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Disciplina: Cultura Brasileira 2 Docente: Mainara Livro Hermeneuta do Brasil Autor - Sílvio Romero Capítulo 1 Título - O PROJETO INTELECTUAL Página 21 Tópico - Silvio Romero: Sociólogo da cultura brasileira No Brasil de fins do século 19, sob o vigor da cultura beletrista e bacharelesca da República das Letras, a crítica literária gozava de um prestígio jamais alcançado em qualquer outro momento da vida intelectual brasileira. Talvez a proeminência do universo literário, frente a qualquer outro campo da vida intelectual, tenha inclinado Sílvio Romero a empreender uma obra de fôlego como a História da literatura brasileira, ainda o autor jamais se restringisse aos temas eminentemente literários. Naqueles anos, a crítica literária serviu, freqüentemente, como um espaço para a polêmica, o debate de idéias e a discussão sobre temas nacionais, exercendo sobre os intelectuais um enorme fascínio. Em nome da crítica, debateram-se idéias políticas, temas sociais e, claro, literatura. A Sílvio Romero jamais faltaram inimigos, e José Veríssimo encabeçava a extensa lista de desafetos. Ambos mantiveram uma longa e deselegante polêmica, com mútuas provocações, mas ninguém foi mais belicoso que Sílvio Romero. Possivelmente, a disputa por leitores num clima de rarefação cultural tenha potencializado o acirramento dos ânimos entre os intelectuais e ampliado a tendência à formação das cotteries literárias. Porém, seria um exagero reduzir as desavenças de toda ordem às disputas por prestígio, oportunidades e leitores, ainda que esse contexto não seja desprezível - sobretudo naquele momento, quando escrever e publicar livros possuía um valor nobilitante, mas não proporcionava vida fácil aos que se dispunham a sobreviver apenas de suas atividades intelectuais. Página 22 Como Sílvio Romero, José Veríssimo havia se embebido do cientificismo finissecular - embora em menor grau - e partilhado da preocupação com o caráter nacional da literatura, pressuposto quase inevitável naquele momento. Ambos tomaram partido na guerra movida contra o romantismo, embora, mais tarde, José Veríssimo tenha preferido uma crítica menos sociologizante e mais atenta às questões estética e psicológica da literatura, entendendo-a como arte da palavra e artifício da invenção. Mesmo admitindo-se que as afinidades entre autores de uma geração contribuem na composição do contexto histórico e cultural de um tempo, é preciso atentar para a inteira impossibilidade de uma "unidade geracional", havendo, necessariamente, especificidades nas leituras de diferentes autores, como é óbvio e desejável. Diferentemente de Veríssimo, Sílvio Romero, na História da literatura brasileira, mas também em textos posteriores, jamais abandonou uma expectativa sociológica, ajustada a uma interpretação sistêmica da literatura e da sociedade brasileiras. Os mais notáveis observadores dos textos de Sílvio Romero - destacadamente António Cândido, Sérgio Buarque de Holanda, Sylvio Rabello, José Guilherme Merquior e Roberto Ventura - coincidem na avaliação de que sua obra é, antes de qualquer outra coisa, um tratado de "sociologia da cultura brasileira". Sua grande obsessão foi explicar o país. A empatia romeriana de fato não recaía sobre a literatura e seus emaranhados sutis: era uma hermenêutica do Brasil que o mobilizava verdadeiramente, como observou José Guilherme Merquior: CITAÇÃO: Os juízos estéticos de Sílvio Romero são às vezes claudicantes, às vezes insustentáveis (por exemplo o endeusamento de Tobias - dado por superior a Castro Alves... - a subestimação parcialíssima de Machado de Assis); contudo, o estilo ágil e combativo facilita a leitura, e o patriotismo sem ufanismo faz desse colosso historiográfico, ao qual se deve a fixação definitiva (em termos globais) do nosso corpus literário, um depoimento fundamental sobre o itinerário da cultura brasileira. FINAL DE CITAÇÃO. Página 23 Se José Veríssimo legou à historiografia literária, talvez, uma percepção esteticamente mais refinada e equilibrada, ela não teve o viço sociológico de Sílvio Romero. Bem ou mal, Veríssimo foi capaz de perceber a grandeza de Machado de Assis, a quem devotou humilde e persistente admiração. Já Sílvio Romero, talvez menor como crítico de literatura, especificamente, foi um agudo observador do país e de suas coisas, historiador da cultura, ensaísta e polemista das ideias, como poucos. Convém dar voz a Sylvio Rabello, um autor que dedicou a Romero um estudo no qual percebeu as possibilidades e as limitações do autor da História da literatura brasileira: CITAÇÃO: É possível que Sílvio Romero, de todos os críticos do Brasil, tivesse sido o de mais extensa erudição - o que tivesse assimilado a mais vasta experiência de leitura. À crítica literária não repugna uma preparação como a que ele chegou a possuir - certamente maior do que a de Araripe Júnior e a de José Veríssimo. Entretanto, toda essa soma de conhecimento teria de ser mal utilizada à falta de qualidades propriamente artísticas. Sempre que se apresentava a oportunidade para discussão de doutrina, de sistemas e de escolas, ele se afirmava e quase sempre com lucidez. A estrutura do seu espírito foi coerentemente a mesma em todos os momentos - um espírito geométrico que, por ausência de imaginação, se deixou comprimir dentro do já experimentado, do já discutido - da experiência feita em idéias e soluções que não se cansava de manipular com sensual volúpia. O que dependesse, porém, de uma apreensão pela sensibilidade ou pela intuição escaparia sempre à sua capacidade crítica. Por isso, Sílvio Romero cometeu em literatura os mais graves erros de julgamento. FINAL DE CITAÇÃO. Sérgio Buarque de Holanda parece confirmar a noção de