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MARQUES Mito e filosofia 1994

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Mito e Filosofia 
Marcelo P. Marques 
Depto. de Filosofia, FAFICH - UFMG 
 
 
 
 
 
"O mesmo instinto que exige a arte para a vida, que exige a arte 
que é o ornamento e a coroação da existência, que exige a arte que é o 
encanto que nos impele a continuar a viver, o mesmo instinto gerou 
também o mundo olímpico que foi, para a vontade helênica, o espelho 
onde ela via a sua imagem transfigurada." F. Nietzsche. Origem da Tragédia 
 
 
1. Posição do problema
1
 
 
 É prudente que uma distinção inicial seja feita, tendo em vista o 
que se tem em mente, geralmente, quando se fala em mitologia. 
Mitologia refere-se, em primeiro lugar, ao conjunto de mitos de um 
grupo social específico, práticas narrativas, enunciados míticos, relatos, 
transmitidos ao longo de uma tradição. Em segundo lugar, refere-se a 
um discurso sobre essas narrativas, isto é, a um ramo do saber 
filosófico e científico que estuda a origem, o desenvolvimento e a 
natureza dos mitos, em si mesmos e na sua relação com outros tipos de 
discurso. Seja no primeiro ou no segundo sentido, falar de mitologia 
remete necessariamente a uma posição de pesquisa histórica e 
interpretação de textos ou de fragmentos de textos que nos chegam 
através das mais diversas fontes: literárias, filosóficas, científicas, 
teológicas, jurídicas, etc. 
 Nesta exposição não me proponho tratar de um mito em 
particular, ou de um mitema, mas de uma relação, a relação entre mito 
e filosofia, e de um processo, o que leva do mito à filosofia. Na 
perspectiva que adoto, falar da relação entre mito e filosofia implica em 
falar grego, isto é, em falar do surgimento da filosofia a partir da cultura 
grega arcaica. Pois a filosofia é a marca do ocidente, cujas raízes são 
 
