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FRIEDMANN, George - 7 Estudos sobre o homem e a técnica

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7 ESTUDOS SOBRE 
O HOMEM E A TÉCNICA 
GEORGGES FRIEDMANN 
Para o leitor brasileiro não familiari-
zado com obras e autores deste gênero, 
não podemos afirmar que Georges Fried-
mann dispense apresentação. Entretanto, 
no círculo restrito dos estudiosos, seu 
nome já se impôs de há muito, se não 
por força de um conhecimento haurido 
em seus livros, pelo menos em decor-
rência do prestígio alcançado noutras 
partes cuja ressonância aqui vem ter 
de modo atenuado mas ainda assim 
bastante audível. O que é indubitável 
é que Georges Friedmann figura entre 
os pensadores contemporâneos preocu-
pados com os problemas do homem na 
sociedade tecnicista como um dos seus 
mais lúcidos expoentes. 
Nascido em Paris, em 1902, comple-
mentou seus estudos de química indus-
trial cursando a Ecole Normale supe-
rior. Lecionou Filosofia no Liceu de 
Bourges e, ao retornar a Paris, na qua-
lidade de assistente no Centro de Do-
cumentação Social, deu início à sua car-
reira de pesquisador, na qual se re-
velou um trabalhador infatigável, não 
se detendo nos limites de uma especia-
lização científica, tão de agrado de mui-
tos de seus pares, mas estendeu seu 
interêsse a várias disciplinas, ligando-as 
através do que elas têm de vivo e em 
comum: o homem. Mais afeito à mili-
tância que ao gabinete ou ao laborató-
rio, Georges Friedmann estudou in loco 
as condições de trabalho nos mais diver-
sos centros industriais da Europa, depois 
de haver trabalhado como mecânico a 
(Cont. na outra dobra) 
7 ESTUDOS SOBRE O HOMEM E A TÉCNICA 
OBRAS DO MESMO AUTOR 
Edições Francesas 
Sociologia 
Problèmes du Machinisme en U.R.S.S. et dans les pays capita-
listes, Paris, Editions Sociales Internationales, 1934. 
MAQUINA E HUMANISMO: 
— La Crise du Progrès, Paris, Gallimard, 1936. 
— Problèmes humains du machinisme industriei, Paris, Galli-
mard, 1946 (nova edição, 1961). 
— Essai sur la civilisation technicienne (em preparo). 
De la Sainte Russie à VU.R.S.S., Paris, Gallimard, 1938. 
Ou va le travail humain?, Paris, Gallimard, 1950 (nova edição, 1963). 
Villes et Campagnes: Civilisation urbaine et Civilisation rurale en 
France, coletânea publicada sob a direção, e, com uma intro-
dução de Georges Friedmann, Paris, Armand Colin, 1953. 
Traité de Sociologie du travail (em colaboração com P. Naville e 
com a ajuda de J. R. Tréanton, 2 Vol.). 
Le travail en miettes, Paris, Gallimard, 1956 (nova edição, Coleção 
"Iãées", 1964). 
Problèmes d'Amérique latine (I), Paris, Gallimard. 1959. 
Problèmes d'Amérique latine (II): Signal d'une troisième voie?, 
Paris, Gallimard, 1961. 
Traité de Sociologie du Travail, em colaboração com Pierre Naville, 
Paris, Armand Colin, 2 Vol., 1961 e 1962. 
Fin du peuple juif?, Paris, Gallimard, Coleção "Idées", 1965. 
Filosofia 
Leibniz et Spinoza, Paris, Gallimard, 1946 (nova edição, 1962). 
Literatura 
Votre tour viendra, Paris, Gallimard, 1930. 
L'adieu, Paris, Gallimard, 1932. 
VUle qui n'as pas de fin!... (Une Ouevre, Un Portrait), Paris, 
Gallimard, 1931. 
EDIÇÕES ESTRANGEIRAS 
De la Sainte Russie à 1'U.R.S.S.: 
trad. em italiano, Roma, Ed. Leonardo, 1949. 
Problèmes humains du machinisme industriei: 
trad. em italiano, Turim, Ed. Giulio Einaudi, 1949. 
" em alemão, Colônia, Bund-Verlag, 1952. 
" em inglês, Glencoe, The Free Press, 1955. 
" em espanhol, Buenos Aires, Ed. Sudamericana, 1956. 
" em polonês, Varsóvia, Ksiazka i Wiezda, 1960. 
" em servo-croata, Sarajevo, Veselin, 1964. 
Oú va le travail humain?: 
trad. em alemão, Colônia, Bund-Verlag, 1953. 
" em italiano, Milão, Ed. di Comunità, 1955. 
" em servo-croata, Belgrado, Rad, 1959. 
" em espanhol, Buenos Aires, Ed. Sudamericana, 1961. 
Le travail era miettes : 
trad. em espanhol, Buenos Aires, Ed. Sudamericana, 1958. 
" em alemão, Francforte, Europãische Verlagsanstalt, 1959. 
" em servo-croata, Zagreb, Naprijed, 1959. 
" em italiano, Milão, Ed. di Comunità, 1960. 
edição inglesa, Londres, Heinemann, 1961. 
edição americana, Nova Iorque, The Free Press, 1961. 
trad. em polonês, Varsóvia, Ksiazka i Wiezda, 1966. 
Problèmes d'Amérique Latine, I: 
trad. em italiano, Milão, Ed. di Comunità, 1960. 
Problèmes d'Amérique Latine, II. Signal d'une troisième voie?: 
trad. em italiano, Milão, Ed. di Comunità, 1962. 
" em espanhol, México, Fondo de Cultura Econômica, 1963. 
" em italiano, Milão, Ed. di Comunità, 1963. 
" em polonês, Varsóvia, Panstwowe Wydawnictwo Naukowe. 
" em servo-croata, Serajevo, Veselin. 
Fin du peuple juif?: 
traduções em andamento: 
em espanhol, México, Fondo de Cultura Econômica, 
em alemão, Hamburgo, Rowohlt. 
em holandês, Amsterdão, Moussault. 
edição inglêsa, Londres, Hutchinson. 
edição americana, Nova Iorque, Doubleday. 
GEORGES FRIEDMANN 
7 ESTUDOS SOBRE 
HOMEM E A TÉCNICA 
Tradução de 
ANTONIO EDUARDO V I E I R A DE A L M E I D A 
e 
EDUARDO DE O L I V E I R A E O L I V E I R A 
Capa de 
MARIANNE PERETTI 
D I F U S Ã O E U R O P É I A D O L I V R O 
Rua Bento Freitas, 362 
Rua Marquês de Itu, 79 
SÃO PAULO 
1 9 6 8 
Título do original: 
Sept études sur l'homme et la technique 
Copyright by 
Editions Gonthier, Paris 
Direitos exclusivos para a língua portuguêsa: 
Difusão Européia do Livro, São Paulo 
P R E F Á C I O 
Esta pequena coletânea oferece uma reflexão, que não 
pretende ser exaustiva, sobre as relações do homem e da téc-
nica nas sociedades industriais contemporâneas. Os sete es-
tudos de que está composta foram escolhidos de maneira a 
formar um conjunto. A partir do meio natural, de sua pro-
gressiva desaparição sob o efeito de revoluções industriais, 
o leitor é confrontado com as mutações de um meio técnico 
cada vez mais denso, onipresente e imperioso; confrontado 
também com as mutações do trabalho e do lazer nas socie-
dades de abundância, e finalmente com alguns problemas ca-
racterísticos da era atômica na qual acabamos de entrar. 
A observação da civilização tecnicista, malgrado tantas 
misérias físicas e morais, fracassos e perigos assustadores, con-
duz a dizer resolutamente Sim à técnica, mas à técnica do-
minada pelo homem. Daí a necessidade de colocar, ao me-
nos a título de conclusão, a questão dos valôres, dos fins, 
questão esta que farei objeto de outro livro. Por quê e para 
quê esta contínua tensão visando o crescimento econômico? 
A grande Aventura da espécie nas lutas com os produtos de 
seu próprio gênio ainda não foi escrita. O porvir do homem, 
está entre suas mãos. Êle pode ser atroz, ou, graças à ciên-
cia e à abundância, magnífico. Para humanizar nosso mun-
do de máquinas, de autômatos, de comunicações de massa, 
os remédios "externos" cujos estudos absorveram uma boa 
parte de minha vida, guardam, a meus olhos, tôda sua im-
portância. Mas a técnica não será dominada se o homem, 
ajudado por um sábio, por um imenso investimento na edu-
cação, não se dominar a si próprio. 
7 
Os textos aqui reunidos provêm, em sua maioria, de pu-
blicações esgotadas ou de difícil acesso1. Um dêles (capí-
tulo III) é inédito. Outros foram condensados e modificados 
para darem coesão a esta coletânea. A colaboração de Ma-
rie-Thérèse Basse foi-me preciosa não só para compô-la como 
para estabelecê-la e ordená-la. 
Vallangoujard, junho de 1966 
(1) As referências concernentes a suas origens estão indicadas 
no fim do volume. 
8 
I 
O HOMEM E O MEIO NATURAL 
PANORAMA DO MEIO TÉCNICO 
Na faixa prodigiosamente vasta das técnicas, que inva-
dem hoje as mais evoluídas sociedades humanas, o maqui-
nismo industrial representa apenas uma parte e um aspecto: 
o das máquinas de produção, lotando as fábricas e os escri-
tórios de empresas (tôda a família, já numerosa, das "má-
quinas de pensar"), às quais se juntam aquelas que cada 
dia vão se infiltrando mais na agricultura. 
O maquinismoagrícola com seus tratores, ceifadeiras, de-
bulhadoras, enfaixadores, ancinhos, colhedoras de batatas, de 
beterrabas, etc., seus motocultores e múltiplas máquinas por-
táteis tornadas utilizáveis graças à introdução de um motor 
elétrico na fazenda: serras, bombas, amassadeiras, etc., seus 
semeadores mecânicos, distribuidores de adubo e pulveriza-
dores a tração entregues aos vastos campos de cultura inten-
siva, chocam, por certo, na Europa, com as estruturas divi-
didas de uma civilização campesina cujas tradições pré-ma-
quinistas e rotinas são bastante poderosas. Mas o maquinis-
mo se infiltra por onde pode, segundo as linhas de menor 
resistência econômica e psicológica e constitui já um fato com 
o qual, mesmo nas regiões de pequena propriedade, o soció-
logo da vida moderna deve contar. 
Além das horas absorvidas pelo trabalho produtivo, as 
máquinas atravessam todos os momentos do dia e muitas vê-
zes, nos grandes centros urbanos, até altas horas da noite. 
