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Mito e Filosofia Marcelo P. Marques Depto. de Filosofia, FAFICH - UFMG "O mesmo instinto que exige a arte para a vida, que exige a arte que é o ornamento e a coroação da existência, que exige a arte que é o encanto que nos impele a continuar a viver, o mesmo instinto gerou também o mundo olímpico que foi, para a vontade helênica, o espelho onde ela via a sua imagem transfigurada." F. Nietzsche. Origem da Tragédia 1. Posição do problema 1 É prudente que uma distinção inicial seja feita, tendo em vista o que se tem em mente, geralmente, quando se fala em mitologia. Mitologia refere-se, em primeiro lugar, ao conjunto de mitos de um grupo social específico, práticas narrativas, enunciados míticos, relatos, transmitidos ao longo de uma tradição. Em segundo lugar, refere-se a um discurso sobre essas narrativas, isto é, a um ramo do saber filosófico e científico que estuda a origem, o desenvolvimento e a natureza dos mitos, em si mesmos e na sua relação com outros tipos de discurso. Seja no primeiro ou no segundo sentido, falar de mitologia remete necessariamente a uma posição de pesquisa histórica e interpretação de textos ou de fragmentos de textos que nos chegam através das mais diversas fontes: literárias, filosóficas, científicas, teológicas, jurídicas, etc. Nesta exposição não me proponho tratar de um mito em particular, ou de um mitema, mas de uma relação, a relação entre mito e filosofia, e de um processo, o que leva do mito à filosofia. Na perspectiva que adoto, falar da relação entre mito e filosofia implica em falar grego, isto é, em falar do surgimento da filosofia a partir da cultura grega arcaica. Pois a filosofia é a marca do ocidente, cujas raízes são 1 Este texto foi originalmente publicado em ANDRADE, Mônica (Org.) Mito. Belo Horizonte, Núcleo de Filosofia Sonia Viegas, 1994. 2 gregas; e a questão de sua relação com o mito só se coloca para uma cultura que tem a pretensão, desde os seus primórdios, de dar conta do real através do discurso conceitual. Esta questão só tem sentido para uma civilização que, ao transpor para o registro literário todo um corpo de narrativas até então orais - narrativas que tratam da origem do mundo, dos deuses e do homem - acaba por gerar um tipo de discurso, que voltando-se sobre suas próprias origens circunscreve seu âmbito de validade dentro de limites restritos, seja considerando-as como inócuos contos para crianças, seja repelindo-as sumariamente como loucura, imoralidade ou selvageria. O problema da relação entre mito e filosofia é colocado desde a Antigüidade, quando os primeiros filósofos se voltavam criticamente contra a tradição mítica da cultura grega arcaica. Entre Xenófanes, que faz a primeira crítica do mito a partir da filosofia (DK 21 B11-16), e Aristóteles, que reconhece o mito como precursor da atitude filosófica (Metafísica A2, 982, 17-19), mas que acaba por exclui-lo de seu discurso filosófico, estabelecendo uma separação metodológica, temos, em Platão, uma relação mais sutil e complexa. Ele admite o mito no campo da filosofia, pois a componente mítica é constitutiva de sua linguagem filosófica. O mito platônico tem função heurística e pedagógica, desperta a inteligência para determinados problemas. E ainda, no que concerne certas questões, Platão reconhece a impossibilidade de se falar discursiva e demonstrativamente. Ele cria seus próprios mitos, assim como utiliza e renova os mitos da tradição. Há um imbricamento profundo entre o discurso apodítico e o discurso mítico platônico. (Brisson, 1982). Contemporaneamente, duas perspectivas básicas são postas. Uma perspectiva é marcada pela mentalidade positivista do início do século XIX, afirmando que haveria uma descontinuidade radical entre mito e filosofia (Burnet, 1919:16-17). Pensa-se efetivamente numa do mito ao lógos, no sentido de o primeiro ser negado e suprimido, o mito aparecendo como um tipo de linguagem inferior e incapaz de veicular conteúdos racionais ou mais elevados (Burnet, 1919:2). O lógos libera- se do mito através de um verdadeiro milagre do espírito. Não se fala em mudança de mentalidade ou de atitude, mas de uma revelação decisiva e definitiva. O pensamento racional tem origem em si mesmo, é exterior à história. A filosofia jônica representaria um começo absoluto, uma descontinuidade radical. É como se o povo grego estivesse predestinado a encarnar a Razão atemporal, numa visão francamente acrítica e etnocêntrica. A segunda posição vê um processo de continuidade entre mito e filosofia. Não haveria propriamente uma passagem ou um abandono, mas uma transposição gradual dos temas e esquemas