que a riqueza e a miséria do crítico residiam em sua perspectiva sociológica. Ali estariam a gula interpretativa e a entrega militante que o impulsionaram a escrever toda a sua obra, na qual desenvolveu um vasto programa interpretativo, empenhado numa leitura externa dos textos da tradição literária do país, e também das tradições populares, a fim de captar a "generalidade" do Brasil. Página 24 Inscrevendo a atitude literária e intelectual numa portentosa construção, que tinha por ápice a sociologia, ele desdenhou constantemente a atitude daqueles que, como José Veríssimo, por exemplo, se teriam preocupado em 'obedecer, no estudo dos autores, ao critério puramente estético'. Para ele, as criações da inteligência e da imaginação eram partes integrantes de um todo, e nada representavam quando destacadas dele. Por isso mesmo convinha considerar, nestas criações, e principalmente através delas, o meio, as raças, o folclore, as tradições do país. E foi esse, em suma, o programa ambicioso que ele traçou para a elaboração de sua obra mestra. Se não fosse demasiadamente especulativo, seria possível imaginar que se houvesse escrito trinta ou quarenta anos mais tarde, Sílvio Romero provavelmente não teria escolhido a crítica literária para pensar e teorizar o Brasil. E se Sérgio Buarque e Gilberto Freyre tivessem produzido suas obras trinta ou quarenta anos mais cedo, talvez tivessem sido críticos de literatura. De fato, Sérgio Buarque também o foi de certo modo, antes de entregar-se ao ofício de historiador. Tópico - A nação e o "espírito filosófico dos nossos dias" A História da literatura brasileira é, como a própria trajetória de seu autor, um livro generalizante, onde se encontram considerações sobre vários domínios do saber, no qual se percebe um esforço para encontrar explicações cientificamente respaldadas e articuladas. Não devemos nos surpreender com o fato de o autor ter escrito sobre Etnologia, Crítica Literária, História, Ciências, Filosofia, Direito, Política e ainda coligido cantos e contos populares - umséculo antes, Goethe fazia o que hoje chamamos de literatura e também praticava experimentos químicos. Em outras palavras, apenas no século 19 é que começaram a surgir as disciplinas, e sua institucionalização foi lenta. Assim, além da literatura, o interesse de Sílvio Romero voltava-se ainda mais aos assuntos relativos à sociedade e ao Estado, o que ampliou a dispersão temática de seus domínios. Página 25 O primeiro tomo da História da literatura brasileira é inteiramente dedicado aos fatores extraliterários. Em mais de trezentas páginas, o autor abordou as teorias sobre a História do Brasil, as raças que teriam constituído a população brasileira, a mestiçagem, as tradições populares, o meio físico, as alterações da língua portuguesa, as relações econômicas, as instituições políticas e sociais, além de versar sobre a pobreza educacional e as tendências à imitação estrangeira. Nos demais três tomos escreveu sobre a literatura, estabelecendo uma divisão por escolas e períodos, arrolando autores. As fontes de análise estão longe de se restringirem aos escritores ficcionais, pois abarcaram, além de poetas e romancistas, cronistas, historiadores, teólogos, moralistas, jurisconsultos. Chegou mesmo a discorrer sobre "as belas artes e as Ciências naturais". Como se vê, não lhe faltou ambição. Sílvio Romero quis escrever sobre tudo o que já havia sido escrito no Brasil desde os tempos coloniais e não apenas sobre textos especificamente literários. A própria organização do livro alude à sua concepção de literatura: já no índice do primeiro tomo, ao tratar de assuntos históricos e etnológicos, deixou transparecer que os fatores extraliterários determinariam a natureza do seu olhar. Para ele, literatura era tudo aquilo que havia sido escrito e publicado em livro. Os textos, literários ou não, eram documentos que registravam a "efusão do gênio nacional". No primeiro tomo de sua obra, Sílvio Romero desenvolveu uma autêntica teoria do Brasil: um modo de ler e compreender não apenas a literatura brasileira, mas o próprio país - perspectiva que percorre toda a História da literatura brasileira, bem como seus outros livros. O autor se deparou com uma situação tão particular quanto inevitável: de um lado estaria a adoção dos pressupostos epistemológicos em voga na Europa da segunda metade do oitocentos, erigida sob os escombros da sensibilidade romântica, de pretensões abertamente científicas e objetivistas. E de outro, o esforço para reconhecer as singularidades históricas de uma sociedade ibero-americana, de herança colonial, resultante da expansão do homem europeu pelo globo no pós- medievo. Essas duas linhas orientaram a sua construção intelectual. A moderna Ciência européia e a tradição brasileira - freqüentemente identificada como atrasada - formavam as duas partes de um problema e não se ajustavam facilmente. Página 26 Da universalidade da Ciência deveria verter a singularidade histórica e cultural brasileira. Realizar simultaneamente a nação e a modernidade, segundo os padrões civilizatórios reinantes na Europa de seu tempo, configuraram-se como os dois pilares do projeto intelectual de Sílvio Romero. A adesão dos intelectuais brasileiros aos pressupostos cientificistas que marcaram a intelectualidade européia da segunda metade do século 19 foi uma das características da geração de Sílvio Romero; a pretensão de explicar-se o Brasil a partir da Ciência não foi exclusividade dele. O panorama intelectual brasileiro vivenciou uma modificação na década de 1870, pois outras perspectivas se encadearam, outros nomes surgiram, quase todos críticos ao romantismo indianista dos próceres do Império, a quem dirigiam severas censuras. A monarquia e a