1
 Este texto foi originalmente publicado em ANDRADE, Mônica (Org.) Mito. Belo 
Horizonte, Núcleo de Filosofia Sonia Viegas, 1994. 
 2 
gregas; e a questão de sua relação com o mito só se coloca para uma 
cultura que tem a pretensão, desde os seus primórdios, de dar conta do 
real através do discurso conceitual. Esta questão só tem sentido para 
uma civilização que, ao transpor para o registro literário todo um corpo 
de narrativas até então orais - narrativas que tratam da origem do 
mundo, dos deuses e do homem - acaba por gerar um tipo de discurso, 
que voltando-se sobre suas próprias origens circunscreve seu âmbito de 
validade dentro de limites restritos, seja considerando-as como inócuos 
contos para crianças, seja repelindo-as sumariamente como loucura, 
imoralidade ou selvageria. 
 O problema da relação entre mito e filosofia é colocado desde a 
Antigüidade, quando os primeiros filósofos se voltavam criticamente 
contra a tradição mítica da cultura grega arcaica. Entre Xenófanes, que 
faz a primeira crítica do mito a partir da filosofia (DK 21 B11-16), e 
Aristóteles, que reconhece o mito como precursor da atitude filosófica 
(Metafísica A2, 982, 17-19), mas que acaba por exclui-lo de seu 
discurso filosófico, estabelecendo uma separação metodológica, temos, 
em Platão, uma relação mais sutil e complexa. Ele admite o mito no 
campo da filosofia, pois a componente mítica é constitutiva de sua 
linguagem filosófica. O mito platônico tem função heurística e 
pedagógica, desperta a inteligência para determinados problemas. E 
ainda, no que concerne certas questões, Platão reconhece a 
impossibilidade de se falar discursiva e demonstrativamente. Ele cria 
seus próprios mitos, assim como utiliza e renova os mitos da tradição. 
Há um imbricamento profundo entre o discurso apodítico e o discurso 
mítico platônico. (Brisson, 1982). 
 Contemporaneamente, duas perspectivas básicas são postas. 
Uma perspectiva é marcada pela mentalidade positivista do início do 
século XIX, afirmando que haveria uma descontinuidade radical entre 
mito e filosofia (Burnet, 1919:16-17). Pensa-se efetivamente numa do 
mito ao lógos, no sentido de o primeiro ser negado e suprimido, o mito 
aparecendo como um tipo de linguagem inferior e incapaz de veicular 
conteúdos racionais ou mais elevados (Burnet, 1919:2). O lógos libera-
se do mito através de um verdadeiro milagre do espírito. Não se fala em 
mudança de mentalidade ou de atitude, mas de uma revelação decisiva 
e definitiva. O pensamento racional tem origem em si mesmo, é 
exterior à história. A filosofia jônica representaria um começo absoluto, 
uma descontinuidade radical. É como se o povo grego estivesse 
predestinado a encarnar a Razão atemporal, numa visão francamente 
acrítica e etnocêntrica. 
 A segunda posição vê um processo de continuidade entre mito e 
filosofia. Não haveria propriamente uma passagem ou um abandono, 
mas uma transposição gradual dos temas e esquemas míticos ao plano 
do pensamento discursivo. Esta visão implica que há um lógos do mito, 
assim como há sobrevivência do mito no lógos; há uma lógica no mito, 
uma sintaxe, uma semântica próprias, a serem desvendadas. Essa 
tendência de interpretação tem suas origens em Schelling (1775-1854), 
através da noção de tautegoria, por exemplo, e Nietzsche (1844-1900), 
com sua filosofia da cultura grega. Cornford (1912-1952) constitui um 
marco importante, sendo o primeiro a lançar mão dos resultados da 
religião comparada e da antropologia cultural para iluminar a leitura dos 
mitos antigos. 
 No século XX, o problema é colocado em novos termos, 
principalmente a partir das contribuições da psicanálise, da linguística 
estrutural, da história comparada das religiões e da etnologia. Com os 
funcionalistas (Malinowski), os simbolistas (Cassirer, Freud, Mircea 
Eliade), e os estruturalistas (Dumézil, Gernet, Levy-Strauss), para citar 
apenas algumas das diferentes tendências de interpretação, a mitologia 
propõe-se como uma nova ciência. Reconhece-se a autonomia da esfera 
do pensamento mítico, buscando-se a formulação de uma teoria que 
defina seu objeto e proponha estratégias epistemológicas que 
considerem o mito na sua especificidade. (Detienne, 1981a). Tarefa essa 
que implica na convergência de várias ciências, pois, por natureza, o 
mito é um discurso que adota a perspectiva da totalidade e que é 
solidário das estruturas profundas, inconscientes do psiquismo humano. 
Definir o mito, sem reduzí-lo, é um desafio permanente para a 
investigação teórica. Por sua vez, o discurso filosófico encontra no mito 
uma região fronteiriça que suscita, talvez mais que qualquer outra, a 
 3 
questão fundamental de sua própria especificidade. Perante o mito é a 
própria concepção de racionalidade que se encontra em questão. 
 Partimos da hipótese de que há uma homologia estrutural, 
profunda, entre as formas do pensamento mítico e a consciência 
filosófica. O mito é a terra natal da filosofia. Mas há também rupturas e 
descontinuidades. Ao ser resgatado do fundo cultural em que vigora, 
enquanto práxis viva, e ao ser incorporado pelo pensamento filosófico, 
o mito sofre apropriações, transmutações que o modificam 
profundamente. 
 O discurso filosófico é gerado a partir de uma situação de 
progressivo distanciamento entre a ordem das coisas e a ordem da 
linguagem. Na mesma medida em que a palavra perde em eficácia 
realizadora (registro mágico da consciência mítica) ela ganha em 
negatividade, portanto em distanciamento, perseguindo o real através da 
discursividade e da argumentação. Ao inventar o conceito, a filosofia 
projeta sua lógica sobre todas as regiões da experiência humana, e 
acredita que cabe a ela julgar da verdade ou validade do mito, a partir 
de seus próprios parâmetros lógicos. 
 
