes (Etiópia, Costa do Ouro, Libéria) e classificando os outros três (Egito, Líbia, Sudão) em um continente exclusivamente “árabe”21. M. KAHIN, 1956; D. KIMCHE, 1973, capítulos 3 -4, pp. 29 -79. 21 Esta descrição falaciosa da representação africana em Bandung aparece, por exemplo, em R. ABDUL- GANI, 1981, p. 39; G. H. JANSEN, 1966, p. 223; e D. KIMCHE, 1973, pp. 238 e 248 (nota 1), o qual retoma a sua formulação inicial citando três representantes africanos, mencionando tratar -se de “três Estados africanos situados ao sul do Saara”. Evidentemente, eis aqui um assunto interessante a respeito da historiografia africana, a qual desde muito tempo hesitava em definir o lugar da África do Norte na análise geral do continente africano. 1016 África desde 1935 No entanto, a presença e a influência da África em Bandung foram menos insignificantes do que suscitaria levar a crer a sua representação numérica. Pri- meiramente, é necessário considerar “a contribuição decisiva” do egípcio Gamal ’Abd al -Nasser nos trabalhos dos comitês de redação, conduzindo inclusive um autor a apresentá -lo como “o herói de Bandung22”. Graças à tal estatura assumida em Bandung, al -Nasser pôde, rapidamente, assumir importante papel entre os grandes idealizadores e dirigentes de um movimento terceiro -mundista, nessa ocasião, em pleno vigor do seu surgimento. Em segundo lugar, a marca deixada pela África nos debates de Bandung é notável, em virtude da importância atribuída aos problemas ligados aos direitos humanos, à autodeterminação no continente e, em particular, àqueles relativos ao racismo institucionalizado. Por exemplo, o documento final da conferência 22 G. H. JANSEN, 1966, p. 223. Conferir igualmente R. ABDULGANI, 1981, pp. 48 e 160 -161, acerca do importante papel de al -Nasser, na qualidade de presidente da sessão consagrada à coexistência pací- fica. Ele soube então atenuar as sérias divergências suscitadas por esta questão, “a mais complicada da conferência”, e propor um texto de compromisso – considerado pelo primeiro -ministro indiano Nehru como “a mais importante declaração da conferência”, J. NEHRU, 1964, p. 21. TABeLA 28.3 PAÍSeS PARTICIPANTeS DA CoNFeRêNCIA AFRo-ASIÁTICA De BANDUNG, ReALIZADA NA INDoNÉSIA De 18 A 24 De ABRIL De 1955 Países da Ásia (22)1 Países da África (6)2 Afeganistão Indonésia* Paquistão Egito Arábia Saudita Iraque Síria Etiópia Birmânia* Japão Tailândia Costa do Ouro Camboja Jordânia Turquia Libéria Ceilão* Laos Vietnã (Norte) Líbia China (República Popular da) Líbano Vietnã (Sula) Sudão Índia* Nepal Iêmen *País organizador 1. Após ter deliberado para determinar sobre a conveniência de convidar os outros Estados independentes da Ásia (Israel, Mongólia, Coreia do Norte, Coreia do Sul), os cinco organizadores decidiram, caso a caso, por não fazê-lo, em razão de diversas complicações políticas que a participação destes países poderia criar. Uma vez admitida a ideia de convidar a República Popular da China, estava excluído o convite a Taiwan. 2. A representação africana compreendia dois países não independentes, embora gozando de autonomia interna, a Costa do Ouro (que se tornaria Gana independente em 1957) e o Sudão (que alcançaria a indepen- dência em 1956). A Federação da África Central (incluindo à época as duas Rodésias e a Niassalândia), embora governada por uma minoria branca, fora convidada, mas recusou o convite. A África do Sul não foi convidada. 1017A África e as regiões em vias de desenvolvimento aborda, em duas ocasiões, a evolução da situação colonial na Argélia, no Mar- rocos e na Tunísia; a discriminação racial na África é citada, de modo geral, a propósito da supressão pelos regimes coloniais das culturas nacionais dos povos subjugados; e, finalmente, a discriminação racial na África do Sul é assinalada como um caso especial de violação dos direitos humanos. Além das resoluções sobre “a cooperação cultural”, “os direitos humanos e a autodeterminação” e “os problemas dos povos subjugados”, concernentes aos exemplos precedentes, o documento contém outras resoluções fundamentais sobre “a cooperação econômica” e sobre “a promoção da paz e a colaboração no mundo”, este último tema foi objeto de uma declaração em separado: “Bandung apresentou -se, essencialmente, como uma celebração da onda de independência que, tendo varrido toda a Ásia, voltava -se então sobre a África. Em si, o ato de reunir a primeira geração de líderes nacionalistas criou o sen- timento, completamente inédito, correlato à mutação em curso e às potencia- lidades do Terceiro Mundo. Bandung tornou -se, desde então, o símbolo de um alvo a ser atingido [e] estabeleceu os dois princípios que permaneceram os fundamentos da solidariedade do Terceiro Mundo, a descolonização e o desen- volvimento econômico23.” O espírito de Bandung, mais importante expressão organizada do afro- -asianismo, concedeu naquele momento um novo impulso a outras iniciativasparalelas (como o grupo afro -asiático nas Nações Unidas) e inspirou o lança- mento de outros movimentos (como a Organização de Solidariedade dos Povos Afro -Asiáticos). O grupo asiático -africano foi constituído, durante a crise da Coreia, na Assembleia Geral da ONU em dezembro de 1950 e continuou a reunir -se informalmente a partir daquela data. Logo após a Conferência de Bandung e a crise de Suez de 1956 (durante a qual, temporariamente, a Inglaterra, a França e Israel ocuparam o canal de Suez, recém -nacionalizado pelo presidente al -Nasser), o grupo adquiriu coesão e permanência suficientes a ponto de ser reconhecido mais oficialmente. Em 1960, o grupo asiático -africano tomou o nome de afro -asiático, mudando a denominação que “denotava a influência crescente da África em seu interior24”. Como se pode depreender da tabela 28.1, este crescimento da influência africana coincidiu com o notável avanço numérico dos membros africanos nas Nações Unidas, após 1959 o ponto crítico de inflexão situou -se em 1960, 23 R. A. MORTIMER, 1980, p. 9. 