escravidão foram freqüentemente lidas como instituições que simbolizavam a decadência e o atraso brasileiro. A geração pós-romântica exibiu um notável talhe universalista6, interessada em operar uma atualização histórica da sociedade brasileira, em sentido pronunciadamente ocidentalizante, o que significou uma notável adesão aos signos q aos paradigmas da modernidade identificada com a Segunda Revolução Industrial7, com destaque à Ciência, admitida como o principal nexo explicativo da realidade. A geração modernista de 1870, segundo a expressão de António Cândido8, dialogou e deixou-se impactar pela vida intelectual européia daqueles anos, marcada por um momento decididamente antiespiritualista e antimetafísico. Nesse período, as influências do positivismo de Comte (1798-1857), do evolucionismo de Spencer (1820-1903) e do monismo de Haeckel (1834-1919) acionaram um avassalador determinismo, caracterizado pela adoção dos princípios constitutivos das Ciências naturais, do saber empírico e da mentalidade experimental. O credo cientificista foi intenso no pensamento ocidental de então, embora no final do século 19 tenha sido contundente a crítica ao positivismo e ao naturalismo, como atestam o pensamento de Dilthey, Nietzsche ou Bergson. Página 27 A sedução de parte dos intelectuais brasileiros pelo universalismo cientificista, e freqüentemente racialista, levou-os a desconfiarem frente ao destino de um país tão marcado pela mescla entre as raças e pela presença dos negros, que por mais de três séculos afluíam coercitivamente ao Brasil. A herança étnica e cultural das "raças atrasadas" parecia embargar a confiança num futuro moderno e civilizado para o país. Autores como Sílvio Romero, José Veríssimo, Capistrano de Abreu, Euclides da Cunha, entre outros, deram, então, início a novas interpretações da sociedade brasileira, e o desejo por objetividade, o gosto pelo realismo e pelo naturalismo e os conseqüentes determinismos físicos e etnográficos tenderam a orientar, de um modo ou de outro, quase todos os esforços de refletir-se sobre o país. Algumas perguntas povoaram a imaginação de nossos letrados: qual o lugar dos descendentes dos escravos negros na sociedade brasileira, que tão tardiamente abolia a escravidão e instaurava a República? Como assegurar a vitória da civilização e da modernidade com a enorme população não-branca? Como garantir a unidade nacional frente à tão ampla diversidade, como as diferenças étnica e climática, às distâncias e desigualdades geográficas e regionais, ao diferente ritmo de desenvolvimento entre muitos Brasis? Enfim, como valorizar a essência nacional - essa potência romântica que sobreviveu na imaginação dos novos - e construir uma sociedade segundo os paradigmas ocidentais de socialibilidade? De alguma forma, essas perguntas remetiam à percepção de um país formado na experiência colonial ibero-lusitana na América tropical, segundo a qual o reconhecimento das três raças permeava a consciência histórica daqueles homens de letras. Em fins do século 19, além dos negros, índios e mestiços, não faltou quem contestasse a força da própria matriz ibérica, identificando-a como atrasada e decadente. Página 28 A História da literatura brasileira, inevitavelmente, portaria sinais epistemológicos e narrativos de seu tempo. Ao contemplar a História e a etnologia como perspectivas, e a literatura como "objeto" - articulando-as nos limites da percepção romântica de nação -, Sílvio Romero recorreu a um expediente freqüente na Europa do século 19, quando surgiram, por toda parte, Histórias literárias empenhadas em fixar cânones nacionais. Em cada um dos mais importantes países europeus foram publicadas uma ou várias Histórias literárias, deliberadamente marcadas, em sua maioria, pelo desejo de fixar uma tradição literária que justificasse as nacionalidades que nasciam ou se consolidavam. No caso de Sílvio Romero, é importante perceber a maneira como quis construir uma História da literatura e as tensões e ambigüidades que a sua interpretação comportou. No prólogo da primeira edição, emitiusinais sobre o sentido de sua obra: CITAÇÃO: Minha crítica não tem sido tão dissolvente, como aos inimigos aprouve assoalhar. Inspirei-me sempre no ideal de um Brasil autônomo, independente na política e mais ainda na literatura. Desse pensamento inicial decorreram todas as minhas investidas no domínio das letras. Primeiramente, para firmar-me bem no terreno, tratei de circunscrever e limitar o círculo de minha ação: um pouco de poesia e o resto de crítica. Em poesia, iniciei a reação contra o romantismo em 1870, pregando a intuição nova de uma poesia alimentada do espírito filosófico dos nossos dias. (...) Em crítica apliquei-me apenas à Filosofia, à Etnografia, à política e à literatura propriamente dita, tudo isto sob o ponto-de-vista de aplicações ao Brasil. (...) A aplicação ao Brasil é a preocupação constante; as considerações etnográficas, a teoria do mestiçamento, já físico, já moral, servem de esteios gerais; o evolucionismo filosófico é a base fundamental." FINAL DE CITAÇÃO. Ofereceu ao leitor um horizonte de sua crítica. São dois os fatores fundamentais para compreender o seu discurso: um deles é a predisposição para construir uma síntese interpretativa alimentada pelas reflexões contemporâneas. O outro, a criação do pensamento brasileiro, embalado pelo "evolucionismo filosófico". Página 29 Aplicar os pressupostos cientificistas para compreender o Brasil lhe pareceu o caminho para explicar a literatura e a própria sociedade brasileira - no fundo, a disposição mais íntima de sua obra. Apesar da reação contra o romantismo, apesar do seu evolucionismo filosófico, Sílvio Romero continuou tão interessado na nacionalidade quanto estivera José