míticos ao plano do pensamento discursivo. Esta visão implica que há um lógos do mito, assim como há sobrevivência do mito no lógos; há uma lógica no mito, uma sintaxe, uma semântica próprias, a serem desvendadas. Essa tendência de interpretação tem suas origens em Schelling (1775-1854), através da noção de tautegoria, por exemplo, e Nietzsche (1844-1900), com sua filosofia da cultura grega. Cornford (1912-1952) constitui um marco importante, sendo o primeiro a lançar mão dos resultados da religião comparada e da antropologia cultural para iluminar a leitura dos mitos antigos. No século XX, o problema é colocado em novos termos, principalmente a partir das contribuições da psicanálise, da linguística estrutural, da história comparada das religiões e da etnologia. Com os funcionalistas (Malinowski), os simbolistas (Cassirer, Freud, Mircea Eliade), e os estruturalistas (Dumézil, Gernet, Levy-Strauss), para citar apenas algumas das diferentes tendências de interpretação, a mitologia propõe-se como uma nova ciência. Reconhece-se a autonomia da esfera do pensamento mítico, buscando-se a formulação de uma teoria que defina seu objeto e proponha estratégias epistemológicas que considerem o mito na sua especificidade. (Detienne, 1981a). Tarefa essa que implica na convergência de várias ciências, pois, por natureza, o mito é um discurso que adota a perspectiva da totalidade e que é solidário das estruturas profundas, inconscientes do psiquismo humano. Definir o mito, sem reduzí-lo, é um desafio permanente para a investigação teórica. Por sua vez, o discurso filosófico encontra no mito uma região fronteiriça que suscita, talvez mais que qualquer outra, a 3 questão fundamental de sua própria especificidade. Perante o mito é a própria concepção de racionalidade que se encontra em questão. Partimos da hipótese de que há uma homologia estrutural, profunda, entre as formas do pensamento mítico e a consciência filosófica. O mito é a terra natal da filosofia. Mas há também rupturas e descontinuidades. Ao ser resgatado do fundo cultural em que vigora, enquanto práxis viva, e ao ser incorporado pelo pensamento filosófico, o mito sofre apropriações, transmutações que o modificam profundamente. O discurso filosófico é gerado a partir de uma situação de progressivo distanciamento entre a ordem das coisas e a ordem da linguagem. Na mesma medida em que a palavra perde em eficácia realizadora (registro mágico da consciência mítica) ela ganha em negatividade, portanto em distanciamento, perseguindo o real através da discursividade e da argumentação. Ao inventar o conceito, a filosofia projeta sua lógica sobre todas as regiões da experiência humana, e acredita que cabe a ela julgar da verdade ou validade do mito, a partir de seus próprios parâmetros lógicos. 2. A práxis mítica Focalizemos incialmente o mito numplano mais geral, partindo do que chamamos práxis mítica. Na práxis mítica, o mito é uma coisa viva, faz parte do que os gregos chamavam phýsis, realidade, emergente e viva. É uma narrativa preservada pela tradição oral que é revivida através de rituais e em situações sociais específicas. Os relatos míticos ordenam o mundo natural e o mundo social presente, ao se referirem aos tempos primordiais onde tudo-o-que-é teve sua origem. O modelo básico para a compreensão do mundo, no pensamento mítico, são as relações de parentesco, isto é, conhecer, explicar significa encontrar a origem, dizer quem é o pai. O todo do kósmos, as práticas e instituições sociais, os fenômenos psíquicos adquirem sentido ao serem inseridos em genealogias que remontam às origens últimas de todas as coisas. Há personagens sociais específicos encarregados da preservação, transmissão e re-efetuação do sentido mítico do mundo. O pai, na religião familiar, o rei cósmico, nas realezas arcaicas, os videntes e profetas, assim como os poetas: são indivíduos que têm um acesso exclusivo aos tempos primordiais; mestres de sabedoria cujo privilégio é adquirido tanto por herança ou inspiração divina como por longo treinamento, em técnicas de rememoração e de versificação. (Detienne, 1981b). Esses personagens são mediadores entre a esfera do sagrado - deuses e heróis que habitam o tempo forte das origens - e a esfera profana, humana, da coletividade. Os homens recebem esses relatos e re-efetuam a ordenação do kósmos e de suas vidas, assim como aprendem o que fazer e como fazer as coisas na vida social. Cornford faz um amplo levantamento das várias manifestações da inspiração divina nas diversas civilizações antigas. Na sua relação de figuras míticas ou semi-míticas, ele destaca a recorrência de um tipo que exerce funções múltiplas (religiosas, poéticas e de sabedoria) e que pode ser generalizado para além dos limites da civilização grega. Tal tipo pode ser encontrado em períodos diferentes da história da humanidade, em regiões diferentes do planeta - culturas céltica, teutônica, nórdica, siberiana, islâmica e outras. Ele trata do assunto sob o termo geral de xamanismo ou sistemas mânticos: pessoas inspiradas que estão em contato com o mundo dos deuses e dos espíritos e que voltam-se para suas comunidades como fonte de sabedoria prática e espiritual. Os testemunhos que evoca levam-no a concluir pela universalidade da função do vidente em toda a Europa primitiva; mostra sua estreita relação com o dom da poesia, ambas constituindo tipos de conhecimento, e tendo ainda em comum a comunicação através da música e o estado de delírio, no momento em que as profecias são proferidas. (Cornford, 1981:99-140) A análise linguística contemporânea descreve o processo de preservação e transmissão da tradição, efetuado pelos videntes e poetas, entre outros, como uma pragmática do saber narrativo (Lyotard, 1986:35-43). Esse tipo de saber se distingue do conhecimento, em sentido estrito. O conhecimento corresponderia à produção de um 4 conjunto de enunciados suscetíveis de serem declarados verdadeiros ou falsos. Já o saber narrativo implica numa afinidade com os costumes de um grupo social e aparece como resultado de uma formação complexa de competências convergentes. Ele implica não apenas num conjunto de enunciados, num saber-dizer, mas principalmente num saber-fazer, num saber-viver, num saber-escutar. O registro do mito, ou saber narrativo, situa-se paralelamente à esfera do que é verdadeiro ou falso. É uma competência que se estende às determinações e aplicações de critérios de eficicácia, de capacidade técnica, de sabedoria ética, de justiça, etc. O saber narrativo é, portanto, mais que competência intelectual, ele é formação e cultura, num sentido antropológico. A competência de quem profere a narrativa pode ser medida em três planos: pragmático (eficácia prática da enunciação enquanto evento); ético (valorativo, no sentido de ser sábio, justo, ou não) e poético (plano do saber fazer coisas com palavras, saber enunciar, saber ouvir, etc). O mito tem uma função religiosa e ao mesmo tempo poética. As duas combinam-se para permitir o acesso do homem ao divino e, ao mesmo tempo, do homem a si próprio, isto é, para refletir-se e contemplar-se. A forma poética não é alheia à carga ética que veicula. O mito atua eticamente sobre a existência humana pela sua força poética. O mito torna possível o humano, e o faz poeticamente. Contemplar formas belas é belo e bom para a vida. O humano alimenta- se de aparências e extrai delas um sentido ético. A existência paradoxalmente torna-se mais real ao ser representada como forma poética, forma criada, imaginada, irreal. (Nietzsche, 1953:47) O mito, tal como é vivido pelas sociedades arcaicas, significa então: um corpo de narrativas que contam o que se passou nos tempos primordiais, sendo portanto, sagradas e verdadeiras; referem-se sempre a uma criação, isto é, à origem de algo (um fenômeno da natureza, uma instituição, um modo de fazer algo, etc.); é um tipo de saber vivenciado, isto é, efetuado ritualmente e que tem um efeito prático, operatório, tem uma eficácia social. (Eliade, 1972:7-23). A experiência arcaica do mundo, e portanto da linguagem, é uma experiência compacta (Voegelin, 1980-83, vol.II:Introdução). A palavra faz parte da phýsis. A significação está como que colada ao real. A palavra é revelação divina, presença mesma do ser, poder de presentificação que torna presente aquilo que nomeia. Não há distinção entre a ordem da palavra e a ordem da realidade. Há, sim, um remetimento interno entre os planos, que só podem ser vistos como tais retrospectiva e criticamente. É uma experiência de totalidade, cuja articulação íntima foge ao alcance descritivo de nossa linguagem conceitual e discursiva. A realidade miticamente estruturada é um mundo vivo de potências divinas que só pode ser experimentado dentro de um sistema mágico de nomeação presentificante. Um registro mágico em que a coisa dita-mostrada tem efeito de realidade. Não há ruptura entre palavra e coisa. A re-efetuação ritual das narrativas torna presentes os deuses, torna real o mundo, dá sentido ao vivido: o canto inspirado flui diretamente da divindade pela boca do mestre de sabedoria para os homens receptores e usuários do saber mítico. É um sistema em que vigora uma fé mítica no mundo, tal como ele é apresentado pelas palavras e gestos ritualizados. O significado é dado imediatamente, diretamente, operatoriamente; ser e dizer são uma e a mesma coisa. 