9 
O homem, qualquer que seja sua condição, serve-se de 
máquinas de transporte, quer atravesse o país, quer faça na 
rua um trajeto que outrora teria parecido irrisório, até mes-
mo para um pedestre de um burgo medieval. As formas de 
energia e os mais diversos veículos o solicitam. O vapor, os 
motores de explosão, a eletricidade disputam-se entre si para 
acolhê-lo e atraí-lo. Êle circula sob, sobre, e acima da terra 
que, doravante recoberta e retrabalhada de mil maneiras na 
cidade, não é mais que uma lembrança telúrica ou mesmo 
uma espécie de ficção. As máquinas de transportes são cada 
vez mais variadas, rápidas, tentadoras pelo seu confôrto e, em 
período de paz e de indústria criativa, não deixam de estrei-
tar suas redes. O citadino que usa os transportes subterrâ-
neos é colhido por uma escada mecânica e alçado posterior-
mente, da mesma maneira, quer aos caminhos de superfície, 
quer aos aéreos. Êle manifesta seus desejos: cigarros, passa-
gens, gulodices, em um liall de máquinas distribuidoras; obe-
dece aos movimentos de uma cancela automática, assim como 
num momento posterior, na plataforma, êle seguirá aquêles 
invisivelmente comandados das portas do vagão onde tomará 
assento. 
Máquinas de transporte, as estradas de ferro, cuja multi-
plicação transformou a vida das províncias, dos burgos, dos 
campos mais afastados. Trata-se, aqui, de técnicas que mo-
dificam as condições de vida nas mais variadas camadas so-
ciais e áreas geográficas. Para o industrial, o comerciante, 
o advogado, o citadino abastado, a qualquer setor que êle 
pertença, o papel da distância é cada vez mais reduzido na 
concepção e na realização dos projetos, na organização da 
vida cotidiana. O avião vem precipitar ainda mais esta evo-
lução. Mesmo nas províncias e nos campos ocorrem trans-
formações semelhantes ainda que transpostas a outros meios, 
a outros recursos financeiros, a outras mentalidades. A re-
volução das estradas de ferro é duplicada, penetrada, con-
correnciada, intensificada ainda pela do automóvel: meio a 
um tempo privado e coletivo. 
O automóvel, nôvo ou de ocasião, encontra-se a todos os 
preços e tende a tornar-se ao alcance de todos. Sua multi-
plicação é tal que excede a capacidade das grandes cidades, 
10 
concebidas para outras épocas, outros gêneros de vida. Mes-
mo os bairros construídos depois do comêço do século não 
nos parecem mais que becos; as ruas, fendas sombrias nos 
blocos urbanos, percorridas pela massa ruidosa e sempre 
mais densa das máquinas. Arquitetos audaciosos, contra-
riando todas as tradições do urbanismo, imaginam cidades 
novas, deliberadamente adaptadas às novas condições criadas 
pelo homem: mas estas não passam ainda, no conjunto, de 
corajosas experiências.1 O automóvel a preço módico, do 
operário, do farmer, tornou-se banalidade na América; e mes-
mo na Europa que se envolve ainda de tôda uma gama de 
formas intermediárias, motocicletas, motonetes, side-cars, que 
a preparam e a prorrogam. 
Máquina de transporte, o avião, em pleno progresso e 
fadado a desenvolvimentos inauditos, que nada poderá deter. 
O turismo aéreo é uma realidade de hoje e ainda mais de 
amanhã. Os planadores, os helicópteros, deixam entrever, 
para os transportes comerciais e os deslocamentos individuais, 
perspectivas já claramente esboçadas. 
Às máquinas de produção e de transporte juntam-se tô-
das as técnicas (já bem implantadas, mas também em im-
pregnação e extensão crescentes) das comunicações humanas: 
telégrafos e telefones variados, e, por último, a televisão, que 
fará pròximamente parte do décor cotidiano na Europa como 
já é nos Estados Unidos. O citadino, ao longo de seu dia, 
não faz outra coisa senão deixar uma máquina para pegar 
outra. A mulher também, cuja vida doméstica, arrastada no 
vasto processo de mecanização, modifica-se por sua vez. Bas-
ta ao visitante passar algumas horas numa dessas múltiplas 
exposições de "Utilidades Domésticas", organizadas anual-
mente nas grandes cidades, para persuadir-se que a Europa 
se insinua de maneira bem acentuada nas pegadas da Amé-
rica do Norte, onde a vida do lar já está altamente pene-
trada pela máquina. Uma surpreendente soma de engenho-
(1) As mais célebres são as de Chandigarh, capital do Estado 
de Pandjab. índia, construída a partir dos planos de Le Corbisier, e 
de Brasília, construída a partir dos planos de Niemeyer. 
11 
sidade é gasta no consêrto dos pequenos aparelhos e instru-
mentos domésticos, assim como sua multiplicação para uso 
nos trabalhos de limpeza, separação, lavagem, etc., por pre-
ços relativamente ao alcance de todos, começa a transformar, 
além dos confins das classes médias, as tarefas caseiras. 
Estas, que se diferenciam dos trabalhos de produção, nos 
introduzem no lar e, nêle e fora dêle, nos aproximam das 
técnicas aplicadas aos lazeres. Em suma, poderíamos dizer 
que na vida do homem moderno deu-se conjuntamente uma 
mecanização do trabalho e uma mecanização dos lazeres. Os 
efeitos de uma não podem ser julgados convenientemente se 
abstraídos da outra. Reencontramos aqui, ainda ativas e in-
fluentes, sôbre um outro plano, as máquinas de transporte, 
estrada de ferro, coletivo, motocicleta, avião, sobretudo o 
automóvel, que largamente contribuíram para modificar o 
lazer de seus usuários. Pois uma psicologia do automóvel 
teria que distinguir nas máquinas de transporte, ao correr 
de suas observações, o instrumento de trabalho e o instru-
mento de lazer. Encontramos nesse grupo, além dos fonó-
grafos, técnicas que, sôbre a condição e os modos de exis-
tência do homem, tiveram efeitos transtornantes: o cinema 
e a radiofonia, logo seguidos da televisão. Cinema, rádio, 
televisão tomaram sôbre o globo uma tal densidade, uma tal 
extensão, uma tal intensidade que por si sós constituem ma-
neiras de revoluções no descanso dos homens2. Paul, operá-
rio, recém-saído do maquinismo industrial é apanhado no 
maquinismo dos transportes e da recreação. Evidentemente 
não é possível cindir sua vida e fazer do primeiro gênero de 
mecanização uma análise aprofundada que seja totalmente 
abstraída dos outros gêneros. A vida de Paul é um conjun-
to onde as diferentes ações e reações se influenciam mòtua-
(2) O desenvolvimento rápido dessas "comunicações de massa" 
(mass media) — entre as quais colocamos também os jornais diá-
rios, os hebdomadários e em geral tôdas as publicações de grandes 
tiragens — ocasionaram múltiplos efeitos. Seu estudo começou a 
ser empreendido, sobretudo depois de 1945 e nos Estados Unidos, 
em diversos meios sociais, profissionais, segundo as idades e níveis 
de instrução. Encontraremos mais adiante algumas referências à 
trabalhos publicados nesse setor. 
12 
I 
mente. O que é verdade do operário, que tomamos apenas 
a título de exemplo, o é de todo e qualquer indivíduo (qual-
quer que seja sua profissão) que participedo ritmo das so-
ciedades por nós consideradas. 
O conjunto das técnicas, das quais acabamos de ter, 
muito por alto, uma rápida perspectiva, transformou e trans-
forma, cada dia, as condições de existência do homem. To-
dos os instantes da vida se encontram cada vez mais pene-
trados: vasto fenômeno que não deixa de ganhar, de impreg-
nar mais e mais novos setores da vida do trabalho, do lar, 
da rua, das diversões. O homem está subjugado a milhares 
de solicitações, de excitações, de estimulantes até há pouco 
desconhecidos. Assim, o conjunto dessas técnicas criadas, 
instala, aumenta cada dia mais em tômo dêle o que cha-
maremos globalmente o meio técnico. 
O MEIO NATURAL 
Ainda contemporâneo dêste mundo estranho que invade 
o planeta, por vezes a algumas léguas de seus centros rui-
dosos e trepidantes, um outro mundo evoca um passado que 
é também um presente. Quem não experimentou, em certas 
horas, antes de qualquer reflexão, em seus nervos e em sua 
carne, que trata-se de duas etapas importantes da humani-
dade? Quem não experimentou um apêrto no coração diante 
do porvir? 
Esta manhã, percorremos de cima a baixo as oficinas 
barulhentas da grande fábrica, cujas chaminés por longo tem-
po riscaram o horizonte3. Agora, tomamos o caminho da 
floresta. As montanhas desenham seus contornos ao longe. 
A paz da noite sublinha ainda mais aquela que reinou, neste 
lugar, durante todo o dia. A estrada não é larga, é preciso 
que nos ponhamos contra a sebe para deixar passar uma 
(3) Estas linhas evocam as impressões contrastadas que se 
seguiram a uma visita nas fábricas Skoda, em Pilsen (Tchecoslo-
váquia). 
13 
carroça pesadamente carregada de lenha. Ela é puxada por 
dois bois, conduzidos por um homem de passos tranqüilos. 
Como não sentir tudo o que há de presença do real, de con-
tato com os elementos, de simpatia com os sêres e as coisas, 
no olhar dêsses olhos azuis claros que vêm se posar sôbre 
nós, neste ancião, neste exemplar de humanidade? Em cima, 
ao longe, na direção da encosta, uma voz de timbres quen-
tes dá ordens. A mata se torna menos densa: dois cavalos, 
puxando um arado, projetam suas silhuetas no horizonte. Um 
homem está ao lado deles, e nas palavras que êle lhes dirige 
sentimos todo o sumo dessas lavouras na noite de um belo 
dia, tôda a seiva destas vertentes visitadas pelos últimos raios 
de sol que as roçam levemente, uma conivência com o ani-
mal e a gleba, e o ferro do arado e o ar do céu e a água 
do riacho, tôda a experiência dos séculos. Como havia sumo 
e seiva e a presença das coisas nos cantos dos jovens pas-
tôres, ouvidos de passagem, na clareira, ao pé da montanha: 
alegria de viver, sol, florestas, eco das montanhas por entre 
os pinheiros, cantos saídos dos elementos, das flores, da pul-
sação dos animais nas pastagens, do ritmo cotidiano das ale-
grias e tristezas. 
Entre o homem e os elementos, nada parece então se 
interpor: êle está perto dêles, coisas ou sêres, animais, ferra-
mentas, plantas, vento, gleba, êle está nêles. O carpinteiro 
concebe, executa, de plaina ou cinzel na mão, esculpe, pole, 
enverniza, termina seu baú, e êle mesmo discute os méritos 
com a prática que tem. Nada o separa de seu material, de 
sua obra. A ferramenta, êle a toma entre as mãos, prolon-
gamento de sua mão que a conhece, a adapta e a molda a 
seu bel-prazer. Sua ferramenta. Prolongamento de seu cor-
po, de sua destreza e de sua arte. 
