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6 SENTENÇAS, ENUNCIADOS, PROPOSIÇÕES Três abordagens Uma questão recorrente na filosofia da lógica diz respeito à per- gunta sobre o tipo de coisa com a qual a lógica lida, ou talvez lide principalmente. As alternativas apontadas são usualmente senten- ças, enunciados e proposições, ou, mais raramente nos dias de hoje, juízos ou crenças. Coloquei a questão de uma maneira deliberada- mente vaga, uma vez que mais de um ponto parece estar envolvido. Uma vez mais, assim como na questão a respeito do significado dos conectivos, quantificadores etc., o problema diz respeito à relação en- tre argumentos formais e informais: nos argumentos informais, o que corresponde às fórmulas bem-formadas das linguagens formais? Pode ser útil distinguir três abordagens à questão: (i) sintática: nas línguas naturais, o que é o análogo dos ‘p’, ‘q’ da lógica formal? Tendo falado até aqui de ‘cálculo sentencial’, eu não pretendia dar como resolvida essa questão. Alguns preferem falar de ‘cálculo pro- posicional’, ‘variáveis proposicionais’, ‘conectivos proposicionais’; e até aqui não disse nada para justificar minha preferência pelo primei- ro uso. (ii) semântica: que tipo de coisa é capaz de verdade e falsidade? 114 Filosofia das lógicas Uma vez que as linguagens formais visam representar aqueles argu- mentos informais que são válidos extra-sistematicamente, isto é, que preservam a verdade, isso vai estar intimamente relacionado com a primeira questão. (iii) pragmática:1 que tipos de coisa supor-se-ia serem os ‘objetos’ de crença, conhecimento, suposição etc.? (‘Saber’, ‘acreditar’, ‘supor’ etc., são, às vezes, chamados verbos de ‘atitude proposicional’.) Uma vez que se pode saber, acreditar ou supor algo verdadeiro ou algo falso, a terceira questão vai estar es- treitamente relacionada com a segunda. No momento, contudo, não vou discutir (iii) (mas cf. p.172-6 e cap.12, p.309). Vou comentar primeiro, muito brevemente, (i), e então, mais longamente, (ii). Sentença, enunciado, proposição Uma discussão preliminar necessária, entretanto, é especificar o que quero dizer com ‘sentença’, ‘enunciado’ e ‘proposição’, pois uma razão pela qual a discussão dessas questões é freqüentemente confusa é que há pouca uniformidade de uso. Por uma sentença vou indicar qualquer cadeia gramaticalmente correta e completa de expressões de uma língua natural. Por exemplo, ‘A neve é branca’, ‘Feche a porta’, ‘A porta está fechada?’ são senten- ças. ‘Sentado ao’ e ‘é cor-de-rosa’ não são. Espero que essa explicação geral e imprecisa seja suficiente para transmitir a idéia que tenho em mente. É claro que ela é imprecisa na medida em que há incerteza a respeito de que cadeias de expressões devam ser consideradas gra- maticais. Vou precisar distinguir entre tipos de sentenças (sentence types) e ocorrências de sentenças (sentence tokens). Uma ocorrência de sentença é um objeto físico, uma série de marcas sobre o papel ou de ondas sonoras, constituindo uma sentença escrita ou falada. Às 1 Chamo essa abordagem de pragmática porque a pragmática se ocupa das relações entre expressões e os usuários dessas expressões (a ‘sintaxe’ e a ‘semântica’ foram explicadas no Capítulo 2). Retiro essa forma de separar as questões de Gochet (1972). Sentenças, enunciados, proposições 115 vezes, contudo, pensa-se em duas ou mais ocorrências como inscri- ções ou proferimentos da mesma sentença, em certo sentido. ‘Mesma sentença’ significa aqui ‘o mesmo tipo de sentença’. Por exemplo, as duas inscrições: Todos os filósofos são um pouco malucos Todos os filósofos são um pouco malucos são ocorrências do mesmo tipo. Pode-se considerar um tipo de sen- tença ou como um padrão que ocorrências semelhantes exemplifi- cam, ou como uma classe de ocorrências semelhantes. A questão sobre o que tomar como critérios de identidade para tipos de senten- ças é muito discutida. Alguns requereriam similaridade tipográfica ou auditiva (presumivelmente, necessitar-se-ia também especificar as condições nas quais um proferimento fosse do mesmo tipo de senten- ça que uma inscrição); outros requereriam a igualdade de significado. Vou ficar com o primeiro critério, e admitir a possibilidade de tipos ambíguos de sentença. Mais uma vez, preciso distinguir, nas sen- tenças, aquelas que são interrogativas ou imperativas, por exemplo, daquelas que são ‘declarativas’. As sentenças cujo verbo principal está no modo indicativo são declarativas, mas ‘declarativo’ entende- se como muito mais amplo que ‘indicativo’, de forma a incluir, por exemplo, condicionais cujo verbo principal está no subjuntivo. Intui- tivamente, poder-se-ia dizer que as sentença declarativas são aquelas qualificadas para a verdade e a falsidade, ao passo que as sentenças não-declarativas não o são. Contudo, definir ‘declarativo’ desta for- ma, no presente contexto, seria obviamente circular. Por um enunciado vou indicar o que é dito quando uma senten- ça declarativa é proferida