3. A transposição do mito pela poesia A poesia é o grande meio de comunicação da época arcaica. É a poesia que veicula as regras de convivência básica, os valores norteadores da cultura, os relatos que ordenam tanto a totalidade do kósmos, como a sociedade. É o poeta que resgata o kosmos do chaos primordial, ele é instrumento da verdade - alétheia, pois é através dele que aquilo-que-é se mostra. Através da poesia o homem elabora seus impulsos, seus desejos, contradições e aspirações, para além dos parâmetros fixados pela celebração ritual do sentido do mundo. Ao ser transposta para a escrita, como literatura, a experiência da linguagem mítica é encaminhada da boca do poeta para o texto poético. Os poetas incorporam o mito vivo da tradição oral na sua palavra 5 escrita, mas nessa transposição ele já é alterado. A narrativa torna-se ambígua: ela vale como coisa real e palavra proferida, agora escrita. Começa a haver alguma distinção entre a ordem da palavra e a ordem do real.. A transcrição poética é marcada por duascaracterísticas básicas: a ambigüidade e a polissemia. Ela situa-se ambiguamente entre a coisa e a imagem da coisa, valendo ora como uma, ora como outra. Ela torna-se metafórica, no sentido em que inaugura a transitividade entre uma imagem e outras imagens, ou vivências, abrindo a possibilidade da emergência de diferentes sentidos, para além do nível estritamente referencial. É um processo de progressiva despotencialização e desmistificação dos signos, constituindo relações sintáticas e semânticas inéditas, cada vez mais sutis e elaboradas. (Ramnoux, 1968). Na medida em que ele é fixado na escrita, o texto torna-se passível de múltiplas interpretações. A práxis comunicativa em torno do texto, na medida em que não está mais circunscrita ritualmente, dá- se segundo circunstâncias mais livres, podendo gerar significações não previstas, que escapam às restrições sociais, antes fixas e pré- determinadas. A utilização da escrita não significa apenas um novo meio de se expressar, mas uma nova maneira de pensar. A tradição oral compunha através de fórmulas recitativas que facilitavam a memorização e que eram preservadas à medida em que eram transmitidas de geração em geração. Mesmo havendo alguma recriação por parte do aedo que recitava uma narrativa, seu trabalho se dava dentro de regras precisas de composição, convenções arraigadas, enraizadas na economia ritual religiosa. A expressão escrita permite uma demora maior sobre o que é dito, e um poder voltar ao texto que conferem ao pensamento a possibilidade de uma maior elaboração, maior sofisticação no trabalho com as palavras. No fazer poético, o mito é recriado e adquire características propriamente literárias. A poesia diversifica-se tendo em vista novas regras formais, intenções distintas e públicos específicos. No meio literário, os temas míticos serão assimilados e enfocados de acordo com critérios e necessidades próprios a cada forma particular. Aspectos diferentes serão privilegiados, em momentos diferentes, novos desdobramentos serão vislumbrados; diferentes enfoques iluminam aspectos até então obscuros e inexplorados do vasto e profundo material mítico da tradição oral. Quanto à produção da poesia épica, por exemplo, o que temos são camadas de composição que se entrelaçaram ao longo das sucessivas transmissões acabando por cristalizar-se num texto escrito. No período arcaico, há uma correspondência entre o mundo dos relatos e o mundo dos ouvintes: ambos se inserem numa mesma continuidade, numa mesma ordem. Os relatos são dirigidos a famílias nobres que reconhecem-se nos feitos heróicos, renovando suas crenças e tendo seu poder e posição social justificados. (Fränkel, 1975). A poesia de Hesíodo apresenta um caráter excepcional, pois constitui-se num conjunto unificado de narrativas que, pela sua extensão e coerência interna, representa um verdadeiro sistema original de pensamento, complexo e estruturado. É também a criação de uma personalidade singular, de um poeta que se anuncia como proclamador da verdade, mediador privilegiado entre os homens e deuses. O texto de Hesíodo é inicialmente dirigido a camponeses como ele, mas acaba por atingir uma grande amplitude, indo muito além do seu grupo social particular. Ele será um dos pilares da constituição de uma cultura helênica unificada. Na poesia lírica, o mito passa a ser utilizado como modelo de comportamento, seu valor sendo dado por referência a algo exterior a ele próprio. O poeta atribui ao mito uma função paradigmática, submentendo-o aos interesses humanos que conferem valor a certos comportamentos e não a outros. A poesia trágica refaz a relação entre o poeta e seus ouvintes. Por um lado, o mundo do herói trágico é totalmente passado, mas por outro lado, os conflitos que dilaceram as linhagens nobres, sua desmedida e seu infortúnio são perfeitamente contemporâneos aos conflitos dos espectadores. O herói não é mais simples modelo, mas questão formulada: a tensão entre o passado mítico e o presente da cidade é o campo por excelência do conflito trágico. 