Pelo menos, era assim. 
Não havia uma circulação constante entre o homem e a 
natureza que êle prolongava, moldava, que êle combatia por 
vêzes com o fito de a dominar, mas sem se descartar nem se 
afastar dela? Uma maturação de emoções e de representa-
ções no seio deste meio de elementos, de coisas, de sêres 
vivos onde tôda sua vida se deleitava, e cujos ritmos seguia? 
14 
É a partir daí que se deve agora tentar precisar os fun-
damentos psicológicos do meio natural, a fim de fazer ressal-
tar, por comparação, o nôvo meio criado pela civilização tec-
nicista. 
FUNDO RURAL E ARTESANAL 
O homem não é o mesmo, êle não sente, não age, não 
pensa do mesmo modo segundo as épocas de sua história, 
segundo o meio onde vive: segundo as técnicas de que dis-
põe. A pré-história nos indica entretanto, sem sombra de 
dúvida, os primeiros esboços de ferramentas, os primeiros 
pedaços de pedra, aparas de sílex lavrados, de retoques ain-
da irregulares e carcomidos, cacheiras, raspadores, serrote, 
como o primeiro balbucio do homem acima da animalidade. 
A partir daí, no curso de uma aventura milenar, onde cau-
sas e efeitos se emaranham e se condicionam reciprocamen-
te, o homem modifica seu meio, e, através de seu meio, mo-
difica-se a si próprio e se lança para novas transformações. 
Nada de contínuo, nesta marcha. Nada de unilinear. As 
civilizações nascem e morrem. Muitas dentre elas estacio-
nam, à margem das técnicas descobertas por outros grupos 
humanos. Elas prosseguem seu destino sem as conhecer, 
passando, por assim dizer, à margem da história; o que, hoje 
em dia, sobre tôda a extensão do planeta, tornou-se quase 
impossível: a civilização tecnicista, além dos prodigiosos meios 
de difusão de que dispõe, é, neste sentido, totalitária. 
Limitemos aqui nossa mirada ao mundo que precedeu 
diretamente a civilização tecnicista, da qual procuramos se-
guir a pista e, se possível, escrutar as perspectivas próximas: 
isto é, ao mundo etiropeu que, nascido no Ocidente com a 
decomposição do império romano, o feudalismo, a extensão 
da civilização cristã, declina desde o fim do século XVI, à 
proximidade das revoluções industriais. 
Os homens dêsse mundo, que são ainda constante e di-
retamente tributários da natureza, que se iluminam dificil-
mente, segundo os lugares e condições, com tochas, com ve-
15 
Ias, com óleo, ou que freqüentemente, conheoem apenas a 
luz do sol, que não poderiam se locomover mais rápido que 
o galope de um cavalo, que tocam êles mesmos, com suas 
mãos, com seus pés, tôda a vida, o material, a terra, a água, 
o animal, sejam camponeses, artesãos, burgueses ou nobres, 
citadinos ou campesinos, podem esses hòmens deixar de ser 
mentalmente moldados por essas condições necessárias de 
vida? Não há, então, existência urbana que seja claramente 
separada, distinta da existência campesina. Não há vida ur-
bana pròpriamente dita. A cidade é invadida pelo campo4. 
O próprio lar do burguês é diretamente alimentado pelos 
camponeses que sem cessar, percorrem as ruelas. Cada casa 
tem o seu curral e seus animais domésticos. Quanto ao no-
bre do campo (que constitui a maior parte dos nobres), sua 
existência é sem conforto, sem lar organizado, suscetível de re-
ter o homem nêle. A habitação é freqüentemente reduzida a 
uma cozinha onde acontece a desordem das mulheres, das 
crianças, e dos criados. A vida do fidalgote é feita de poses. 
A cidade não possui força que atraia e retenha. E esta épo-
ca, em que os meios de transporte são ainda tão rudimen-
tares, comparados aos de hoje, é também aquela em que a 
população das cidades manifesta uma espantosa fluidez. Nô-
made, o companheiro que viaja, sondando numa oficina, de-
pois em outra, para desenvolver sua habilidade e se prepa-
rar para o ofício de mestre; nômades, os mercadores que se 
deslocam ao encontro das feiras e da clientela, de cidade em 
cidade, transportando o seu fardo; nômades, os estudantes 
que vão de Universidade em Universidade. Nômade, o pró-
prio rei que Paris não retém e que, do dia de sua sagração 
até sua transladação para Saint-Denis, 00 passa sua vida nas 
estradas, seguido de uma corte a cavalo, nômade como êle. 
R I T M O S 
Neste mundo cujo fundo é essencialmente rural e arte-
sanal, onde, malgrado as invenções e o progresso técnico da 
(4) Lucien FEBVRE, Revue des cours et conférences, 1925, pg. 196. 
(**) Abadia a 9 Km de Paris, que outrora abrigou as sepul-turas reais. (N. dos T.) 
16 \ 
Idade Média, ainda são numerosas as máquinas que são mo-
vidas pelo motor humano5, o ritmo está em tôda parte na 
vida cotidiana, e desempenha um papel incomparável. O 
mesmo ocorre em tôda civilização pré-maquinista: os hindus 
tinham observado há muito tempo e haviam dêle tirado li-
ções para sua higiene física e mental. O que havia, sobre-
tudo, fixado sua reflexão foi o condicionamento biológico do 
ritmo, a relação necessária e variável segundo os indivíduos, 
entre o ritmo e o corpo humano. Assim todos possuímos sem 
nos dar conta, nosso ritmo vital pessoal, que é função das 
batidas do nosso coração, dos movimentos respiratórios e, de 
uma maneira geral das trocas com o nosso meio. Além do 
mais, cada um de nós tem um ritmo de atividade física que 
é função de nossa estatura, de nosso pêso, do comprimento 
dos nossos membros. Por fim, temos ainda um ritmo de ati-
vidade intelectual cujas determinantes são desconhecidas. "É 
um princípio da Hatha Yoga que todo ato físico, que não 
se conforme ao nosso ritmo pessoal de atividade, exige um 
esforço muito mais considerável que aquêle que se conforma, 
e traz como conseqüência uma fadiga exagerada. O mesmo 
se dá com a atividade intelectual. É ainda um princípio da 
Hatha Yoga, que tôda atividade física ou intelectual, que 
não está em harmonia com o ritmo vital pessoal, provoca 
profundos mal-estares ao organismo, repercutindo perigosa-
mente sôbre a saúde; é uma verdadeira deslocação 8." 
(5) Sôbre a técnica da idade média, cf. LEFEBVRE DÊS NOETTES, 
L'attelage. Le cheval de selle à travers les âges, 2 vol., Paris, 1931; 
"La "Nuit" du Moyen Age et son inventaire" (Mercure de France, 
1.° de maio, 1932); Le Gouvernail: ccmtribution à Vhistoire de' l'es-
clavage (Mémoires de la Société des Antiquaires de France, t. 
LXXVIII, 1932), e La Nature (15 de julho de 1932). 
Os trabalhos de LEFEBVRE DES NOÈTTES suscitaram uma vasta lite-
ratura crítica. Cf. particularmente Marc BLOCH (Revue de syn-
thèse historique, t. XLI, 1926, e Annales d'histoire économique et 
sociale, nov. 1935: "Les inventions médiévales"), Jules SION ("Note 
sur les repercussions sociales d'une technique", Annales sociologi-
ques, série E, fascículo I, Paris, 1935) e Lucien FEBVRE (Annales 
d'histoire économique et sociale, nov. 1935: "Reflexions sur l'histoire 
des techniques"). 
(6) C. KERNEXZ, Le Hatha Yoga, Paris, 1939, p. 48. 
17 
Na civilização pré-maquinista do Ocidente, onde o indi-
víduo estava muito mais dependente do que hoje dos ele-
mentos, terra, estações, animais, divisão dos dias e das noi-
tes, o trabalho se achava constantemente sob a pressão dos 
ritmos naturais. Mas, seria um erro apegar-se a êste condi-
cionamento biológico do ritmo pelas determinações indivi-
duais ou telúricas. Os ritmos do corpo humano, e em parti-
cular os do trabalho profissional, se constituíram lentamente 
no seio de grupos e de civilizações, e imprimem tradições se-
culares, milenares por vezes, e põem em relevo causas não 
sòmente biológicas, mas sociológicas. É o que Mareei Mauss 
demonstrou a propósito do que êle chama "as técnicas do 
corpo", entendendo por isso as técnicas em que o próprio 
corpo é o instrumento do homem 7: "antes das técnicas com 
instrumento há o conjunto das técnicas do corpo." Assim 
como entre as técnicas da atividade e do movimento, os mo-
dos de andar, de correr, de escalar, de arremessar, de em-
purrar, de prender, de carregar, de obter o melhor rendi-
mento do corpo nos diversos trabalhos a que se o submete, 
diferente segundo os grupos humanos, segundo as épocas8. 
Numerosos exemplos mostram que estas técnicas, freqüente-
mente ligadas aos ritmos, mergulham profundo nas tradições 
de uma coletividade. Para disto se ter uma idéia clara, não 
é preciso considerar sòmente as determinantes biológicas (ana-
tômicas ou fisiológicas), mas também psicológicas e socioló-
(7) Cf. tôda a admirável comunicação feita por Mareei MAUSS 
na Sociedade de Psicologia, aos 17 de maio de 1934, publicada no 
Journal de Psychologie, 1935, pp. 271-293 e reproduzida na coletâ-
nea Sociologie et Anthropologie, Paris, P . U . F . , 1950. 
(8) Cf. também A. HAUDRICOURT, Revue de botanique epptiquée, 
n.os 230-231. pp. 759-772: "Les moteurs animés en agrieulture". Não 
há uma maneira instintiva de carregar um objeto, escreve Hau-
dricourt, só há maneiras tradicionais. Quando demos carrinhos de 
mão a alguns indígenas da África, imediatamente os puseram sô-
bre a cabeça. Haudricourt lembra igualmente que é preciso adap-
tar a um mesmo instrumento de ferro punhos curtos ou longos, 
lisos ou trabalhados, etc., segundo o povo que se serve dêle. Mauss 
tinha feito, a propósito do uso da enxada pelas tropas francesas 
e inglêsas durante a Primeira Guerra Mundial, uma observação 
semelhante (art. citado, pg. 272). 
18 
gicas; o psicológico, ainda assim, constituindo antes de tu-
do, aqui, uma "engrenagem" entre o biológico e o socioló-
gico 9. 
Êsses ritmos tradicionais, que formam o estofo das téc-
nicas do corpo, onipresente em uma sociedade pré-maquinis-
ta onde o corpo é freqüentemente instrumento, são dobrados 
e enriquecidos com os que acompanham as técnicas com ins-
trumentos, em que o homem se serve de uma ferramenta in-
terposta entre seu corpo e o material10. 