 
2. A práxis mítica 
 
 Focalizemos incialmente o mito numplano mais geral, partindo 
do que chamamos práxis mítica. Na práxis mítica, o mito é uma coisa 
viva, faz parte do que os gregos chamavam phýsis, realidade, emergente 
e viva. É uma narrativa preservada pela tradição oral que é revivida 
através de rituais e em situações sociais específicas. Os relatos míticos 
ordenam o mundo natural e o mundo social presente, ao se referirem 
aos tempos primordiais onde tudo-o-que-é teve sua origem. O modelo 
básico para a compreensão do mundo, no pensamento mítico, são as 
relações de parentesco, isto é, conhecer, explicar significa encontrar a 
origem, dizer quem é o pai. O todo do kósmos, as práticas e instituições 
sociais, os fenômenos psíquicos adquirem sentido ao serem inseridos 
em genealogias que remontam às origens últimas de todas as coisas. 
 Há personagens sociais específicos encarregados da 
preservação, transmissão e re-efetuação do sentido mítico do mundo. O 
pai, na religião familiar, o rei cósmico, nas realezas arcaicas, os 
videntes e profetas, assim como os poetas: são indivíduos que têm um 
acesso exclusivo aos tempos primordiais; mestres de sabedoria cujo 
privilégio é adquirido tanto por herança ou inspiração divina como por 
longo treinamento, em técnicas de rememoração e de versificação. 
(Detienne, 1981b). Esses personagens são mediadores entre a esfera do 
sagrado - deuses e heróis que habitam o tempo forte das origens - e a 
esfera profana, humana, da coletividade. Os homens recebem esses 
relatos e re-efetuam a ordenação do kósmos e de suas vidas, assim como 
aprendem o que fazer e como fazer as coisas na vida social. 
 Cornford faz um amplo levantamento das várias manifestações 
da inspiração divina nas diversas civilizações antigas. Na sua relação de 
figuras míticas ou semi-míticas, ele destaca a recorrência de um tipo 
que exerce funções múltiplas (religiosas, poéticas e de sabedoria) e que 
pode ser generalizado para além dos limites da civilização grega. Tal 
tipo pode ser encontrado em períodos diferentes da história da 
humanidade, em regiões diferentes do planeta - culturas céltica, 
teutônica, nórdica, siberiana, islâmica e outras. Ele trata do assunto sob 
o termo geral de xamanismo ou sistemas mânticos: pessoas inspiradas 
que estão em contato com o mundo dos deuses e dos espíritos e que 
voltam-se para suas comunidades como fonte de sabedoria prática e 
espiritual. Os testemunhos que evoca levam-no a concluir pela 
universalidade da função do vidente em toda a Europa primitiva; 
mostra sua estreita relação com o dom da poesia, ambas constituindo 
tipos de conhecimento, e tendo ainda em comum a comunicação através 
da música e o estado de delírio, no momento em que as profecias são 
proferidas. (Cornford, 1981:99-140) 
 A análise linguística contemporânea descreve o processo de 
preservação e transmissão da tradição, efetuado pelos videntes e poetas, 
entre outros, como uma pragmática do saber narrativo (Lyotard, 
1986:35-43). Esse tipo de saber se distingue do conhecimento, em 
sentido estrito. O conhecimento corresponderia à produção de um 
 4 
conjunto de enunciados suscetíveis de serem declarados verdadeiros ou 
falsos. Já o saber narrativo implica numa afinidade com os costumes de 
um grupo social e aparece como resultado de uma formação complexa 
de competências convergentes. Ele implica não apenas num conjunto de 
enunciados, num saber-dizer, mas principalmente num saber-fazer, num 
saber-viver, num saber-escutar. O registro do mito, ou saber narrativo, 
situa-se paralelamente à esfera do que é verdadeiro ou falso. É uma 
competência que se estende às determinações e aplicações de critérios 
de eficicácia, de capacidade técnica, de sabedoria ética, de justiça, etc. 
O saber narrativo é, portanto, mais que competência intelectual, ele é 
formação e cultura, num sentido antropológico. A competência de quem 
profere a narrativa pode ser medida em três planos: pragmático (eficácia 
prática da enunciação enquanto evento); ético (valorativo, no sentido de 
ser sábio, justo, ou não) e poético (plano do saber fazer coisas com 
palavras, saber enunciar, saber ouvir, etc). 
 O mito tem uma função religiosa e ao mesmo tempo poética. As 
duas combinam-se para permitir o acesso do homem ao divino e, ao 
mesmo tempo, do homem a si próprio, isto é, para refletir-se e 
contemplar-se. A forma poética não é alheia à carga ética que veicula. 
O mito atua eticamente sobre a existência humana pela sua força 
poética. O mito torna possível o humano, e o faz poeticamente. 
Contemplar formas belas é belo e bom para a vida. O humano alimenta-
se de aparências e extrai delas um sentido ético. A existência 
paradoxalmente torna-se mais real ao ser representada como forma 
poética, forma criada, imaginada, irreal. (Nietzsche, 1953:47) 
 O mito, tal como é vivido pelas sociedades arcaicas, significa 
então: um corpo de narrativas que contam o que se passou nos tempos 
primordiais, sendo portanto, sagradas e verdadeiras; referem-se sempre 
a uma criação, isto é, à origem de algo (um fenômeno da natureza, uma 
instituição, um modo de fazer algo, etc.); é um tipo de saber 
vivenciado, isto é, efetuado ritualmente e que tem um efeito prático, 
operatório, tem uma eficácia social. (Eliade, 1972:7-23). 
 A experiência arcaica do mundo, e portanto da linguagem, é 
uma experiência compacta (Voegelin, 1980-83, vol.II:Introdução). A 
palavra faz parte da phýsis. A significação está como que colada ao real. 
A palavra é revelação divina, presença mesma do ser, poder de 
presentificação que torna presente aquilo que nomeia. Não há distinção 
entre a ordem da palavra e a ordem da realidade. Há, sim, um 
remetimento interno entre os planos, que só podem ser vistos como tais 
retrospectiva e criticamente. É uma experiência de totalidade, cuja 
articulação íntima foge ao alcance descritivo de nossa linguagem 
conceitual e discursiva. A realidade miticamente estruturada é um 
mundo vivo de potências divinas que só pode ser experimentado dentro 
de um sistema mágico de nomeação presentificante. Um registro 
mágico em que a coisa dita-mostrada tem efeito de realidade. Não há 
ruptura entre palavra e coisa. A re-efetuação ritual das narrativas torna 
presentes os deuses, torna real o mundo, dá sentido ao vivido: o canto 
inspirado flui diretamente da divindade pela boca do mestre de 
sabedoria para os homens receptores e usuários do saber mítico. É um 
sistema em que vigora uma fé mítica no mundo, tal como ele é 
apresentado pelas palavras e gestos ritualizados. O significado é dado 
imediatamente, diretamente, operatoriamente; ser e dizer são uma e a 
mesma coisa. 
 