6 O trabalho dos poetas forja rupturas no corpo dos relatos míticos, constituindo-se numa experiência integrada de conteúdo e forma, na qual o homem aparece como problema, ser de falta e de desmedida, cuja palavra não alcança exatamente o brilho da palavra divina. Assim, o homem e sua palavra vão se deslocando da experiência original compacta da práxis mítica. Os relatos míticos antropogônicos remetem a um núcleo de vivências em que o lugar do homem no kósmos é problematizado. As questões humanas, mitica e poeticamente postas, são como que um campo de forças que levam a reflexões inéditas. Na tradição dos relatos orais, o poeta encontra um vasto material a partir do qual pode traçar percursos interrogativos, exercer sua inquietação, desdobrar seus questionamentos. Se na práxis mítica o sentido é, de alguma forma, já dado, agora, na poesia, ele aparece como questão, revelando a profunda reflexividade própria da palavra poética. Na medida em que o poeta enfoca o mundo humano miticamente, ele prepara a própria superação do mito, enquanto palavra estruturadora do kósmos. Ao identificar-se e refletir-se nesses relatos, o homem descobre-se um ser presente e ambíguo, dividido entre díke (justiça) e hýbris (desmedida), desterrado da experiência mítica originária. Seu presente torna-se um signo opaco, que apresenta-se como enigma e interrogação. O sentido desloca-se linearmente rumo ao passado e projeta-se como possibilidade para o futuro; será, então, não significado dado, mas busca de um sentido que não se oferece mais na imediaticidade do vivido. O homem é um ser de desmedida que pode, no máximo, aspirar à sabedoria e à justiça. O relato mítico refletido poeticamente gera a investigação histórica, as primeiras teologias, o discurso jurídico, assim como o questionamento filosófico. O mito nos aparece, portanto, como um proto-discurso que, sob a incidência do fazer poético refrata-se em diversas direções possibilitando diferentes démarches discursivas, a literatura é uma delas e a filosofia uma entre outras. O sentido adquire fluidez e torna-se plenamente ambíguo. Não há uma cristalização do sentido em rituais, objetos sagrados ou tabus. Ele encontra, agora, o corpo flexível e volátil da lingua escrita, descobre sua autonomia no próprio exercício de recriação poética. 4. A invenção do conceito O contexto cultural que os primeiros filósofos respiram é essencialmente marcado pela elaboração da tradição mítica feita pelos poetas. A atitude poética, separando-se da práxis mítica, busca a permanência do sentido no âmbito da linguagem, que torna-se assim exigência conceitual. No momento em que começam a aparecer as primeiras leituras das obras poéticas de Homero e Hesíodo, coloca-se um jogo o destino do mito no contexto maior do saber ocidental. As leituras filosóficas da representação poética dos mitos vão ser diversas, mas o que deve ser ressaltado é a dimensão profunda da relação entre linguagem e realidade: tanto a nível operatório (práxis mítica) como a nível do conhecimento do mundo enquanto tal (questão do discurso verdadeiro). Esta relação está sendo problematizada no centro das transformações culturais e sociais que culminam com a formação da pólis clássica: a introdução da moeda, as relações contratuais, a reforma do exército, a adoção de leis escritas, a crise da soberania arcaica, as assembléias de cidadãos, etc. Transformações essas que contribuem para o surgimento de um novo tipo de discurso, o discurso conceitual, num contexto em queas relações sociais tornam-se cada vez mais abstratas e homogêneas. A emergência da linguagem conceitual é solidária de transformações profundas na estrutura social e mental dos cidadãos: a experiência da redução das diferenças qualitativas à equivalência do valor quantitativo; a busca de normas éticas e de valor que sejam conhecidas e aplicáveis a todos; a reversibilidade das relações contratuais; a aspiração por uma medida comum para todos; a racionalização e a universalização do que antes era particular, heterogêneo e múltiplo; a progressiva homogeneização que torna iguais ou equivalentes os elementos 7 envolvidos, isto é, os termos ou unidades de valor e significação perdem a sua singularidade e