É assim que o pé, após haver sido de uma só vez motor 
e ferramenta (na pisada da uva e dos panos, uso dos pés 
bem conhecido da antigüidade ocidental) é apenas motor 
quando lhe são associados os pedais, a partir da Idade Mé-
dia, no Ocidente: o pilão-pedal, que serve para pilar o arroz, 
a massa para papel, é uma das mais simples destas máquinas 
yindas do Oriente, entre as quais os pedais da tecedeiras e 
das forjas a martinete são as primeiras a serem introduzidas 
na França 12. Aí, como em todas as técnicas com instrumen-
to, cujo motor é o próprio homem, o gesto impõe seus ca-
racteres, sua estrutura, seu ritmo. É o caso do oleiro, do 
(9) MAUSS, ibid, p. 275: "E concluo que não poderíamos ter 
uma visão clara de todos êstes fatos, da corrida, da natação, etc., 
se não fizéssemos intervir uma tríplice consideração em lugar de 
uma única, seja ela mecânica e física, como uma teoria anatô-
mica e fisiológica da marcha, ou que ela seja, ao contrário, psico-
lógica ou sociológica. É o triplo ponto de vista, o de "homem 
total", que é necessário." " . . . Eu vejo aqui os fatos psicológicos 
como engrenagem e não os vejo como causa, salvo nos momentos 
de criação ou de reforma" (pp. 291-292). " . . . Creio que ainda 
aqui, pareça o que parecer, estamos em presença de fenômenos 
biológico-sociológicos" (p. 292). 
(10) Cf. o livro clássico de Karl BÜCHER, Arbeit und Rhythmus, 
9.a ed., Leipzig, 1923. 
(11) Além disso, o uso da kick wheel (o tôrno de pé) na cerâ-
mica é verificado na civilização helenística nos séculos II e III 
A.C. por Gisela M. A. RICHTER, "Ceramics from 700 BC to the fali 
of the Roman Empire", in: Ch. SINGER, E. J. HOLMYARD, A. R. 
HALL and T. I. WILLIAMS, A History of Technology, Nova Iorque 
e Londres, Oxford University Press, 1956, vol. 2, p. 262. 
(12) A. HAUDRICOUET, "A propos du moteur humain", Annales 
d'histoire sociale, abril de 1940, p. 131. 
19 
torneiro a pedal, do ceifeiro, do padejador e do malhador. 
É o caso da maior parte dos trabalhos artesanais em que 
há manipulação de ferramentas, uma vez que não é o gesto 
que tende a se adaptar à ferramenta, mas a ferramenta que 
tende a se adaptar às determinantes complexas, bio-psico-so-
ciológicas, do gesto, do ritmo, do corpo. Nesse sentido, pô-
de-se definir a civilização material de um grupo humano 
como "o conjunto dos movimentos musculares tradicionais de 
eficiência técnica13". 
Assim tôda a vida do homem, no meio natural, em par-
ticular tôda a existência profissional, está como que interior-
mente urdida de ritmos,lentamente formados e fixados, cir-
culando de geração em geração na sociedade a que êles es-
tão intimamente unidos. Cada corpo de ocupação tem os 
seus que se transmitem como tradições, sem 'grande mudan-
ça. Vê-mo-los aflorar, com os "jeitos", os segredos da com-
pagnonnage *"' Ainda tôda rural e artesanal, a civilização 
associada ao meio natural é pois, tanto no campo como na 
cidade, profundamente impregnada dêsses ritmos. 
T E M P O 
Nada de surpreendente que homens, cuja estrutura íntima 
estava também confundida com ritmos naturais, harmoniza-
dos com os elementos, com as estações e com determinações 
coletivas, lentamente amadurecidos nelas e confirmados pelos 
(13) A. HAUDRICOURT, Revue de botanique appliquée, art. ci-
tado. 
(.**) Associações de auxilio mútuo e de defesa, entre os "com-
panheiros" (meados do século XIV), que se estenderam por várias 
cidades, primeiramente na França e mais tarde na Alemanha (Ge-
sellenveTbünde), e cujo objetivo era o de proporcionar trabalho aos 
seus membros e protegê-los contra os exploradores dos mestres. 
Ver a trad. bras. de Lycurgo Gomes da Motta da História Eco-
nômica e Social da Idade Média, de Henri PIR£NNE; Ed. Mestre 
Jou, São Paulo, 1963, pp. 214-215. (N. dos T.) 
(14) A. VARAGNAC, "L 'Homme et les techniques pré-machinis-
tes", in L'Homme, la technique et la nature, Paris, 1938, e, do mes-
mo autor: Civilisation traditionnelle et genres de vie, Paris, 1948. 
20 
séculos, nada de surpreendente que tais homens tenham tido 
um sentimento da duração diferente do nosso15. A falta de 
uma referência precisa para marcar o escoamento do tempo 
e a indiferença a esta falta, a lentidão (que não deve ser 
confundida com a indolência), a ausência do sentimento da 
pressa, não fazem mais que traduzir exteriormente, no de-
senrolar da vida cotidiana, a presença profunda dos ritmos 
que evocamos. Sem dúvida observamos fenômenos da mes-
ma ordem em tôdas as civilizações cujo fundo é essencial-
mente rural e artesanal: sendo as manifestações diferenciadas 
através dos prismas das condições geográficas, étnicas e his-
tóricas ie. 
(15) Sôbre as diferenças na percepção do tempo segundo os 
meios naturais ou técnicos, cf. L. BERNOT e R. BLANCABD, Nouville, 
un village français, Paris, Instituto de Etnologia, 1953, pp. 321-332 
e as reflexões de Jean DARIC sôbre "tempo natural" e "tempo téc-
nico", Villes et Campagnes, obra citada, pp. 416-418. 
(16) Os orientais sorriem quando ouvem um europeu moderno 
pronunciar incessantemente: "rápido" (Grenard, Grandeur et Dé-
cadence de 1'Asie, Paris, 1939, p. 209): "Não menor causa de es-
panto (para o asiático) é a maneira pela qual o europeu concebe 
o tempo. É-lhe necessário um tempo exatamente medido para 
fazer qualquer coisa, para nêle repartir seu trabalho e os gestos 
mesmo inúteis de sua existência. O asiático quer o tempo para 
não fazer nada, gozar de sua respiração. O princípio fundamental 
de Lao-Tsé estima que: não fazer nada é suficiente para acertar 
tudo." 
Essa preocupação pela pressa, estranha aos asiáticos, o era tam-
bém (até à indolência) aos russos da antiga Rússia e ainda, antes 
de 1939, àqueles da nova que o ritmo intenso dos planos qüinqüe-
nais ainda não tinha atingido nem remodelado (Georges FRIEDMAIM, 
Da la sainte Russie à VU.R.S.S., Paris, 1938, pp. 45, 76 e seg.). 
A. Polônia de 1939, em grande parte de sua população, escapava 
também, ao sentido ocidental do tempo e da rapidez. De uma 
maneira geral, seria interessante estudar as formas de percepção 
do tempo e os comportamentos que lhe são ligados nos países não 
industrializados ou em vias de industrialização, ditos "subdesen-
volvidos". Tivemos a ocasião de fazer observações, a êsse respei-
to, na América Latina, sobretudo entre os operários de origem ru-
ral em zonas industriais muito evoluídas, como São Paulo (cf. 
Problèmes d'Amérique Latine l, Paris, Gallimard, 1959, pp. 34-37 e 
A. TOURAINE, "Industrialisation et conscience ouvrière à São Paulo", 
Sociologie du Travail, 1961, n.° 4, pp. 79-83). No mesmo sentido, a 
21 
Lucien Febvre deu bastante destaque aos sinais dêsse 
"tempo flutuante, tempo dormente na Europa Ocidental, 
até fins do século XVI. Os verdadeiros relógios são raros, 
rudimentares, e não andam além de algumas horas. Raros 
também os "mostradores" de que se orgulham alguns privi-
legiados. As clepsidras de areia, e sobretudo as de água são 
apenas mais comuns. As pessoas ignoram suas idades, hesi-
tam entre várias datas de nascimento: mesmo um Erasmo, 
um Lutero, um Rabelais. Quanto à massa ela não se im-
porta por precisões cronológicas: "No total, os habitantes de 
uma sociedade de camponeses que aceitam jamais saber a 
hora exata, a não ser quando o sino toca (supondo-o bem 
regulado), e que, para o resto, se referem às plantas, ao vôo 
de tal pássaro ou ao canto de tal outro 1S". 
SENSIBILIDADE, PERCEPÇÃO 
Neste mundo, os homens, com tôda evidência tinham 
outros modos de sentir que os nossos. Os contrastes são bru-
talmente marcados em suas sensibilidades. A emoção passa 
por pólos extremos, freqüentemente sem transição. A justiça 
não passa da transposição, apenas mascarada, da necessidade 
de vingança e a pena de talião aí ainda domina. Oscilação 
brusca entre pena de morte e graça outorgada in extremis 
pelo príncipe, violência dos sentimentos religiosos (e rapidez 
pontualidade parece estreitamente ligada ao desenvolvimento do 
meio técnico. Ela é por vêzes bem incerta, na América Latina, 
onde, desde que queiramos fixar um encontro, devemos precisar 
hora inglesa. 
(17) Lucien FEBVRE, Le Problème de Vmcroyance au XVIè siè-
cle, Paris, pp. 426-434. 
Assinalemos também, sôbre êste assunto, as penetrantes refle-
xões que Alexandre KOYRÉ, ao lado de seus importantes trabalhos 
sôbre a história dos instrumentos e técnicas científicas, publicou 
sob o título "Du monde de l'à peuprès à l'univers de la precision", 
Études d'Histoire de la pensée philosophique, Paris, A. Colin, 
1962. 
(18) L. FEBVRE, ibid. , p . 4 2 8 . 
22 
na mudança em seu contrário), imaginação realista liberada 
na representação do pecado, do inferno, do paraíso, papel 
cotidiano e por assim dizer carnal da religião, tôda a sensua-
lidade "enorme e delicada" de que fala o poeta: através do 
livro de Huizinga 19, rico em documentos sôbre este momen-
to da história da sensibilidade, se reconhece a cada passo 
a dependência das maneiras de sentir com relação ao meio 
e ao modo de vida, ainda que êle tenha, êle próprio, deixado 
de colocá-la em evidência. 
Se, na Europa Ocidental ainda nos umbrais do século 
XVII, os homens são, em sua maioria, inteiramente agarra-
dos ao campo que domina tudo, que afirma seu primado até 
nas aglomerações urbanas, até na casa do burguês ou do ar-
tesão; se não há senão um modo de vida, que é campesino; 
se a cidade, ainda em formação, permanece sem fôrça inter-
na, massa centrífuga incapaz de reter o homem em seu lar 
ou em sua profissão sedentária; se a sensação de velocidade 
não existe além daquela de um cavaleiro induzindo o seu 
ginete ao galope; se a natureza rude imprime então por tôda 
parte e em todos seus e^mentos e ritmos, devemos acreditar 
que os modos de perceber e de sentir não tenham sido afe-
tados? 