 
3. A transposição do mito pela poesia 
 
A poesia é o grande meio de comunicação da época arcaica. É a 
poesia que veicula as regras de convivência básica, os valores 
norteadores da cultura, os relatos que ordenam tanto a totalidade do 
kósmos, como a sociedade. É o poeta que resgata o kosmos do chaos 
primordial, ele é instrumento da verdade - alétheia, pois é através dele 
que aquilo-que-é se mostra. Através da poesia o homem elabora seus 
impulsos, seus desejos, contradições e aspirações, para além dos 
parâmetros fixados pela celebração ritual do sentido do mundo. 
Ao ser transposta para a escrita, como literatura, a experiência da 
linguagem mítica é encaminhada da boca do poeta para o texto poético. 
Os poetas incorporam o mito vivo da tradição oral na sua palavra 
 5 
escrita, mas nessa transposição ele já é alterado. A narrativa torna-se 
ambígua: ela vale como coisa real e palavra proferida, agora escrita. 
Começa a haver alguma distinção entre a ordem da palavra e a ordem 
do real.. A transcrição poética é marcada por duascaracterísticas 
básicas: a ambigüidade e a polissemia. Ela situa-se ambiguamente entre 
a coisa e a imagem da coisa, valendo ora como uma, ora como outra. 
Ela torna-se metafórica, no sentido em que inaugura a transitividade 
entre uma imagem e outras imagens, ou vivências, abrindo a 
possibilidade da emergência de diferentes sentidos, para além do nível 
estritamente referencial. É um processo de progressiva 
despotencialização e desmistificação dos signos, constituindo relações 
sintáticas e semânticas inéditas, cada vez mais sutis e elaboradas. 
(Ramnoux, 1968). 
 Na medida em que ele é fixado na escrita, o texto torna-se 
passível de múltiplas interpretações. A práxis comunicativa em torno 
do texto, na medida em que não está mais circunscrita ritualmente, dá-
se segundo circunstâncias mais livres, podendo gerar significações não 
previstas, que escapam às restrições sociais, antes fixas e pré-
determinadas. A utilização da escrita não significa apenas um novo 
meio de se expressar, mas uma nova maneira de pensar. A tradição oral 
compunha através de fórmulas recitativas que facilitavam a 
memorização e que eram preservadas à medida em que eram 
transmitidas de geração em geração. Mesmo havendo alguma recriação 
por parte do aedo que recitava uma narrativa, seu trabalho se dava 
dentro de regras precisas de composição, convenções arraigadas, 
enraizadas na economia ritual religiosa. 
 A expressão escrita permite uma demora maior sobre o que é 
dito, e um poder voltar ao texto que conferem ao pensamento a 
possibilidade de uma maior elaboração, maior sofisticação no trabalho 
com as palavras. No fazer poético, o mito é recriado e adquire 
características propriamente literárias. A poesia diversifica-se tendo em 
vista novas regras formais, intenções distintas e públicos específicos. 
No meio literário, os temas míticos serão assimilados e enfocados de 
acordo com critérios e necessidades próprios a cada forma particular. 
Aspectos diferentes serão privilegiados, em momentos diferentes, novos 
desdobramentos serão vislumbrados; diferentes enfoques iluminam 
aspectos até então obscuros e inexplorados do vasto e profundo material 
mítico da tradição oral. 
 Quanto à produção da poesia épica, por exemplo, o que temos 
são camadas de composição que se entrelaçaram ao longo das 
sucessivas transmissões acabando por cristalizar-se num texto escrito. 
No período arcaico, há uma correspondência entre o mundo dos relatos 
e o mundo dos ouvintes: ambos se inserem numa mesma continuidade, 
numa mesma ordem. Os relatos são dirigidos a famílias nobres que 
reconhecem-se nos feitos heróicos, renovando suas crenças e tendo seu 
poder e posição social justificados. (Fränkel, 1975). 
 A poesia de Hesíodo apresenta um caráter excepcional, pois 
constitui-se num conjunto unificado de narrativas que, pela sua 
extensão e coerência interna, representa um verdadeiro sistema original 
de pensamento, complexo e estruturado. É também a criação de uma 
personalidade singular, de um poeta que se anuncia como proclamador 
da verdade, mediador privilegiado entre os homens e deuses. O texto de 
Hesíodo é inicialmente dirigido a camponeses como ele, mas acaba por 
atingir uma grande amplitude, indo muito além do seu grupo social 
particular. Ele será um dos pilares da constituição de uma cultura 
helênica unificada. 
 Na poesia lírica, o mito passa a ser utilizado como modelo de 
comportamento, seu valor sendo dado por referência a algo exterior a 
ele próprio. O poeta atribui ao mito uma função paradigmática, 
submentendo-o aos interesses humanos que conferem valor a certos 
comportamentos e não a outros. 
 A poesia trágica refaz a relação entre o poeta e seus ouvintes. 
Por um lado, o mundo do herói trágico é totalmente passado, mas por 
outro lado, os conflitos que dilaceram as linhagens nobres, sua 
desmedida e seu infortúnio são perfeitamente contemporâneos aos 
conflitos dos espectadores. O herói não é mais simples modelo, mas 
questão formulada: a tensão entre o passado mítico e o presente da 
cidade é o campo por excelência do conflito trágico. 
 6 
 O trabalho dos poetas forja rupturas no corpo dos relatos 
míticos, constituindo-se numa experiência integrada de conteúdo e 
forma, na qual o homem aparece como problema, ser de falta e de 
desmedida, cuja palavra não alcança exatamente o brilho da palavra 
divina. Assim, o homem e sua palavra vão se deslocando da experiência 
original compacta da práxis mítica. Os relatos míticos antropogônicos 
remetem a um núcleo de vivências em que o lugar do homem no 
kósmos é problematizado. As questões humanas, mitica e poeticamente 
postas, são como que um campo de forças que levam a reflexões 
inéditas. Na tradição dos relatos orais, o poeta encontra um vasto 
material a partir do qual pode traçar percursos interrogativos, exercer 
sua inquietação, desdobrar seus questionamentos. Se na práxis mítica o 
sentido é, de alguma forma, já dado, agora, na poesia, ele aparece como 
questão, revelando a profunda reflexividade própria da palavra poética. 
 Na medida em que o poeta enfoca o mundo humano 
miticamente, ele prepara a própria superação do mito, enquanto palavra 
estruturadora do kósmos. Ao identificar-se e refletir-se nesses relatos, o 
homem descobre-se um ser presente e ambíguo, dividido entre díke 
(justiça) e hýbris (desmedida), desterrado da experiência mítica 
originária. Seu presente torna-se um signo opaco, que apresenta-se 
como enigma e interrogação. O sentido desloca-se linearmente rumo ao 
passado e projeta-se como possibilidade para o futuro; será, então, não 
significado dado, mas busca de um sentido que não se oferece mais na 
imediaticidade do vivido. O homem é um ser de desmedida que pode, 
no máximo, aspirar à sabedoria e à justiça. O relato mítico refletido 
poeticamente gera a investigação histórica, as primeiras teologias, o 
discurso jurídico, assim como o questionamento filosófico. O mito nos 
aparece, portanto, como um proto-discurso que, sob a incidência do 
fazer poético refrata-se em diversas direções possibilitando diferentes 
démarches discursivas, a literatura é uma delas e a filosofia uma entre 
outras. O sentido adquire fluidez e torna-se plenamente ambíguo. Não 
há uma cristalização do sentido em rituais, objetos sagrados ou tabus. 
Ele encontra, agora, o corpo flexível e volátil da lingua escrita, descobre 
sua autonomia no próprio exercício de recriação poética. 
 