passam a se equivaler perante uma medida universal; a busca e construção de uma unidade de direito e uma medida humana que ultrapasse as divergências particulares; enfim, a construção argumentativa, progressiva do sentido no espaço comum e público da cidade. São transformações que convergem para uma nova experiência da produção do sentido. A linguagem é relativizada na medida que avança na sua autonomia em relação ao real. A palavra não é mais plenamente presença absoluta, realidade que flui da boca da divindade ou do poeta inspirado. Enquanto palavra humana, que pertence a todos e a cada um, ela torna-se cada vez mais circunscrita ao momento da enunciação. Não mais revelação exclusiva - alétheia, mas confrontação pública - diálogos. Ela depende de vários fatores circunstanciais para se fazer valer como coisa real; isto é, sua eficácia, seu poder de realização tende a esvanecer-se na multiplicidade de variáveis que determinam o evento do discurso público. A linguagem descobre-se instrumental, veículo de significações dissociadas da carga de realidade à qual estavam originalmente aderida. Sendo determinada do exterior ela torna-se indiferente ao conteúdo que carrega, palavra-moeda que circula entre os homens, portadora de valores relativos, expressão de um ser essencialmente relativo, finito, limitado e que descobre-se como tal. Ao falar o homem expressa sua condição de um ser que é mescla de finito e infinito, possibilidade ideal e realização precária. O saber, enquanto prática discursiva, tem pretensão à superação da finitude e da precariedade, isto é, torna-se busca da verdade sobre o mundo, verdade que carrega junto consigo uma potência de persuasão e dominação de outros homens. O saber filosófico não parte de uma certeza, ele busca credibilidade. A palavra que era o elemento unificador da sociedade arcaica é agora o elemento crucial de um jogo de separação-união, marcado pelo conflito, pela luta de interesses sociais, pela dominação e, mais importante, dominação através da pretensão à verdade. Ao passarmos do registro próprio do mito vivo, eficaz, para o registro filosófico, estamos acompanhando a invenção da função do conhecimento propriamente dito, a dimensão conceitual do saber ocidental. Na sua diferença específica, portanto, o mito é um tipo de saber que, antes de tudo, serve à vida. Mas ele é, também, habitado por uma necessidade de falar, por um desejo de saber, de buscar o sentido, a razão do discurso sustentado por ele mesmo. É a partir dessa dimensão, dessa tendência cognitiva presente no mito que vai desencardear-se a filosofia. A busca da arché, princípio que unifica e ordena a natureza - phýsis, implica em três níveis: o que a coisa é - on, aquilo pelo que ela vem-a-ser - génesis, e pelo que pode ser conhecida - epistéme. A filosofia prioriza, nas representações simbólicas, a função do conhecimento, de apreensão da idéia, do conceito. A filosofia busca um discurso que reencontre a unidade e a permanência de sentido anteriormente garantidas miticamente. O fazer poético objetiva a relação afetiva, antes aderida à imediaticidade da práxis mítica/ritual, a nível da linguagem, criando a linguagem poética. A práxis, assim, objetivada subordina-se ao imaginário do poietés/fabricador, perde relativamente seu caráter funcional (religioso, social) e adquire significação estética, ainda relativa, mas já inicialmente diferenciada. O fazer poético dá forma (estética) à afetividade. Se a práxis organiza a experiência do mundo numa perspectiva totalizante, a poíesis organiza-a a nivel da elaboração simbólica da linguagem (polissemia, metaforização). A metáfora, enquanto transitividade entre palavras, imagens e coisas, instaura-se no âmbito da linguagem e sua ambigüidade impede a cristalização conceitual das significações. O conceito surge a partir de uma necessidade de transpor os limites da linguagem, na direção do pensamento, ou da determinação do sentido. Se na práxis mítica a significação é coisa, phýsis, exteriorização objetivada, no fazer poético ela é fluida, passível de recriação. A atividade reflexiva busca recuperar a permanência do objeto que 8 permanece, mas não o encontra no âmbito da linguagem. Pergunta então por aquilo que subsiste, pelo substrato, pelos ser da coisa. A atitude poética, separada da práxis mítica, torna-se exigência conceitual: pergunta pela permanência do sentido, pelo lógos, por um sentido transcendente à linguagem. Princípio, arché, permanência que esconde-se nas coisas mesmas, mas que se oferece na linguagem que visa dizê-las, garantindo nelas um substrato passível de ser (re)conhecido. Mas ao perder a inocência mítica, o homem, misto