Ko que diz respeito à percepção, como seus próprios 
quadros, as relações de tempo e de espaço, teriam sido as 
mesmas que hoje em homens que não conheciam nada além 
da corrida de um cavalo e mais freqüentemente, além de seu 
passo ou do passo de seus bois? Parecem então não observar 
o mundo com os mesmos olhos naturais que nós. Suas sen-
sações, ou para falar mais exatamente, suas percepções vi-
suais são menos ricas que suas percepções auditivas, olfati-
vas, gustativas 20; nêles, o ouvido parece incessantemente pre-
ceder e ultrapassar a vista. Os documentos do tempo e par-
ticularmente a literatura,manifestam essa curiosa predomi-
(19) J. HUIZINGA, Le Déclin du Moyen Age, traduzido do ho-
landês, Paris, 1932. 
(20) Lucien FEBVRE, obra cit., pp. 464-473. 
23 
nância. É assim que com raras exceções (sendo Rabelais a 
mais insigne delas) os escritores do século XVI "não sabem 
esboçar um retrato, captar uma semelhança, colocar um per-
sonagem de carne e osso diante do leitor21 ". Esta relativa 
fraqueza da vista que é, por outro lado, como justamente a 
precisamos, o senso mais abstrato, o senso geométrico por 
excelência 22, somos tentados a explicá-la pelas condições ge-
rais da vida dos homens, no meio natural, rural e artesanal, 
da Idade Média: seus contatos incessantes, diretos, com ele-
mentos e ritmos naturais, sua impregnação pelo campo (mes-
mo quando vivem na cidade) fazem dêles sêres mais parti-
cularmente concretos, sem cessar alimentados por um rico 
afluxo de imagens sensuais. 
E, no que concerne à sensibilidade, acredita-se que o 
contraste brutal, cotidiano, entre o dia e a noite, impôsto à 
vida do camponês e mesmo da maior parte dos citadinos 
pelas técnicas grosseiras da habitação e da iluminação, pelas 
condições da vida urbana, a brusca transição da agitação la-
boriosa do dia ao silêncio total da noite, passado o toque de 
recolher, acredita-se que êste estado de coisas não haja de 
modo algum influenciado a sensibilidade contrastada, plena 
de oposições nítidas, dos homens dessa época? 23. 
Pois as emoções e mais geralmente as expressões da sen-
sibilidade são, elas também, tributárias do meio humano glo-
bal: longe de serem sòmente, como se ensinuou durante mui-
to tempo, simples reações automáticas a estimulantes aciden-
tais, elas estão ligadas ao grupo, moldadas por suas condi-
ções de existência e seus modos de vida. Elas são, vistas sob 
um de seus aspectos que não é o menos importante, fatos 
sociais. Em seus belos estudos sôbre as emoções. Henri Wallon 
(21) Lucien FEBVRE, obra cit., p. 471. 
(22) Abel REY, La Jeunesse de la science grecque, Paris, 1939, 
pp. 445 e seg. 
(23) HUIZINGA, obra cit., cap. I, e o importante artigo de Lucien 
FEBVRE, manifesto e programa de trabalho, sôbre "La Sensibilité et 
l'Histoire", coligidos em Combats pour l'Histoire, Paris, A. Colin, 
1953, pp. 221-238. 
24 
descreve este processo de interação entre o indivíduo e o 
grupo, processo através do qual se modela, no seio de uma 
coletividade, um sistema de emoções: "Associando assim vá-
rios participantes, sucessivamente iniciadores e seguidores, 
as emoções chegaram logo a constituir um sistema de exci-
tações interindividuais que pôde se diversificar segundo as 
situações e as circunstâncias, diversificando ao mesmo tempo 
as reações e a sensibilidade de cada um. A maior segurança 
ou o maior poder dados ao grupo, pelo acôrdo e simultanei-
dade das reações individuais, deram ao fator utilidade um 
papel cada vez mais decisivo nesta evolução das emoções. 
Elas tornaram-se como que uma instituição 24." Mas o ho-
mem não pára aí. Êle ultrapassa a sensibilidade, uma vez 
que é capaz de escolher, entre suas reações ao meio, aquelas 
que se adaptam melhor ao mundo exterior, aquelas que lhe 
permitem agir mais eficazmente. É assim que aparece e se 
consolida pouco a pouco este modo de ação que é a repre-
sentação 25. 
MENTALIDADE 
O homem muda. As maneiras de pensar não são menos 
variáveis, relativas, ligadas ao conjunto das condições de uma 
civilização, que as maneiras de perceber ou de sentir. Os 
passos lógicos do pensamento nos contemporâneos de Lutero 
não são os mesmos daqueles que se servem do cinema e do 
avião. O meio natural, que domina ainda a Europa Ociden-
tal no século XVI, se acompanha de uma mentalidade dife-
rente daquela dos homens do meio técnico. 
A mentalidade dos indivíduos, num grupo humano, é 
inseparável do conjunto de suas condições de existência e 
particularmente do estado dos conhecimentos das técnicas, e 
da linguagem que êles dispõem para se exprimir. Hoje, os 
pensamentos lógicos são sustentados, no vocabulário e na sin-
(24) Encyclopédie jrançaise, t. VIII, La Vie mentale, p. 8, 24-6. 
(25) Henri WALLON, De 1'Acte à la Pensée, Paris, 1942. 
25 
taxe, mesmo pelo espírito menos permeável às coisas da ciên-
cia, pelo aparelho que o pensamento racional pôde desenvol-
ver desde quase três séculos. O mesmo não se dá no meio 
natural. Aparecem precursores, observadores, ousados pionei-
ros da experimentação. Mas "a ciência" ainda não existe28. 
Ela não tem instrumentos, nem métodos, nem símbolos al-
gébricos, nem linguagem própria. Ela deve contentar-se ain-
da com pesquisas confusas, que ainda não são organizadas 
em ciência unificada de admiráveis pressentimentos. 
Mesmo nos grandes escritores, os passos racionais do 
pensamento se entremeiam a uma mentalidade "mística", no 
sentido em que Lucien Lévy-Bruhl emprega esta palavra, 
em sua obra 27. Nada é impossível. Nada limita o poder 
infinito da natureza criadora. Os sêres não têm fronteira de-
finida, êles mudam e se mudam uns nos outros. Êles podem 
estar, como o lobisomem, em dois lugares ao mesmo tem-
po. O mundo é fluido. Talvez também a riqueza das ima-
gens sensuais paralisará as forças do pensamento abstrato e 
dedutivo. Constantemente os homens dêsse tempo procuram 
a explicação dos fenômenos na intervenção de forças invisí-
veis, misturando à supranatureza uma natureza para êles mui-
to clássica. A empresa do ocultismo, o lugar dado aos de-
mônios são incompreensíveis se não os situamos nesse décor 
mental. Jean Bodin, um dos espíritos mais livres dêsse tem-
po, escreve a Répuhlique, o Colloquiwn IIeptaplomeres, mas 
também a Démonomanie des sorciers: êle acredita nisso. Ain-
da no alvorecer do século XVIII, um Leibniz oferece o exem-
plo de um pensamento onde as exigências científicas mais ri-
gorosas coabitam com estranhas concepções esotéricas e ocul-
(26) Lucien FEBVRE, obra cit., p. 456 e os caps. III e IV do 
livro II. 
(27) Cf. Les Foncticms mentales dans les sociétés inférieures, 
9.a ed., Paris, 1928, e outras obras clássicas do mesmo autor sôbre 
a mentalidade primitiva. Em seus Carnets, o autor renunciou em 
opor mentalidade primitiva e pensamento lógico, sustentando sò-
mente que a mentalidade mística está "presente em todo espírito 
humano" e "mais marcada e mais fàcilmente observável nos pri-
mitivos que em nossas sociedades". Les Carnets de Lucien Lévy-
-Bruhlj Paris, P . U . F . , 1949, p. 131. 
26 
tistas. Lucien Febvre, estudando o mecanismo do pensamen-
to nos homens do século XVI, demonstrou quanto êles estão 
ainda afastados do racionalismo e da lógica modernos28. 
Guardemo-nos porém de situar tão cedo, no Ocidente, o 
comêço de uma evolução para as "luzes". Será necessário 
esperar muitos séculos, a aparição das revoluções industriais 
e a difusão das técnicas mecânicas para ver recuar pouco a 
pouco, nas populações, o setor das superstições, dos erros, 
dos habitantes de pensamento pré-lógico, das formas grossei-
ras do sentimento religioso, o setor da magia, dos espíritos, 
também aquele das crenças e das tradições folclóricas. Será 
um acaso se o catolicismo no tempo de João XXIII não cor-
responde mais às emoções, imagens, representações que acom-
panhavam aquêle de um contemporâneo de Leão X? Deve-
-se omitir, nesta evolução do meio integral, o papel da lin-
guagem que, enquanto não se tornou um instrumento de 
pensamento racional e lógico (portanto subordinada ao de-
senvolvimento da ciência e das técnicas, ela mesma integrada 
no curso total da civilização), não pôde apoiar os esforços 
dos melhores espíritos para ultrapassar seu tempo, suas idéias 
dominantes e se voltar para horizontes novos? Êste é bem 
o caso dos homens do século XVT. Seu pensamento não é 
apoiado pelo aparelho científico que subentende hoje em dia 
a linguagem que se impõe, mesmo aos espíritosmais refra-
tários à ciência. 
PRESENÇA E SIMPATIA 
O meio natural, tal como aparece depois dêste rápido 
esbôço, tem pois seu semblante próprio e um estudo mais 
(28) Obra cit., livro II, passim. Sôbre o ocultismo de Leibniz, 
cf. nosso Leibniz et Spinoza, Paris, nova ed., 1962, pp. 115 e seg. 
A mesma coabitação não é menos surpreendente em Copérnico, 
como mostra uma das melhores análises consagradas à formação 
do pensamento científico no século XVII por R. LENOBLE, "Origines 
de la pensée scientifique moderne", in Histoire de la Science, En-
cyclopédie de la Pléiade, Paris, Gall;mard, 1957. 