 
 
 
4. A invenção do conceito 
 
 O contexto cultural que os primeiros filósofos respiram é 
essencialmente marcado pela elaboração da tradição mítica feita pelos 
poetas. A atitude poética, separando-se da práxis mítica, busca a 
permanência do sentido no âmbito da linguagem, que torna-se assim 
exigência conceitual. 
 No momento em que começam a aparecer as primeiras leituras 
das obras poéticas de Homero e Hesíodo, coloca-se um jogo o destino 
do mito no contexto maior do saber ocidental. As leituras filosóficas da 
representação poética dos mitos vão ser diversas, mas o que deve ser 
ressaltado é a dimensão profunda da relação entre linguagem e 
realidade: tanto a nível operatório (práxis mítica) como a nível do 
conhecimento do mundo enquanto tal (questão do discurso verdadeiro). 
Esta relação está sendo problematizada no centro das transformações 
culturais e sociais que culminam com a formação da pólis clássica: a 
introdução da moeda, as relações contratuais, a reforma do exército, a 
adoção de leis escritas, a crise da soberania arcaica, as assembléias de 
cidadãos, etc. 
 Transformações essas que contribuem para o surgimento de um 
novo tipo de discurso, o discurso conceitual, num contexto em queas 
relações sociais tornam-se cada vez mais abstratas e homogêneas. A 
emergência da linguagem conceitual é solidária de transformações 
profundas na estrutura social e mental dos cidadãos: a experiência da 
redução das diferenças qualitativas à equivalência do valor quantitativo; 
a busca de normas éticas e de valor que sejam conhecidas e aplicáveis a 
todos; a reversibilidade das relações contratuais; a aspiração por uma 
medida comum para todos; a racionalização e a universalização do que 
antes era particular, heterogêneo e múltiplo; a progressiva 
homogeneização que torna iguais ou equivalentes os elementos 
 7 
envolvidos, isto é, os termos ou unidades de valor e significação 
perdem a sua singularidade e passam a se equivaler perante uma medida 
universal; a busca e construção de uma unidade de direito e uma 
medida humana que ultrapasse as divergências particulares; enfim, a 
construção argumentativa, progressiva do sentido no espaço comum e 
público da cidade. 
 São transformações que convergem para uma nova experiência 
da produção do sentido. A linguagem é relativizada na medida que 
avança na sua autonomia em relação ao real. A palavra não é mais 
plenamente presença absoluta, realidade que flui da boca da divindade 
ou do poeta inspirado. Enquanto palavra humana, que pertence a todos 
e a cada um, ela torna-se cada vez mais circunscrita ao momento da 
enunciação. Não mais revelação exclusiva - alétheia, mas confrontação 
pública - diálogos. Ela depende de vários fatores circunstanciais para se 
fazer valer como coisa real; isto é, sua eficácia, seu poder de realização 
tende a esvanecer-se na multiplicidade de variáveis que determinam o 
evento do discurso público. A linguagem descobre-se instrumental, 
veículo de significações dissociadas da carga de realidade à qual 
estavam originalmente aderida. Sendo determinada do exterior ela 
torna-se indiferente ao conteúdo que carrega, palavra-moeda que circula 
entre os homens, portadora de valores relativos, expressão de um ser 
essencialmente relativo, finito, limitado e que descobre-se como tal. 
 Ao falar o homem expressa sua condição de um ser que é 
mescla de finito e infinito, possibilidade ideal e realização precária. O 
saber, enquanto prática discursiva, tem pretensão à superação da 
finitude e da precariedade, isto é, torna-se busca da verdade sobre o 
mundo, verdade que carrega junto consigo uma potência de persuasão e 
dominação de outros homens. O saber filosófico não parte de uma 
certeza, ele busca credibilidade. A palavra que era o elemento 
unificador da sociedade arcaica é agora o elemento crucial de um jogo 
de separação-união, marcado pelo conflito, pela luta de interesses 