de poeta e pesquisador, perde também a imediaticidade do sentido do mundo. O mundo revela-se como ausência; está referido na linguagem, mas não está presente nela. Na concretude do imediato, o mundo mostra-se transitório, puro vir-a-ser. O discurso conceitual, tradutor do lógos, para escapar ao devir fenomênico, torna-se invisível, sentido permanente, mas transcendente. O conceito busca/visa nas coisas algo que só se evidencia nele próprio, como exigência lógica. Vemos, então, configurar-se uma dialética que será a arché de toda filosofia: será sua origem e imperará no seu desenvolvimento. A dialética entre os níveis mítico, poético e lógico. Entre a perspectiva totalizante e a visão parcial; entre o organicamente centrado e o des- centrado; entre o que é marcado vigorosamente pelos afetos e a isenção distante da abstração; entre o nomear dos mortais, com sua ambigüidade e inconstância e a necessidade da evidência, que busca o permanente e o mesmo. As tensões latentes no mito e emergentes na reflexão poética são encaminhadas para a linguagem discursiva da filosofia que as transforma em questionamentos, genetica ou logicamente articulados. 5. A filosofia: um ser entre A história do homem ocidental, fabricador de discursos, pode ser lida a partir desta chave: um homen perpassado pela dialética tecida entre os planos mítico-poético e conceitual. Por um lado, o mito sempre resiste às investidas do pensamento conceitual, permanecendo essencialmente opaco e enigmático. Por outro lado, o pensamento sempre avança sobre a imagem obscura e fugidia da representação mítica, tentando iluminá-la, esclarecê-la, reduzí-la ao que lhe é familiar (esquemas lógicos, significações explícitas, etc), domesticá-la através de sua vontade insaciável de dominar pelo saber. O mito opera através de representações cuja apreensão se dá pela vivência. Ele é vivo enquanto é vivenciado. E na excessiva proximidade da vivência, na confusão e indistinção do vivido, ele se esconde, se furta ao esclarecimento. Por isso, nós, ocidentais, entoxicados de racionalismos, somos capazes de perguntar: mito, o que é mito? Ainda existem mitos? Como o peixe dentrod'água perguntando: água, o que é água? Existe água? A filosofia, na sua diferença específica, opera através da manipulação de conceitos, e, no seu desdobramento científico, de fórmulas. Seu modo de apreensão é o do esforço, o da construção do discurso, progressivo, argumentativo, demonstrativo: satisfazendo seu desejo irresistível de clareza, de antevisão, de atenção permanente; de desencarnar, abstrair e diluir a experiência em termos de duração cerebral, isto é, de linguagem conceitual. Mas, como vimos, essa oposição não pode nos levar a uma dualidade na qual a filosofia encontra-se reduzida ao polo oposto do mito. A verdade que a filosofia busca, à qual pretende e aspira, não é a verdade estritamente conceitualizável, a autosuficiência do conceito puro e simples. A filosofia enraiza-se nessa dialética entre os diferentes modos de discursos: o mítico, o metafórico e o conceitual. Há um vai e vem necessário, permanente entre mito e conceito passando pela metáfora: devemos reconhecer e preservar o fato de que há sempre uma certa mediação narrativa dentro do próprio discurso racional. São vários os autores contemporâneos que falam de uma concepção tensional da verdade, que nos levam a aproximar mito e conceito pela mediação da poesia. (Maesschalck, 1989). 9 Desde Parmênides, a filosofia vive o desafio de acolher as tensões implicadas na tarefa de dizer o ser, a verdade, sem perder, sem trair o excesso que implica dizê-lo. Entre a adesão mítica ao real e a krísis que a linguagem humana instaura no mundo, a filosofia aparece como aspiração, como caminho para, muito mais do que conquista plena e domínio do ser. A filosofia é uma tentativa, talvez votada à falência mas sempre refeita, sempre retomada, de estabelecer uma ponte entre a união do mito e a perda implícita no conceito puro. Experiência que, pela sua própria negatividade, propulsiona a oscilação permanente entre a adesão/união e a perda/separação. (Ramnoux, 1950) A filosofia seria então um ser entre. Um ser entre a imagem terrível e fascinante, confusa e obscura do mito e o conceito, a idéia, inequívoca, bem delimitada, cheia de luz. Ela oscila entre a potencialidade e a eficácia prática da imagem mítica e a luminosidade do pensamento conceitual que separa e delimita, para conhecer. Entre a imagem aderida ao imediato da natureza e a idéia abstrata. Termino com Clémence Ramnoux, que reflete a partir de Spinoza: a filosofia constitui-se nessa tensão, numa dialética da dupla recusa. Recusa da imagem mítica, depois de ter passado por ela, depois de tê-la sofrido, cavando sob ela um fundo que a torna mais transparente. Recusa do conceito, da fórmula, depois de ter aceito seu rigor, fazendo aparecer o relevo de outras possibilidades de sentido. Recusa dupla que não implica na aceitação parcial de ambos, mas na convivência com o contraste entre os dois, constatando a insuficiência tanto de um quanto do outro. "Um equilíbrio na recusa, uma dialética da dupla negação, sem fusão dos opostos". Movimento rumo ao ser pela via da diferença. (Ramnoux, 1950:427-429). 