27 
aprofundado permitiria descrever em detalhe seus caracteres 
materiais e psicológicos. Além daqueles que nos esforçamos 
por fazer ressaltar nos gêneros de vida e nas técnicas, nos 
ritmos e no senso de duração, na sensibilidade e na menta-
lidade, haveria sem dúvida ainda muitos traços a apreender, 
mais finos e sutis, dos quais alguns explicam as relações ge-
rais do homem com seu ambiente inteiro, suas condições de 
vida material e moral numa civilização dada. Indiquemos 
pelo menos em que direção esta análise poderia ser prosse-
guida. ' 
O meio natural é ainda destituído de máquinas ou de 
técnicas que sejam suscetíveis de dar, inteiramente, folga ao 
homem. Aquelas que existem poderiam ser definidas (como 
o tôrno do louçeiro, o moinho de vento, o sarrilho) ferra-
mentas mais volumosas e aperfeiçoadas que o homem acio-
na ou sôbre as quais êle exerce (se a energia motriz provém 
das forças de um animal ou dos elementos) uma constante 
vigilância. Êle não conhece ainda meios de transmitir a ener-
gia a distância, nem de transmitir a distância sua palavra, 
seu canto, suas ordens, sua imagem. Êle precisa estar pre-
sente. Presente perto do material, da ferramenta, da máqui-
na para o trabalho produtivo. Presente para falar, ensinar, 
convencer. Presente para agir. A criancinha aprende 
pouco a pouco, em seu primeiro ano, o sentimento de pre-
sença: juntando às imagens visuais certos sons (ou vice-versa), 
ela sabe que há presença de seu pai, de sua mãe. Quando 
seu pai lhe fala é porque êste está perto dela ou a pequena 
distância. Tôda voz que a criança ouve é de alguém pre-
sente ou muito próximo. Para fazer executar uma ordem, 
o senhor, o capitão, podem se dispensar de dá-la pessoal-
mente a seus vassalos, a seus oficiais: será entretanto um 
mensageiro, um enviado, — sempre um homem, — que entre-
gará uma carta, falará, exercerá em seu nome uma ação di-
reta, estará presente. 
Muito mais que pelo livro (por falta das variadas for-
mas que tomará mais tarde a palavra impressa), o homem 
no meio natural, age sôbre os outros por sua presença. Hui-
zinga cita, por várias vêzes, casos de predicadores, como o 
28 
irmão Richard ou o famoso dominicano Vincent Ferrier, que 
exercem sôbre as multidões, por sua presença, uma surpre-
endente influência, reconciliando os inimigos, arrancando lá-
grimas a seus auditórios, explodindo em soluços com êles29. 
E nós não explicaríamos tudo dizendo que se trata então de 
fenômenos de contágio emotivo. De tôdas as partes, compa-
rando-o ao nosso, temos o sentimento de que, no meio natu-
ral, o homem está plenamente mais presente a tôdas suas ati-
vidades, mais necessàriamente misturado às coisas e aos ho-
mens — trabalhos da cidade e dos campos, artes e profissões 
ou artes liberais, guerra — que nada lhe permite desaparecer 
do acontecimento, de encontrar para si um substituto. Êle 
não se poupa, está sempre muito envolvido em seu trabalho. 
Nada de festas, de jôgo, de representação dramática que pos-
sam ser concebidas sem que homens, mulheres estejam lá: 
o ator está presente. Êle fala, seus lábios, seus olhos, seu rosto 
irradiam emoção. Êle age sôbre o espectador por um influ-
xo psíquico real. O drama, o mistério são levados por pre-
senças, por gestos vivos. O espectador se mescla efetiva-
mente aos protagonistas; êle se torna um dêles 30. Uma con-
tinuidade, uma conivência se cria entre a platéia e o palco 
que não podem ser do mesmo modo atingidas em tôda forma 
de arte dramática onde imagens substituem o homem de 
carne e sangue31. 
O meio natural exige que o homem esteja presente em 
seu trabalho. O trabalho é ainda coextensivo dos movimen-
(29) HUIZINGA, obra cit., pp. 13 e seg. 
(30) A enigmática e célebre definição aristotélica da tragédia, 
uma mimésis tendo por objeto uma catharsis (Poétique, Ed. Budé, 
cap. VI, p. 36), suscitou inúmeras interpretações que deixam, em 
sua maioria, a questão por inteiro. O fundamento psicológico da 
"purgação" das paixões, provocadas pelo drama no espectador, não 
poderia ser procurado do lado desta confusão de presenças, graças 
à qual o espectador participa do drama como se fôsse um dos atô-
res e tira os benefícios morais (catharsis) de maneira tão plena 
como se êle o tivesse pessoalmente vivido? 
(31) Imagens visuais e auditivas no caso do cinematógrafo e 
da televisão; somente auditivas ao ouvinte do teatro radiofônico. 
29 
tos humanos de eficácia técnica e a ferramenta, freqüente-
mente já complexa, que o homo faber, em seu meio natural, 
interpõe entre sua mão (ou seu pé) e o material, serve não 
para suprimir a parte do homem na produção, mas, ao con-
trário, para humanizá-la ainda mais, permitindo a confecção 
de uma obra em que o mestre operário, que a termina sòzi-
nho, introduz continuidade, realização de um plano, preci-
são aumentada, harmonia de um conjunto. Mesmo numa 
profissão como a de médico, esta plenitude de presença hu-
mana é característica. 
Ninguém dirá que a medicina não fez consideráveis pro-
gressos graças aos aparelhos que o clínico dispõe hoje para 
explorar o organismo e assegurar seu diagnóstico. Entretan> 
to, os próprios médicos notaram o perigo que representa esta 
acumulação de técnicas que tende a obliterar entre êles o 
sentido do doente, o conhecimento de suas necessidades, o 
tato psíquico 32. No meio natural, quando os conhecimentos 
eram reduzidos e muitas vêzes errôneos, as técnicas ausen-
tes, havia entretanto bons e maus médicos. Somos tentados 
a subestimar hoje a importância da auscultação direta, do 
uso dos sentidos, do tato moral, da compreensão e da sim-
patia para conhecer física e psiquicamente um doente, um 
homem — a importância da presença. O médico da velha 
escola estava mais presente que o técnico de hoje circun-
dado de aparelhos. Segundo um grande escritor, que tam-
bém é médico, a medicina era outrora muitas vêzes mais hu-
mana (então mais eficaz) porque nada separava o médico 
do homem que vinha procurar junto dêle restabelecimento 
e reconfôrto33. 
(32) " . . . O ideal que cada um de nós deve ter em seu co-
ração, é de ser para nossos doentes o médico moderno com seus 
aparelhos complicados, seu laboratório químico, seus raios X, seus 
instrumentos de endoscopia, sua técnica operatória e também o 
médico de outrora que tomava a mão de seus pacientes dizendo: 
"Tenha confiança, estou ao seu lado." J. SCHOEMAKER, Discours 
d'inauguration au ler Congrès international de çfastro-entérologie, 
Bruxelas, 1935. 
(33) Georges DUHAMEL, L'Humaniste et l'Automate, Paris, 1933. 
30 
Tôda atividade do homem no meio natural, poderia ser 
analisada sob êste ângulo da presença: não somente as ativi-
dades criadoras, mas também as destrutivas 34. 
Por outra parte, o que nós chamamos presença se des-
dobra em simpatia. Nós invocamos esta a propósito da pre-
sença do médico à cabeceira do doente. No meio natural, 
a abundância das interações psíquicas, o fluxo de estimula-
ções e de imagens que envolvem o indivíduo, podem tam-
bém se interpretar como correntes de simpatia mais nume-
rosas, mais intensas e ativas que quando as técnicas se in-
terpõem a cada passo, a cada instante, como telas, entre o 
homem e os elementos naturais, entre o homem e os outros 
homens. Ascondições de existência e as atividades do indi-
víduo, no meio natural, atraem e mantêm estas funções de 
compreensão direta, de intuição das quais a psicologia cien-
tífica, tendo ultrapassado um intelectualismo muito estreito 
e desconfiado, reconhece hoje em dia a realidade que ela 
integra no conjunto da vida mental despojando-a de sua au-
réola e de suas pretensões exclusivas. Distinguimos justa-
mente, nos diversos grupos humanos (diferenciação, parti-
cularmente, sensível nos primitivos), o entendimento técnico 
de uma interpretação da vida ambiente apoiada sôbre a in-
tuição e geradora de sentimentos religiosos: o saber-utilizar 
e o saber-simpatizar35. No meio natural da civilização me-
(34) O homem estava presente na guerra: êle via seu inimigo, 
lutava corpo a corpo, arremessava suas flechas, lhe enviava pro-
jéteis à reduzida distância. Os combates põem em prática tendên-
cias, funções psicomotoras diferentes na guerra moderna onde o 
indivíduo, encerrado nas máquinas sôbre a terra, na e sôbre a 
água, nos ares, luta freqüentemente de muito longe contra adver-
sários invisíveis (ou visíveis, audíveis, sòmente com a ajuda de 
aparelhos complicados): trincheiras, fossos, minas, canhões de lon-
go alcance, explosões a distância e com retardamento, bombardea-
mentos de grande altitude, submarinos e granadas submarinas, 
bombas atômicas... A guerra técnica, evoluindo para a guerra 
total, foi superando cada vez mais a presença e as dimensões do 
homem. 
(35) Louis WEBER, in Civilisation, le mot, Vidée, pp. 131 e seg., 
e as observações penetrantes de Charles BLONDEL, "Intelligence et 
techniques", Journal de Psychologie, 1938, pp. 338 e seg. 
31 
dieval, na Europa, contrariamente ao que por tanto tempo 
afirmamos, o técnico é desenvolvido e se manifesta já em 
uma bela série de invenções que incitam a marcha do ho-
mem do Ocidente para o "domínio e posse da natureza". O 
saber-utilizar aí coabita com o saber-simpatizar: o meio na-
tural conjuga uma vida rica de compreensão direta, de pre-
sença, com a difusão das técnicas artesanais e os começos da 
indústria. A técnica não punha, então, em perigo a sim-
patia. 
Podemos, desde hoje, pressentir tudo o que ganharão as 
ciências do homem graças a um estudo sistemático das rela-
ções entre a mentalidade e as condições de vida, remergu-
lhando as sensibilidades e os espíritos em seu meio total, 
onde as técnicas se mostram particularmente influentes. Mal-
grado os chamados dos precursores, a história por muito tem-
po errou por outras vias e, sòmente, desde alguns decênios 
começa a se voltar para as tarefas fecundas. Vemos se es-
boçar os primeiros estudos nesta direção. A história das ci-
vilizações (enriquecida pelo estudo das técnicas, da econo-
mia, da alimentação, da vida rural, da indústria, bem mais 
seguramente que pelos anais dos cursos, das campanhas mi-
litares e das embaixadas) deve compreender nela a evolução 
dos modos de sentir e dos modos de pensar, enfim a evolução 
da mentalidade humana: nós nos surpreendemos que tenha 
sido preciso esperar tanto tempo para integrar esta na his-
tória científica. 