sociais, pela dominação e, mais importante, dominação através da 
pretensão à verdade. 
 Ao passarmos do registro próprio do mito vivo, eficaz, para o 
registro filosófico, estamos acompanhando a invenção da função do 
conhecimento propriamente dito, a dimensão conceitual do saber 
ocidental. Na sua diferença específica, portanto, o mito é um tipo de 
saber que, antes de tudo, serve à vida. Mas ele é, também, habitado por 
uma necessidade de falar, por um desejo de saber, de buscar o sentido, a 
razão do discurso sustentado por ele mesmo. É a partir dessa dimensão, 
dessa tendência cognitiva presente no mito que vai desencardear-se a 
filosofia. 
 A busca da arché, princípio que unifica e ordena a natureza - 
phýsis, implica em três níveis: o que a coisa é - on, aquilo pelo que ela 
vem-a-ser - génesis, e pelo que pode ser conhecida - epistéme. A 
filosofia prioriza, nas representações simbólicas, a função do 
conhecimento, de apreensão da idéia, do conceito. A filosofia busca um 
discurso que reencontre a unidade e a permanência de sentido 
anteriormente garantidas miticamente. 
 O fazer poético objetiva a relação afetiva, antes aderida à 
imediaticidade da práxis mítica/ritual, a nível da linguagem, criando a 
linguagem poética. A práxis, assim, objetivada subordina-se ao 
imaginário do poietés/fabricador, perde relativamente seu caráter 
funcional (religioso, social) e adquire significação estética, ainda 
relativa, mas já inicialmente diferenciada. O fazer poético dá forma 
(estética) à afetividade. 
 Se a práxis organiza a experiência do mundo numa perspectiva 
totalizante, a poíesis organiza-a a nivel da elaboração simbólica da 
linguagem (polissemia, metaforização). A metáfora, enquanto 
transitividade entre palavras, imagens e coisas, instaura-se no âmbito da 
linguagem e sua ambigüidade impede a cristalização conceitual das 
significações. O conceito surge a partir de uma necessidade de transpor 
os limites da linguagem, na direção do pensamento, ou da determinação 
do sentido. 
 Se na práxis mítica a significação é coisa, phýsis, exteriorização 
objetivada, no fazer poético ela é fluida, passível de recriação. A 
atividade reflexiva busca recuperar a permanência do objeto que 
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permanece, mas não o encontra no âmbito da linguagem. Pergunta 
então por aquilo que subsiste, pelo substrato, pelos ser da coisa. A 
atitude poética, separada da práxis mítica, torna-se exigência 
conceitual: pergunta pela permanência do sentido, pelo lógos, por um 
sentido transcendente à linguagem. Princípio, arché, permanência que 
esconde-se nas coisas mesmas, mas que se oferece na linguagem que 
visa dizê-las, garantindo nelas um substrato passível de ser 
(re)conhecido. 
 Mas ao perder a inocência mítica, o homem, misto de poeta e 
pesquisador, perde também a imediaticidade do sentido do mundo. O 
mundo revela-se como ausência; está referido na linguagem, mas não 
está presente nela. Na concretude do imediato, o mundo mostra-se 
transitório, puro vir-a-ser. O discurso conceitual, tradutor do lógos, para 
escapar ao devir fenomênico, torna-se invisível, sentido permanente, 
mas transcendente. O conceito busca/visa nas coisas algo que só se 
evidencia nele próprio, como exigência lógica. 
 Vemos, então, configurar-se uma dialética que será a arché de 
toda filosofia: será sua origem e imperará no seu desenvolvimento. A 
dialética entre os níveis mítico, poético e lógico. Entre a perspectiva 
totalizante e a visão parcial; entre o organicamente centrado e o des-
centrado; entre o que é marcado vigorosamente pelos afetos e a isenção 
distante da abstração; entre o nomear dos mortais, com sua 
ambigüidade e inconstância e a necessidade da evidência, que busca o 
permanente e o mesmo. As tensões latentes no mito e emergentes na 
reflexão poética são encaminhadas para a linguagem discursiva da 
filosofia que as transforma em questionamentos, genetica ou 
logicamente articulados. 
 