6. Reflexões sobre a sobrevivência do mito A partir da visão do mito como uma pragmática (Lyotard, 1986) e da dialética da dupla recusa (Ramnoux, 1950), podemos sugerir algumas tendências contemporâneas do tratamento filosófico-científico de que são suscetíveis os mitos. Socialmente, a pragmática narrativa é uma instância de produção de saberes, isto é, de formação de competências: enunciados e narrativas que, antes de terem uma função de conhecimento (verdadeiro ou falso), têm um papel de viabilização da vida social. As narrativas possibilitam a coesão do grupo dentro de um sistema de regras, medidas pela sua eficácia social; elas são preservadas e re-efetuadas para manter vivas e operantes práticas sociais diversas. Nesse sentido, a narrativa mítica não é nem verdadeira nem falsa, ela é eficaz ou não. Toda a questão da dóxa, ou, se quisermos, das ideologias, ou ainda, das competências comunicativas, no campo da vida social - da ação ética e política, pode ser reformulada a partir de um enfoque desse tipo. Numa outra perspectiva, podemos reconhecer, no desenvolvimento da personalidade individual, o caráter operatório das imagens míticas e oníricas; se admitirmos que o mito e o sonho têm suas origens no inconsciente (individual ou coletivo), poderemos propor que ambos traduzem configurações psíquicas dos seres humanos individuais. Nesse nível, a imagem mítica age, opera, muito mais do que expressa um significado passível de ser verdadeiro ou falso. Ela age dentro de um sistema e tem funções ligadas à sua viabilização antes de ser meio de conhecimento propriamente dito. A imagem mítica atua em diferentes níveis (Ramnoux, 1950:412-415): ela pode ter um papel diagnóstico, por exemplo, de reconhecimento de mensagens internas ao psiquismo, o próprio sistema produzindo tratamentos para determinadas situações reconhecidas como conflitantes. A imagem poderia ter ainda uma função catártica, canalizadora de tensões, através do próprio processo de representação, atuando no sentido de manter uma economia psíquica em funcionamento. E, em terceiro lugar, a imagem mítica teria uma eficácia compensatória, agindo no sentido de manter um certo equilíbrio no sistema. Nesses níveis, o que importa é que as imagens míticas sejam vividas e não necessariamente compreendidas ou interpretadas. 10 Com essas indicações, pretendo apenas sugerir que o mito vivo não é exclusivo das sociedades arcaicas, mas estrutura presente na vida humana, tanto social como individual-psíquica. O que aparece como específico do mito, tomado nesse sentido mais abrangente, é seu caráter prático, vivencial, de estrutura que torna possível a vida. Seja a nível do saber narrativo consciente - costumes e competências sociais, seja a nível do psiquismo - estruturação da personalidade e dos comportamentos, podemos reconhecer que a função mitopoiética, isto é, fabricadora de mitos, é anterior à função de inteligência do real, ou de conhecimento propriamente dito. Por um lado, a sociedade produz jogos de linguagem que estruturam e regulam a vida comum. Por outro lado, o psiquismo produz, através de imagens, representações e comportamentos, jogos catárticos que determinam e estruturam a vida individual. Nesse sentido é enganoso opormos mito e ciência, no mesmo plano. O mito não é contrário à representação verdadeira, nem enquanto conjunto de enunciados falsos, nem enquanto mentira que leva a um certo tipo de ação. Como jogo, o mito não mente, nem diz a verdade, ele faz o que tem que fazer. O que não quer dizer que o que ele faz é sempre benéfico, restaurador ou integrador. O mito pode ser também desestruturador, reforçando tendências contrárias ao que chamaríamos de realização plena do sistema social ou psíquico. Sua eficácia se dá dentro do contexto das forças socias ou das pulsões em jogo, sendo produzido tanto na dinâmica das relações de dominação / cooperação entre diferentes grupos sociais, quanto nos processos patológicos / terapêuticos do indivíduo Referências Bibliográficas: BRISSON, L. Platon. Les Mots et les Mythes. 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