de Alencar. A ele não interessava qualquer cultura, tampouco qualquer literatura, mas o sentido de nacionalidade, vale dizer brasilidade, que buscava através da História literária. Se a arte imitava a vida ou a natureza, como se acreditou, para Romero a literatura certamente mimetizaria os acontecimentos, de modo que o povo e a nação se fariam visíveis nos textos literários. A literatura aparecia como uma forma de apropriação quase epistemológica do mundo. Sílvio Romero deixou transparecer a maneira pela qual queria olhar o país, baseado na busca pela "verdade" científica e no "sonho", antes de tudo afetivo e emocional: "Independência literária, independência científica, reforço da independência política do Brasil, eis o sonho de minha vida". Segundo o olhar romeriano, a universalidade da Ciência estaria a serviço do reconhecimento de uma essência singular do Brasil. Tópico - nacionalismo e beletrismo Em torno da virada do século 19 para o 20, dois topoi literários se faziam notar no Brasil: a busca pela nacionalidade e o beletrismo. A nação como horizonte histórico a ser alcançado e a própria associação entre o valor literário da obra e sua inserção na nacionalidade foram perspectivas que alimentaram a crítica e a historiografia de Sílvio Romero, bem como a de vários intelectuais, como José Veríssimo e Araripe Júnior, embora em nenhum deles a idéia de nação tenha ocupado a centralidade que ocuparia para o primeiro. Em obras ficcionais propriamente ditas, a idéia romântica de nação esteve, de alguma maneira, presente em muitos escritores daquele período, com a exceção de Machado de Assis. Uma obra notável como Os Sertões (1902) desde logo foi recepcionada como monumento da nacionalidade. Página 30 Por mais que intelectuais importantes como Sílvio Romero ou Euclides da Cunha atacassem violentamente os escritores romântico-indianistas, suas abordagens encarnariam projetos políticos e culturais igualmente nacionalistas, tão manifestos quanto os que vigoravam entre os escritores românticos de meados do século 19, mesmo que não mais significassem a mesma coisa. A narrativa euclidiana logo se tomaria paradigmática, convertendo-se em patrimônio literário e político, tendo o empenho nacionalista como a categoria central. Sob a égide do cientificismo evolucionista, Euclides da Cunha e Sílvio Romero reuniram condições para concretizar, com força antes desconhecida, uma imagem de algum modo romântica do povo, ou mesmo de um povo nacional. No entanto, um e outro contestaram furiosamente as rimas, as fantasias e os devaneios românticos. Muito diferentes entre si, por certo, em ambos os autores existia um essencialismo nacional que repousaria no povo, e o seu reconhecimento intelectual se daria pelo instrumento científico e positivo. Aceitaram, implicitamente, a idéia romântica de que a nação teria uma essência, porém apenas a Ciência poderia realmente apreendê-la. Sílvio Romero, no discurso de recepção a Euclides da Cunha na Academia Brasileira de Letras, em 18 de dezembro de 1906, destacou o que acreditou ser a contribuição maior do texto euclidiano. CITAÇÃO: Vosso livro não é produto de literatura fácil, ou de politiquismos irrequietos. É um sério e fundo estudo social de nosso povo que tem sido o objeto de vossas constantes pesquisas, de vossas leituras, de vossas observações diretas, de vossas viagens, de vossas meditações de toda hora. Começastes por querer surpreendê-lo na índole, na constituição mais íntima, na essência intrínseca (...). O nervo do livro, seu fim, seu alvo, seu valor, estão na descritiva do caráter das populações sertanejas de um dos mais curiosos trechos do Brasil. FINAL DE CITAÇÃO. Página 31 O tom do discurso é simpático e não deixou de saudar as referências à nacionalidade contidas na obra. Ao destacar a descrição do povo como um recurso de valor literário, Sílvio Romero se encontrava rigorosamente conformado ao topos literário-nacionalista. Euclides da Cunha, ao pôr a Ciência a serviço da arte, agradava Sílvio Romero, porém nada poderia agradá-lo mais do que ambas a serviço do reconhecimento da nacionalidade brasileira. Se em Euclides da Cunha o empenho nacionalista é pessimista, conflituoso e suicidário - pois, ao final, "o cerne vigoroso de nossa nacionalidade" é esmagado ou se imolou numa guerra terminal —, em Sílvio Romero a perspectiva nacionalista tem, em primeiro plano, um aspecto diretamente político. Sempre que podia, buscava minimizar diferenças tidas como intransponíveis no interior da nacionalidade. Não endossou a noção euclidiana de um mestiço degenerado, representado pelo mulatismo do litoral, nem a tese de que haveria uma mestiçagem superior, simbolizada pelo sertanejo, "antes de tudo um forte". A solução romeriana foi enxergar na mestiçagem a essência da nacionalidade, evitando possíveis perspectivas desagregadoras, mas sem adjetivá-la, nem regionalizá-la, justamente para que fosse um conceito generalizável, ou seja, nacionalizável. Ainda no prólogo da primeira edição da História da literatura brasileira, está presente um evidente compromisso para com a ideia de nação e nele os traços românticos emergem em meio a uma retórica sociológica e naturalista, não sem significados para a construção de sua teoria do Brasil. CITAÇÃO: O conhecimento que se busca, ao surpreender os atos mais íntimos de um escritor, deve sempre visar uma maior compreensão de sua individualidade e das relações desta com o seu país e das deste com a humanidade. Um conhecimento que não se generaliza fica improfícuo e estéril e, assim, a História pitoresca deve levar a História filosófica e naturalista. Neste terreno busca permanecer este livro, por mais lacunoso que ele possa vir a ser. Seu fito é encontrar as leis gerais que presidiram