24 D. KAY, 1970, p. 26. 1018 África desde 1935 quando, pela primeira vez, a representação africana ultrapassou numericamente aquela dos países asiáticos e latino -americanos, com a chegada de 16 Estados africanos recém -independentes. A influência do grupo afro -asiático sobre todo um conjunto de questões tratadas pela ONU no transcorrer das décadas de 1950 e 1960, foi analisada detalhadamente por D. N. Sharma25. Sob esta ótica, coincidente com a nossa, será observada com particular interesse a atividade por ele desenvolvidas nos vinte primeiros anos da sua existência, intuindo levar dois domínios, considera- dos relevantes pelos Estados africanos, ao campo das preocupações e ações da ONU: o problema geral da descolonização (objeto de um estudo muito com- pleto por Y. El -Ayoury26) e a problemática específica do racismo combinado ao colonialismo na África Austral27. A adoção pela Assembleia Geral da ONU, em dezembro de 1960, da his- tórica Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e aos Povos Coloniais28, apoiada por quarenta e três Estados afro -asiáticos, marcou, de forma espetacular, a entrada em cena deste grupo afro -asiático junto às Nações Uni- das, recentemente reorganizado e consolidado. Proclamando “a necessidade de impor um termo ao colonialismo em todas as suas formas e manifestações, em curto espaço de tempo e de modo incondicional”, a Declaração, em linguagem carregada de reminiscências das posições anticolonialistas adotadas no quinto Congresso Pan -africano de 1945 e da Conferência dos Estados Africanos Inde- pendentes de 195829, condenava o colonialismo, caracterizando -o como uma negação dos direitos humanos fundamentais e um obstáculo à promoção da paz e à cooperação no mundo e, estipulava que “medidas imediatas” deveriam 25 D. N. SHARMA, 1969. 26 Y EL -AYOUTY, 1971. Conferir igualmente D. KAY, 1970, capítulo 6, pp. 146 -180; D. N. SHARMA, 1969, capítulo 6, pp. 196 -256. 27 M. EL -KHAWAS, 1971; D. KAY, 1970, pp. 54 -80; D. N. SHARMA, 1969, capítulo 7, pp. 257 -303. 28 Resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral da ONU adotada em 14 de dezembro de 1960, por 89 votos a favor, nenhum em contrário e 9 abstenções (Austrália, Bélgica, França, República Dominicana, Portugal, Espanha, África do Sul, Inglaterra e Estados Unidos da América). 29 A Declaração do Quinto Congresso Pan -africano aos Povos Colonizados do Mundo afirma que “Todas as colônias deveriam ser libertadas do domínio imperialista”; o comunicado da Conferência afro -asiática declara que “O colonialismo, em todos os seus aspectos, constitui um mal ao qual se deve necessariamente impor um termo, sem mais delongas”; a primeira Conferência dos Estados Africanos Independentes, ocorrida em Accra no ano subsequente à independência do Gana (reunindo a Etiópia, Gana, Libéria, Líbia, Marrocos, Sudão, Tunísia e a República Árabe Unida), condenou o colonialismo como “uma ameaça [...] à paz mundial” e pediu que fossem tomadas “medidas rápidas”, dentre elas a fixação de uma “data precisa”, em cada caso, para acabar com o regime colonialista. 1019A África e as regiões em vias de desenvolvimento ser tomadas “para transferir todos os poderes aos povos que vivessem sob o jugo do colonialismo”. A adoção da Declaração aconteceu, do modo relativamente lógico, após a entrada de dezesseis novos Estados membros africanos, com uma antecedência de aproximadamente três meses, acontecimento que fortaleceu, singularmente, a presença e a influência afro -asiáticas no interior da organização internacional. A Declaração vinha em boa época, pois, em torno de 1960, o colonialismo, quase extirpado da Ásia, ainda reinava em muitas regiões da África. A determinação dos africanos e dos asiáticos em ditarem a ideologia da ONU e institucionalizarem o seu engajamento anticolonialista e, portanto, as suas atividades ulteriores, conduziu, no ano seguinte, à adoção de uma resolu- ção de acompanhamento pela Assembleia Geral da ONU, criando um Comitê especial encarregado de supervisionar a aplicação da Declaração de 196030. Igualmente e a partir do início dos anos 1960, a questão do racismo, com- binada ao colonialismo na África Austral, adquiriu maior dimensão no âmbito das atividades das Nações Unidas, graças a uma intensificação da pressão afro- -asiática. Chegara o momento de retomar e desenvolver as iniciativas afro- -asiáticas anteriores, cujo início remontava à primeira seção da Assembleia Geral das Nações Unidas de 1946. Na realidade e pela primeira vez, a ONU interessara -se em 1946 pela política racial da África do Sul, dois anos antes que o National Party, organização repre- sentante do nacionalismo africânder, tenha oficialmente instaurado o apartheid, após a sua vitória nas eleições de 1948. O problema fora abordado por ocasião de um protesto do governo da Índia − país cuja independência política não seria alcançada senão em 1947, mas, contudo, aceito como membro -fundador das Nações Unidas em 1945 − contra a recente promulgação, pelo governo sul -africano, de uma