Constatemos, ao término destas rápidas observações, a 
preponderância, na civilização pré-maquinista da Europa oci-
dental, de um meio natural, mestre da cidade, quase tanto 
quanto dos campos, onipresente. Retenhamos também, sem 
prejuízo da extensão ou adaptação desta noção a outras áreas 
de civilização ou a outros tempos, a significação doravante 
ligada à expressão de meio natural, pela qual designamos o 
conjunto das condições de vida da humanidade ocidental na 
civilização pré-maquinista, que precedeu as revoluções indus-
triais e, com elas, a aparição de um meio técnico. 
32 
N O T A 
Ao fim dêste estudo, convém, a fim de prevenir mal-en-
tendidos, sublinhar que usando a expressão "meio natural", 
não esquecemos que êste é desde as origens da pré-história, 
um meio relativamente técnico: homo faber... Os esforços 
do homem para se defender, se alimentar, se abrigar, se ves-
tir, se deslocar implicam um progressivo desenvolvimento 
técnico pelo qual, a partir das sociedades mais grosseiras, a 
etnologia empresta hoje um interesse crescente (cf. na Fran-
ça, os livros de André LEROI-GOURHAN ) . A escola francesa 
de geografia humana foi orientada por seu fundador para o 
estudo sistemático das empresas que o homem imprime sôbre 
o planeta. Maximilien SORRE executou num tríptico considerá-
vel, o impressionante balanço (Cf. Les Fondements de la 
Géographie Humaine, Paris, A. Colin, 1943-1952). — Nós pen-
samos entretanto que a qualificação de "meio natural" se 
justifica, aplicada às sociedades do passado e do presente que 
utilizam somente motores de energia natural (fôrça animal, 
vento, água) e que ainda não alcançaram as revoluções in-
dustriais, caracterizadas pelos motores de energia térmica, 
elétrica, atômica... Depois de cento e cinqüenta anos, o rit-
mo do progresso técnico manifesta uma aceleração até então 
desconhecida. A quantidade de seus elementos suscita for-
mas, uma qualidade nova de civilização. O homem é cada 
vez menos tributário da natureza e a utilização industrial da 
energia atômica não fará mais que precipitar esta evolução. 
Em suma, quaisquer que sejam as aquisições técnicas da 
humanidade até esta data, _o fim do século XVIII nos parece 
marcar uma charneira e mesmo um "salto", o começo de uma 
nova etapa no "condicionamento" psico-sociológico do ho-
mem por seu meio. 
2 33 
O MEIO TÉCNICO: NOVOS MODOS DE 
SENTIR E DE PENSAR* 
1 
O nôvo meio estende em tôrno do homem uma rede 
cada vez mais cerrada de estimulações, de solicitações oca-
sionais ou permanentes, de condições de existência profun-
damente modificadas em comparação com as de seus avós: 
ninguém pode duvidar que seu psiquismo, e particularmente, 
suas maneiras de sentir, de perceber, de imaginar, de que-
rer, não tenham sido atingidas pela pressão tão rica e va-
riada do meio assim transformado pela necessidade inces-
sante de reaigir a êle. Na literatura européia e norte-ameri-
cana, um grande número de obras — romances, novelas, poe-
mas — traduzem em personagens, situações e sentimentos, as 
desadaptações e os desequilíbrios significativos, oferecem inú-
meras anotações sutis sobrê a mudança psicológica do homem 
moderno, os problemas e ruturas, os dramas que lhe são 
por vêzes inseparáveis. Certas produções da arte cinema-
tográfica constituem também, nesta ordem de realidades, do-
(*) Êste texto foi escrito em 1942, durante a ocupação alemã, 
utilizando as obras aparecidas e acessíveis àquela época. Convém 
lembrar ao leitor que a civilização tecnicista é estudada tal qual 
se apresentava ao observador em 1939 e com a ajuda da literatura 
científica então disponível. 
34 
cumentos de um grande interesse \ Encontrar-se-á mesmo, 
através da sensibilidade dos pintores, expressões plásticas 
dessa transição das coisas e dos sêres. É junto a estas obras 
variadas que o observador pode apreender, registradas e am-
pliadas pelo sistema nervoso mais delicado dos artistas, as 
vibrações suscitadas pelas mudanças em curso, que ainda 
não atingiram, na maior parte dos indivíduos, uma nova fase 
de equilíbrio. É aí que se encontram, como postas de lado 
pelo psicólogo e pelo historiador, inúmeros testemunhos e do-
cumentos que não poderão deixar de levar em consideração. 
Todavia, a psicologia científica não parece ter, até aqui, apre-
endido a importância de fenômenos que ela não pode igno-
rar. Talvez seja ainda muito cedo para notar e observar suas 
manifestações. Os métodos psicotécnicos não lhes foram apli-
cados senão muito raramente. Os psicólogos não parecem ter 
percebido a amplitude desses problemas2. Vale dizer que 
devemos nos limitar aqui a marcar algumas indicações, num 
domínio ainda inexplorado. 
É a partir da primeira infância que seriapreciso estudar 
estas transformações no jôgo das funções da sensibilidade e 
da percepção. A criança das cidades é imediatamente mer-
gulhada num mundo em que os objetos fabricados afastam-
-na dos elementos naturais. Ora, objetos fabricados, e isto 
desde as épocas pré-maquinistas, revelam à criança seu sen-
tido pela sua forma: assim um leito feito para nele se es 
tender, uma faca, cujo contôrno incita a cortar, um sapato, a 
nele abrigar os pés. A criança reconhecerá a cama qualquer 
que seja seu tamanho, sua côr, sua forma. Nesse estágio, a 
percepção implica já uma iniciativa intelectual: a criança 
(1) Entre outras: La Ville de King VIDOR, Solitude de Paul 
FEJOS, A nous la liberté de René CLAIR e, bem entendido, Tempos 
Modernos, de Charles CHAPLIN. 
(2) Com exceção de Henri WALLON que o encara ao curso de 
uma penetrante exposição sôbre "Psychologie et technique" (cf. 
Journal de Psychologie, 1935, pp. 161-182). 
35 
interpreta cada instante e vê no objeto mais do que lhe ofe-
recem seus sentidos 3. 
Mas com a crescente impregnação do meio, pelas técni-
cas, o extravasam e;n to da percepção muito além dos dados 
sensíveis cresce ainda mais. A interpretação requerida por 
parte da criança se complica. O fogão a gás, por suas for-
mas, seus tubos, torneiras, já é menos fácil de interpretar, 
de classificar enquanto percepção, do que o caldeirão ferven-
do sôbre o fogo de lenha ou mesmo o velho fogareiro de 
carvão. O isqueiro, com sua mola e seu disparador, é menos 
simples que o fósforo e sua significação supera o que a crian-
ça pode reter de suas aparências. O cavalo, motor animal 
do veículo, é para a criança de uma "leitura" imediata, na-
tural, coextensiva às aparências. O automóvel exige uma per-
cepção muito mais intelectualizada, que ultrapassa de muito 
os sinais, como a voz que sai do gramafone ou do rádio. Os 
algarismos, as medidas vêm cedo acrescer ainda mais a par-
te intelectual das experiências infantis: distância e pêso das 
bo^s, valor nominal e real dos selos que ela reúne e troca, 
potência, velocidade dos automóveis que ela segue com os 
olhos na hora do passeio e dos quais ela se empenha em 
conhecer a marca. As medidas, ainda, intervém no curso 
dos jogos que se lhe oferecem e as construções de cartão, de 
madeira, de metal ("Mecano") lhe dão freqüentemente oca-
sião de fazer uso delas. 
É pois uma maneira de perceber mais interpretante, mais 
excedente com relação ao sinal e por conseqüência mais in-
telectualizada, que nos parece ser desenvilvida pelas trans-
formações do nôvo meio. Encontra-se um exemplo interes-
sante na percepção (ou no sentimento) de presença. Há 
pouco, cada vez que se encontravam reunidas em sua expe-
riência instantânea uma imagem visual, por exemplo, a de 
seu pai e o som de uma voz, bem conhecida, a criança tinha 
a percepção da presença paterna. Sentidos e imagens vinham 
(3) Cf. Charles BLONDEL. Introduction à la Psychologie collec-
tivq, Paris. A. Colin, 1928, p. 115. 
36 
da mesma região do espaço. Ela via e ouvia o pai ao 
mesmo tempo. Hoje, o pai, longe de casa, telefona: e eis 
que a mãe (é um gesto que diverte muito aos pais) coloca 
um dia o auscultador na orelha da criança que ouve o 
pai chamá-la nos têrmos familiares: repetindo-se, esta expe-
riência não pode deixar de influenciar as percepções da crian-
ça, como não pode deixar de atgir a visão desta caixa fan-
tástica de onde tôdas as noites depois do jantar, o pai, vi-
rando um botão, faz sair uma voz, vozes. 
A multiplicidade de máquinas com as quais a vida coti-
diana envolve a criança lhe assegura experiências tão dife-
rentes das que, com a mesma idade, conheceram seus avós 
e mesmo seus pais. A experiência precoce do sentido da ve-
locidade, em estrada de ferro, em automóvel, ressalta ainda 
à percepção e a suas modalidades novas. Mas êsses veículos 
rápidos param com um sinal. Quem não viu por vêzes, em 
Paris, ao longo dos bulevares, numa faixa de segurança, duas 
crianças de mãos dadas, estendendo bravamente a outra 
com um gesto frágil para deter a corrente ameaçadora de 
veículos? Não há aí uma experiência que pode contar para 
formar a noção de potência, de energia, como contam êstes 
brinquedos em que a criança, manejando um simples inter-
ruptor movimenta ou pára, a sua vontade, sôbre os trilhos, 
a locomotiva de seu trem elétrico 4 ? 
Êste mundo solicita, e, por outro lado, desenvolve inten-
samente certas formas de imaginação. De todos os lados, 
imagens se oferecem à criança. Imagens visuais de cartazes, 
da rua, de painéis que ela percebe no campo, através do vi-
dro do carro ou do vagão. Imagens visuais dos livros de 
aula, onde elas acompanham e às vêzes substituem o texto 
de há pouco, imagens do cinema para onde os pais, leva-
dos por seus prazeres, seus hábitos, a arrastam bastante cedo 
a fim de não deixá-la sòzinha em casa. Quantas crianças nos 
cinemas para adultos! Mesmo se ela "não compreende" (o 
que é ótimo), lá estão imagens que lhe deixam traços. E 
(4) Henri WALLON, art. citado, p. 178. 
37 
depois, existem boas realizações do cinema para crianças, 
o cinema educativo que começa a penetrar as salas de aula, 
as imagens auditivas do gramofone, do rádio. O amolda-
mento da imaginação da criança pelas técnicas é constante, 
na aldeia, onde elas fizeram sua aparição, e sobretudo na 
cidade. Desde que ela se levanta, se lava, se veste, a crian-
ça é tomada por elas. Milhares de imaigens na rua, na casa 
familiar, durante os momentos de lazer, povoam seu espí-
rito. Participando desses fenômenos de civilização, por essên-
cia internacionais, que lhe trazem imagens e ecos de todo o 
mundo, ela se vê logo às voltas com um universo que a atin-
ge por completa e cada vez mais profundamente. 