e continuam a determinar a formação do génio, do espírito, do caráter do povo brasileiro. Para tanto é antes de tudo mister mostrar as relações de nossa vida intelectual com a História política, social e económica da nação; será preciso deixar ver como o descobridor, o colonizador, o implantador da nova ordem de cousas, o português em suma,foi-se transformando em contato do índio, do negro, da natureza americana, e, ajudado por tudo isso e pelo concurso das ideias estrangeiras, se foi aparelhando o brasileiro, tal qual ele é desde já e ainda mais característico se tornará no futuro. FINAL DE CITAÇÃO Página 32 A crítica de Silvio Romero almejava identificar na intimidade do escritor ou do texto literário as idiossincrasias da nacionalidade, de modo a revelar as relações entre produção literária e a própria vida política, económica e social da nação. A literatura foi reduzida a um documento da nacionalidade e, através da História literária, o historiador pretendia flagrar "as leis gerais" que teriam formado e continuariam a determinar a formação do "caráter do povo brasileiro". A Etnografia das três raças em contato e a natureza tropical foram evocadas para explicar o passado, mas também o futuro do "brasileiro", dito no singular. As três aparecem como fundamentos da nacionalidade. Os pressupostos científicos levariam a auferir e, se necessário, a encaminhar essa essência brasileira. O outro topos literário patente na obra de Sílvio Romero, e em muitos outros intelectuais e escritores brasileiros de fins do século 19, é a larga amplitude do termo literatura, de tal modo que não se reconheciam grandes diferenças entre o gênero eminentemente literário e a História (na História da literatura brasileira, são contemplados literatos, historiadores, oradores, teólogos e jurisconsultos). Nem mesmo o recurso às Ciências naturais - como a geografia e a geologia empregadas por Euclides da Cunha na construção de Os sertões - justificou uma definição específica em seu texto. Essa concepção ampla parece indicar que "o critério expressivista-romântico não era reconhecido como antagônico à velha concepção retórica", nota Luiz Costa Lima. A indistinção entre a Ciência da qual se valera Euclides da Cunha e a arte narrativa que lhe dera expressão não se caracterizava como um problema. A fronteira entre a Ciência e a ficção parecia não incomodar nossos críticos. Na Europa, a historiografia literária dita naturalista, à maneira de Taine ou Renan, provavelmente jamais aceitasse Os sertões como um texto literário. Página 33 Mas, segundo o entendimento romeriano, não havia qualquer razão para contestar a natureza literária da obra. Parece haver uma herança retórica no universo intelectual brasileiro de então. Em carta a João do Rio (1904), Romero expressava imensa dificuldade em definir sua inserção no ambiente intelectual brasileiro daquele princípio de século, pois não era literato e não se sentia "ao pé da letra um cientista". Porém, escrevia livros, publicava artigos, vivia exclusivamente de sua atividade de homem de letras, num ambiente intelectual rarefeito: CITAÇÃO: Achei em minha alma, meio velada, num semicrepúsculo subjetivo, tantas antropologias, Etnografias, críticas religiosas, folclóricas, jurídicas, políticas, e literárias, que tive medo de bulir com elas e de me meter nesse matagal... Conheci, sem esforço, e para meu mal, que, se não sou ao pé da letra um cientista, não me cabe também a denominação de literato, no sentido restritíssimo que esse qualificativo tem entre nós e parece ser a intuição por você abraçada, quando diz no auto das perguntas: "De seus trabalhos quais as cenas, ou capítulos, quais os contos, quais as poesias que prefere?". (...) Não tenho romances, contos, novelas, dramas, comédias, tragédias, folhetins, crônicas, fantasias... (...) Em mim o caso literário é complicadíssimo e anda tão misturado com situações críticas, filosóficas, científicas e até religiosas, que nunca o pude delas separar, nem mesmo agora para lhe responder. FINAL DE CITAÇÃO. Um historiador como Capistrano de Abreu, um poeta como Olavo Bilac, um romancista como Machado de Assis, um crítico como Sílvio Romero, todos recebiam a mesma alcunha: eram denominados escritores. Tudo parecia ser literatura e escritor era quem escrevia. A própria Academia Brasileira de Letras abrigou, desde muito cedo, não apenas romancistas e poetas, mas historiadores, críticos e outros notáveis da República das Letras. Intelectuais como Sílvio Romero, Joaquim Nabuco e Euclides da Cunha estavam entre os imortais, sem jamais terem escrito prosa ou poesia no moderno sentido da palavra. Página 34 As dificuldades de Sílvio Romero em determinar a extensão e os limites de sua atuação intelectual sugerem, de certa forma, uma concepção de literatura na qual percebe-se a dificuldade de diferenciar a clássica concepção retórica e a percepção romântica da literatura. Ao menos, é possível afirmar que subsistiam certos traços da retórica clássica, impedindo uma definição "moderna" dos limites entre a História, a crítica, a Ciência e a ficção. Por literatura, Sílvio Romero compreenderia diferentes e variados gêneros textuais, da economia política à geografia, do verso à História, das cantigas populares aos romances. CITAÇÃO: Cumpre declarar que a divisão proposta não se guia exclusivamente pelos fatos literários; porque para mim a expressão literatura tem a amplitude que lhe dão os críticos e historiadores alemães. Compreende todas as manifestações da inteligência de um povo; - política, economia, arte, criações populares... e não, como era costume supor-se no Brasil, somente as intituladas belas artes, que afinal cifravam-se quase exclusivamente na poesia. FINAL DE CITAÇÃO. A própria periodização