 
5. A filosofia: um ser entre 
 
 A história do homem ocidental, fabricador de discursos, pode 
ser lida a partir desta chave: um homen perpassado pela dialética tecida 
entre os planos mítico-poético e conceitual. 
 Por um lado, o mito sempre resiste às investidas do pensamento 
conceitual, permanecendo essencialmente opaco e enigmático. Por 
outro lado, o pensamento sempre avança sobre a imagem obscura e 
fugidia da representação mítica, tentando iluminá-la, esclarecê-la, 
reduzí-la ao que lhe é familiar (esquemas lógicos, significações 
explícitas, etc), domesticá-la através de sua vontade insaciável de 
dominar pelo saber. 
 O mito opera através de representações cuja apreensão se dá 
pela vivência. Ele é vivo enquanto é vivenciado. E na excessiva 
proximidade da vivência, na confusão e indistinção do vivido, ele se 
esconde, se furta ao esclarecimento. Por isso, nós, ocidentais, 
entoxicados de racionalismos, somos capazes de perguntar: mito, o que 
é mito? Ainda existem mitos? Como o peixe dentrod'água 
perguntando: água, o que é água? Existe água? 
 A filosofia, na sua diferença específica, opera através da 
manipulação de conceitos, e, no seu desdobramento científico, de 
fórmulas. Seu modo de apreensão é o do esforço, o da construção do 
discurso, progressivo, argumentativo, demonstrativo: satisfazendo seu 
desejo irresistível de clareza, de antevisão, de atenção permanente; de 
desencarnar, abstrair e diluir a experiência em termos de duração 
cerebral, isto é, de linguagem conceitual. 
 Mas, como vimos, essa oposição não pode nos levar a uma 
dualidade na qual a filosofia encontra-se reduzida ao polo oposto do 
mito. A verdade que a filosofia busca, à qual pretende e aspira, não é a 
verdade estritamente conceitualizável, a autosuficiência do conceito 
puro e simples. A filosofia enraiza-se nessa dialética entre os diferentes 
modos de discursos: o mítico, o metafórico e o conceitual. Há um vai e 
vem necessário, permanente entre mito e conceito passando pela 
metáfora: devemos reconhecer e preservar o fato de que há sempre uma 
certa mediação narrativa dentro do próprio discurso racional. São vários 
os autores contemporâneos que falam de uma concepção tensional da 
verdade, que nos levam a aproximar mito e conceito pela mediação da 
poesia. (Maesschalck, 1989). 
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 Desde Parmênides, a filosofia vive o desafio de acolher as 
tensões implicadas na tarefa de dizer o ser, a verdade, sem perder, sem 
trair o excesso que implica dizê-lo. Entre a adesão mítica ao real e a 
krísis que a linguagem humana instaura no mundo, a filosofia aparece 
como aspiração, como caminho para, muito mais do que conquista 
plena e domínio do ser. 
 A filosofia é uma tentativa, talvez votada à falência mas sempre 
refeita, sempre retomada, de estabelecer uma ponte entre a união do 
mito e a perda implícita no conceito puro. Experiência que, pela sua 
própria negatividade, propulsiona a oscilação permanente entre a 
adesão/união e a perda/separação. (Ramnoux, 1950) 
 A filosofia seria então um ser entre. Um ser entre a imagem 
terrível e fascinante, confusa e obscura do mito e o conceito, a idéia, 
inequívoca, bem delimitada, cheia de luz. Ela oscila entre a 
potencialidade e a eficácia prática da imagem mítica e a luminosidade 
do pensamento conceitual que separa e delimita, para conhecer. Entre a 
imagem aderida ao imediato da natureza e a idéia abstrata. 
 Termino com Clémence Ramnoux, que reflete a partir de 
Spinoza: a filosofia constitui-se nessa tensão, numa dialética da dupla 
recusa. Recusa da imagem mítica, depois de ter passado por ela, depois 
de tê-la sofrido, cavando sob ela um fundo que a torna mais 
transparente. Recusa do conceito, da fórmula, depois de ter aceito seu 
rigor, fazendo aparecer o relevo de outras possibilidades de sentido. 
Recusa dupla que não implica na aceitação parcial de ambos, mas na 
convivência com o contraste entre os dois, constatando a insuficiência 
tanto de um quanto do outro. "Um equilíbrio na recusa, uma dialética da 
dupla negação, sem fusão dos opostos". Movimento rumo ao ser pela 
via da diferença. (Ramnoux, 1950:427-429). 
 