legislação discriminatória visando, expressamente, os sul- -africanos de origem indiana. A Índia foi seguida, em 1947, pelo Paquistão (país desde anteriormente membro da ONU, cuja conquista da independência processara -se de modo autônomo) e, graças à ação desses dois Estados asiáticos, a questão fora introduzida na pauta das Nações Unidas. Paralelamente, treze Estados -membros afro -asiáticos (Afeganistão, Arábia Saudita, Birmânia, Egito, Índia, Indonésia, Irã, Iraque, Líbano, Paquistão, Filipinas, Síria e Iêmen) impu- seram a inserção, na ordem do dia da Assembleia Geral, em 1952, da questão 30 Resolução 1654 (XVI) da Assembleia Geral das Nações Unidas, adotada em 27 de novembro de 1961, por 97 votos favoráveis, nenhum em contrário e 4 abstenções (França, África do Sul, Espanha e Grã- -Bretanha) e 1 não participante (Portugal). 1020 África desde 1935 mais geral e relativa aos conflitos suscitados pelo regime do apartheid, na ocasião já estabelecido há quatro anos. Malgrado as reservas iniciais e a franca oposição de certas potências ociden- tais, aos olhos das quais estas questões concerniam a “assuntos internos” e não deviam ser conduzidas perante as Nações Unidas, as condições para uma con- denação de mais e mais vigorosa do apartheid estavam reunidas nos anos 1950 e uma convergência das duas iniciativas afro -asiáticas preparava a investida legal que a ONU lançaria contra o apartheid, no início dos anos 1960. Conjugada, por via de regra, a múltiplas iniciativas dos países afro -asiáticos e do Terceiro Mundo, em respeito aos problemas da África Austral, a ação do grupo de pressão afro -asiático, no auge da sua notoriedade e da sua influência, durante os anos 1960, catalisou várias importantes iniciativas institucionaisdas Nações Unidas. Assim sendo, em 1963, o Conselho de Segurança estabeleceu um embargo voluntário aos fornecimentos de armas para o governo da África do Sul (medida posteriormente reforçada e tornada obrigatória a partir de 1977). Em 1966, ele deliberou sanções obrigatórias, primeiramente seletivas, em seguida gerais a partir de 1968, contra o regime minoritário e racista da Rodésia, o qual declarara, unila- teralmente, a sua independência em relação à Grã -Bretanha, em 1965 − disposição esta que provocou o desencadeamento de uma luta de libertação, em função da qual, em 1980, nasceu o Zimbábue independente, governado por africanos. A questão do sudoeste africano representou um terceiro exemplo acerca da influência do grupo afro -asiático. Em virtude da sua ação, a Assembleia Geral da ONU decidiu, em 1966, impor um termo ao mandato da Sociedade das Nações sobre este país, como consequência da prolongada inoperância da África do Sul no tocante às suas responsabilidades de tutela; em 1968, ela atribuiu ao país o nome Namíbia e, em 1970, o Conselho de Segurança declarou ilegal a ocupação deste último país pela África do Sul, exigindo a sua extinção. Decisões confir- madas, em 1971, pela Corte Internacional de Justiça. Acrescentemos enfim, ao elenco das ações do grupo afro -asiático, a criação pela Assembleia Geral, em 1962, do Comitê Especial contra o apartheid, encarregado de supervisionar a política racial da África do Sul. A Organização de Solidariedade dos Povos Afro -Asiáticos (OSPAA), criada no Cairo em 1957, constitui outra importante expressão institucional da corrente afro -asiática, originada a partir da experiência de Bandung31. Vigorosamente 31 Para um estudo detalhado da OSPAA, conferir D. KIMCHE, 1968 e 1973, capítulos 7 -10, pp.126 -213. 1021A África e as regiões em vias de desenvolvimento apoiava pela União Soviética e pela República Popular da China, a OSPAA reunia diversos grupos de interesses complementares, ao menos inicialmente, dos mundos afro -asiático e socialista. O nacionalismo afro -asiático radical superou a influência do socialismo internacional no seio da OSPAA, sobretudo porque “Nasser pretendia que os órgãos dirigentes da organização permanecessem em mãos egípcias32”. Ademais, como sugere a escolha das sedes para as atividades destas quatro conferências plenárias (Egito em 1957, Guiné em 1960, Tanzânia em 1963, Gana em 1965), “os Estados africanos radicais representavam a mais sólida base de apoio para a OSPAA33”. Esta organização permitiu a al -Nasser reforçar a sua posição, como figura de proa do afro -asianismo, e concedeu -lhe a oportunidade de aparecer na qualidade de um dos grandes arquitetos de um mais amplo movimento terceiro -mundista. Aqui consistiu um dos importantes aspectos referentes ao papel desta organi- zação não governamental cuja ação, paralela àquela dos Estados afro -asiáticos, visava estabelecer certo grau de solidariedade entre os países envolvidos; a este respeito, ela contribuiu, nos seus primórdios, para ampliar o rol das causas afro- -asiáticas, levando -as ao amplo reconhecimento. Desta forma, além do fato de ela oferecer um fórum de discussões para todo tipo de grupos e movimen- tos políticos, independentes de qualquer estrutura governamental, a OSPAA organizou, entre 1957 e 1965, numerosas conferências, reunindo especialistas afro -asiáticos, expertos em esferas tão diversas quanto a medicina, o direito, o jornalismo, a produção literária, a economia, a proteção social, o desenvolvi- mento rural e militantes em questões referentes às mulheres e à juventude. A OSPAA começou a perder a sua influência em meados dos anos 1960, em seguida, ela representava, durante os anos 1970, não mais que a sombra de si mesma, especialmente em razão do efeito desestabilizador causado, em sua dinâ- mica interna, pela rivalidade sino -soviética. Porém, ela assegurara a perenidade da sua herança; primeiramente, ao ajudar o movimento terceiro -mundista a se desenvolver a partir do afro -asianismo, durante o delicado período de formação deste último; posteriormente, garantindo, diretamente, a transição entre os dois movimentos, graças à sua contribuição para a criação de uma entidade paralela, a Organização de Solidariedade dos Povos da África, da Ásia e da América Latina (sobretudo conhecida pela denominação Organização de Solidariedade Tricontinental), fundada em Havana (Cuba), em 1966. 