das fases literárias não obedecia a critérios de natureza estética e artística. Na História da literatura brasileira, o autor teve que suportar as conseqüências da amplíssima compreensão de literatura: no segundo tomo de sua obra, em que se debruça sobre o que chamou de "época ou período de desenvolvimento autonômico (1750-1830)", dedicou o capítulo 6 às Ciências Naturais, o capítulo VII aos Historiadores e o capítulo 8 aos Economistas, jurisconsultos, publicistas, oradores, lingüistas, moralistas, biógrafos e literatos. No quarto e último tomo, voltou a contemplar publicistas, oradores e historiadores, e nele se encontram considerações sobre Francisco Adolfo de Varnhagen e Cari von Martius. Tópico - A nação e o progresso: o particular e o universal A crítica literária, ao longo do século 19 (mas fundamentalmente a partir da segunda metade do oitocentos), embalada por naturalismo e realismo na literatura e por darwinismo e positivismo na Filosofia, reforçou a noção de que a literatura teria uma função documental, o que lhe permitiu atingir um lugar de destaque no universo do intelectual. Conferiu-se a ela - aí incluídas a crítica e a historiografia literárias - uma dimensão explicativa e não raramente militante do mundo, patente no compromisso de narrar e explicar a natureza, o homem, a cultura e as próprias nações. Página 35 A dimensão propriamente estética e o sentido interno da obra foram, num certo sentido, minimizados. Na História da literatura brasileira, o autor identificou a literatura como uma manifestação documental da realidade, mais como reflexo da sociedade do que reflexão sobre ela. Em seu conceito amplo de literatura, já facilitado pelo ambiente beletrista, Sílvio Romero almejou uma reforma intelectual ligada à reforma social. Essa visão, segundo a qual a literatura seria um produto da vida social e, portanto, poderia ser lida como documento que a revelasse, o autor havia extraído de Taine, de acordo com António Cândido.21 Sem disfarces, nem mediações, Romero pretendia alcançar o outro lado do texto, para muito além do literário, e, nesse sentido, quanto mais abrangentes fossem os mananciais textuais, tanto mais amplo seria o escopo. Era como se o texto literário fosse decorrente da personalidade do autor, e esse, por mais singular que fosse, se explicaria pela representatividade, ou seja,pelo que exprimisse da sociedade, da cultura e da nação. As condições étnicas, mesológicas, sociais e históricas proporcionariam a chave pela qual a personalidade literária do autor se moldaria. O mesmo pressuposto valeria também para o filósofo, o cientista ou o artista, compondo uma unidade a espelhar a sociedade. Romero não enxergava uma correspondência imediata entre a "evolução" e a "cultura espiritual", para usar suas palavras, mas os princípios naturalistas que atuariam, de modo sincrônico, estabelecendo certos limites impostos por leis gerais e impessoais. A rigor, o intuito romeriano era descobrir uma realidade brasileira e uma singularidade popular, que por sua vez estariam contidas na literatura e nas manifestações populares - como os cantos e os contos. Auxiliada por critérios extraliterários, a exemplo das "leis gerais", a vida do povo - como uma coletividade de natureza nacional - estaria ou deveria estar depositada no acervo literário do país. Página 36 A função maior da literatura seria explicar a sociedade e seus dramas. As "criações do espírito", portanto, obedeceriam a determinações históricas e naturais, e, conseqüentemente, não havia sentido em recorrer-se exclusivamente à produção estrangeira, uma vez que foi gerada sob outras condições, daí a necessidade de uma literatura que fizesse emergir "nosso caráter nacional". CITAÇÃO: Pretendo escrever um trabalho naturalista sobre a História da literatura brasileira. Munido do critério popular e étnico para explicar o nosso caráter nacional, não esquecerei o critério positivo e evolucionista da nova Filosofia social quando tratar de notar as relações do Brasil com a humanidade em geral. Nós os brasileiros não pensamos ainda muito, por certo, no todo da evolução universal do homem; ainda não demos um impulso à direção geral das ideias, mas um povo que se fornia não deve só pedir lições aos outros, deve procurar ser-lhes também um exemplo. (...) Esta obra contém duas partes bem distintas; no primeiro livro indicam-se os elementos de uma História natural de nossas letras; estudam-se as condições de nosso determinismo literário, as aplicações da geologia e da biologia, as criações do espírito. FINAL DE CITAÇÃO. Sílvio Romero considerava o critério da "diferenciação nacional" o mais importante valor de um texto literário. Logo, a cultura, em geral, e a literatura, em particular, deveriam ser lidas como a manifestação letrada da mestiçagem no seu mais amplo sentido. A literatura deveria narrar o Brasil, sem jamais ignorar o advento das três raças postas em contato pela colonização e tudo o mais que daí decorresse. Por acreditar no que chamou "nosso determinismo literário", o autor exigiu que a literatura brasileira fosse capaz de sentir e se afetar pela mestiçagem biológica e cultural que a formação histórica do Brasil registrará. Quanto maiores e melhores fossem as manifestações letradas de nossas singularidades nacionais, maior seria o teor de brasilidade da obra e mais fiel à sociedade teria sido a literatura. Página 37 Não tem no livro. Página 38 CITAÇÃO: ...em suas fórmulas o movimento espiritual do país, desde que se começou a formar a nossa consciência literária e artística. (...) É sempre uma coisa fragmentada, um punhado de destroços impossíveis de ligar pela imaginação. Não querem se dar ao trabalho penoso de remontar às origens, às causas, ao estudo das raças que