6. Reflexões sobre a sobrevivência do mito 
 
 A partir da visão do mito como uma pragmática (Lyotard, 1986) 
e da dialética da dupla recusa (Ramnoux, 1950), podemos sugerir 
algumas tendências contemporâneas do tratamento filosófico-científico 
de que são suscetíveis os mitos. 
 Socialmente, a pragmática narrativa é uma instância de 
produção de saberes, isto é, de formação de competências: enunciados e 
narrativas que, antes de terem uma função de conhecimento (verdadeiro 
ou falso), têm um papel de viabilização da vida social. As narrativas 
possibilitam a coesão do grupo dentro de um sistema de regras, medidas 
pela sua eficácia social; elas são preservadas e re-efetuadas para manter 
vivas e operantes práticas sociais diversas. Nesse sentido, a narrativa 
mítica não é nem verdadeira nem falsa, ela é eficaz ou não. Toda a 
questão da dóxa, ou, se quisermos, das ideologias, ou ainda, das 
competências comunicativas, no campo da vida social - da ação ética e 
política, pode ser reformulada a partir de um enfoque desse tipo. 
 Numa outra perspectiva, podemos reconhecer, no 
desenvolvimento da personalidade individual, o caráter operatório das 
imagens míticas e oníricas; se admitirmos que o mito e o sonho têm 
suas origens no inconsciente (individual ou coletivo), poderemos 
propor que ambos traduzem configurações psíquicas dos seres humanos 
individuais. Nesse nível, a imagem mítica age, opera, muito mais do 
que expressa um significado passível de ser verdadeiro ou falso. Ela age 
dentro de um sistema e tem funções ligadas à sua viabilização antes de 
ser meio de conhecimento propriamente dito. A imagem mítica atua em 
diferentes níveis (Ramnoux, 1950:412-415): ela pode ter um papel 
diagnóstico, por exemplo, de reconhecimento de mensagens internas ao 
psiquismo, o próprio sistema produzindo tratamentos para 
determinadas situações reconhecidas como conflitantes. A imagem 
poderia ter ainda uma função catártica, canalizadora de tensões, através 
do próprio processo de representação, atuando no sentido de manter 
uma economia psíquica em funcionamento. E, em terceiro lugar, a 
imagem mítica teria uma eficácia compensatória, agindo no sentido de 
manter um certo equilíbrio no sistema. Nesses níveis, o que importa é 
que as imagens míticas sejam vividas e não necessariamente 
compreendidas ou interpretadas. 
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 Com essas indicações, pretendo apenas sugerir que o mito vivo 
não é exclusivo das sociedades arcaicas, mas estrutura presente na vida 
humana, tanto social como individual-psíquica. O que aparece como 
específico do mito, tomado nesse sentido mais abrangente, é seu caráter 
prático, vivencial, de estrutura que torna possível a vida. Seja a nível do 
saber narrativo consciente - costumes e competências sociais, seja a 
nível do psiquismo - estruturação da personalidade e dos 
comportamentos, podemos reconhecer que a função mitopoiética, isto é, 
fabricadora de mitos, é anterior à função de inteligência do real, ou de 
conhecimento propriamente dito. 
 Por um lado, a sociedade produz jogos de linguagem que 
estruturam e regulam a vida comum. Por outro lado, o psiquismo 
produz, através de imagens, representações e comportamentos, jogos 
catárticos que determinam e estruturam a vida individual. Nesse sentido 
é enganoso opormos mito e ciência, no mesmo plano. O mito não é 
contrário à representação verdadeira, nem enquanto conjunto de 
enunciados falsos, nem enquanto mentira que leva a um certo tipo de 
ação. Como jogo, o mito não mente, nem diz a verdade, ele faz o que 
tem que fazer. O que não quer dizer que o que ele faz é sempre 
benéfico, restaurador ou integrador. O mito pode ser também 
desestruturador, reforçando tendências contrárias ao que chamaríamos 
de realização plena do sistema social ou psíquico. Sua eficácia se dá 
dentro do contexto das forças socias ou das pulsões em jogo, sendo 
produzido tanto na dinâmica das relações de dominação / cooperação 
entre diferentes grupos sociais, quanto nos processos patológicos / 
terapêuticos do indivíduo 
 
 
 
 
 
 
 
 
Referências Bibliográficas: 
 
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