32 R. A. MORTIMER, 1980, p. 10. 33 Ibid., p. 11. 1022 África desde 1935 Cabe sublinhar a importância de um aspecto do afro -asianismo em formação. Trata -se da especial relação mantida entre a Índia e a África, já mencionada várias vezes durante a nossa análise34. Ela explica -se através da influência exer- cida pelo movimento pela independência da Índia sobre o nacionalismo afri- cano, em função da qual os militantes africanos inspiraram -se, especialmente no plano organizacional, nas lutas anticoloniais travadas pelo Congresso Nacional Indiano, por Mahatma Gandhi e Jawaharlāl Nehru. A influência de Nehru, naquilo que diz respeito à consolidação dos inte- resses e laços mútuos na era pós -colonial, foi sobremaneira marcada, em suplemento, pela sua profunda compreensão pessoal acerca dos problemas políticos e raciais africanos − em seu conjunto e por ele denominados, na conferência de Bandung, “o drama infinito da África”, retomando nestes termos um tema por ele já abordado na Asian Relations Conference [Con- ferência sobre as Relações Asiáticas], organizada na capital Nova Déli em 1947, durante a qual ele mencionara “os nossos irmãos que sofrem na África” e “a especial responsabilidade”, cabível à Ásia, concernente em ajudar a África em sua luta pela liberdade. Concretamente, Nehru prometeu a criação de espaços institucionais nos quais se expressaram e consolidaram -se os interesses mútuos da Índia e da África. Ele desempenhou este papel, no movimento afro -asiático, durante os anos 1950, em cujo representou a ponta -de -lança entre os seus líderes, tanto quanto se manifestou a sua proeminência no bojo do movimento terceiro- -mundista, no início dos anos 1960, em favor do qual contribuiu para a sua emergência. Assim como, no seio da Commonwealth britânica, cuja transfor- mação em nova Commonwealth multirracial, deve -se, em justa medida, à sua dedicação. Como observamos anteriormente, em certas regiões da África, a existência de comunidades de ascendência indiana alimentou este sentimento característico de uma relação especial. Notamos como, no caso sul -africano, este elemento fortaleceu os laços de solidariedade entre a Índia e a África, ambas interessadas em ver eliminado o apartheid; este regime conduziu a Índia a ser o primeiro país do mundo a romper as suas relações diplomáticas e econômicas com a África do Sul. Eventualmente, se momentos de tensão tiveram lugar nas relações entre 34 Sobre a relação especial da Índia com a Àfrica, consultar Indian National Congress, 1976; Indian Council for Africa, 1967; A. A. MAZRUI, 1977, pp. 114 -129; J. NEHRU, 1964; R. L. PARK, 1965 ; R. R. RAMCHANDANI (org.), 1980; M. J. ZINS, 1983. 1023A África e as regiões em vias de desenvolvimento asiáticos e africanos, em certas regiões da África do Leste35, isto não provocou a deterioração dos intercâmbios entre os países em questão e a Índia. Se, na segunda metade do anos 1960, esta relação especial pôde aparente- mente distender -se, esta progressão deve -se, justamente, às grandes transfor- mações advindas ao sistema internacional e não, a razões intrínsecas. Uma das causas foi o declínio da influência da Índia no espectro terceiro -mundista, com maior ênfase após a morte de Nehru, ocorrida em 1964. Mas, como bem obser- vou Ali Mazrui, “não se estabelecera exatamente um declínio absoluto, porém e mais precisamente, tratava -se do retorno da estatura da Índiaa níveis mais adequados ao quadro terceiro -mundista”, após o “excepcional grau de influência diplomática e política” alcançado sob Nehru36. Inversamente, na justa medida que se diversificavam e dispersavam -se os centros de influência de maior importância do Terceiro Mundo, dentre os quais, alguns no continente africano, a preponderância anterior da relação Índia -África era afetada. Entretanto, se por um lado esta relação teve, ao que tudo indica no transcorrer dos anos 1960, menor dimensão política e diplomática, comparativa- mente ao passado, os laços ampliaram -se, na realidade, sob outras formas menos espetaculares, notadamente através de uma crescente cooperação econômica e técnica, bem como, graças a um desenvolvimento dos intercâmbios culturais e educativos. Em 1976, a publicação pelo Congresso Nacional Indiano de um livro de 132 páginas, India and the African liberation struggle [A Índia e a luta da África pela sua libertação], retraçando, do Mahatma Gandhi a Indira Gandhi (então primeira -ministra), a sequência ininterrupta das tomadas de posição política e das intervenções militares em favor da libertação da África, suscita considerar que este sentimento, próprio a uma relação especial, conservava na ocasião uma forte conotação ideológica. As análises sobre o afro -asianismo tendem a apresentar os meados dos anos 1960 como o período do “declínio do movimento afro -asiático37”, da “queda 35 Consultar R. R. RAMCHANDANI (org.), 1980, pp. 171 -194. Em seu ensaio, “Indians in East Africa: past experiences and future prospects”, Ramchandani expõe de modo convincente que os ocasionais atritos entre africanos e asiáticos na África do Leste inscrevem -se no quadro dos hábitos e costumes, bem como das estruturas socioeconômicas e sociorraciais, essencialmente imputáveis às modalidades coloniais do desenvolvimento. 