ou escrita. Em seu emprego não-técnico, ‘enunciado’ é ambíguo entre o evento do proferimento ou a inscrição de uma sentença, e o conteúdo do que é escrito ou proferido. Apenas o segundo sentido é relevante para as preocupações presentes. Surge agora a questão de se todo proferimento ou inscrição de uma senten- ça declarativa vai produzir um enunciado. Strawson parece pensar que alguns usos de sentenças declarativas – seus exemplos incluem proferimentos ou inscrições usados quando se atua em uma peça ou se escreve um romance – não produzem enunciados. Como vimos 116 Filosofia das lógicas no capítulo anterior, ele também parece sugerir que os proferimentos de sentenças cujos termos sujeito nada denotam deixam de produzir enunciados, embora, outras vezes, ele sugira, ao contrário, que tais proferimentos são enunciados, mas enunciados que não são nem ver- dadeiros nem falsos. Essas questões, obviamente, vão ser importantes para o assunto dos portadores de verdade. Ora, quando é que dois proferimentos ou inscrições produzem o mesmo enunciado? É co- mum se dizer que eles o fazem exatamente no caso em que ‘dizem a mesma coisa sobre a mesma coisa’. Essa explicação funciona suficien- temente bem em casos simples. Por exemplo, os proferimentos: Você está com calor (dito por x a y) Eu estou com calor (dito por y) J’ai chaud (dito por y) iriam, por esses padrões, produzir o mesmo enunciado. Contudo, tornar o critério preciso parece ser difícil, pois pode não ser sempre fácil especificar quando dois proferimentos são a respeito da mesma coisa, e poderia ser mais difícil ainda especificar quando eles dizem a mesma coisa sobre seu tema, uma vez que isso requereria que se recorresse à noção notoriamente complicada de sinonímia. Por uma proposição vou entender o que é comum a um conjunto de sentenças declarativas sinônimas. Neste sentido de ‘proposição’, duas sentenças vão expressar a mesma proposição se elas tiverem o mesmo significado. Assim, aqui, mais uma vez, assim como com os enunciados, o problema da sinonímia vai ter de ser enfrentado. Uma outra explicação, popular desde o surgimento da semântica de mun- dos possíveis para as lógicas modais, identifica uma proposição com o conjunto de mundos possíveis nos quais ela é verdadeira, ou com uma função de mundos possíveis em valores de verdade. Contudo, não é claro que isso resulte em algo muito diferente da explicação que dei antes, desde que se distingue o mundo possível no qual p do mundo possível no qual q, ao se distinguir p de q. (Se ‘Jack e Jill têm um de seus pais em comum’ expressa a mesma proposição que ‘Jack e Jill são meio-irmãos’, então todos os mundos possíveis nos quais vale a primeira são mundos possíveis nos quais vale a segunda, e se não, não.) Uma outra explicação, que delimita uma idéia diferen- Sentenças, enunciados, proposições 117 te, identifica a proposição com o conteúdo comum de sentenças em diferentes modos. Assim: Tom fechoua porta. Tom, feche a porta! Tom fechou a porta? têm como conteúdo comum a proposição: o fechar da porta por Tom. As proposições, neste sentido, são candidatos improváveis a portado- res de verdade, e por essa razão vou lhes dar bem pouca atenção aqui. Contudo, elas possuem alguma relevância para a interpretação da ló- gica imperativa, por exemplo, sobre a qual vou fazer alguns breves comentários a seguir. É bastante fácil verificar que sentenças, enunciados e proposições, como foram aqui caracterizados, são diferentes, isto é, que se poderia ter a mesma sentença, mas diferentes enunciados e diferentes pro- posições; o mesmo enunciado, mas diferentes sentenças e diferentes proposições; a mesma proposição, mas diferentes sentenças e diferen- tes enunciados (cf. Cartwright, 1962). A atitude que se tem em face de enunciados ou proposições po- de bem ser marcada pelas concepções metafísicas que se tenha. Os nominalistas, que têm aversão aos objetos abstratos, ou os extensio- nalistas, que suspeitam que as noções de significado sofrem de uma falta de clareza incapacitante, tendem a uma predisposição contrá- ria em face dos enunciados e das proposições e favorável em face das sentenças, enquanto os platônicos, admitindo objetos abstratos, e os intensionalistas, que estão à vontade com a teoria do significado, poderiam admitir tranqüilamente enunciados ou proposições. (Com- parar Quine, 1970, cap.1, com Putnam, 1971, caps. 2, 3, 5, para atitudes constrastantes.) É preciso observar, contudo, que embora as ocorrências de sentenças sejam objetos físicos, os tipos de sentenças são objetos abstratos; e que, enquanto os critérios de identidade tanto para enunciados quanto para proposições requerem o recurso à sino- nímia, os critérios de identidade para tipos de sentenças requerem o recurso à noção não inteiramente inquestionável de similaridade. (Ver Goodman, 1970, para alguns dos problemas que envolvem as tentativas de definir a similaridade de forma precisa.)
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