No meio dêsse fluxo de imagens e de impressões, sua 
mentalidade não poderia permanecer a mesma. A criança se 
interessa cada vez menos pelos contos que se dirigiam a 
uma forma de sua imaginação, hoje freqüentemente ultrapas-
sada nos meios urbanos 5. Professores que ensinaram em li-
ceus de províncias, freqüentados por crianças ainda próxi-
mas do meio rural, e depois em Paris, observaram a dife-
rença de mentalidade entre os alunos, diferença na atenção, 
nos modos de reações afetivas e intelectuais (estas, muitas 
vêzes, mais vivas na capital), o gôsto das leituras que é com-
batido pelas múltiplas solicitações da cidade, os brinquedos 
e o "bricolage" 00 mecânico, o interêsse pelo automóvel, o 
campismo, etc.,s; as diversões das crianças dos meios absor-
vidos pela civilização tecnicista das cidades não são as mes-
mas da criança próxima ainda de um meio natural. 
É na criança ainda que se deveria observar o que se 
torna, no nôvo meio as ocasiões de se fazer ofertas aos ins-
(5) Cf. Karl BÜHLER, Die ç/eistige Entwicklung der Kinder, 3 A 
ed., Iena, 1922. 
(**) Pequenos trabalhos, remunerados ou não, que podem ser 
feitos em casa. Ver mais adiante a nota à página 103. (N. dos T . ) 
(6) Edmond LACKENBACHEH (morto em Dunquerque em 1940), 
que foi meu colega no liceu de Bourges e ensinou em seguida nos 
liceus parisienses, foi quem primeiro chamou minha atenção sôbre 
estas diferenças. 
38 
tintos. Todo o instinto que não encontra o meio de se ati-
var está condenado a um enfraquecimento mais ou menos 
rápido: os instintos estão caducos. Sua preservação é então 
posta em questão por uma mudança de condições tão pro-
funda quanto a que marca a passagem do meio natural a 
um nôvo meio. As possibilidades e os estados da maturação 
dos instintos na criança que vive nas condições da civilização 
tecnicista: domínio de estudos que a psicologia científica 
não poderá negligenciar. 
2 
Sôbre o exemplo de instintos comumente admitidos, in-
dicados de passagem, em breves anotações, podemos reconhe-
cer algumas de suas transformações pelo nôvo meio. 
Os instintos denutrição, ou alimentares, foram estudados 
pela psicologia contemporânea desde Ribot7. Mas como suas 
manifestações variam logo que se estende em tôrno do ho-
mem o nôvo meio ambiente! Não somente o que se come, 
mas a maneira de comer, os ritmos das refeições, as esperas 
(ou não-esperas) da fome, as quantidades necessárias e in-
geridas diferem. Neste sentido, o exemplo característico da 
civilização tecnicista dos Estados Unidos é surpreendente: a 
rapidez das refeições, sua irregularidade (contrastadas com os 
hábitos alimentares das velhas civilizações ainda ritmadas 
por condições naturais ou por sua sobrevivência), a impor-
tância (por vêzes a exclusividade) do alimento em conserva 
e consumido logo depois de enlatado, a multiplicidade dos 
bares automáticos onde se come em pé num canto de mesa, 
a importância dos deslocamentos que conduz muitas pessoas 
(submetidas a seu horário e suas pressas) a comer qualquer 
coisa a qualquer momento. Não é que o gôsto e as possibi-
lidades de bons alimentos tenha diminuído hoje em dia, lon-
ge disso. Êstes (graças aos transportes frigoríficos, extra-
(7) Se bem que, de seu ponto de vista, seja particularmente 
difícil, no' homem, traçar a fronteira entre instintos e necessidades. 
39 
-rápidos, ao avião) até que aumentaram. Mas lá ainda, deve-
mos nos lembrar que os meios, quaisquer que sejam, se ins-
crevem em um conjunto, em uma civilização, que lhes im-
prime sua marca, seus constrangimentos, seus fins. Daí a 
utilização feita de certas possibilidades em um quadro deter-
minado. Daí também este fenômeno de reação (correspon-
dente à evasão das cidades para os espaços, as águas, as flo-
restas, que anteriormente assinalamos) contra uma alimenta-
ção demasiado exclusivamente artificial e condicionada, que 
representa a súbita difusão enorme, dos alimentos crus: fru-
tas e sucos de frutas, legumes, saladas e mesmo carnes cruas, 
miúdos (fígado) consumidos crus. Ainda aqui, encontramos 
esta reação particularmente viva nos Estados Unidos, onde 
não pôde ser estabelecida, depois de sua fundação, uma cul-
tura, uma tradição gostronômica. Não foram apenas os ali-
mentos que mudaram: suas variações acompanham a história 
das civilizações em todas as épocas e particularmente a evo-
lução das condições de agricultura, da indústria, do habitat8; 
estes são também todos os atos que cercam a satisfação dos 
instintos e necessidades de nutrição. 
Sob a rubrica do instinto de conservação, experimenta-
mos amiúde o instinto de fuga diante do perigo. A fuga do 
lenhador diante de um animal selvagem que o persegue ou 
a do caminhante diante de um automóvel que aparece de 
imprevisto põem em jôgo reações psicológicas diferentes. Ora, 
os perigos mecânicos são certamente hoje muito mais fre-
qüentes que aquêles que provêm de sobrevivências do meio 
natural. Os comportamentos devidos ao instinto de conser-
vação variam segundo as circunstâncias que os põem em jô-
go: os do pilôto em perigo, do motorista ou foguista que 
percebe de repente um obstáculo ameaçador são condiciona-
dos, em cada caso, pelos dispositivos de segurança e mais 
geralmente pelos conjuntos das modalidades do meio técnico. 
A reação de defesa do indivíduo não é sempre de fuga: ela 
(8) Cf. a obra de A. MAURIZIO aparecida em polonês em 1926, 
trad. francesa, Histoire de Valimentation végétále, Paris, Payot, 1932. 
40 
também pode ser de combate. O instinto de agressividade, 
citados pelos psicólogos, não se manifesta da mesma manei-
ra desde que o homem deve contar somente com sua fôrça 
ou quando dispõe de armas. Na civilização tecnicista onde 
estas são mais e mais difundidas e seu uso tornado comum 
pelo treinamento militar, a psicologia da defesa não pode ser 
a mesma que outrora: a parte do homem, a parte da fôrça 
muscular (se bem que continue a contar) diminui em com-
paração com aquela de habilidade técnica em utilizar uma 
arma. O papel e a psicologia do "homem forte", do homem 
temido por sua fôrça, não são mais os mesmos que no meio 
natural. 
Entre os instintos recenseados no homem, nenhum é me-
nos contestável que o instinto sexual, nenhum parece modi-
ficar-se tanto na civilização tecnicista. Outrora, nos meios 
policiados de uma civilização de ritmo mais lento, os pre-
parativos do amor, dos trabalhos de aproximação feitos ne-
cessários pela vida recolhida das jovens e das mulheres, e o 
rigor dos quadros sociais e morais que as protegiam, as fre-
qüentes delicadezas sentimentais (que coexistiam nos homens, 
embora mais rudes, com a necessidade bruta da satisfação 
dos apetites) são relatadas pela história dos costumes, e pe-
los testemunhos da literatura. Seria necessário, é certo, pôr 
muitas nuatiças em um esboço menos rápido, mas, podemos 
dizer que em comparação com este passado, observamos no 
nôvo meio, um realismo, uma indiferença por vêzes cínica 
aos recursos, a recusa, por muitos jovens, de tudo o que êles 
chamam, "complicação" sentimental. A importância do di-
nheiro, que intervém para transformar inúmeros encontros 
(de uma maneira mais ou menos disfarçada) em uma troca 
de serviços, é evidentemente considerável em nossas socie-
dades e muito mais que a "felicidade-padrão" (carro, cine-
ma, rádio, etc.), parece ser, aos olhos de mulheres e de ho-
mens marcados pelo nôvo meio, uma questão de preço. Con-
siderando mais particularmente a ação do nôvo meio técnico, 
percebemos antes de mais nada que ela se entremeia cons-
tantemente com as condições econômicas. A densidade das 
grandes cidades, a multiplicação dos transportes suprimiram 
41 
muitos obstáculos: mas nada agiu mais eficazmente nesse 
sentido que o automóvel. Êle permite deslocamentos, êle 
facilita as reuniões, êle lhes faculta álibis, constitui para um 
casal um abrigo, um local de encontros discreto e móvel. 
O papel do automóvel é considerável na moderna psico-so-
ciologia das relações sexuais. Por outro lado, o instinto se-
xual está submetido a constantes, múltiplas, obsedantes soli-
citações sob a influência da nova circunvizinhança dos laze-
res, de sua exuberância imperiosa, de seus desequilíbrios: 
leituras, cartazes, espetáculos de teatro e de music-hall, rá-
dio, cinema, modas femininas e masculinas das cidades e dos 
lugares de férias padronizados, tudo se organiza e se alia 
para estender em volta do homem e da mulher um meio 
erótico e mesmo afrodisíaco, meio artificial cuja ação sôbre 
as expressões e os modos de satisfação do instinto sexual é 
muito sensível. A psicologia da vida sexual, que teve recen-
temente o seu aparecimento sob o aguilhão da psicanálise ao 
negligenciar o estudo sistemático das influências do meio lar-
gamente compreendido, privou-se assim certamente das pers-
pectivas indispensáveis a interpretações menos dogmáticas e 
mais compreensíveis. 
De qualquer lado que nos voltemos e qualquer que seja 
a extensão que possamos dar à gama dos instintos humanos, 
aquêles que admitimos são tocados pelas transformações do 
nôvo meio: assim o instinto gregário, o instinto de apropria-
ção (afirmado por McDougall), a imitação que toma formas 
novas numa civilização onde a pressão social e o constran-
gimento econômico tornam-se freqüentemente uma necessi-
dade. 
Entre os instintos contrariados pelos desenvolvimentos do 
maquinismo, existe um ao qual certos autores, e muito par-
ticularmente Thorstein Veblen, quiseram dar um lugar de 
destaque: o que êles chamam de instinto artesão, pelo qual 
êles designam o instinto criador, tal como se manifesta, em 
geral, na antiga indústria e especialmente no artesão 9. Êste 
(9) Thorstein VEBLEN, The instinct of workmanship and the 
state of the industrial arts, Nova Iorque, 1914, pp. 307 e seg. e o 
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instinto artesão teria, segundo Veblen, se expandido na épo-
ca dos ofícios manuais, onde o produtor, que havia pago pelo 
preço de seu trabalho sua aprendizagem,

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