36 A. A. MAZRUI, 1977, p. 120. 37 D. KIMCHE, 1973, pp. 250 -262. 1024 África desde 1935 do afro -asianismo38”, ou ainda, como aqueles anos nos quais “o afro -asianismo encontra -se, efetivamente, morto39”. O fracasso da tentativa realizada em 1965, com vistas a reunir uma segunda conferência afro -asiática, como desdobramento de Bandung, é muito amiúde citado como, a um só tempo, a causa primordial e a consequência deste declínio ou desta queda, cabendo à perda de influência da OSPAA, a partir do final da década de 1960, tema abordado logo anteriormente, contribuir para esta evo- lução40. Ademais, o grupo afro -asiático junto às Nações Unidas efetivamente cessou as suas atividades durante os anos 1970. O revés de Bandung II explica -se, notadamente, pela importância que haviam adquirido o Movimento dos Não Alinhados, cujas duas primeiras conferências se haviam reproduzido nas cúpulas de 1961 e 1964 (tabela 28.4), e o Grupo dos Setenta e Sete, formado em 1964 (tabela 28.5). Justamente em função deste contexto, subjaz a compreensão da reação do presidente do Senegal, Léopold Sédar Senghor, quem, interrogado em maio de 1965 sobre a possibilidade de uma segunda conferência afro -asiática, à época ainda defendida por fervorosos partidários, declarou: “Naquilo que me diz respeito, eu acredito que o afro- -asianismo está superado, pois esta forma de solidariedade deve ser estendida à América Latina, em particular, e ao Terceiro Mundo, em geral41.” O lançamento da Organização de Solidariedade Tricontinental, sob os aus- pícios da OSPAA, em Havana, no ano 1966, constituiu outro marco no tocante à extensão do afro -asianismo, o movimento ultrapassava as suas fronteiras geo- gráficas rumo à construção da identidade de um mais vasto Terceiro Mundo. O grupo afro -asiático findou, igualmente, por reduzir -se ao supérfluo, em razão da crescente mobilização do Grupo dos Setenta e Sete, bem como, pelas circuns- tâncias dos anos 1970, durante os quais a ação do Movimento dos Não Alinha- dos, sobretudo em prol de uma nova ordem econômica internacional, principal objeto das preocupações terceiro -mundistas, se ter diretamente processado no âmbito do sistema das Nações Unidas42. A aparente incapacidade do afro -asianismo em sobreviver, como movimento, consiste em um reflexo proporcional ao seu êxito como catalisador e fundador 38 R. A. MORTIMER, 1980, pp. 18 -22. 39 P. WILLETTS, 1978, p. 15. 40 R. A. MORTIMER, 1980, pp. 20 -22; F. B. WEINSTEIN, 1965. 41 Citado em Africa Diary, 19 -25 junho de 1965, p. 2386. 42 K. P SAUVANT, 1981, p. 112, tabela 12, oferece um relatório estatístico acerca da crescente frequência das reuniões dos dois grupos no seio do sistema das Nações Unidas, entre 1965 e 1979. 1025A África e as regiões em vias de desenvolvimento de um agrupamento terceiro -mundista muito mais amplo, equação esta inclu- sive reconhecida por alguns autores que sublinham o seu declínio. Em lugar de queda, melhor seria portanto considerar uma transformação do afro -asianismo. A África e o mundo árabe: aspectos de uma relação especial De 7 a 9 de março de 1977, foi organizada no Cairo a primeira Conferên- cia dos Chefes de Estado e de Governo da OUA e da Liga Árabe. Segundo os termos do relatório oficial, os cinquenta e nove países africanos e árabes representados estavam reunidos para consolidar a cooperação árabo -africana (também denominada africano -árabe)43. Sob a ótica da nossa análise, esta reunião, oficialmente apresentada como uma conferência de cúpula “árabo -africana”, reveste -se de um triplo significado. Primeiramente, ela constitui uma inovação, assinalando a este respeito que, durante os anos 1970, produziu -se uma ampliação e um aprofundamento, sem precedentes, nas relações políticas e econômicas entre o mundo africano e o mundo árabe. Em segundo lugar, estas evoluções apoiaram -se em uma elevação no nível de consciência referente à solidariedade no Terceiro Mundo, fenômeno característico da década de 1970, além de terem sido influenciadas pelo espírito do afro -asianismo, ele próprio alimentado por uma dualidade, formada pelo mundo africano e pelo mundo árabe, abordada de modo crítico. A terceira razão refere -se a definições e a uma terminologia, as quais convém abordar no imediato. Em virtude de certo número de Estados serem, a um só tempo, africanos e árabes, a situação caracteriza -se por todo tipo de sobreposi- ções e fusões, excluindo -se as definições regionais nitidamente delimitadas ou mutuamente exclusivas. Este fenômeno é o cerne de uma relação especial entre o mundo africano e o mundo árabe, cujas diferenciações de ordem terminológica − por exemplo, aquelas adotadas pela conferência árabo -africana de 1977 − devem ser compreendidas à luz das considerações precedentes. O elenco dos fatores determinantes desta relação especial surge, nitidamente, nesta declaração dos participantes à conferência de 1977, os quais se afirmavam “profundamente conscientes da multiplicidade dos nossos laços e interesses, dos fatores geográficos, históricos e culturais, da vontade em desenvolvermos a 43 C. LEGUM, 1977. 