constituíram o nosso povo, do meio que as tem modificado, das correntes históricas que as tem dirigido; designam-se de manusear os documentos, descer aos arquivos literários, desancar os textos, ler os livros esquecidos que ninguém mais lê e que foram em seu tempo outras tantas forças vivas, focos de ação e de lutas. Entretanto, a crítica que generaliza, que não atinge a região dos princípios, que não é capaz de discernir as leis que dirigiram o desenvolvimento complexo da nacionalidade, que não abarca na sua integridade, por mais interessante que se possa mostrar, não passa de uma negaça ilusória, de um entretenimento de ociosos. FINAL DE CITAÇÃO. Romero almejou mobilizar a Ciência européia de seu tempo, acatando os paradigmas cientifícistas e deterministas vigentes - capazes de lhe proporcionar condições metodológicas - a fim de compreender historicamente a sociedade brasileira. A literatura seria um instrumento para se compreender o país (motivo pelo qual Machado de Assis foi recepcionado com notável má vontade): CITAÇÃO: Nem a contemplação exclusiva das coisas do país, sem saber o que ia pelo mundo, nem andar pelo estrangeiro à busca de modelos quaisquer a seguir. A missão crítica, neste país deveria juntar as duas tendências: tomar da nação os assuntos e, da cultura hodierna, o critério diretor das ideias. Tudo a luz de uma Filosofia ampla, sugestiva e salutar. Como primeira conseqüência, a necessidade de tomar a vida intelectual e afetiva do povo, em seu conjunto, numa História geral, e não tipos isolados e admirados por quaisquer motivos. Como segunda conseqüência, ver no critério etnográfico a base de todo o nosso desenvolvimento. Como terceira, partir do folclore para a literatura. FINAL DE CITAÇÃO Página 39 Sílvio Romero, naturalmente, não se opunha à leitura de autores estrangeiros, o que, aliás, foi uma das suas principais atividades intelectuais. A crítica à "cópia das ideias estrangeiras" passava pela suposta recusa de muitos letrados brasileiros em refletir sobre o país, pensando como se vivessem na Europa. Romero não perdia oportunidades para criticar o "chiquismo da Rua do Ouvidor", referência pejorativa aos intelectuais que perambulavam pelos cafés e livrarias da referida rua do Rio de Janeiro, inclusive seus desafetos José Veríssimo e Machado de Assis. Ao se aproximar do discurso científico, reconhecido como moderno, o autor queria preparar o terreno para eventuais intervenções práticas, capazes de alterar o rumo histórico do país, inscrevendo-o nos marcos civilizatórios da Segunda Revolução Industrial, o que significou uma apologia ao progresso e à modernização, sem contudo arrefecer seu empenho em favor da construção da nacionalidade. Através da aplicação dos métodos científicos e critérios naturalistas, universais e impessoais, o crítico esperava encontrar a especificidade do povo brasileiro e a singularidade da nação. A mestiçagem lhe pareceu o fator decisivo na formação da nacionalidade, mas tal singularidade deveria ser compreendida por um método universalmente válido. Concluindo que "todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas ideias", Sílvio Romero utilizou-se da autoridade de uma abordagem científica em favor de um vibrante nacionalismo. CITAÇÃO: A História do Brasil, como deve hoje ser compreendida, não é, conforme se julgava antigamente e era repetida pelos entusiastas lusos, a História exclusiva dos portugueses na América. Não é também, como quis supor de passagem o romanticismo, a História dos Tupis, ou, segundo o sonho de alguns representantes dos africanismos entre nós, a dos negros em o Novo Mundo. É antes a História da formação de um tipo novo pela ação de cinco fatores, formação sextiária em que predomina a mestiçagem. Todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas ideias. Os operários deste fato inicial têm sido: o português, o negro, o indio, o meio físico e a imitação estrangeira. Página 40 Não tem no livro. Página 41 CITAÇÃO: A hereditariedade representa os elementos estáveis, estáticos, as energias das raças, os predicados fundamentais dos povos; é o lado nacional das literaturas. A adaptação exprime os elementos móveis, dinâmicos, genéticos, transmissíveis de povo a povo; é a face geral, universal da literatura. São duas forças que se cruzam, ambas indispensáveis, ambas produtos naturais do meio físicoe social. FINAL DE CITAÇÃO. A partir da interpretação do autor, pode-se deduzir que a evolução ocorreria pelo influxo renovador da Ciência moderna, que poderia agir sobre as energias da raça, estáveis e estáticas. Em outras palavras, a evolução e o progresso seriam dependentes da "adaptação" do que "vai pelo grande mundo", ou seja, do que ocorria na Europa. Essa perspectiva, à primeira vista, parece contraditória com a crítica à "imitação tumultuaria, do antigo servilismo mental", que caracterizaria os letrados brasileiros. No entanto, ao se atentar para uma sutileza da reflexão romeriana, se pode notar que não haveria problema em imitar o "que vai pelo grande mundo", desde que houvesse um significado interno ou que isso representasse uma resposta para o particular, para o Brasil. O tema e o interesse deveriam ser locais, mas o tratamento deveria ser universal, em outras palavras, científico. A mestiçagem e a natureza tropical representariam as particularidades brasileiras, já o "concurso das ideias" - a Ciência - seria universal, ou seja, europeu. O que Sílvio Romero jamais tolerou, e muitos anos mais tarde considerou o "nosso maior mal", foi a pretensão de sermos, "como nação, como todo político-social, o que não somos realmente". De certa maneira, o sonho de "independência literária, independência científica e reforço da independência política", como dissera no prólogo da