1026 África desde 1935 cooperação nas esferas política, econômica e social, assim como dos imperativos da nossa luta comum contra todas as formas de dominação e exploração”. Se, a partir dos anos 1950, as mudanças ocorridas nos cenários nacionais, regionais e mundial, favoreceram, por sua vez, o anseio de se estabelecer sig- nificativos laços políticos, econômicos e sociais, em favor do progresso e do desenvolvimento mútuos, em contrapartida, alguns fatores, neste contexto predispostos e devidos à vizinhança geográfica, a antigas relações datadas de mais de doze séculos, assim como a fusões demográficas e culturais de grande amplitude, concederam uma particular relevância a este urgente imperativo. A título de exemplo, ao menos 60% (ou até 80%, segundo algumas estima- tivas) da população árabe mundial reside no continente africano. Estima -seque um terço dos povos africanos seja muçulmano; os muçulmanos seriam larga- mente majoritários, não somente na África do Norte, mas, igualmente, em nove países ao sul do Saara (Comores, Djibuti, Gâmbia, Guiné, Mali, Mauritânia, Níger, Senegal e Somália), eles representariam um importante componente em outros dois (Nigéria e Tchade) e constituiriam expressivas minorias, ao menos 25% da população, em sete países (Burkina Fasso, Camarões, Costa do Marfim, Etiópia, Guiné -Bissau, Serra -Leoa e Tanzânia). Esta simbiose cultural figura 28.1 Conferência da Liga Árabe e da Organização para a Unidade Africana, no Cairo em 1977. (Foto: Magnum, Paris. Photo: Abbas.) 1027A África e as regiões em vias de desenvolvimento manifesta -se, em suplemento, no domínio linguístico pois, o árabe, o kiswahili e o haussa, “as línguas não europeias mais importantes do continente africano, [...] foram profundamente influenciadas pelo islã44”. Estes laços, simultaneamente demográficos e culturais, encontram a sua expressão na estrutura de certas organizações internacionais. A Liga dos Estados Árabes, mais conhecida como Liga Árabe, não agregava em 1945, entre os seus oito membros -fundadores, senão um Estado africano (o Egito); em 1980, 9 dentre os 22 membros da Liga eram africanos, dos quais três países não árabes, mas majoritariamente muçulmanos (Djibuti, Mauritânia e Somália). Do mesmo modo, os 50 membros da OUA, em 1980, compreendiam 9 Estados da Liga Árabe. A Organização da Conferência Islâmica, mais importante organismo intergovernamental islâmico, fundada em 1971, contava 42 membros em 1980, cuja metade exata pertencia ao continente africano. O perfil desta especial relação entre os mundos africano e árabe foi assaz precisado em diversos estudos45, a ponto de permitir apresentar -lhe os seus aspectos essenciais. No curso histórico desta relação, os anos 1950 viram emergir numerosos e convergentes interesses políticos, sobretudo em respeito às questões relativas ao anticolonialismo e ao não alinhamento. A intensificação das lutas pela descolonização na África do Norte, no ime- diato Pós -Guerra, antecessoras das suas correlatas ao sul do Saara, desempe- nhou um papel essencial no processo de amadurecimento destes laços. Estes últimos desenvolveram -se durante uma descolonização que se alastrava por todo o continente, sobretudo, em razão do brutal e prolongado conflito colonial na Argélia − questão originalmente levada às Nações Unidas pela Arábia Saudita, em 1955 − e da intransigência dos regimes coloniais e racistas da África Austral. A partir da criação do Estado de Israel, em 1948, ao preço da expulsão de numerosos palestinos, o conceito relativo ao não alinhamento exerceu crescente atração no mundo árabe, o qual considerava sacrificados os seus interesses no seio da política das grandes potências46. Inclusive nos mais conservadores e pró -ocidentais Estados árabes do Oriente Médio, a nova lógica das relações 44 Z. CERVENKA, 1977, capítulo 9, pp. 156 -175; E. C. CHIBWE, 1977; V. T. LE VINE e T. W. LUKE, 1979; A. A. MAZRUI, 1975c e 1977, capítulo 7, pp. 130 -155; G. NICOLAS, 1978; G. A. NWEKE, 1980, capítulo 10, pp. 214 -234. 45 F. A. SAYEGH (org.), 1964. 46 O Egito e a Síria uniram -se em 1958 e adotaram o nome República Árabe Unida. Esta união foi rompida em 1961 com a retirada da Síria, mas o Egito conservou oficialmente a denominação até 1971, data na qual ele adotou o nome República Árabe do Egito. Nós empregamos aqui o nome “Egito”, salvo em casos pontuais quando se deve antes empregar a nomenclatura “República Árabe Unida”. 1028 África desde 1935 internacionais na região impunha a preservação de certo distanciamento ide- ológico, tanto frente ao Oeste quanto a Leste. No longo prazo, a filosofia do não alinhamento veio reforçar a convergência de interesses dos mundos árabe e africano, ambos preocupados com um possível questionamento dos seus inte- resses externos. O amadurecimento destes laços foi marcado pela determinante influência do Egito − denominado República Árabe Unida entre 1958 e 197147 −, sobre- tudo após a revolução de 1952 que derrubou a monarquia e atingiu o seu ápice quando al -Nasser assumiu plenos poderes em 1954. Anteriormente a 1952, o Egito começara a desempenhar um papel, em princípio modesto, lançando pontes entre a África e os mundos árabe e asiático, ele foi, por exemplo, o único Estado africano a participar, junto a onze Estados da Ásia, da fundação do grupo ad hoc asiático -africano na ONU, em 1950. Mas, sob al -Nasser, a militância egípcia sofreu uma caracterizada mudança de ritmo que a conduziu a abraçar e conjugar os três círculos − o “círculo árabe”, o “círculo africano” e o “círculo dos nossos irmãos no islã” − que al -Nasser, em sua Philosophie de la révolution, publi- cado em 1954, situava como núcleo da identidade egípcia. A crescente influência de al -Nasser, na política de libertação pan -africana e panárabe, conferiu -lhe a motivação e a imagem adequadas para atingir uma excepcional proeminência, na qualidade de fundador do Movimento dos Não Alinhados, base política do Terceiro Mundo48. Iniciada com a conquista da independência de Gana em 1957, a saída de cena do colonialismo na África subsaariana abriu as portas para a expressão de uma vontade interafricana mais orquestrada, visando estabelecer signifi- cativos laços pan -africanos através do Saara, prioridade reconhecida tanto por al -Nasser quanto por Nkrumah, a qual naturalmente desdobrar -se -ia em uma noção mais ampla, relativa à solidariedade dos africanos e dos árabes no cenário mundial. A criação da OUA, em 1963, deu origem a uma organização regional afri- cana paralela à Liga Árabe, completando -a sob muitos aspectos. Os dois orga- nismos possuíam alguns membros comuns e compartilhavam a característica de serem “as primeiras organizações [regionais] criadas e dirigidas pelas nações pobres, para as nações pobres do mundo”. A Liga Árabe, “núcleo do grupo afro- 47 Em respeito à política externa entre África e Egito à época de al -Nasser (1952 -1970), conferir T. Y. ISMAEL, 1971; A. B. SAWANT, 1981. 48 B. BOUTROS -GHALI, 1975, p. 60. 1029A África e as regiões em vias de desenvolvimento -asiático” durante os anos 1950, encontrava -se fortalecida pela OUA quando ela “começava a perder o seu dinamismo juvenil49”. Entretanto, o maior problema colocado para a Liga Árabe, a saber, a pre- sença e a política de Israel, foi durante os primeiros anos dissociado da política da OUA, malgrado esforços dos seus membros pertencentes à Liga Árabe, relativos a levarem as duas organizações a adotarem uma posição única. Este quadro devia -se à existência de estreitos laços econômicos e, por vezes, militares entre numerosos Estados recém -independentes da África subsaariana e Israel, país que empreendera a este efeito grandes esforços diplomáticos. Ademais, a maioria dos Estados -membros da Organização julgava que a crise no Oriente Médio, não consistindo em um problema propriamente africano, não era da competência da OUA. Todavia, a posição da OUA modificou -se sensivelmente após a Guerra dos Seis Dias que, em 1967, acarretou a ocupação de territórios árabes por Israel, dentre os quais a Península do Sinai. Protestos africanos progressivamente mais frequentes elevaram -se em condenação à política de Israel e, em 1971, o novo passo foi dado quando a oitava conferência de cúpula da OUA afirmou, pela primeira vez, que “o prosseguimento da ocupação israelense constituiria uma séria ameaça à paz no continente africano”. Simultaneamente, a OUA criava um comitê de mediação cuja função seria, antes e sobretudo, atuar como intermedi- ário entre o Egito e Israel, porém, o seu fracasso, atribuído pelo seu presidente, Léopold Sédar Senghor, à intransigência israelense, teve como efeito aumentar o apoio àcausa árabe50. Em outubro de 1973, por ocasião de uma extraordinária reviravolta da situa- ção, dezessete Estados subsaarianos romperam as suas relações diplomáticas com Israel e quatro outros procederam à sua imagem em novembro, de tal modo que ao final de 1973, somente quatro Estados -membros da OUA − Malaui, Lesoto, Suazilândia, Ilhas Maurício − conservavam relações diplomáticas com Israel. Para melhor compreender esses acontecimentos do final de 1973, é neces- sário lembrar que: antes de 1967, todos os Estados -membros da OUA, salvo aqueles que igualmente pertenciam à Liga Árabe, mantinham relações diplomá- ticas com Israel; no imediato posterior à Guerra dos Seis Dias, unicamente um Estado africano (a Guiné) as tinha rompido; e nada mudara este cenário antes que uma nítida reviravolta não se manifestasse na diplomacia africana, durante 49 Y. EL -AYOURY, 1975a. 50 V. T. LE VINE e T. W. LUKE, 1979, pp. 9 -18. 1030 África desde 1935 os dezoito meses precedentes a outubro de 1973, no decorrer dos quais sete novos Estados africanos romperam as suas relações com Israel. Três acontecimentos da maior importância, advindos em 1973, prepararam a reviravolta diplomática de outubro. Dois destes exemplos eram consequências da solidariedade afro -árabo -terceiro -mundista: a reunião, em maio, da Confe- rência de Cúpula, marcando o décimo aniversário da OUA, em Addis -Abeba, e a quarta Conferência dos Chefes de Estado e de Governo dos Países Não Alinhados, realizada em Argel, no mês de setembro. Estas duas reuniões cons- tituíram importantes tribunas para a harmonização das estratégias diplomáticas árabo -afro -terceiro -mundistas. Nestas duas ocasiões, o presidente argelino Boumediene exerceu excepcio- nal influência. Ele representou a voz da diplomacia árabe no seio da OUA, logrando mostrar parentesco entre as lutas de libertação do Oriente Médio e aquelas da África Austral. A sua análise era corroborada pela existência de relações militares e econômicas progressivamente mais estreitas, entre Israel e a África do Sul do apartheid, oferecendo um motivo relevante para a consolidação de uma importante divergência de interesses entre a África e Israel. Por outro lado, na qualidade de presidente da quarta Conferência de Cúpula dos Países Não Alinhados, ele colocou todo o seu prestígio e toda a sua influência em prol do fortalecimento da aliança entre os interesses pan -africanos, panárabes e terceiro -mundistas. O último acontecimento determinante para as rupturas diplomáticas de outubro de 1976 foi a guerra que opôs, de 6 a 24 de outubro, por um lado, o Egito e a Síria, e por outro Israel. O ponto de inflexão foi atingido no momento do avanço empreendido, pelo exército israelense, em território egípcio, mais importante invasão ocorrida até então, permitindo a inédita ocupação de terras situadas ao oeste do Canal de Suez, ou seja, incontestavelmente no solo conti- nental africano. Alguns autores defendem que o isolamento diplomático de Israel resultou da capitulação da África frente à “arma do petróleo”, retida em mãos árabes, mas aqui reside uma concepção cínica e contrária à verdade histórica51. É bem verdade que no auge da guerra de outubro de 1973, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) anunciou uma fortíssima alta nas cotações do petróleo e que a Organização dos Países Árabes Exportadores de Petró- leo (OPAEP) interditou a exportação de petróleo bruto para todos os países 51 A. A. MAZRUI, 1975c, p. 736. 1031A África e as regiões em vias de desenvolvimento partidários de Israel. Contudo, aqui entrever uma causa essencial da conduta diplomática dos Estados africanos perante Israel, ao final de 1973, trata -se de “deformar a cronologia dos acontecimentos”, em virtude de “uma boa parte da África estar posicionada ao lado dos árabes no tocante à questão da Palestina52”, bem anteriormente à incidência do fator petrolífero. Esse ponto de vista parece ter sido confirmado através da conclusão segundo a qual: “nada leva a crer que os árabes tenham sequer evocado a possibilidade do emprego da “arma do petróleo” contra os países africanos, nem que estes últimos tenham oferecido o seu apoio aos árabes com esperança de obterem vantagens financeiras53”. A ruptura de 1973, na realidade, provém de um novo espírito de solidariedade política, desde logo presente nos mundos africano e árabe. Conscientes da convergência dos seus interesses, após 1967, estes mundos entraram em uma nova fase das suas relações, as quais se desenvolveriam, com ainda maior intensidade, ao longo dos anos 1970. Inaugurando o novo rumo tomado por estas relações, a Liga Árabe, reunida na capital Argel em novembro de 1973, decidiu impor um embargo do petróleo contra Portugal colonialista, à Rodésia, governada por brancos, e à África do Sul, sob o regime do apartheid54. Ela decidiu, igualmente, constituir três importantes instituições, destinadas a promoverem a cooperação econômica. Tais eram o Banco Árabe para o Desenvolvimento Econômico na África; o Fundo Árabe Especial para a África, destinado a conceder ajuda financeira emergencial aos países africanos não árabes, intuindo financiar as importações de petróleo e valo- rizar os recursos petrolíferos; e o Fundo de Assistência Técnica árabo -africano, criado para promover a cooperação técnica e econômica, envolvendo países árabes e africanos55. A crescente importância dos aspectos econômicos na lógica daquelas relações, em pleno vigor à época, igualmente traduziu -se em razão de uma nova postura da OPEP no tangente às suas responsabilidades vis -à -vis da promoção do desenvolvimento no Terceiro Mundo em geral e, da África, em particular�. No plano cultural, estas relações políticas e econômicas, de nova ordem, foram estimuladas, no transcorrer dos anos 1970, pelo renascimento islâmico, do qual uma das expressões políticas foi a criação, em 1971, da Organização 52 Z. CERVENKA, 1977, p. 162. 53 G. A. NWEKE, 1980, pp. 235 -250. 54 Estas três instituições são analisadas em E. C. CHIBWE, 1976; W. R. JOHNSON, 1983; A. SYLVES- TER, 1981; J. VIGNES, 1976 -1977. 55 M. J. WILLIAMS, 1976. 1032 África desde 1935 da Conferência Islâmica (OCI), organismo intergovernamental sediado na Arábia Saudita56. Tal era, portanto, a situação em plena evolução da qual deri- vou a reunião da primeira Conferência de Cúpula Árabo -Africana, em 1977. Bem entendido, estas manifestações de solidariedade não aboliam algu- mas importantes diferenças, ligadas a perspectivas e a prioridades políticas. Por exemplo, a Liga Árabe não logrou convencer a OUA e obter apoio em favor da expulsão de Israel da ONU. Em suplemento, eis o cúmulo da ironia ocorrido nos anos 1950 e 1960, o Egito, país que fora carro -chefe no desenvolvimento destas relações, tornou -se, devido à assinatura de um tratado de paz com Israel, em 1979 por Anwar al -Sādāt, um pária político no mundo árabe e uma fonte de tensão nas relações afro -árabes. Entretanto, se o Egito foi imediatamente excluído da Liga Árabe − cuja sede simultaneamente transferiu -se do Cairo para Túnis − e da OCI, a OUA, por sua vez e malgrado as pressões, recusou -se a tomar medidas da mesma ordem e continuou a acolhê -lo. Por outro lado, por ocasião da sexta Conferência de Cúpula dos Países Não Alinhados, em 1979, os Estados da África Subsaariana dedicaram -se a elaborar um compromisso visando impedir a expulsão do Egito do movimento, banimento exigido pelos outros Estados Árabes. No entanto, a questão mais embaraçosa, na aurora dos anos 1980, con- sistia em saber se as promessas e as esperanças de cooperação e de solidarie- dade econômicas resistiriam à alta nas cotações do petróleo e à propagação da recessão econômica internacional. Em suma, a simples expressão de tais preocupações demonstra, à perfeição, o grau de amadurecimento experi-
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