História da literatura brasileira, foi uma tentativa no mínimo problemática. A implicação mais evidente da dependência dos paradigmas teóricos europeus estaria no fato de que a mudança de um paradigma para outro forçaria novas abordagens para as questões brasileiras, mudança que não se daria a partir de demandas internas como queria o autor, tornando o pensamento brasileiro - nos marcos propostos por ele - refém de reflexões teóricas produzidas em outro contexto. Página 42 CITAÇÃO: Tal é a razão por que todo poeta, todo romancista, todo dramaturgo, todo critico, todo escritor brasileiro de nossos dias tem a seu cargo um duplo problema e há de preencher uma dupla função: deve saber o que vai pelo mundo culto, isto é, entre aquelas nações européias que imediatamente influenciam a inteligência nacional, e incumbe-lhe também não perder de mira que se escreve para um povo que se forma, que tem suas tendências próprias, que pode tornar uma feição, um ascendente original. Uma e outra preocupação são justificáveis e fundamentais. Se é uma coisa ridícula a reclusão do pensamento nacional numas pretensões exclusivistas, se é lastimável de alguns escritores nossos, atrasados alheios a tudo quanto vai de mais palpitante no mundo da inteligência, não é menos desprezível a figura do imitador, do copista servil e fátuo de toda e qualquer bagatela que os paquetes nos tragam de Portugal, ou de França, ou de qualquer outra parte. FINAL DE CITAÇÃO. A recepção de uma certa modernidade intelectual deveria criar as condições para que esse povo "mestiço e meridional" pudesse viabilizar a evolução histórica na direção das conquistas do século: a Ciência, a educação, a industrialização, o trabalho assalariado. A modernização serviria para reformar o povo brasileiro, tomando-o apto para o progresso, mas sem destruir sua singularidade histórica e cultural. A História da literatura brasileira comporta dois sentidos em permanente tensão: um deles, realista e naturalista, pretensamente universalista, que implicaria uma franca apologia à Ciência e aos valores identificados como modernos, o que de certa maneira correspondeu à condenação de grande parte da população brasileira pelo que haveria nela de atrasado. O outro diz respeito a como Romero percebeu o mesmo povo como depositário das virtudes nacionais, dotado de singularidades culturais dignas de respeito e admiração, portadoras de uma essência popular. Ambos os sentidos interpretativos da obra estão fundidos na mesma teoria do Brasil. O mal-estar do projeto intelectual romeriano teve origem na dificuldade em conciliar essas duas perspectivas históricas, que parecem contraditórias. Essa consciência dilacerada não advinha apenas das idiossincrasias pessoais do autor, mas da própria contradição histórica do pensamento intelectual no Brasil - que, de certa maneira, acaba por refletir as próprias contradições do país, as quais reuniam diferentes temporalidades históricas, com diferentes ritmos no mesmo espaço, mas em profunda relação. Os muitos brasis foram historicamente conectados. Lembremos que o problema da escravidão estava sendo superado, no plano formal, apenas naquele momento - o que dá ideia das profundas desigualdades e contradições que marcaram e marcam o Brasil - e, evidentemente, afetava a reflexão intelectual sobre o país. Página 43 Sílvio Romero percebeu um descompasso entre uma elite europeizada e o restante da população. Para o autor, as elites letradas elegiam a Europa moderna como o norte a ser seguido e sentiam as dificuldades de articular um projeto modernizador e ocidentalizante partindo de uma condição tal como a brasileira de então. A constatação do descompasso parece mais brilhante que a resposta ao problema, mas convém destacar a reivindicação romeriana sobre a necessidade de um pensamento que assumisse o país como um problema e criasse uma "coisa nossa". CITAÇÃO: Uma pequena elite intelectual separou-se notadamente do grosso da população, e, ao passo que esta permanece quase inteiramente inculta, aquela, sendo em especial dotada da faculdade de aprender e imitar, atirou-se a copiar na política e nas letras quantas coisas foi encontrando no velho mundo, e chegamos hoje ao ponto de termos urna literatura e uma política exóticas, que vivem e procriam em uma estufa, sem relação com o ambiente e a temperatura exterior. É este o mal de nossa habilidade ilusória e falha de mestiços e meridionais, apaixonados e fantasistas, capazes de imitar, porém organicamente impróprios para criar, para inventar, para produzir coisa nossa e que saia do fundo imediato e longínquo de nossa vida e nossa História. FINAL DE CITAÇÃO. Euclides da Cunha também abordou a obsessão das elites intelectuais brasileiras em se comportar segundo cânones internacionais, transformando "o filho de um país num emigrante virtual, vivendo estéril, no ambiente fictício de uma civilização de empréstimo", que ele chamava de "regime colonial do espírito". Página 44 Cada um a sua maneira, Romero e Euclides subscreviam compromissos nitidamente nacionalistas. Sílvio Romero, apesar de não se caracterizar pelo "chiquismo da Rua do Ouvidor", sentia-se compelido a seguir as novidades européias e, ao mesmo tempo, buscar uma reflexão adequada às particularidades brasileiras. O certo é que houve momentos em que a sua ideia de Ciência não resistiu ao seu próprio encanto com a mestiçagem, e se miscigenou, heterodoxamente. Ao positivar a mestiçagem, embora em termos relativos - diferenciando-se das posturas mais comuns entre os teóricos europeus, que ele mesmo lia -, Romero revelou a peculiaridade de sua interpretação do Brasil, mesmo contra a Ciência do seu tempo, Ciência que ele próprio aprovava.
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